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Grupo Único PDF PaD O melhor de Sherlock Holmes em 4 volumes Nas livrarias /escalaoficial Ou acesse www.escala.com.br C O L L E C T I O N ARTHUR CONAN DOYLE anuncio_colecao.indd 1 10/05/2019 15:22:07 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 3 EDITORIAL O querer e a organização social Nesta edição, Renato Nunes Bittencourt, docente da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro, traz a perspectiva schope-nhaueriana sobre a sociedade do consumo, no entendimento de que o esforço do pensador em compreender a vontade humana e como esta é negada na Modernidade passa por uma análise desse contexto à luz do capitalismo vigente. O querer irrefreável e egoísta seria a base dessa sociedade e, possivelmente, a raiz de seu sofrimento. Ainda neste número, Fabio A. G. Oliveira (org.), professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense, e colegas trazem a segunda parte do dossiê sobre democracia, agora tratando de temas como feminismo, racismo, tecnologia e meio ambiente. Na edição passada, a leitora e o leitor tiveram contato com o histórico de construção do conceito de demo- cracia, o seu tratamento como expressão política de uma concepção de justiça mais inclusiva e uma discussão, sob uma perspectiva democrática, de temas como laicidade, inclusão e sexualidade. Como bem abordou Oliveira, em introdução a esse dossiê, em número anterior de Filosofia, responder a pergunta “o que é democracia” exige de nós “um mapeamento histórico-filosófico que envolve diferentes aspec- tos espaço-temporais da organização social, econômica, cultural e política da vida”. Trata-se, assim, segundo o acadêmico, de colocar em xeque os valores e processos imbricados na condução e manutenção dos direitos, mas também das desigualdades, dos privilégios e da exclusão, muitas vezes institucionalizadas por processos legais. Defender a democracia seria, em suma, um projeto de enfrentamento à nova obscu- ridade, tal qual propõe Habermas, combatendo-se, como lembrado por Oliveira, “uma espécie de valoração da ignorância, fruto da equiparação entre crenças e certezas, da valorização do dogma e controle persecutório do diferente, dissenso e contraditório através de uma educação crítica”. Boa leitura! Da Redação SH U TT ER ST O C K editorial.indd 3 24/05/2019 12:56 Grupo Único PDF PaD IMAGENS: SHUTTERSTOCK número 151 58 DOSSIÊDefender e pensar a democracia (Parte 2) TEMAS: Feminismos para quem? Convergência entre democracia e feminismo seria inegável • Antirracismo: Debate sobre a educação das relações étnico-raciais segue fundamental • Meio ambiente: Pauta ambiental em uma política democrática • Tecnologia: Interações mudam perspectivas, a esfera pública e a concepção da democracia 72 FILO ORIENTALEstratégia e sabedoria, por André Bueno 76 RESENHASexo, ecologia e espiritualidade, de Ken Wilber 78 FILOCLÍNICADoenças imaginárias, por Lúcio Packter 82 OLHO GREGOA liberdade de expressão, por Renato Janine Ribeiro A LIBERDADE DE EXPRESSÃO, POR RENATO JANINE RIBEIRO Pensador vai contra apelos do consumo e alerta: “a base do querer é o sofrimento” DOSSIÊ DEMOCRACIA Segunda parte aborda propostas democráticas para o meio ambiente, entre outros temas CONTRA A FILOSOFIA DO “OPA!” Obra de Ken Wilber traz explicações alternativas para a evolução do universo ANO XIII No 151 – www.portalespacodosaber.com.br CADERNO DE CIÊ NCIAS SOCIAIS • ciência& vida • 35 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDU CAÇÃO O CONHECIM ENTO PELA LUZ NA TUR AL ÓDIO AO OUT RO: DISTORÇÕES DA REALIDAD E CADERNO_EXERCICIO _FILO.indd 35 17/05/2019 20:30 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO: O CONHECIMENTO PELA LUZ NATURAL: UM OLHAR SOBRE O INATISMO CARTESIANO • O ÓDIO AO OUTRO NAS DISTORÇÕES DA REALIDADE Schopenhauer e a negação da VONTADE DOSSIÊ DEMOCRACIA Segunda parte aborda propostas democráticas para o meio ambiente, entre outros temas CONTRA A FILOSOFIA DO “OPA!” Obra de Ken Wilber traz explicações alternativas para a evolução do universo CAPA151_APROVADA.indd 1 24/05/2019 12:55 SUMÁRIO 14 PENSADORES/ CAPA Schopenhauer embasa crítica à sociedade do consumo 22 SOCIEDADE Filosofia contra as fake news 28 VIDA E OBRAAs teorias de Jean Jacques Rousseau 51 PARA REFLETIRLiteratura, Artes Visuais, Filosofia da Mente e tecnologia nos espaços comandados por Ana Haddad, Walter Cezar Addeo e João de Fernandes Teixeira CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • O CONHECIMENTO PELA LUZ NATURAL: UM OLHAR SOBRE O INATISMO CARTESIANO • O ÓDIO AO OUTRO: DISTORÇÕES DA REALIDADE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS • ciência&vida • 35 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO O CONHECIMENTO PELA LUZ NATUR AL ÓDIO AO OUTRO: DISTORÇÕES DA REALIDADE CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 35 17/05/2019 20:30 6 ENTREVISTAClodoaldo Luz e a obra de Agostinho de Hipona IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L COM PROPOSTA DIDÁTICA Sumario.indd 4 24/05/2019 12:59 Grupo Único PDF PaD MOMENTO DO LIVRO Livro: O Diário de Anne Frank Número de páginas: 240 Editora: Geek Veja outras informações no site: www.escala.com.br No auge da Segunda Guerra Mundial, uma garota ganha em seu aniversário de 13 anos um caderno de autógrafos. Tinha um fecho e capa dura de tecido xadrez vermelho e branco. O nome da garota era Anne Frank e ela gostava muito de escrever. Por isso, transforma o caderno em um diário. Menos de um mês depois, Anne, a irmã Margot e os pais vão para um esconde- rijo secreto, onde passam mais de dois anos, com outras quatro pessoas, para não serem enviados para um campo de concentração. Os nazistas acham o esconderijo e o grupo não escapou do holocausto. Anne, que era judia, morreu pouco an- tes de fazer 16 anos. Porém o diário onde foram narrados os momentos so- bre a vida de Anne Frank e os aconte- cimentos vivenciados no anexo secreto sobreviveu e se tornou um dos livros mais lidos do mundo, traduzido para mais de 60 idiomas. JÁ NAS BANCAS E LIVRARIAS! O DIÁRIO DE ANNE FRANK ML_anne frank.indd 1 24/05/2019 14:33 Grupo Único PDF PaD ENTREVISTA Clodoaldo da Luz 6 • ciência&vida Acadêmico discorre sobre legado de Agostinho de Hipona, na Idade Média, e destaca a grande contribuição de Descartes para o advento do período moderno Por Fábio Antonio Gabriel * • Doutorando em Educação com bolsa de doutorado concedida no âmbito Capes/Fundação Araucária. Agradece as respectivas instituições pela colaboração financeira nas pesquisas desenvolvidas. Organizador de diversas coletâneas, entre elas Docência: processo do ensinar e aprender (Editora Multifoco). Site: www.fabioantoniogabriel.com IM A G EM : A R Q U IV O P ES SO A L E SH U TT ER ST O C K ceituar de o “filosofar na crença”, convertendo o afã pela felicidade na caminhada rumo à bem- -aventurança. Se, outrora, Tertuliano (155 d.C. a 222 d.C.) indicava que a Filosofia seria avessa à fé, em Agostinho fé e razão caminham juntas na con- secução da finalidade do contemplar a verdade. Para Agostinho, a busca pela verdade requeria o diálogo entre a autoridade, sobretudo a di- vina, e a razão. Em que a primeira concedia à segunda substrato essencial para sua atividade especulativa. Ou seja, a autoridade dispunha dos elementos necessários e pertinazes para a especulação racional na empreita de busca e contemplação da verdade. Por isso Agostinho (Cf. 1995, p. 78-79) n’O livre-arbítrio afirma que não buscava compreen- der para crer, mas acreditava para compreender. Desse modo, nessa interação entre autoridade e razão, fé e razão, a Filosofia tem a prerrogativa, à luz da iluminação divina, de levar ao homem à busca da verdade, do princípio não principiado. A intercambialidade de herança e de contri- buto confere a Agostinho o legado de ser um filósofo agregador e adiante de seu tempo: de reunir, harmonizar a tradição filosófica recebida com afutura e nascente especulação filosófica medieval, ao mesmo tempo que dispõe seu le- gado à posteridade. Uma prova disso é a nova perspectiva histórica introduzida por Agostinho no seu livro A cidade de Deus. Nessa obra, Agos- Filosofi a X Teologia M estre em Agostinho de Hipona pela Universidade Federal do Paraná, Clodoaldo da Luz conversa com os leitores da Filosofia Ciência&Vida sobre o legado do filósofo Agosti- nho de Hipona. Clodoaldo comenta em linhas gerais sobre a filosofia de Agostinho e como está organizada a pesquisa sobre o referido filósofo no Brasil. A entrevista de Clodoaldo nos remete à Idade Média, em que Filosofia e Teologia esta- vam emparelhadas e eram como duas asas de um mesmo avião. O entrevistado dialoga com a grande contribuição de Descartes para o adven- to do período moderno. FILOSOFIA • Como entender a contribuição de Agostinho para a história da Filosofia? CLODOALDO • Os anos de 354 d.C. a 430 d.C., período que em que viveu Agostinho de Hipona, podem ser conceituados como um período transitório do Classicismo ao Medievo. Assim, tributário e depositário desse interstício, Agos- tinho pôde embebedar-se da tradição filosófica antiga, tracejada pelo desejo da vida feliz, a fim de florescer e consolidar o que podemos con- entrevista.indd 6 24/05/2019 13:15 Grupo Único PDF PaD ciência&vida • 7 IM A G EM : A R Q U IV O P ES SO A L E SH U TT ER ST O C K tinho suscita a tese de que o “movimento” da história não é circular conforme advoga- vam os gregos (monarquia, tirania, democracia e oligar- quia), mas linear, pois o fim da história é teleológico, pois tende a um fim, seu termo, segundo Agostinho, é Deus. Além do que é possível, conforme indica o estaduni- dense professor doutor Ga- reth B. Matthews no livro Santo Agostinho: um filósofo adiante de seu tempo, que o pensamento de Agostinho se fez presente na Modernidade filosófica com Descartes e é vivo na Contemporaneidade filosófica com o racionalismo linguístico de Jerrold Katz. O apanágio de ser um homem que viveu o Classi- Agostinho revela ser um filósofo agregador e adiante de seu tempo, ao reunir e harmonizar a tradição filosófica recebida com a futura e nascente especulação filosófica medieval cismo, mas que, outrossim, anteviu o Medievo, fez Agos- tinho ser um filósofo capaz de arregimentar o modelo do homem cristão, o qual é norteado pelo desejo de con- templar a verdade, que é, se- gundo o parecer agostiniano, o próprio Deus. FILOSOFIA • Uma breve apresentação da sua traje- tória acadêmica CLODOALDO • Durante os anos de 1991 a 2000, o ensino fun- damental e boa parte do ensino médio eu cursei no Colégio Estadual Juvenal Mesquita, Bandeirantes (PR). O terceiro ano do ensino médio eu cursei em 2002 no Seminário Menor Nossa Senhora da Assunção, na cidade de Jacarezinho. entrevista.indd 7 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD ENTREVISTA Clodoaldo da Luz 8 • ciência&vida De 2003 a 2006 eu fiz a graduação em Histó- ria na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho (Fafija), agora Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), campus Jacarezinho, onde apresentei o TCC intitulado “Catolicismo, ateísmo, conservadorismo e comunismo: uma análise do paradoxo entre D. Geraldo de Proen- ça Sigaud e Eugênio de Proença Sigaud”, sob a orientação do professor doutor Alfredo Moreira Júnior (Uenp). Simultaneamente, eu fazia o curso livre de Filosofia do Seminário Maior Nossa Se- nhora Rainha da Paz. De 2007 a 2010 eu fiz o curso livre de Fi- losofia no Seminário Maior Divino Mestre, no qual apresentei o TCC intitulado “O itinerário de Emaús (Lc 24,13-35) sob a ótica do chamado à missão cristã”, orientado pelo padre professor Rogélio Aparecido Destefani. Em 2014, cursei no Centro Universitário Cla- retiano, Polo Curitiba (PR), a especialização em Filosofia e Ensino de Filosofia, na qual defendi o TCC intitulado “A busca da verdade: os princípios da lógica clássica na obra Solilóquios de Santo Agostinho”, sob a orientação do professor mestre Luis Geraldo da Silva. No ano de 2016 lecionei no Seminário Nossa Rainha da Paz a disciplina Teo- ria do Conhecimento. Em 2017 fiz uma segunda licenciatura, em Filosofia, pelo Centro Universitá- rio Claretiano, Polo Curitiba, na qual apresentei o TCC intitulado “A ética estoica fundamentada na representação cataléptica”, sob a orientação do professor mestre Tiago T. Contiero. De 2016 até o início de 2019 fiz o mestrado em Filosofia na Universidade Federal do Para- ná, com a anuência do nosso bispo diocesano Dom Antônio Braz Benevente. Ao mesmo tem- po, exercia o ministério sacerdotal, na função de vigário paroquial, na Paróquia São Benedito, bairro Capã o da Imbuia, em Curitiba. Recentemente, no dia 26 de fevereiro de 2019, defendi a dissertação “A gênese do cogito agos- tiniano no Contra os Acadêmicos”, sob a orienta- ção do professor doutor Maurizio Filippo Di Silva (UFPR). Atualmente exerço o ministério sacerdo- tal, na função de vigário paroquial, na Paróquia Santo Antônio de Pádua, em Santo Antônio da Platina (PR), Paraná, e leciono as disciplinas de Filosofia da Ciência, para os seminaristas do 2º ano, e Sociologia, para os seminaristas do 4º ano, do curso livre de Filosofia no Seminário Maior Nossa Senhora Rainha da Paz, Jacarezinho (PR). FILOSOFIA • Por vezes, a Idade Média é vista de maneira negativa. Quais são as maiores con- tribuições da Idade Média para a humanidade? CLODOALDO • O período compreendido como Idade Média, que tem início com a invasão de Roma em 476 d.C. pelos hérulos comanda- dos por Odoacro e se encerra com a queda de Constantinopla, em 1453 d.C., pelos turcos oto- manos liderados por Maomé II, foi muito im- portante para a manutenção da ordem social, o desenvolvimento das artes, o surgimento de uma nova cultura e a manutenção e a capilariza- ção do conhecimento clássico. Dentre as várias contribuições do Medievo, tais como bússola, vestimenta, cavalheirismo etc., para a história humana, enfatizo duas: a preservação e pro- pagação da cultura clássica e o surgimento das universidades. Com as invasões bárbaras, os livros clássicos foram resguardados da destruição nos mostei- ros. Tais locais foram importantíssimos para o estudo, interpretação e disseminação do conte- údo clássico. Não somente em âmbito filosófico, mas se não toda, boa parte da literatura clássica ficou protegida nos mosteiros. É sabido que a organização universitária tal e qual conhecemos hoje teve início com as PH IL IP PE D E C H A M PA IG N E/ W IK IM ED IA C O M M O N S É sabido que a organização universitária tal e qual conhecemos hoje teve início com as universidades de Bologna e Paris, no século XI entrevista.indd 8 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 9 universidades de Bologna e Paris, no século XI. A partir dessas instituições é que se difundiu o estudo no âmbito e forma universitários. Por isso, o erro de se re- ferir ao Medievo como uma lacuna e/ou névoa entre o Classicismo e a Moderni- dade é um infeliz olvida- mento das benesses e do desenvolvimento intelectu- al protagonizado na Idade Média. Vale lembrar que Descartes, considerado pai da Modernidade, estudou no colégio jesuíta Royal Henry-Le-Grand; ou seja, ele bebeu da fonte medie- val para a partir daí edificar um novo sistema filosófico. O comentador agostiniano Etienne Gilson, na obra Étu- des sur le role de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien, fala de possíveis bases medie- vais do sistema cartesiano. FILOSOFIA • Você realizou na Universidade Federal do Paraná uma pesquisa so- bre Agostinho de Hipona. Poderia nos falar sobre as conclusões a que chegou na sua pesquisa? CLODOALDO • Quero aproveitar a ocasião e mani- festar minha gratidão a pessoas importantes que me oportunizaram tal experiência e realização dessa pesquisa.Sou grato a Deus, a Dom Antô- nio Braz Benevente, bispo diocesano de Jacare- zinho, a Dom José Antônio Peruzzo, arcebispo da Arquidiocese de Curitiba, ao professor dou- tor Lúcio Souza Lobo (UFPR), ao professor dou- tor Luiz Alves Eva (UFSCar), ao professor doutor PH IL IP PE D E C H A M PA IG N E/ W IK IM ED IA C O M M O N S Na minha pesquisa percebi que a busca e a contemplação da verdade foram dos legados mais importantes de Agostinho aos seus leitores. E é nessa herança que reside a origem do cogito Agostinho de Hipona entrevista.indd 9 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD ENTREVISTA Clodoaldo da Luz 10 • ciência&vida Maurizio Filippo Di Silva (UFPR), ao professor doutor Bernardo Brandão (UFPR), aos amigos do grupo de estudo Noções de História do Ceticis- mo e ao grupo de estudos de latim, ao padre Danilo Vitor Pena, aos meus familiares: à minha família, Maria Helena, minha mãe, Aparecido da Luz (in memoriam), meu pai, Karina, minha irmã, Fernanda e Filipe, meus sobrinhos, e Fá- bio, meu cunhado; e à Comunidade Paroquial São Benedito do Capão da Imbuia, de Curitiba, e aos amigos da Universidade Federal. Na minha pesquisa percebi que a busca e a contemplação da verdade foram dos legados mais importantes de Agostinho aos seus leitores. E é nessa herança que reside a origem do cogito, mais especificamente na obra agostiniana Con- tra os acadêmicos. Nela, ele ainda é um argu- mento incipiente, pois é mais um dentre outros utilizados por Agostinho para contrapor a pos- tura cética acadêmica. Também fora visto que Agostinho serve-se de seu cogito como ferramenta para obter o auto- conhecimento, conforme se vê na sua obra So- lilóquios, e com a função propedêutica, a fim de construir um longo argumento da prova da existência de Deus, como fora analisado no seu livro O livre-arbítrio. Apesar dessa verificação, é possível asseve- rar que a função primeira e principal do cogito agostiniano é a contraposição ao posicionamen- to epistemológico acadêmico. FILOSOFIA • Como está organizada a pesqui- sa sobre Agostinho de Hipona no Brasil? CLODOALDO • Ao participar do XVIII Encontro Na- cional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), realizado de 22 a 26 de ou- tubro de 2018, em Vitória (ES), tive a oportunida- de de conhecer o Grupo de Trabalho Agostinho de Hipona e o Pensamento Tardo-Antigo, coor- FR EE PI K. C O M Filosofia agostiniana visa sobretudo a busca da verdade e a vida feliz, as quais consistem na posse e na contemplação do próprio Deus entrevista.indd 10 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 11 denado pelo professor doutor Nilo César Batista da Silva (PPG-FIL/UFS) e que tem como núcleo de sustentação os seguintes docentes: professor doutor Marcos Roberto Nunes Costa (PPG-FIL/ UFPE), professor doutor Manoel Luís Cardoso Vasconcellos (PPG-FIL/UFPel), professor doutor Jorge Augusto da Silva Santos (PPG-FIL/UFES), professora doutora Cristiane Negreiros Abbud (PPG-FIL/UFABC) e professora doutora Simone Nogueira Marinho (PPG-FIL/UFPB). Naquela ocasião apresentei uma parte da mi- nha pesquisa, a qual nominei de “A gênese do cogito agostiniano”. Além disso, pude ter con- tato com algumas das mais recentes pesquisas realizadas sobre Agostinho: do professor doutor Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE) – “Santo Agostinho frente ao antigo adágio ‘fora da igre- ja não há salvação’”; do professor doutor Nilo César Batista da Silva (UFS/UFCA) – “De visio- ne dei no percurso da mens, as fronteiras en- tre o humano e o divino em Santo Agostinho”; da professora doutora Maria Célia dos Santos (UFCA) – “De vera religione: elementos para uma antropologia da religião em Agostinho de Hipona”. Além do Grupo de Trabalho Agostinho de Hipona e o Pensamento Tardo-Antigo, o pro- fessor doutor Maurizio Filippo Di Silva (UFPR), através do projeto “Pluralidade e unidade dos sentidos de ‘ser’ e ‘não ser’ em Agostinho”, de- monstra um dedicado e exímio trabalho de lei- tura, estudo e reflexão de pontos e questões- -chave referentes a Agostinho. FILOSOFIA • Você pretende continuar pes- quisando sobre Agostinho? CLODOALDO • Na banca da defesa da disserta- ção, o professor doutor Bortollo Vale (PUC-PR), docente de Filosofia Medieval da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, teceu consi- derações importantes sobre a minha pesquisa. Dessas destaco a seguinte: possivelmente, Agos- tinho, nas obras de Cassicíaco, pretendeu origi- nar e consolidar o modelo do homem cristão em substituição ao paradigma do homem helênico. Digo tudo isso para afirmar que é uma ideia in- teressante e que despertou a minha atenção. Pois, de fato, no Contra os acadêmicos, Agos- tinho quis, ao que tudo indica, asseverar a via- bilidade do conhecimento ao homem e uma necessária relação entre verdade e felicidade, sendo feliz quem almeja o conhecimento; na Vida feliz, Agostinho enfatiza que a felicidade consiste na “obtenção” de Deus, o “bem” que nem o tempo nem a traça corrói; n’A ordem, Agostinho traça o itinerário da vivência da dis- ciplina ética e do estudo e aperfeiçoamento das disciplinas liberais, a saber: lógica, gramática e retórica; e, no segundo, de aritmética, astrono- mia, música e geometria. Semelhante metodo- logia dinamiza, segundo Agostinho, uma melhor busca e contemplação da verdade, que reside, segundo ele mesmo indica nos Solilóquios, na interiorização. Que consiste no adentrar em si para elevar-se ao transcendente, uma dinâmica da horizontalidade para a verticalidade. Tudo isso mostra um tema de pesquisa interessante em Agostinho. Também outra ideia é a pesquisa de uma possível incidência do cogito em outras obras posteriores de Agostinho, nas quais ele seria a Percorrendo os momentos ímpares de sua trilha em busca da verdade, Agostinho descobre-se como capaz de desvelar a certeza, a base da certeza, tanto em âmbito epistemológico quanto ético entrevista.indd 11 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD ENTREVISTA Clodoaldo da Luz 12 • ciência&vida resposta mais eficaz de Agostinho ao desafio cético acadêmico. Mas também me veio à mente, no intuito de ter uma visão mais abrangente da Filosofia cristã, estudar Tomás de Aquino, mais especi- ficamente uma possível prova da existência de Deus, além das cinco vias, que já se encontram no opúsculo De Ente et essentia, e que também pode ser rastreada na Suma contra os gentios e na Suma teológica. Semelhante hipótese é designada por Davies como o “argumento da criação”. Mas penso que tal argumento não se configuraria como uma prova da existência de Deus, mas sim num substrato para uma das cin- co vias. Perante tudo isso exposto, penso, tal- vez, estudar Tomás de Aquino, se for da vonta- de divina e anuência do nosso bispo diocesano Dom Antônio Braz Benevente. FILOSOFIA • Quais as principais obras de Agostinho? E quais as contribuições delas para a composição do pensamento agostiniano? CLODOALDO • As obras Confissões, Contra os aca- dêmicos, A trindade, O livre-arbítrio, Solilóquios, Cidade de Deus são importantíssimas, pois ex- pressam a vida, a busca pela verdade, a teolo- gia, a noção de liberdade, o princípio de inte- rioridade e o pensamento político de Agostinho. Para visualizar a caminhada histórica e filo- sófica de Agostinho, Confissões é o norte ideal; no afã de compreender o seu escopo de con- templar a verdade, Contra os acadêmicos é o marco inicial; mergulhar no mistério trinitário juntamente com Agostinho necessita do “tubo de oxigênio” A trindade; para inteligir o dom da liberdade humana em meio ao pecado, O livre- -arbítrio é o guia imprescindível; no desejo de entender como a interiorização pode conduzir ao autoconhecimento e ao conhecimento de Deus, os quais são as duas finalidades da filoso- fia de Agostinho, é salutar a meditação do Soli- lóquios; e para ter a devida noção sobre qual o fim político da sociedade, e qual deveser a base e o intuito que a devem normatizar, é propícia a leitura atenta e a devida reflexão sobre a obra agostiniana A cidade de Deus. FILOSOFIA • Confissões é uma obra consa- grada de Agostinho. Poderia nos falar um pou- co sobre ela? CLODOALDO • O desejo de revisitar fatos mar- cantes de sua vida à luz da sua crença em Deus sob a guisa da especulação racional fez com que Agostinho, dentre os anos de 397 d.C. e 398 d.C., escrevesse sua obra Confissões. Percorrendo os momentos ímpares de sua tri- lha em busca da verdade, Agostinho descobre- -se como capaz de desvelar a certeza, a base da certeza, tanto em âmbito epistemológico quanto ético. Confissões é uma obra através da qual Agostinho apresenta a correlação entre a liberdade humana e a graça divina, a questão do tempo, que é sempre presente, não importan- do se é “outrora” ou “vindouro”, além de bem explorar os recônditos humanos por meio de sua análise da memória, a qual é retomada por O historiador Peter Brown (foto), no seu livro Santo Agostinho: uma biografia, apresenta, de forma simples e enriquecedora, a caminhada histórica de Agostinho entrevista.indd 12 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 13 Segundo a tese da iluminação divina agostiniana, o homem é iluminado por Deus, da mesma forma que o raio de sol ilumina a Terra. Iluminando o homem, Deus o auxilia na sua racionalidade especulativa a ter o conhecimento de Si Nietzsche e Freud, conforme aponta o professor doutor Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR) no artigo “Agostinho de Hipona e as ambivalên- cias do seu filosofar”. Tais problemáticas marcaram profundamente a Filosofia medieval e concederam as bases para a Filosofia moderna, e ainda ecoam na Filosofia contemporânea. FILOSOFIA • É difícil dissociar o pensamento filosófico do teológico em Agostinho? CLODOALDO • A filosofia agostiniana visa sobre- tudo a busca da verdade e a vida feliz, as quais consistem na posse e na contemplação do pró- prio Deus. Nesse sentido, o pensamento e dis- curso filosóficos de Agostinho estão intimamente imbricados com suas elucubrações teológicas. Para Agostinho, pela atividade racional é possível ao homem conceber a existência de Deus. Ademais, segundo a tese da iluminação divi- na agostiniana, o homem é iluminado por Deus, da mesma forma que o raio de sol ilumina a Ter- ra. Iluminando o homem, Deus o auxilia na sua racionalidade especulativa a ter o conhecimen- to de Si. Assim, há a relação dialógica entre o pensamento filosófico e a abordagem teológica, em que a autoridade, sobretudo a divina, prece- de e concede substrato à especulação racional. FILOSOFIA • Quais leituras você indica para quem quer conhecer o pensamento de Agosti- nho? Quais seriam obras introdutórias? CLODOALDO • A obra de Gareth Matthews, San- to Agostinho: a vida e as ideias de um filóso- fo adiante de seu tempo, traz uma série de in- terpretações interessantes no que concerne a temas-chave do pensamento filosófico e teoló- gico de Agostinho. Nesse mesmo viés, a obra Cambridge Companion to Augustine, publicada pela Universidade de Cambridge sob a organi- zação de Eleonore Stump e Norman Kretzmann, oferece uma discussão não desprezível acerca das reflexões epistemológicas, éticas e políticas agostinianas. O historiador Peter Brown, no seu livro Santo Agostinho: uma biografia, apresenta, de forma simples e enriquecedora, a caminhada histórica de Agostinho. Também Confissões, de Agosti- nho, é uma obra relevante para um estudo mais acurado sobre Agostinho, a fim de perceber seus percalços na realização de seu intento de busca e contemplação da verdade. A título de leitura introdutória, a fim de um melhor trânsito acerca de questões inerentes ao pensamento agostiniano, indico o livro Intro- dução ao estudo de Santo Agostinho, de Etien- ne Gilson, a obra Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho, do professor doutor Marcos Roberto Nunes Costa (PPG-FIL/ UFPE), e o livro Para compreender Agostinho, escrito por James Wetzel. Por fim, quero agradecer o professor douto- rando Fábio Antonio Gabriel pela oportunidade de falar um pouco da minha pesquisa e do pen- samento filosófico de Agostinho, o qual afirmou, no Contra os acadêmicos (Cf. Agostinho, 2008, p. 77), que somente descobriremos a verdade se nos entregarmos totalmente à Filosofia. entrevista.indd 13 18/05/2019 16:02 Grupo Único PDF PaD 14 • ciência&vida EXISTÊNCIA/CAPA IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L A NEGAÇÃO da vontade PENSADORES/CAPA O pensamento de Schopenhauer e a crítica da moral capitalista e suas interfaces na dita sociedade de consumo Renato Nunes Bittencourt Doutor em Filosofia pelo PPGF- UFRJ, coordenador do curso de Administração da FACC-UFRJ. renatonunesbitten court@gmail.com No decorrer deste texto ve-remos o caráter fi losofi ca-mente revolucionário do pensamento de Schope- nhauer acerca do processo ontológico da negação da vontade, representado na Era Moderna pela ruptura com a ordem materialista da sociedade de consumo, produtora de ilusões de satisfação e gozo para seus sectários. Tal circuns- tância faz de Schopenhauer uma voz dissonante aos apelos do materialismo vulgar do regime capitalista por disse- car fi losofi camente as bases psicológicas que o sustentam, a exaltação dos desejos jamais realizados convenientemente. No desenrolar da Modernidade, marcada seja pela apologia da técnica como emancipadora do homem perante suas limitações naturais como também pela crença no progresso contínuo nas ciências, que libertaria a estrutura social de toda contingência, assim como pela paulatina libertação do dogmatismo eclesiástico e na dissolução progressiva da antiga ordenação de mundo feudal para o mundo industrial/urbano, a fi lo- sofi a de Schopenhauer não se deixa in- fl uenciar axiologicamente por tais fato- res, que em nada modifi cam a essência do universo, um ciclo perpétuo de nas- cimento e morte de suas forças vitais. O otimismo moderno em relação ao avan- ço sem limites da técnica e suas realiza- ções sociais não seduziu Schopenhauer, e os acontecimentos vindouros da hu- manidade provaram o quão certa esta- va a sabedoria de nosso fi lósofo. Nessas condições, imputar a Schopenhauer a pecha de representante do reacionaris- mo burguês é uma falácia estúpida e axiologicamente improcedente, pois de modo algum o fi lósofo coadunou com os paradigmas medíocres dos fi listeus e seus asseclas, enaltecendo a vida de luxo de uma sociedade moralmente embota- da e decadente, desprovida de qualquer senso de justiça e de responsabilidade para com o sofrimento dos seres vivos. Jamais a obra de Schopenhauer chancelou o espírito tacanho e auto- centrado e egoísta do materialismo vulgar, cuja única fruição se encerra na satisfação incondicional dos apetites e das mesquinharias da mundanidade prosaica. Eis assim alguns fatores que concedem a Schopenhauer um pata- mar especial no cenário da Filosofi a moderna, pois, acima de tudo, nosso celebrado autor jamais chancelou o Pensadores.indd 14 24/05/2019 13:24 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 15 Pensadores.indd 15 17/05/2019 17:49 Grupo Único PDF PaD 16 • ciência&vida AS ASPIRAÇÕES HUMANAS SÃO ILIMITADAS, MAS A CAPACIDADE DE REALIZÁ- LAS, POR SUA VEZ, É LIMITADA. LOGO, SEMPRE DESPONTARÁ O MAL-ESTAR DESSE DESCOMPASSO. O DESEJO É A RAIZ DE TODO ÍMPETO HUMANO NO SEU PROCESSO CONSTANTE DE AFIRMAÇÃO DE SI PENSADORES/CAPA status quo, antes sendo uma das suas antíteses mais impressionan- tes. A racionalidade pode mode- rar o ímpeto das paixões, mas não encontra forças de contenção que sejam satisfatórias em tal empre- endimento. Para Schopenhauer, querer e esforçar-se são sua única essência, comparável a uma sede insaciável. A base de todo querer, entretanto, é necessidade, carência,logo, sofrimento, ao qual conse- quentemente o homem está desti- nado originalmente pelo seu ser. Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil satisfa- ção, assaltam-lhe vazio e tédio ater- radores, isto é, seu ser e sua existên- cia mesma se lhe tornam um fardo insuportável. Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio, as quais em realidade são seus com- ponentes básicos. Isso também foi expresso de maneira bastante sin- gular quando se disse que, após o homem ter posto todo sofrimento e tormento no Inferno, nada restou para o Céu senão o tédio (SCHO- PENHAUER, 2005, p. 401-402). As aspirações humanas são ilimitadas, mas a capacidade de realizá-las é limitada; logo, sem- pre desponta o mal-estar desse descompasso, ainda mais se le- varmos em consideração que, em decorrência da fragmentação da vontade em sua individuação pe- las categorias do espaço e do tem- po, o embate pela conservação da existência entre as fi gurações indi- viduais se torna a tônica da vida. O desejo é a raiz de todo ímpeto humano no seu processo constante de afi rmação de si em detrimento dos outros, motivando não raro a realização das ações mais violentas e extremas para concretizar as in- clinações individuais: Observamos não apenas como cada um procura arrancar do outro o que ele mesmo quer ter, mas inclusive como alguém, em vista de aumen- tar seu bem-estar por acréscimo in- signifi cante, chega ao ponto de des- truir toda a felicidade ou a vida de outrem. Eis aí a suprema expressão do egoísmo, cujos fenômenos, nesse aspecto, são superados apenas por aqueles de pura maldade, que procu- ram, indiferentemente e sem benefí- cio pessoal algum, a injúria e a dor alheia (SCHOPENHAUER, 2005, p. 427-428). O egoísmo se contrapõe ao princípio ético e ontológico da compaixão, que permite justamen- te ao sujeito compreender-se como imediatamente unifi cado ao ser do outro, para além de todas as apa- rências. Contudo, essa fusão como que mística do eu com o outro é um processo que independe da educação e do querer, sendo antes uma revelação além do princípio de razão manifestada na consciên- cia do sujeito, liberto das ilusões fenomênicas que promovem sua pretensa separação ontológica entre os demais viventes. Não há garan- tias para a efetivação desse proces- so extraordinário, não obstante ela poder vir a ocorrer em qualquer ser humano, independentemente da sua instrução/formação. Esse é o IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K Pensadores.indd 16 17/05/2019 17:49 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 17 A VITÓRIA DA MALDADE É APENAS APARENTE, AFETA SOMENTE A DIMENSÃO DOS FENÔMENOS, JAMAIS A ESSÊNCIA DO MUNDO, OU SEJA, A VONTADE grande mistério da ética. Conforme argumenta Schopenhauer, toda boa ação totalmente pura, toda ajuda verdadeiramente desinteres- sada que, como tal, tem exclusiva- mente por motivo a necessidade de outrem, é, quando pesquisada até o seu último fundamento, uma ação misteriosa, uma mística prática, contanto que surja por fi m do mes- mo conhecimento que constitui a es- sência de toda mística propriamente dita e não possa ser explicável com verdade de nenhuma outra maneira (SCHOPENHAUER, 2001, p. 221). A morte encerra todos os pro- jetos, todas as bondades e todas as vilanias. Nessa concepção, poder- -se-ia dizer que tal discurso fa- talista favorece a perpetuação do status quo, já que os oprimidos se resignam perante a violência dos seus opressores. Contudo, a fi loso- fi a schopenhaueriana não postula a existência de uma justiça divina que no fi m dos tempos julgará os bons e os maus, dando aos primei- ros, os cordeiros da virtude, a sal- vação espiritual, e aos segundos a danação eterna, circunstância que serve de consolo moral para as al- mas oprimidas na vida concreta. Após a morte física toda a confi gu- ração existencial se dissipa, e nada espera pelo sujeito, apenas a inevi- tabilidade do não ser. A verdadeira renúncia ao mal não ocorre pelo medo decorrente da consciência da morte ou pela crença na punição divina, mas pela intuição da identi- dade ontológica de todos os seres, o sofrimento imposto pelo malvado ao fraco também acaba por afetar, em verdade, o agressor, pois ambos constituem a mesma unidade vital: O atormentador e o atormentado são um: o primeiro erra ao acredi- tar que não participa do tormen- to, o segundo a acreditar que não participa da culpa. Se os olhos dos dois fossem abertos, quem infl ige o sofrimento reconheceria que vive em tudo aquilo que no vasto mun- do padece tormento e, se dotado de faculdade de razão, ponderaria em vão por que foi chamado à existên- cia para um tão grande sofrimen- to, cuja culpa não entende; o ator- mentado notaria que todo mal que é praticado no mundo, ou que já o foi, também procede daquela Von- tade constituinte de sua própria es- JO H A N N S C H Ä FE R (P U B LI C D O M A IN )/W IK IM ED IA C O M M O N S Para Schopenhauer, o egoísmo se contrapõe ao princípio ético e ontológico da compaixão IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K Pensadores.indd 17 17/05/2019 17:49 Grupo Único PDF PaD 18 • ciência&vida IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K PENSADORES/CAPA sência, que aparece nele, reconhe- cendo mediante esta aparência e a sua afi rmação que ele mesmo as- sumiu todo sofrimento proceden- te da Vontade, e isso com justiça, suportando-as enquanto ele é essa Vontade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 411). A vitória da maldade é apenas aparente, afeta somente a dimen- são dos fenômenos, jamais a essên- cia do mundo, ou seja, a vontade, logo, o ser real não é prejudicado pela iniquidade dos indivíduos iludidos pelo véu de Maya que acreditam obter ganho real com seus crimes. Dessa compreensão metafísica afl ora no sujeito liber- to do querer a noção de que não adianta qualquer pretensão de mu- dança em uma fi guração mundana intrinsecamente ruim. A renún- cia proposta por Schopenhauer não signifi ca impotência de agir, motivada pela impossibilidade de exercer o querer; pelo contrário, é sinal de uma poderosa capacidade do sujeito efetivamente liberto de toda sorte de inclinações, suprimir qualquer possibilidade de afi rmar as condições da vida. Por conse- guinte, esse indivíduo que renun- cia é um herói, não pela gloriosa afi rmação da existência, mas pela negação defi nitiva da mesma: Porque todo sofrimento é uma mor- tifi cação e um chamado à resigna- ção, possui potencialmente uma for- ça santifi cadora; e isso explica o fato de grandes desgraças e dores pro- fundas já em si mesmas inspirarem certo respeito [...] Só quando o sofri- mento assume a forma do simples e puro conhecer, e este, como quietivo da Vontade, produz a resignação, é que se acha o caminho da reden- ção, sendo pois o sofrimento digno de reverência (SCHOPENHAUER, 2005, p. 459). É em sua metafísica da ética que Schopenhauer apresentará um viés para a negação absoluta da vontade de viver, solução para a supressão do grande mal-estar existencial da vida regida pela adequação constante aos desejos, majoritariamente insatis- feitos. Quando ocorre a satisfação (inevitavelmente provisória) des- ponta o tédio, e assim a roda do que- rer novamente gira, até a extinção da vida individual na morte. A luta pela satisfação é constante, mas essa satisfação é sempre momentânea, e a compreensão desse mecanismo muitas vezes passa despercebida na vida mediana e serve de estímulo sôfrego para a manutenção da exis- tência. Segundo Schopenhauer, NAS DUAS VIRTUDES FUNDAMENTAIS, JUSTIÇA E CARIDADE, O EGOÍSMO É SUPRIMIDO, RESPEITANDO- -SE A PESSOA DO OUTRO E FAZENDO-SE AÇÕES EXTRAORDINÁRIAS PARA A EFETIVAÇÃO DO SEU BEM Pensadores.indd 18 17/05/2019 17:49 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 19 IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K todo querer nasce de uma necessi- dade,portanto de uma carência, logo, de um sofrimento. A satisfa- ção põe um fi m ao sofrimento; to- davia, contra cada desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são. Ademais a nossa cobiça dura muito, as nossas exigências não conhecem limites; a satisfa- ção, ao contrário, é breve e módica. Mesmo a satisfação fi nal é apenas aparente: o desejo satisfeito logo dá lugar a um novo: aquele é um erro conhecido, este um erro ainda des- conhecido. Objeto algum alcançado pelo querer pode fornecer uma sa- tisfação duradoura, sem fi m, mas ela se assemelha sempre apenas a uma esmola atirada ao mendigo, que torna sua vida menos miserável hoje para prolongar seu sofrimen- to amanhã (SCHOPENHAUER, 2005, p. 266). O reconhecimento do caráter contraditório da vontade manifes- tada na dimensão individual, que luta contra si mesma, altera a po- larização desse princípio. Ao invés de se autoafi rmar, a vontade passa a negar a si mesma, primeiramente mediante a compreensão da unida- de fundamental de todos os viven- tes proporcionada pela compaixão, abolindo-se assim as fronteiras en- tre o sujeito e o mundo. Nas suas duas virtudes fundamentais, justiça e caridade, o egoísmo é suprimido, respeitando-se a pessoa do outro e fazendo-se ações extraordinárias para a efetivação do seu bem mate- rial e moral. Contudo, nessa dimen- são ética, as disposições de ação são relacionais, faz-se justiça para com o outro, faz-se caridade para com o outro, atenuando razoavelmente o grande mal-estar do mundo domi- nado pelo egoísmo e pela maldade. Porém, há ainda uma grande ins- tância a ser vencida, o próprio eu, e seus ardorosos apelos por satisfa- ção desiderativa, cujos efeitos prá- ticos são inevitavelmente terríveis. Nesse momento ocorre a etapa mor do processo de negação da vontade, através da ascese, que se manifesta das formas mais intensas de modo a suprimir defi nitivamente a vontade individualizada que faz do eu um ser miserável em busca constante por adições. O jejum, a maceração do corpo, a abdicação do prazer sensível são exemplos de procedi- mentos ascéticos que dissolvem os apelos da carne; o corpo é mantido apenas no quantum de energia ne- cessário para sua sobrevivência: Tal homem que, após muitas lutas amargas contra a própria natureza, fi nalmente a ultrapassou por inteiro, subsiste somente como puro ser cog- noscente, espelho límpido do mundo. Nada mais o pode angustiar ou exci- tar, pois ele cortou todos os milhares de laços volitivos que o amarravam ao mundo, e que nos jogam daqui para acolá, em constante dor, nas mãos da cobiça, do medo, da inve- ja, da cólera (SCHOPENHAUER, 2005, p. 495). Os iogues e santos católicos, as- sim como muitos fi lósofos pagãos cujas vidas foram exemplo de fru- galidade e desapego material, são testemunho em suas vidas dessa disciplina ascética, considerando que a ordem do mundo é pura vai- dade, ilusão. Todas as ditas novida- des propagadas a cada dia nos mer- cados não são capazes de seduzir a consciência do asceta, pois o ritmo de obsolescência das coisas que dá lugar ao sempre novo é incessante e incontrolável, de modo que o apego a tais fugacidades é fonte de deses- pero, frustração, infelicidade. Scho- penhauer argumenta que quando às vezes em meio aos nos- sos duros sofrimentos sentidos, ou devido ao conhecimento vivo do sofrimento alheio e ainda envoltos pelo véu de Maya o conhecimento da nulidade e amargura da vida se aproxima de nós e gostaríamos de renunciar decisivamente para sempre ao espinho de suas cobiças e fechar a entrada a qualquer so- frimento, purifi car-nos e santifi car- -nos, logo a ilusão do fenômeno nos encanta de novo e seus motivos colocam mais uma vez a vontade em movimento. Não podemos nos libertar. As promessas da esperan- ça, as adulações do tempo presen- te, a doçura dos gozos, o bem-estar que fazem a nossa pessoa partícipe da penúria de um mundo sofrente OS IOGUES E SANTOS CATÓLICOS, ASSIM COMO MUITOS FILÓSOFOS PAGÃOS, CUJAS VIDAS FORAM EXEMPLO DE DESAPEGO, REFORÇAM A IDEIA DE QUE A ORDEM DO MUNDO É PURA VAIDADE, ILUSÃO Pensadores.indd 19 24/05/2019 13:25 Grupo Único PDF PaD 20 • ciência&vida PENSADORES/CAPA sob o império do acaso e do erro atraem-nos novamente ao mundo e reforçam os nossos laços de liga- ção com ele (SCHOPENHAUER, 2005, p. 482). A verdadeira ascese nega o mundo, de modo algum coaduna com a sua manutenção. Por conse- guinte, a ascese protestante tal como interpretada competentemente por Max Weber seria a perpetuação de Maya, pois apesar do devoto negar o prazer carnal em suas ações labo- rais fundamentadas no ethos reli- gioso, o resultado de sua ação bene- fi cia a ordem material da sociedade e suas criações técnicas.1 A verda- deira ascese, compreendendo o ca- ráter sem sentido do mundo, nega- -o, por isso resulta na inação, na renúncia ao agir, favorecendo assim um afastamento radical da ordem mundana. O ethos protestante ape- nas reformou as bases corrompidas do establishment cristão enquanto instituição política, mas revelou-se incapaz de vivenciar plenamente o autêntico espírito crístico original, pautado no consistente não reco- nhecimento da ordem do mundo, das suas riquezas, dos seus valores. Na ascese genuína, que reco- nhece o vazio do mundo, o sujeito paulatinamente se divorcia da von- tade, suportando todo sofrimento psicofísico, toda privação material, com paciência, abnegação, tran- quilidade de ânimo, encontrando nesse exercício de superação de si mesmo não a tristeza comum do indivíduo que, destituído dos meios de gozar as benesses da vida, se de- prime por sua carência, mas a fe- licidade, pois reconhece que todos os apelos sensíveis são caprichosos e fugazes e não são merecedores de maiores considerações. Já para aqueles que são incapazes de viver na pureza espiritual, a própria exis- tência é já um infortúnio, ainda que aparentemente seja marcada pelo bem-estar material. Para essa chus- ma humana, nem as realizações in- telectuais nem a felicidade legítima da vida familiar conseguem elevar seu nível de consciência para algu- ma instância acima de sua própria condição pessoal, culminando em seu naufrágio existencial como um sinal do vazio da vida sem qual- quer ímpeto de autorrealização. Conforme o modo de existência decadente e axiologicamente me- díocre, a boa vida consiste apenas em se desfrutar das benesses ma- teriais, das viagens turísticas e dos prazeres sensíveis imediatos. Essa massa humana demonstra avidez em conhecer o mundo, mas de que adianta conhecer o mundo sem que primeiramente se conheça a si mesmo? Esse é o inferno moral dos submissos ao hedonismo desenfre- ado da sociedade de consumo. Para Schopenhauer, toda satisfação, ou aquilo que co- mumente se chama felicidade, é própria e essencialmente falando apenas negativa, jamais positiva. Não se trata de um contentamento que chega a nós originalmente, por si mesmo, mas sempre tem de ser a satisfação de um desejo; pois o de- sejo, isto é, a carência, é a condição prévia de todo prazer. Com a satis- fação, entretanto, fi nda o desejo, por consequência o prazer. Eis por que a satisfação ou o contentamento nada é senão a liberação de uma dor, de uma necessidade, pois a esta perten- ce não apenas cada sofrimento real, manifesto, mas também cada dese- jo, cuja inoportunidade perturba nossa paz, sim, até mesmo o mortí- fero tédio que torna a nossa existên- cia um fardo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 370). Com efeito, a mentalidade idio- tizada da civilização burguesa com- preende a experiência da felicidade como a satisfação razoável dos seus desejos privados, fomentados arti- fi cialmente, em sua grande parte, pela indústria do consumo, grande UMA VERDADEIRA MASSA HUMANA DEMONSTRA AVIDEZ EM CONHECER O MUNDO, MAS DE QUE ADIANTA CONHECER O MUNDO SEM QUE PRIMEIRAMENTE SE CONHEÇA A SI MESMO? ESSE É O INFERNO MORAL DOS SUBMISSOS AO HEDONISMO DESENFREADO DO CONSUMO1 “Ora, a conduta de vida monástica é encarada não só como evidentemente sem valor para a justifi cação perante Deus, mas também como produto de uma egoística falta de amor que se esquiva aos deveres do mundo [...] O feito propriamente dito da Reforma consistiu simplesmente em ter já no primeiro momento infl ado fortemente, em contraste com a concepção católica, a ênfase moral e o prêmio religioso para o trabalho intramundano no quadro das profi ssões” (Weber, 2004, p. 73; 75). IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K Pensadores.indd 20 17/05/2019 17:50 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 21 RE FE RÊ N C IA S produtora de ilusões da Moder- nidade. Orbitando tal como uma mosca sobre as coisas disponíveis no grande mercado capitalista, o sujeito seduzido pelas ilusões mo- netaristas acredita poder adquirir tudo que se encontra ao seu alcan- ce, mas ao fi m e ao cabo reconhece amargamente que não pode obter a tão ansiada felicidade, assim como a vitória sobre o tédio e, tanto pior, sobre a condição derradeira que as- sola o homem afetado pelas paixões reativas: a morte. A civilização ocidental conce- deu sentido negativo e pejorativo ao nada, imputando-o como o não ser, a ausência de atributos, e tan- to pior, mediante uma concepção moralista, associou-o ao âmbito do mal. Isso evidencia a incapacidade do pensamento binário do mundo ocidental em compreender o cará- ter radical do nada em sua relação com a negação da vontade, o que resulta no aniquilamento da pró- pria fonte de ilusões da dimensão fenomênica da vida e suas criações que ao fi m e ao cabo escravizam o próprio ser humano nas suas ca- deias inextrincáveis. Na dimensão concreta, a exemplifi cação dessa negação da vontade como ruptu- ra radical com a ordem mundana ocorre na adesão ao modo de vida pobre, o ascetismo monástico que nasce do reconhecimento de que a afl uência dos bens materiais é um genuíno ouro de tolo sedutor das consciências afoitas pela satisfa- ção dos seus desejos sensíveis. No seio de tanta abundância material, a negação voluntária desta mesma pode ser considerada como um ato heroico, pois a batalha pela vitória é travada na própria interioridade do indivíduo que aniquila seu ardor pessoal pela posse e pelo gozo. Na dimensão exotérica da religiosida- de, a grande promessa compensa- tória aos ascetas que renunciam ao prazer sensório em prol da pureza espiritual é o mundo celestial, o paraíso. Contudo, para os indiví- duos que desmistifi caram todas as formas de ilusão que são produzi- das em suas diversas categoriza- ções ideológicas pela mentalidade humana, não há qualquer prêmio para a negação da vontade, apenas o nada. Essa é assim a culmina- ção do projeto trágico de Schope- nhauer, a vitória sobre o querer não se dá na fuga do mundo rumo ao suprassensível, mas na sua negação na vida mesma, com todas as suas contradições e apelos heteróclitos. Podemos considerar que a obra de Schopenhauer fornece subsídios para a crítica da moral capitalista e suas interfaces na dita sociedade de consumo mediante a apresentação da ontologia desiderativa do ho- mem e seu inerente apego aos bens materiais e usufruto desenfreado deles, pois na realidade material vigente o que importa é a disposi- ção para ter, jamais a capacidade de ser, de fruir placidamente a beleza da natureza e da arte, assim como de não se apegar doentiamente aos benefícios sensíveis das coisas. Por conseguinte, considerá-lo como um ideólogo burguês é um erro crasso, pois sua doutrina se dissocia de todas as falsidades que regem o modo burguês de vida e seu mate- rialismo fi listeu. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. . Sobre o fundamento da moral. Trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CONSIDERAR SCHOPENHAUER UM IDEÓLOGO BURGUÊS É ERRO CRASSO, POIS SUA DOUTRINA SE DISSOCIA DE TODAS AS FALSIDADES QUE REGEM O MODO BURGUÊS DE VIDA IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K Pensadores.indd 21 17/05/2019 17:50 Grupo Único PDF PaD 22 • ciência&vida SOCIEDADE IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L O papel da Filosofia em tempos de fake news SOCIEDADE A pós-verdade que nos CONTROLA Monica Aiub – Doutora em Filosofia pela PUC-SP, dirige o Interseção – Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo. Sociedade.indd 22 17/05/2019 18:58 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 23 IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L O QUE SERIA, EXATAMENTE, MELHORAR A SOCIEDADE E QUE TIPO DE ÁREA DO CONHECIMENTO SERIA CAPAZ DE MELHORÁ-LA SEM A CONTRIBUIÇÃO DE OUTRAS ÁREAS? “OJapão, país mui-to mais rico que o Brasil, está ti-rando dinheiro público do pagador de imposto, das faculdades que são tidas como para pessoas que já são muito ri- cas, ou de elite, como Filosofi a. Pode estudar Filosofi a? Pode, (mas) com dinheiro próprio. E o Japão reforça: esse dinheiro que iria para faculdades como Filoso- fi a, Sociologia, se coloca em facul- dades que geram retorno de fato: Enfermagem, Veterinária, Enge- nharia e Medicina.” A fala do ministro da Educação Abraham Weintraub, em vídeo publicado em 25 de abril no per- fi l do Facebook do presidente Jair Bolsonaro1, seguida da corrobora- ção do presidente em fala, também em seu Facebook e postagem no Twitter, em 26 de abril, afi rmando que “a função do governo é respei- tar o dinheiro do contribuinte, en- sinando para os jovens a leitura, a escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pes- soa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua vol- ta”2, gerou forte polêmica nos úl- timos dias. Muitos foram os inte- lectuais que se mobilizaram para defender a importância da Filoso- fi a e das ciências humanas, com destaque para a Nota de Repúdio assinada pela Anpof – Associa- ção Nacional de Pós-Graduação em Filosofi a e por várias associa- ções3, que aponta para a notícia falsa sobre o Japão, presente no argumento do ministro – uma vez que a proposta, feita em 2015 pelo Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão, foi abandonada no mesmo ano –, e para o desconhecimento do ministro e do presidente sobre a natureza dos conhecimentos da área de humanidades. “Uma das maiores contribuições dos cursos de humanidades é justamente o combate sistemático a visões ta- canhas da realidade, provocando para a refl exão e para a pluralida- de de perspectivas, indispensáveis ao desenvolvimento cultural e so- cial e à construção de sociedades mais justas e criativas.” Por que, em pleno século XXI, após tantas correntes fi lo- sófi cas terem surgido a partir de elaborações de respostas para o anunciado fi m da Filosofi a e das ciências humanas, ainda discuti- mos o papel da Filosofi a? Por que enquanto Harari4 propõe algorit- mos fi losófi cos para programar as decisões de uma inteligência artifi cial, indicando a possibilida- de de a Filosofi a ser uma profi ssão que garanta um bom emprego no futuro, o presidente da República desconsidera as contribuições da Filosofi a para “melhorar a socie- dade em sua volta”? O que seria, exatamente, melhorar a sociedade e que tipo de área do conhecimen- to seria capaz de melhorá-la sem a contribuição de outras áreas? A afi rmação de Harari sobre o papel do fi lósofo diante da in- teligência artifi cial, auxiliando na construção de “algoritmos fi losó- fi cos”, é polêmica e merece uma refl exão que ultrapassa os objeti- vos deste texto. Porém, ao formu- lá-la, ele nos provoca a conside- rar mais uma das abordagens ao fato de que o desenvolvimento da ciência e da tecnologianão levou ao “fi m” da Filosofi a; ao contrário, ampliou a necessidade da refl exão fi losófi ca, propiciando, no século XX, o surgimento de áreas como Filosofi a da Mente, Filosofi a da Informação, Filosofi a da Neuroci- ência, entre outras. Ainda assim, a pergunta permanece: Filosofi a, para quê? Uma das tarefas da Filosofia é o questionamento. Questionar e investigar, em tempos de fake news, pós-verdade, pós-realida- de, tribalismo da verdade etc., podem ser um incômodo a um sistema pautado na viralização, na replicação – sem verificação 1BORGES, Helena. Ministro dá dica para o Enem: Questões ideológicas, muito polêmicas, não devem acontecer esse ano. Jornal O Globo, 25 de abril de 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ sociedade/ministro-da-dica-para-enem-questoes- ideologicas-muito-polemicas-nao-devem-acontecer- esse-ano-23623156. Acesso em: 2 mai. 2019. 2Bolsonaro diz que MEC estuda “descentralizar” investimento em cursos de Filosofi a e Sociologia. G1, 26 de abril de 2019. Disponível em: https:// g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/26/ bolsonaro-diz-que-mec-estuda-descentralizar- investimento-em-cursos-de-fi losofi a-e-sociologia. ghtml. Acesso em: 2 mai. 2019. 3Disponível em: http://www.anpof.org/portal/ index.php/pt-BR/artigos-em-destaque/2075- nota-de-repudio-a-declaracoes-do-ministro-da- educacao-e-do-presidente-da-republica-sobre- as-faculdades-de-humanidades-nomeadamente- fi losofi a-e-sociologia. Acesso em: 2 mai. 2019. 4HARARI, 2018. Sociedade.indd 23 17/05/2019 18:58 Grupo Único PDF PaD 24 • ciência&vida SOCIEDADE AS NOTÍCIAS FALSAS DE HOJE CIRCULAM COM UMA VELOCIDADE GIGANTESCA, SENDO DISTRIBUÍDAS E AFETANDO PESSOAS EM DIFERENTES REGIÕES DO MUNDO. NÃO UTILIZAMOS MAIS A INVESTIGAÇÃO E A RACIONALIDADE COMO CRITÉRIOS – de ideias criadas para defen- der os interesses de alguns gru- pos. Sem questionar, passamos a ideia adiante. Mas essa é a me- nor das consequências, pois as ideias servem como guias para nossas ações (Peirce, CP 5.365).5 Assim, não avaliamos os moti- vos que possuímos para aceitar uma ideia, não verificamos se essa ideia é verdadeira ou fal- sa, a tomamos como verdade na medida em que nossos critérios são a quantidade de cliques ou compartilhamentos de uma ideia que, muitas vezes, foi comparti- lhada sem ter sido lida.6 Notícias falsas difundidas sem confi rmação e com forte impacto na vida e na política sempre exis- tiram. Robert Darnton relata a tentativa de manipulação da elei- ção pontifícia de 1522, por Pietro Aretino, que escreveu sonetos per- versos sobre todos os candidatos – exceto sobre Medici, seu preferido –, colocando para o público ad- mirar no busto de uma fi gura de nome Pasquino. “O ‘pasquinale’ então se transformou em gênero comum de difundir notícias desa- gradáveis, a maioria delas falsas, sobre pessoas públicas”.7 O texto de Darnton descreve um breve histórico das notícias falsas e suas implicações políticas. Contudo, as notícias falsas de hoje circulam com uma velocidade gigantes- ca, sendo distribuídas e afetando pessoas em diferentes regiões do mundo. Não utilizamos mais a in- vestigação e a racionalidade como critérios, a velocidade da rede capta nossas respostas imediatas, emocionais. O fenômeno das bolhas, des- crito por Eli Pariser8 em 2011, que consiste em algoritmos que fi ltram 5A obra de Peirce está citada conforme a convenção: CP (Collected Papers). Os números que seguem as letras correspondem, respectivamente, a volume e parágrafo. 6 Cf. SANTAELLA, 2018; FERRARI, 2019. 7 DARNTON, Robert. Th e true history of fake news. Disponível em: https://www.nybooks.com/ daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news/. Acesso em: 3 mai. 2019 8 https://www.ted.com/talks/eli_pariser_beware_online _fi lter_bubbles?language=pt-br.IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K Sociedade.indd 24 17/05/2019 18:58 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 25 as informações que chegam a cada um de nós, oferecendo-nos uma espécie de “espelho” construído a partir de nossos supostos interes- ses na rede, acaba por criar a ilusão de que “todo mundo” pensa como nós, dá-nos uma “convicção” de nossas ideias, independentemente de sua verdade ou falsidade. Matthew Fisher, Joshua Knobe, Brent Strickland e Frank C. Keil, no artigo “Tribalismo da Verda- de”,9 descrevem a pesquisa sobre como o estilo discursivo afeta a compreensão da questão em de- bate. Realizada com usuários do Facebook e do Twitter discutindo opiniões contraditórias, a pesqui- sa observou as diferentes conclu- sões em dois grupos distintos: um que tinha por objetivo investigar a verdade e outro que discutia bus- cando o convencimento. Entre as conclusões dos autores, eles afi r- mam que quanto mais debatemos para ganhar, mais parecerá existir uma única resposta correta, ou seja, fortifi camos nossas opiniões. Porém, quando debatemos para aprender, observamos que pode haver outras respostas igualmente corretas e colocamos nossas opi- niões em dúvida, o que propicia a investigação. Não seriam esses fortes mo- tivos para justifi car a necessida- de da refl exão fi losófi ca, que tem como característica exatamente a investigação das razões que temos para considerar uma ideia, em vá- rias e diferentes áreas, em nossa vida cotidiana? A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA NAS CIÊNCIAS No que se refere à pesquisa científi ca, a Filosofi a é uma forte aliada, tanto para o levantamen- to de questões geradoras de pes- quisa como, principalmente, para a crítica ao modo como aquela ciência procede, observando e questionando a validade de seus métodos e critérios, assim como as implicações do uso, às vezes exageradamente ampliado, de seus resultados. Como exemplo, a pesquisa que desenvolvi durante o doutoramento em Filosofi a foi sobre os métodos de pesquisa em neurociência e as implicações de suas aplicações na clínica médica, especialmente no que se refere a diagnósticos de transtornos men- tais.10 Assim como no meu traba- lho, muitos são os fi lósofos que se debruçam sobre os métodos de pesquisa nas ciências. É preciso, ainda, destacar que com o uso dos dados da rede (Big Data) em pesquisas em diferentes áreas, os métodos de análise de dados utilizados anteriormente se tornam obsoletos, sendo necessá- ria a criação de novas formas para analisá-los. Os algoritmos gené- ticos, principal forma utilizada hoje, trazem questões, na medida em que entre seus critérios encon- tramos o método lexical (mensu- rando a incidência de termos em postagens) e a avaliação da quan- tidade de visualizações, curtidas e compartilhamentos. A FILOSOFIA NA VIDA COTIDIANA As pesquisas partem da rede e são divulgadas e disseminadas nela, alterando hábitos, modos de vida das populações. Ao lado de resultados signifi cativos de pes- quisas sérias, é possível encontrar preconceitos, falsas notícias pau- tadas em pesquisas nunca reali- zadas, em pesquisas sem critérios, ou ainda resultados divulgados de modo sensacionalista, ampliando suas implicações para além dos li- mites do possível. Por outro lado, a Filosofi a pare- ce ter “invadido” a vida cotidiana. Os “infl uenciadores” de opinião citam constantemente fi lósofos, muitas vezes de modo deturpado, descontextualizado, apenas como um apelo ao argumento de auto- ridade, buscando o convencimen- to. Seus discursos são, na maioria A FILOSOFIA PARECE TER INVADIDO NOSSO DIA A DIA. OS “INFLUENCIADORES” DE OPINIÃO CITAM CONSTANTEMENTE FILÓSOFOS, MUITAS VEZES DE MODO DETURPADO 10 Ver AIUB, 2016. 9 FISHER, Matthew; KNOBE, Joshua; STRICKLAND, Brent; KEIL, Frank C. Th e tribalism of truth. In Scientifi c American , v. 318, n. 2, p. 50-53, jan. 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net publication/322549595_Th e_Tribalism_of_Truth. Acesso em: 3 mai. 2019. Sociedade.indd 25 17/05/2019 18:58 Grupo Único PDF PaD 26 • ciência&vida SOCIEDADE IM A G EN S: S H U TTER ST O C K das vezes, muito convincentes, mas não a partir de argumentos. Sua estratégia central é atingir as emo- ções de seu interlocutor, buscando respostas rápidas, cliques, comen- tários, curtidas. Há, na maior parte das vezes, um interesse econômico na troca de quantidade de cliques por patrocínios. Para consegui-los, a replicação de padrões é fortemen- te utilizada, gerando uma espécie de “massifi cação” dos modos de pensar e, consequentemente, das conclusões a que se chega. O pró- prio jornalismo, em busca de seu público, acaba por replicar os con- teúdos dos “infl uenciadores”, mui- tas vezes sem checar as fontes. Assim, somos expostos diaria- mente a notícias falsas, opiniões infundadas e precisamos de cri- térios para aceitá-las ou não. An- tes de as replicarmos, precisamos investigá-las, refl etir sobre elas, compreender de onde surgem, a quem interessam, que modos de vida representam e, principal- mente, se buscamos esses modos de vida para nossa sociedade, pois ao compartilhá-las promovemos um modo de vida e vivemos as consequências dele. A Filosofi a é um conhecimento construído na história da huma- nidade, que exige refl exão e rigor metodológico em suas pesquisas. Nada, em Filosofi a, é aceito sem suas devidas justifi cativas, que devem ser sufi cientemente e ra- cionalmente expostas para que o interlocutor compreenda como é possível chegar àquelas conclu- sões. A Filosofi a é também um sa- ber contextualizado, que observa as relações entre as partes e o todo e, principalmente, a Filosofi a bus- ca a raiz, a origem das questões e seus processos de desenvolvimen- to, para que nos apropriemos delas de modo a encontrarmos ou com- pormos formas para lidar com tais questões. Embora não haja con- senso acerca das defi nições de Fi- losofi a na tradição, esses elemen- tos são comuns a todas elas. As exigências específi cas do fi losofar incluem o rigor meto- dológico, o raciocínio correto, a busca pela gênese das questões e das ideias. Em muitos casos, os “infl uenciadores” não atendem a tais exigências, apresentando uma “fi losofi a” dogmática, isto é, uma “fi losofi a de vida”, ditando regras sobre como as pessoas de- vem pensar, sentir, agir. O uso de nomes de conceitos fi losófi cos, os fi lósofos citados descontextuali- zadamente, cria a falsa aparência de um discurso fi losófi co, quan- do, na verdade, seus objetivos en- contram-se distantes do fi losofar. Incluem-se, nesses discursos, as expressões “pensar por si mesmo” ou “autonomia do pensar” – ex- pressões caras à Filosofi a –, mas estas, em vez de corresponderem ao desenvolvimento do rigor me- todológico necessário ao pensar fi losofi camente, da investigação minuciosa e séria a que se dis- põe a Filosofi a, dizem respeito à reprodução irrefl etida de tais dis- cursos. Pensar criticamente, para tais pessoas, é pensar como elas pensam, é reproduzir suas ideias e, consequentemente, agir e di- fundir ações em favor delas. E isso em nada corresponde à Filosofi a. Ao contrário, a Filosofi a pode ser um importante instrumento para a análise dessas opiniões, nos au- xiliando a identifi car os motivos que temos para aceitar uma ideia e as implicações em torná-la um guia para nossas ações. A FILOSOFIA COMO PROFISSÃO Além das contribuições da Fi- losofi a para as ciências e para a vida cotidiana, podemos elencar possibilidades de ela ser “um ofí- cio que gere renda para a pessoa”. Se pensarmos na atuação do professor de Filosofi a, ao consi- derarmos a importância dos co- nhecimentos fi losófi cos para as ciências e para a vida cotidiana, podemos concluir que a Filosofi a deveria estar presente não apenas na educação básica, mas em todos os cursos superiores, e também nos de formação tecnológica, ga- rantindo a aprendizagem de uma habilidade negligenciada na edu- cação e na formação profi ssional: o questionar, cada vez mais neces- sário para que possamos nos situ- ar no mundo. IMA G EN S: S H U TT ER ST O C K DIANTE DA IMPORTÂNCIA DOS CONHECIMENTOS FILOSÓFICOS PARA AS CIÊNCIAS E PARA A VIDA COTIDIANA, CONCLUI-SE QUE A FILOSOFIA DEVERIA ESTAR PRESENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA Sociedade.indd 26 17/05/2019 18:58 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 27 IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K RE FE RÊ N C IA S Em todo o mundo, os consul- tórios de Filosofi a surgem e o fi ló- sofo, com seu papel de “provoca- dor” ao pensar, traz a refl exão para as questões cotidianas, provocan- do a pessoa a investigar a si mes- ma e sua realidade, conhecendo o mundo em que vive, tendo consci- ência do lugar a partir do qual lê o mundo, constrói suas concepções, além da consciência sobre outras concepções possíveis e sobre os motivos que tem para considerar esta como a melhor. Porém, os “falsos fi lósofos” também estão nos consultórios, e em vez de auxiliar a pessoa a pen- sar sobre suas questões, e encontrar formas para lidar com elas, condu- zem-na à escolha de caminhos que de alguma maneira os benefi ciam – ainda que o façam visando “boas intenções” –, e isso tem consequ- ências para as pessoas envolvidas e para a sociedade como um todo. Quando esses falsos fi lósofos atu- am em mídias digitais, empresas ou instituições públicas, fazem o mesmo, mas as consequências de suas interferências atingem um nú- mero bem maior de pessoas. Isso não é prerrogativa apenas da Filosofi a, os falsários estão em todas as áreas. Em tempos de ve- locidade e variedade de informa- ções, em tempos de pós-verdade e AIUB, Monica. Peirce e a neurociência do século XXI: Reflexões sobre Filosofia e Medicina. São Paulo: FiloCzar, 2016. FERRARI, Pollyana. Como sair das bolhas. São Paulo: Educ/Armazém da Cultura, 2019. HARARI, Youval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Cia. das Letras, 2018. PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce (CP). CD-ROM past masters. Charlotterville: Intelex Corporation, 1992. SANTAELLA, Lúcia. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2018. tribalismo da verdade, abandonar os critérios de investigação em fa- vor do critério de quantidade de cliques, curtidas ou repetições de um discurso é correr o risco de sermos conduzidos para um fu- turo sombrio, e, pior, com nosso assentimento. Daí a importância de identi- fi car quando se trata de alguém disposto ao fi losofar – que trará questões, provocará a pensar, mas não dará respostas prontas, nem o atacará quando for questiona- do – e quando se trata de alguém que usa o nome Filosofi a sem uma formação específi ca na área, sem um estudo adequado que propicie o fi losofar. Emergem, hoje, pesso- as que se dizem fi lósofos, mas têm como objetivo detratar, destruir a Filosofi a. Exatamente porque a Filosofi a possui um papel na cons- trução de uma sociedade melhor surgem seus detratores, acusando os fi lósofos de doutrinação quan- do o fi losofar faz exatamente o oposto, instiga a postura crítica e investigativa, necessária ao desen- volvimento da ciência e da socie- dade. O estudo da Filosofi a, longe de ser um investimento desneces- sário, é um investimento impres- cindível para os dias atuais. Sociedade.indd 27 17/05/2019 18:58 Grupo Único PDF PaD 28 • ciência&vida EXISTÊNCIA/CAPAVIDA E OBRA JEAN-JACQUES ROUSSEAU Suas vivências, seu tempo, seus escritos, sua filosofia e seus elementos (auto formativos) Vida e Obra.indd 28 17/05/2019 18:14 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 29 IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L 1 Adaptado de capítulo da tese de doutorado escrita pela autora, intitulada “O exercício do fi losofar como caminho para a formação humana: uma hermenêutica da obra de Jean-Jacques Rousseau para pensar o ensino de Filosofi a”. A tese foi orientada pela profa. dra. Neiva Afonso Oliveira, no Programa de Pós-Graduação em Educaçãoda Universidade Federal de Pelotas; defendida e aprovada em maio de 2017. Jean-Jacques Rousseau nasceu no dia 28 de junho de 1712, há aproximadamente 307 anos. Filho de Issac Rousseau e de Suzanne Bernard, era natural de Genebra. Sua mãe, por complicações devidas ao parto, faleceu sete dias após seu nascimento. Com uma vida controversa, foi criado até os 10 anos por seu pai, que em função de um confl ito com o sr. Gautier, capitão da França, vê-se obrigado a deixar Genebra e expatriar- -se, entregando Rousseau aos cuidados de um pastor, o ministro Lambercier. Rousseau viveu no período que, historicamente, de- nominamos Idade Moderna. Os anos vividos pelo fi lóso- fo genebrino destacam-se em função das grandes revolu- ções que ocorriam em diversos aspectos sociais. Tanto no âmbito comercial quanto nos ambientes culturais e cien- tífi cos, através do Renascimento, houve transformações – que acabaram por se tornar características peculiares do início do século XVIII. O humanismo antropocentrista também era uma forte característica deste tempo, valori- zando, assim, o papel do homem em suas mais variadas ações. Strathern (2004, p. 8) comenta o contexto histórico de Rousseau e as implicações do pensamento rousseau- niano para a humanidade: Nos primeiros anos do século XVIII, quando Rousseau nasceu, a revolução científi ca e o Iluminismo estavam dando origem a grandes avanços intelectuais. Ainda as- sim, a sensibilidade europeia sofria de uma profunda doença, atolada nas limitações intelectuais e emocionais do Classicismo. Em meio aos novos progressos, muitos in- divíduos tinham consciência de que estavam começando a perder contato consigo mesmos, com quem realmente eram. Tratava-se de um novo sentimento – que permane- ceria como parte de nossa sensibilidade até os dias de hoje. Rousseau foi o primeiro a confrontar essa ainda inarticu- lada autoconsciência. Foi ele que insistiu que deveríamos buscar e experimentar nossa “verdadeira natureza”. Em 1728, após voltar de um passeio e encontrar os portões da cidade fechados, Rousseau decide deixar Ge- nebra. Parte para Annecy e, por volta de 1729, conhece Madame de Warens, que terá um papel importantíssimo Letícia Maria Passos Corrêa doutora é mestre em Educação e licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente, é vice-diretora na Escola Sesi Eraldo Giacobbe e professora de Filosofia e Sociologia do Estado do Rio Grande do Sul. É autora do livro Ensino de Filosofia: um estudo de caso, editado pela Universidade Federal de Pelotas (2012) e membro do Grupo de Estudos FEPráxis (Filosofia, Educação e Práxis Social). leticiamp correa@gmail.com. Vida e Obra.indd 29 17/05/2019 18:14 Grupo Único PDF PaD 30 • ciência&vida TEORIAS FORMULADAS PELO FILÓSOFO NÃO SE PRESTAM SIMPLESMENTE PARA JUSTIFICAR E DESCULPAR AS ESCOLHAS PESSOAIS VIVIDAS POR ELE. SERIA UMA INTERPRETAÇÃO DEMASIADAMENTE SIMPLISTA A DE JULGAR O LEGADO DE UM AUTOR A PARTIR DE SUA VIDA PESSOAL IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K VIDA E OBRA em sua vida. O cidadão de Genebra passa a habitar sua casa e nela aprofunda seus conhecimentos fi losófi cos, conforme nos afi rma Rodríguez: Es ella quien le aconseja sobre sus primeras clases de mú- sica, por ejemplo; quien le orienta em sus nuevas lecturas y quien le anima a viajar para conocer. Em su palácio lee la Lógica, de Port-Royal, el Ensayo, de Locke, Malebranch, Leibniz, Descartes etc. (1992, p. 78). Apesar de Rousseau ter iniciado suas refl exões fi losó- fi cas desde a sua infância, quando já houvera lido clás- sicos da Filosofi a como Plutarco, por exemplo, é, sem dúvida, neste momento, com a convivência de Madame de Warens, que percebemos grandes etapas formativas na vida deste homem, que assim o defi niriam como fi lósofo. Em seus Devaneios de um caminhante solitário, Rousseau, ao avaliar sua vida no passado, demonstra a consciência do papel que Madame de Warens desempenhou em sua formação humana nos poucos anos que viveram juntos: Sem esse breve mas precioso espaço de tempo talvez tivesse permanecido incerto sobre mim mesmo, pois todo o resto da minha vida, fraco e sem resistência, fui tão agitado, sa- cudido, importunado pelas paixões alheias que, quase pas- sivo numa vida tão tumultuosa, teria difi culdade em sepa- rar o que existe de meu em minha própria conduta, tanto a dura fatalidade não cessou de pesar sobre mim. Contudo, durante esse pequeno número de anos, amado por uma mulher cheia de bondade e doçura, fi z o que queria fazer, fui o que quis ser e, pelo uso que fi z de meus lazeres, ajuda- do por suas lições e seu exemplo, soube dar à minha alma ainda simples e nova a forma que mais lhe convinha e que ainda mantém (2014b, p. 133). Após a estadia na residência de Madame de Warens, Rousseau vai para Paris, onde conhece a elite intelectual da França, convivendo com outros pensadores como Da- vid Hume, Voltaire, Diderot, Condillac, entre outros. Em 1745, conhece Th érèse Levasseur, sua companheira de toda a vida, com quem teve cinco fi lhos, todos entregues ao Orfanato das Crianças Abandonadas, que fi cava bem perto da moradia do casal. Rousseau é um fi lósofo que ao escrever livros que mesclam Filosofi a e Literatura, e ao criar um aluno ima- ginário, mostra-nos claramente como seria a sua maneira de ensinar Filosofi a. O exemplo norteador da sua prática pedagógica está explícito em suas obras, que possuem um valor inestimável para a história da humanidade. Propo- nho, então, que, em um primeiro momento, possamos fa- zer uma separação entre a obra do autor e a sua biografi a. Há quem diga que não podemos levar em conside- ração os escritos de um homem que escreveu um trata- M A U R IC E Q U EN TI N D E LA T O U R (P U B LI C D O M A IN )/W IK IM ED IA C O M M O N S Rousseau: sem mistério sobre suas decisões controversas Vida e Obra.indd 30 24/05/2019 13:46 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 31 A ATITUDE DO PENSADOR EM RELAÇÃO AO ABANDONO DOS FILHOS DEVE SER ENTENDIDA LEVANDO-SE EM CONTA O CONTEXTO HISTÓRICO DA ÉPOCA E SUAS IDEOLOGIASIMAG EN S: S H U TT ER ST O C K do sobre educação e, contudo, não foi capaz de educar e criar os próprios fi lhos. Entretanto, se analisarmos o argumento que tenta desvalorizar a teoria rousseau- niana em função do abandono dos fi lhos percebemos que a ideia é falaciosa. Explico. Não podemos traçar paralelos a partir de coisas distintas. Ao compararmos dessa maneira, estaríamos cometendo a falácia falsa analogia2 . O abandono dos fi lhos consiste em um fato da história de Rousseau e a fi losofi a/pedagogia/litera- tura rousseauniana equivale a uma produção intelec- tual produzida pelo autor. Entretanto, em um segundo momento, podemos re- futar o argumento de desvalorização da obra rousseau- niana em função do episódio do abandono dos fi lhos realizando o caminho oposto, uma outra via do que aca- bamos de dizer. Proponho que, ao invés de separarmos a vida e a obra de Rousseau, façamos o contrário, tratemos de vê-las como ingredientes indissociáveis deste processo de conhecimento. Por mais que sejam coisas distintas – a 2 Conforme Shulman (2016), a falácia falsa analogia ocorre em função de “as situações serem completamente diferentes e não se poder fazer analogia entre elas”. obra e a vida do autor – Rousseau usa sua obra como um mecanismo de compensação das suas próprias frustra- ções. Daí segue o fato de que não há incongruência entre a biografi a e a produção fi losófi ca do autor. Por ter sido um homem fi el a si mesmo e às ideias em que acredita- va, a vida de Jean-Jacques dar-nos-ia grandes indicações sobre como poderíamos agir de maneira verdadeira e comprometida com aquilo que se acredita e, assim, po- deríamos tomar, também, alguns aspectos biográfi cos do autor como indicações para a prática fi losófi ca e para o exercício do fi losofar. Os antagonismos presentesna vida de Rousseau refl e- tem claramente seus ideais fi losófi cos. Starobinski (1991, p. 46) comenta sobre as antíteses confrontadas pelo autor: “O que se exige, pensa ele, é que sua existência se torne um exemplo, que seus princípios se tornem visíveis em sua própria vida”. Entretanto, o comentador esclarece que as teorias formuladas por Rousseau não se prestam sim- plesmente para justifi car e desculpar as escolhas pessoais vividas pelo fi lósofo. Seria uma interpretação demasiada- mente simplista a de julgar o legado de um autor a partir Vida e Obra.indd 31 17/05/2019 18:14 Grupo Único PDF PaD 32 • ciência&vida IM A G EN S: S H U TT ER ST O C KESPECIALMENTE POR VIVER EM MEIO AOS FILÓSOFOS DE SEU TEMPO, O PENSADOR CRITICA IDEOLOGIAS PRESENTES NAS CIÊNCIAS E NAS ARTES VIDA E OBRA de sua vida pessoal, mesmo que desde atitudes como a do “abandono” ou desarrimo dos fi lhos. A atitude de Rousseau em relação ao abandono dos fi lhos deve ser entendida levando-se em consideração o contexto histórico da época, bem como as concepções ideológicas que o autor defendia em relação ao Estado. Rousseau acreditava e preconizava que o Estado é que de- veria responsabilizar-se pela formação das crianças. Nas Confi ssões podemos saber desse fato pelas pala- vras do próprio fi lósofo: Meu terceiro fi lho foi, pois, entregue à Casa dos Expos- tos, como os primeiros; e o mesmo sucedeu com os dois seguintes, porque foram cinco ao todo. E essa solução me pareceu tão boa, tão sensata, tão legítima, que se não me gabava dela publicamente, era apenas em consideração à mãe. Mas contei-a a todos a quem confessava nossa liga- ção [...] Em suma, não fi z nenhum mistério com o meu procedimento, não só porque nunca pude esconder nada aos meus amigos, como porque, realmente, nada via disso de mal. Pesando tudo, escolhi para meus fi lhos o melhor ou o que eu imaginava que o fosse. Quisera eu, e ainda hoje o quereria, ter sido educado e sustentado como eles o foram (2008, p. 328). Tal atitude foi repensada em sua maturidade e o fi - lósofo, em vários trechos de sua obra, demonstra arre- pendimento e culpa pelos seus atos. No Emílio, Rousseau também comenta suas justifi cativas a respeito desse as- sunto: Um pai, quando gera e sustenta fi lhos, só realiza com isso um terço de sua tarefa. Ele deve homens à sua espécie, deve à sociedade homens sociáveis, deve cidadãos ao Estado [...] Quem não pode cumprir com os deveres de pai não tem o direito de tornar-se pai. Não há pobreza, trabalhos nem Vida e Obra.indd 32 17/05/2019 18:14 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 33 IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K ROUSSEAU LOCALIZA-SE, NO ÂMBITO DAS ESCOLAS FILOSÓFICAS, EM UM LIMIAR ENTRE O EMPIRISMO E O RACIONALISMO. TRAZ IDEIAS PARA A EDUCAÇÃO QUE, ATÉ ENTÃO, HAVIAM SIDO PRATICAMENTE ESQUECIDAS E DESVALORIZADAS respeito humano que o dispensem de sustentar seus fi lhos e de educá-los ele próprio [...] Para quem quer que tenha entranhas e desdenhe tão santos deveres, prevejo que por muito tempo derramará por sua culpa lágrimas amargas, e jamais se consolará disso (2014a, p. 27). Em 1749, a Academia de Dijon propôs um prêmio a quem respondesse à seguinte questão: “O estabelecimen- to das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?”. Rousseau escreve, então, o Discurso sobre as ciências e as artes e é o vencedor do concurso, sendo este seu primeiro trabalho estritamente fi losófi co. Ade- mais, o Primeiro discurso3 assume um papel de crítica muito forte às ideologias presentes no âmbito das ciências e das artes. Ao proporem a questão motivadora do Dis- curso, pode-se dizer que seria uma hipótese consistente a de que os membros da Academia de Dijon contavam com um elogio às esferas científi cas e artísticas. Ao con- trário do que se espera, Rousseau apresenta seu potencial fi losófi co e responde negativamente à questão, fato que nos mostra o quão inovador, ousado e crítico era o fi lóso- fo genebrino. Especialmente por viver em meio aos fi ló- sofos de seu tempo, o pensador critica o caráter cultural oriundo das ciências e das artes e o que, de fato, Rousseau realiza, consiste em uma refl exão crítica que se estende também aos fi lósofos, à Filosofi a em geral e ao papel a que ela se presta na sociedade e na formação humana. Nas palavras do autor: Respondei-me, pois, fi lósofos ilustres [...] vós de quem rece- bemos tantos conhecimentos sublimes, se não nos tivésseis nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso menos nu- merosos, menos bem governados, menos temíveis, menos fl orescentes ou mais perversos? (1983, p.343-344). O Primeiro discurso é obra que possui inestimável re- levância para o ensino de Filosofi a, quando são trabalha- das questões relativas à Filosofi a da Ciência e à Filosofi a Estética. Dentre outras, a noção de progresso é elemento colocado em xeque ao nos depararmos com a resposta negativa de Rousseau para o questionamento da Acade- mia de Dijon. Na sequência, Rousseau escreve o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens4 (1753) e O contrato social (1762). Entretanto, sua maior obra no que concerne à Pedagogia é, sem dúvida, Emílio, ou Da educação (1762). Nela, Rousseau aponta conceitos que foram “divisores de águas” para a história das ideias pedagógicas e para a Filosofi a da Educação. Entre eles, um dos principais seria o reconhecimento da criança como infante, em lugar de ser vista como um adulto 4 Rousseau escreveu essa obra também para concorrer ao certame organizado pela Academia de Dijon. Entretanto, dessa vez não obteve o êxito alcançado no Primeiro discurso. Embora a obra seja de uma relevância fi losófi ca indescritível, Jean-Jacques não foi o vencedor do concurso. 3 A respeito do Primeiro discurso, o Discurso sobre as ciências e as artes, vide OLIVEIRA; OLIVEIRA; CORRÊA. As motivações de Rousseau no Primeiro discurso. In: FAGHERAZZI, Onorato et al. Uma breve introdução à Filosofi a da Ciência. Rio Grande: IFRS, 2013. 5 A respeito do ineditismo em reconhecer a criança como infante, saliento que Rousseau foi pioneiro no que diz respeito a proclamar esta máxima de forma clara. Entretanto, não podemos esquecer da obra de Comênio, que em 1649, com a publicação da Didática magna, já havia dado um sentido diferenciado ao trato com a criança. Vida e Obra.indd 33 17/05/2019 18:14 Grupo Único PDF PaD 34 • ciência&vida RE FE RÊ N C IA S IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K VIDA E OBRA CORRÊA, Letícia Maria Passos. Ensino de Filosofia: um estudo de caso. Pelotas: Editora e Gráfica da Universidade Federal de Pelotas, 2012. DENT, N. J. H. Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. FAGHERAZZI, Onorato et al. Uma breve introdução à Filosofia da Ciência. Rio Grande: IFRS, 2013. RODRÍGUEZ, Herminio Barreiro. Juan Jacobo Rousseau, entre la ilustracion y el romanticismo (reflexiones al hilo de uma lectura de Las Confesiones). In: Educación y Sociedad. v. 10, p. 65-90, Madri, 1992. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Bauru: Edipro, 2008. . Do contrato social; Ensaio sobre a origem das línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Coleção Os Pensadores. Tradução de Lourdes Santos Machado; introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. . Emílio, ou Da educação. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014a. . Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2014b. SHULMAN, Max. O amor é uma falácia. Disponível em: http://docslide. com.br/documents/o-amor-e-uma-falacia-por-max-shulman-traducao-de- luis-fernando-verissimopdf.html . Acesso em: 15 abr. 2016. STRATHERN, Paul. Rousseau em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. em miniatura5 , e, de acordo com os padrões da época, Rousseau localiza-se, no âmbito das escolas fi losófi -cas, em um limiar entre o empirismo e o racionalismo. Traz ideias para a educação que, até então, haviam sido praticamente esquecidas e desvalorizadas pelos pensa- dores de seu tempo. Em Emílio, o genebrino apresenta- -se como um autor altamente propositivo e que valo- riza o projeto de formação humana, projeto em cuja viabilidade e execução das ideias acredita. No prefácio do livro, o fi lósofo nos fala sobre a inovação que a sua teoria pedagógica apresenta: [...] há infi nitos tempos, todos protestam contra a prática estabelecida, sem que ninguém se preocupe em propor ou- tra melhor. A literatura e o saber de nosso século tendem muito mais a destruir do que a edifi car. Censura-se com um tom de mestre; para propor, é preciso assumir uma outra postura, com a qual a altivez fi losófi ca se compraz menos. Apesar de tantos escritos que, segundo dizem, só têm por fi m a utilidade pública, a primeira de todas as utilidades, que é a de formar homens, ainda está esqueci- da (2014a, p. 4). Rousseau publicou outras obras relevantes, tais como: Ensaio sobre a origem das línguas (1753), Discur- so sobre a economia política (1755), Carta a d’Alembert (1758), Júlia ou a nova Heloísa (1760), Emílio e Sofi a ou os solitários (1762), Carta a Christophe de Beaumont (1763), Cartas da montanha (1764), Projeto de constitui- ção para a Córsega (1764), a autobiográfi ca Confi ssões (1770), Considerações sobre o governo da Polônia (1770), Rousseau juiz de Jean-Jacques (1776), Os devaneios do caminhante solitário (1776), dentre outras. A repercus- são de seus escritos, entretanto, foi extremamente po- lêmica, colocando-o, inclusive, em posições de risco à sua integridade física. Emílio e o Contrato, queimados em vias públicas em Genebra, bem como as persegui- ções vividas por Rousseau, mostram claramente que o pensar fi losófi co, a exemplo de Sócrates, por vezes é re- cebido incompreendidamente. Todavia, a instabilidade COM PERSONALIDADE EXCÊNTRICA, O CIDADÃO DE GENEBRA VIVEU NO CONTEXTO DE EFERVESCÊNCIA DA RACIONALIDADE ILUMINISTA E DOS IDEAIS QUE INSPIRARAM A REVOLUÇÃO FRANCESA que promove naqueles que o experimentam demonstra a força do exercício do fi losofar – capaz de promover mudanças históricas e (des)estruturar “alicerces” de pensamentos estagnados. Com personalidade excêntrica, o cidadão de Genebra viveu no contexto de efervescência da racionalidade ilu- minista instaurando-se e dos ideais que inspiraram a Re- volução Francesa, que aconteceria anos após a sua morte, em 1789. Suas ideias a respeito da liberdade e da igualda- de entre os homens, presentes em praticamente toda a sua obra, e enfatizadas no Contrato, infl uenciaram a escrita da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do- cumento de inestimável relevância, redigido no apogeu da Revolução Francesa. Todavia, Rousseau não chegou a ver suas ideias valorizadas e seguidas, pois faleceu em 2 de julho de 1778, 11 anos antes dos momentos revo- lucionários decisivos que afetaram a França, aos 66 anos de idade. Segundo Dent (1996, p. 22), “não há dúvida de que foi uma presença dominante durante a Revolução Francesa, e de que está hoje consagrado como uma das grandes fi guras da civilização ocidental”. Vida e Obra.indd 34 17/05/2019 18:14 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS • ciência&vida • 35 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO O CONHECIMENTO PELA LUZ NATUR AL ÓDIO AO OUTRO: DISTORÇÕES DA REALIDADE CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 35 18/05/2019 17:11 Grupo Único PDF PaD 36 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Um olhar sobre o inatismo cartesiano O CONHECIMENTO PELA LUZ NATURAL Leonor Gularte Soler é Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (RS). Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação e especialista no Ensino de Filosofia pelo Programa de Pós Graduação em Filosofia, ambos da mesma universidade. Membro do Grupo Fepráxis – Filosofia, educação e práxis social, mantido pela instituição. Email: leonorgulartesoler@ gmail.com CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 36 24/05/2019 16:55 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 37 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS O CONHECIMENTO PELA LUZ NATURAL A refl exão apresentada neste artigo expõe algu-mas expressões do conhecimento humano. Inicialmente abordamos questões referentes às dimensões da consciência, o sujeito e o objeto como essência do conhecimento. Em seguida, enfocam-se as duas ordens do conhecimento no Período Clássi- co: conhecimento sensível e intelectivo, com menção às ideias inatas de Descartes que contrapõem aquelas adquiridas pela experiência dos sentidos, desenvolvida por John Locke (1632-1704). Conclui-se, apresentan- do a importância do pensamento de René Descartes (1596-1650) para a contemporaneidade. Todos os seres vivos trazem consigo potencia- lidades para se desenvolver de acordo com as suas necessidades de sobrevivência. Uma planta, se colo- cada em um lugar escuro, vai direcionar seu cres- cimento para onde há luz natural; a ave não tem tato nem olfato ao voar, mas é compensada com uma visão muito aguçada que distingue e diferen- cia as cores a longa distância, o que lhe permite ver um inseto. Tem-se, ainda, o exemplo dos sentidos desenvolvidos pelas pessoas com algum tipo de deficiência, seja inata ou adquirida no decorrer da vida, as quais precisam se adaptar a um tipo de vida diferente (Santos, 2000, p. 31). É possível utilizar inúmeros exemplos de adaptação dos seres vivos com a imposição dos meios, mas não é esse o objetivo ao qual nos propomos; pretendemos no texto apresen- tar algumas expressões do conhecimento humano, dissertar sobre as dimensões da consciência e, em seguida, sobre as duas ordens do conhecimento no Período Clássico. Para, no último momento, fazer uma ref lexão no que se refere ao racionalismo e às ideias inatas de René Descartes (1596-1650). Os seres vivos possuem muitas características comuns, mas somente o homem tem a capacidade especial de pensar, e é essa característica que dáa ele uma tendência espontânea a descobrir o que é o mundo a sua volta, a conhecer e a compreender esse mundo, a si mesmo, a natureza e a sociedade. Essa capacidade de pensar possibilita somente ao homem CAPACIDADE DE PENSAR POSSIBILITA SOMENTE AO HOMEM TER A CONSCIÊNCIA DE SI. CONVIVENDO COM A REALIDADE, É PERMITIDO CONHECER A VERDADE, PARA, ASSIM, PODER COMPREENDÊ-LAIMAG EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 37 18/05/2019 17:11 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS f icar pendente, pendurado. Quan- do o ser humano sai de si mesmo sem sair de seu interior, exerce uma atividade do pensar, suspende o julgamento até formar uma ideia ou opinião. Pode-se observar que nos textos f ilosóficos escritos em latim não é empregado pendere nem pensare: para dizer pensar, utilizam os verbos cogitare1 e intelligere2 (p. 193). Portanto, conforme Chaui (2000), cogitare é forçar alguma coisa a f icar diante de nós para ser examinada e intelligere é conhe- cer e entender. Percebemos que os verbos signif icam atividade que exige atenção: avaliar, equilibrar, entender e ler por dentro. Assim, o pensamento é a consciência saindo de si, para colher e reunir dados oferecidos pela experiência, percepção, memória e linguagem (p. 194). A CONSCIÊNCIA E O CONHECIMENTO A necessidade do homem de explicar acerca do mundo sempre existiu. Recorrer a mitos, religiões, ciências e à Filosofi a para buscar explicação das coisas é um dom natural do ser humano. Mas o que podemos conhecer realmente? A consciência pode conhecer tudo? Qual a origem do conhecimento? Como chegar às certezas? A teoria do conhecimento distingue o cida- dão, o “eu” e o sujeito, apresentando graus de consciência que entende- mos como sendo a atividade racional que conhece a si mesma e na qual o sujeito do conhecimento é a fi gu- ra central. Segundo Chaui (2012), podemos dividir a consciência em três dimensões: a) Consciência ética: que é a capacidade livre e racional que o ser humano tem de escolher e agir de acordo com seus valores e regras. Esse ser, dotado de livre vontade e responsabilidade, comporta-se da maneira que entende melhor para si 1 Cogitare (meditar, considerar com atenção), esse verbo vem do agere (empurrar para diante de si). 2 Intelligere compõe-se de duas outras palavras: in- ter (entre) e legere (reunir, escolher, ler), ou seja, es- colher as letras com os olhos (Chaui, 2012, p. 147). A TEORIA DO CONHECIMENTO DISTINGUE O CIDADÃO, O “EU” E O SUJEITO, APRESENTANDO GRAUS DE CONSCIÊNCIA QUE ENTENDEMOS COMO SENDO A ATIVIDADE RACIONAL QUE CONHECE A SI MESMA IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K ter a consciência de si; convivendo com a realidade, lhe é permitido conhecer a verdade para, assim, poder compreendê-la e explicá- -la. Chaui (2000) esclarece que o sentido etimológico das palavras “pensamento” e “pensar” origina-se do verbo latino pendere, que signi- f ica f icar em suspenso, estar ou Para que os estudantes fixem conte- údo sobre teoria do conhecimento, segundo o proposto por pensadores e acadêmicos abordados neste artigo, e excertos da bibliografia indicada ao fi- nal, vale fazer com que reflitam sobre algo que consideram que conhecem de forma inata, expondo exemplos para o restante da classe. Devem ana- lisar como se dá esse conhecimento e, a partir daí iniciar debate ou dis- cussão baseados nas perguntas: "O que podemos conhecer realmente? A consciência pode conhecer tudo? Qual a origem do conhecimento? Como chegar às certezas?". As res- postas, orientadas pelas leituras indi- cadas, e pelas discussões, com media- ção do educador no que diz respeito ao esclarecimento sobre conceitos, pode servir de base para dissertações individuais ou em grupo, revelando o aprendizado sobre o tema e permitin- do sua avaliação. (Sugestão da redação) PROPOSTA DIDÁTICA CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 38 24/05/2019 14:01 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 39 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS e para os outros. Essa consciência moral, tanto racional quanto afeti- va, busca uma vida feliz e justa; b) Consciência psicológica: trata do sentimento da nossa própria identi- dade, o nosso “eu” formado a partir de nossas vivências, a maneira como compreendemos nossos sentimentos, nosso corpo e nosso mundo interior; c) Consciência epistemológica, que é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise e síntese de representação dos objetos através de ideias e de avaliação, compreen- são e interpretação desses objetos por meio dos juízos (p. 146). As consciências psicológica e epistemológica podem ser compre- endidas conforme os exemplos: um aluno pode adorar estudar Física e outro não gostar da matéria, mas o sentimento de cada um não inter- fere nos conceitos das disciplinas, pois seus valores independem de vivências dos alunos e são o objeto construído pelo sujeito do conheci- mento. Outro exemplo: um médico pode não saber que existe a cura para o câncer e, ao ser informado sobre isso, ele não acredita na cura, o que não invalida de forma alguma o sentido da pesquisa descoberta e conhecida pelo sujeito do conheci- mento (p. 147). A ESSÊNCIA DO CONHECIMENTO Conforme Hessen (2000), a essên- cia do conhecimento está no sujeito e no objeto, pois [...] ao mesmo tempo, a relação entre os dois elementos é uma relação recípro- ca (correlação). O sujeito só é sujeito para um objeto e o objeto só é objeto para um sujeito.[...] ser sujeito é algo completamente diverso de ser objeto. A função do sujeito é apreender o objeto; a função do objeto é ser apreensível e ser apreendido pelo sujeito. [...] Dizer que o conhecimento é uma determinação do sujeito pelo objeto é dizer que o sujei- to comporta-se receptivamente com respeito ao objeto. Essa receptividade, contudo, não significa passividade. Pelo contrário, pode-se falar de uma atividade e de uma espontaneidade do sujeito no conhecimento. Certamente, a espontaneidade não está relacionada ao objeto, mas à imagem do objeto,na qual a consciência pode muito bem ter uma participação criadora (Hessen, 2000, p. 18). O homem é limitado em sua capacidade de captar as reais proprie- dades dos objetos, por isso a dúvida, assim como algumas certezas, está presente em todos os tipos de conhe- cimento. Com isso, de acordo com Descartes (2001), [...] o bom senso é a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída: de fato, cada um pensa estar tão bem provi- do dele, que até mesmo aqueles que são os mais difíceis de contentar em todas as outras coisas não têm de forma nenhuma o costume de desejarem [ter] mais do que o que têm. E nisto não é verossímil que todos se enganem; mas antes, isso teste- munha que o poder de bem julgar, e de distinguir o verdadeiro do falso que é aquilo a que se chama o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; da mesma forma que a diversi- dade das nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais razoáveis do que outros, mas unicamente do fato de nós conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas e de não considerarmos as mesmas coisas (Descartes, 2001, p. 5). Durante o Período Clássico, a maioria dos fi lósofos reconheceu a existência de duas ordens de conhe- cimento: a dos sentidos e a do inte- lecto. Os pensadores da origem platônica (Platão, Plotino, Agosti- nho e Boaventura) subdividiram os conhecimentos, sensível e intelecti- O HOMEM É LIMITADO EM SUA CAPACIDADE DE CAPTAR AS REAIS PROPRIEDADES DOS OBJETOS, POR ISSO A DÚVIDA, ASSIM COMO ALGUMAS CERTEZAS, ESTÁ PRESENTE EM TODOS OS TIPOS DE CONHECIMENTOIMAG EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 39 18/05/2019 17:11 Grupo Único PDF PaD 40 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS vo, em dois tipos: 1) Conhecimento sensível por imagem direta ou sensí- vel por meio de uma cópia (imagem indireta); 2) Conhecimento intelec- tivo pelo raciocínio e conhecimento intelectivo pela visão. Já os pensa- dores de origem aristotélica (Aris- tóteles, Averróis, Alberto Magno e Tomas de Aquino) preservavam a primeira diferença e recusavam a segunda, pois, para eles, nossa mente não é dotada de conhecimento intuitivo, somente de raciocínio. No Período Moderno, igualmente, têm- -se duas linhas de raciocínio e, para o presente texto, utiliza-se o pensa- mento de René Descartes. O fi ló- sofo, por vezes chamado de “funda- dor da Filosofi a moderna” e “pai da Matemática moderna”, considerado racionalista, foi um dos pensadores mais infl uentes da história e defendia tanto o conhecimento sensível quan- to o intelectivo. A RAZÃO É INATA OU ADQUIRIDA? Em Meditações sobre a Filosofi a primeira (1641), obra mais completa e rigorosa sobre metafísica e episte- mologia, René Descartes demonstrou as possibilidades do conhecimento a partir de posturas mais céticas e, em seguida, estabeleceu uma base fi rme para as ciências. Para que suas crenças tivessem estabilidade e resistência, o que para ele trata-se de duas importantes marcas do conhecimento, Descar- tes estabelece o célebre argumen- to do erro dos sentidos, argumento esse que coloca sob a ação da dúvida metódica o conjunto de nossa experi- ência cotidiana, dado que a interação sensorial com o mundo em que ela se ampara não possibilita que elabo- remos um conhecimento que esteja acima de qualquer suspeita de falsi- dade. Descartes argumenta que “[...] porém, descobri que eles [os senti- dos] por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confi ar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram” (Descartes, 2004, p. 107). Nesse sentido, o único conhe- cimento verdadeiro não está contido no mundo externo da observação, mas sim nas verdades puramente racionais, no cogito ergo sun.3 Os racionalistas veem na razão a fonte principal do conhecimento 3 Cogito Ergo Sun – “Expressão cartesiana que exprime a autoevidência existencial do sujei- to pensante, isto é, a certeza de que o sujeito pensante tem de sua existência como tal” (Ab- bagnano, 2012, p. 173). humano, nesse sentido o conheci- mento só é verdadeiro se for logica- mente necessário e universalmente válido. O racionalismo cartesiano difere-se do racionalismo puro por três tipos de ideias: inatas, adventí- cias e factícias. As ideias adventícias chegam aos seres humanos a partir dos sentidos – sensações, percepções, lembranças –, as ideias factícias são aquelas que criam, na fantasia e na imaginação, uma união das imagens emitidas pelos sentidos e retidas na memória, cuja combinação permi- te representar ou imaginar coisas nunca vistas – contos infantis, mitos e superstições, por exemplo. E, por fi m, as ideias inatas, que são produzidas pelo entendimento, sem precisar da experiência, vivem no âmago do ser e pode-se pensar nelas ou não. Sobre as ideias inatas, Descartes esclarece que [...] quando começo a descobri-las, não me parece aprender nada de novo, mas recordar o que já sabia. Quero dizer: apercebo-me de coisas que esta- vam já no meu espírito, ainda que não tivesse pensado nelas. E, o que é mais notável, é que eu encontro em mim uma infi nidade de ideias de certas coisas que não podem ser consideradas um puro nada. Ainda que não tenham talvez existência fora do meu pensamento elas não são inventadas por mim. Embora tenha liberdade de as pensar ou não, elas têm uma natureza verdadeira e imutável (Descartes, 2005, p. 97). SEGUNDO A FILÓSOFA MARILENA CHAUI, AS IDEIAS INATAS NÃO PODEM VIR NEM DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DOS SERES NEM DAS FANTASIAS, POIS NÃO SE TEVE EXPERIÊNCIA SENSORIAL PARA COMPÔ-LAS A PARTIR DA MEMÓRIA IMAG EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 40 18/05/2019 17:11 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 41 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Segundo Chaui (2012), as ideias inatas não podem vir nem da expe- riência sensorial dos seres nem das fantasias, pois não se teve experiên- cia sensorial para compô-las a partir da memória. Dessa forma, tem-se o exemplo: a ideia de infi nito é inata, pois não há experiênciasensorial de infi nitude (p. 84). Para Descartes, as ideias inatas são a “assinatura do criador” no espírito das criaturas racionais e a razão é a luz natural inata que permite conhecer a verda- de. Elas são defi nidas, por ele, como todas as ideias que são inteiramente racionais. São elas: a) Os princípios da razão – identidade, não contra- dição, terceiro excluído e razão sufi - ciente; b) Noções comuns da razão – o todo é maior do que as partes; (c) Ideias simples conhecidas por intuição intelectual – cogito. Sendo as ideias inatas colocadas no espíri- to dos seres por Deus, estas sempre serão verdadeiras e mostram que as ideias factícias serão sempre falsas. PENSO, LOGO, EXISTO Descartes, em o Discurso sobre o método para bem conduzir a razão e buscar a verdade por meio da ciência (1637), enfatiza o método da dúvida: a dúvida metódica ou dúvida carte- siana. Para a razão bem funcionar, é necessário limpar o terreno da mente de todo preconceito. É preciso, num primeiro momento, duvidar de tudo, principalmente do que já se tem estabelecido como verdade absoluta. A partir de então, devem-se buscar verdades elementares, verdades que bastem a si e não precisem de outras verdades precedentes, pois, duvidan- do de tudo, aquilo que conseguir se estabelecer como verdade depois disso terá, necessariamente, que ser uma verdade absoluta. O fi lósofo parte do cogito (pensa- mento) que faz parte do seu interior, colocando em dúvida a sua própria existência para chegar a uma certe- za sobre a concepção de homem, a qual faz um novo pensar sobre a problemática (homem), conside- rando duas principais substân- cias existentes, que são o corpo e a alma que se fundem em uma união fundamental, porém distintas entre si. Descartes admite ainda a existên- cia de três substâncias. A res divina – substância eterna, perfeita, infi nita, que pensa e é independente. Mente (alma) e corpo são constituídos por duas substâncias distintas. Outra substância, a material, que corres- ponde ao mundo corpóreo, a qual ele chamou de substância extensa (res extensa) e uma imaterial, que corres- ponde à esfera do eu ou da consciên- cia, denominada substância pensante (res cogitans). Essa última, segundo ele, é a determinante no processo do conhecimento. Ainda que sepa- radas, essas substâncias são capazes de interagir. Para Descartes, apenas em Deus essas substâncias poderiam se fundir e constituir um todo, pois é da divindade que elas teriam se originado. Ainda, segundo o pensa- mento cartesiano, a aparente oposi- ção entre espírito e mente não é verdadeira, pois ambos perten- cem à esfera do res cogitans. Alguns pensadores acreditam na distinção entre eles pelas características próprias de cada um, uma vez que o espíri- to é ativo, mutante, inventivo, enquanto a mente tende ao ato refl exivo, meditativo, manten- do-se quase inalterável. No res cogitans, portanto, o elemen- to laborioso é o espiritual, ao passo que o intelecto é a fração inerte, algo por vir, que pode ser pratica- mente pesado, tocado. A garantia de ideias claras e distintas põe em dúvida tanto o mundo das coisas sensí- veis quanto o das inteligíveis, ou seja, é necessário duvidar de tudo. A dúvida universal de Descar- tes, segundo Barrena (2015), não é experiencialmente possível, pois não se pode duvidar de tudo. A dúvida autêntica, por outro lado, surge em um contexto específi co, embora, às vezes, seja também buscada, pois faz parte da atividade do ser humano questio- nar o que faz e buscar os erros e as EM DESCARTES, PARA A RAZÃO BEM FUNCIONAR, É NECESSÁRIO LIMPAR O TERRENO DA MENTE DE TODO PRECONCEITO. É PRECISO, NUM PRIMEIRO MOMENTO, DUVIDAR DE TUDO, PRINCIPALMENTE DO QUE JÁ SE TEM ESTABELECIDO COMO VERDADE ABSOLUTA IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 41 24/05/2019 14:03 Grupo Único PDF PaD 42 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PARA O EMPIRISTA, A FONTE DE TODO CONHECIMENTO HUMANO ESTÁ NA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL E NA REFLEXÃO. SÃO, ANTES, PROCESSOS QUE COMPÕEM A MENTE COM OS ELEMENTOS DO CONHECIMENTO anomalias. Quando se produz uma dúvida genuína, o organismo trata de voltar ao seu equilíbrio, mediante um processo de pesquisa que se encerra quando é formado um hábito, uma crença verdadeira e revisada (p. 30). CONHECIMENTO E A EXPERIÊNCIA DOS SENTIDOS Enquanto o racionalismo susten- ta que a verdadeira fonte do conhe- cimento é o pensamento, a razão, o empirismo, por sua vez, contrapõe determinando que a única fonte do conhecimento humano é a experiên- cia. Para os empiristas, a razão não possui nenhuma herança apriorísti- ca. Segundo Hessen (2012), a cons- ciência cognoscente não retira seus conteúdos da razão, mas exclusiva- mente da experiência. Ao nascer, o espírito humano está vazio de conte- údos, é uma folha em branco sobre a qual a experiência irá escrever os conceitos, e até mesmo os universais e abstratos originam-se da experi- ência. Ao mesmo tempo em que o racionalismo se deixa conduzir por um ideal de conhecimento, uma ideia determinada, o empirismo parte de fatos concretos. As percepções da criança são concretas e são elas que formam, aos poucos, os conceitos gerais e as representações e, sendo assim, as percepções desenvolvem-se organicamente a partir da experiên- cia (p. 55). Em um de seus principais traba- lhos, O Ensaio sobre o entendimento humano (1690), John Locke apresen- ta sua crítica ao inatismo e defende que todas as pessoas nascem como uma “tábula rasa”, ou seja, como uma folha em branco, sem conhecimento nenhum. Destarte, todas as pesso- as começam por não saber absoluta- mente nada e aprendem pela expe- riência, pela tentativa e pelo erro. “Locke conclui em tal caso que se o homem adulto possui conhecimento, se sua alma é um ‘papel impresso’, outros deverão ser os seus conteúdos: as ideias provenientes – todas – da experiência” (Monteiro, 1999, p. 10). Ele busca descobrir quais seriam os elementos que constituem o conheci- mento, quais as suas origens e proces- sos de formação, como também qual a dimensão da sua aplicação. Dessa forma, se, para Locke, o homem não possui ideias inatas – ao contrário do que afi rmavam Platão e Descar- tes –, surge a pergunta: como pode o homem constituir um conhecimento certo e indubitável, e em que casos isso é possível? Para o empirista, a fonte de todo conhecimento humano está na expe- riência sensível e na refl exão. Ele esclarece que, em si mesmas, esta e aquela não constituem propriamente o conhecimento. São, antes, proces- sos que compõem a mente com os elementos do conhecimento. Locke chama esses elementos de ideias. Ideia é, para esse fi lósofo inglês, o objeto do entendimento, quando qualquer pessoa pensa. A expressão “pensar” é assim tomada no mais amplo sentido, englobando todas as possíveis atividades cognitivas. Monteiro (1999) defende que, para Locke, as ideias de refl exão originam- -se no interior do sujeito,enquan- to as ideias de sensação derivam do IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 42 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 43 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS O CONHECIMENTO SEGURO E VERDADEIRO, FACULDADE UNIVERSALMENTE PARTILHADA, DEIXA CLARO QUE É SOMENTE A RAZÃO OU O BOM SENSO QUE PODEM DISTINGUIR O HOMEM DOS OUTROS ANIMAIS ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia, v. 1. Lisboa: Presença, 1991. BARRENA, Sara. Pragmatismo y educación: Charles S. Peirce y John Dewey en las aulas. Madri: Machado Grupo de Distribución, 2015. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000. . Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2012. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001. . Meditações sobre Filosofia primeira. São Paulo: Ed. da Unicamp, 2004. HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999. MONTEIRO, João Paulo; Martins, Carlos Estevam. Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. Ensaio Acerca do Entendimento Humano, por Jonh Locke, tradução: Anoar Aiex, p. 5 a 17. São Paulo: Nova Cultural, 1999. REALE, Giovanni. História da Filosofia moderna, v. 1. São Paulo: Paulus, 2007. SANTOS, Antônio Raimundo dos; CORDI, Cassiano et al. Para filosofar. São Paulo: Scipione, 2000. RE FE RÊ N C IA S exterior. Como exemplo, podemos citar expressões como “azul”, “frio”, que traduzem ideias de sensações. E, por outro lado, palavras como “duvidar”, “pensar” constituem ideias de refl exão. A essas duas catego- rias, Locke intitula “ideias simples”. Simples porque elas só acontecem a partir de experiências bem concretas. Essas experiências concretas, por sua vez, fornecem ideias simples de três formas: sensação, refl exão e ambas simultaneamente. Para a primei- ra, citamos como exemplo: sólido, amargo, movimento; na segunda, podemos citar a atenção, a memó- ria, a vontade; e, por fi m, em rela- ção às duas juntas, seriam as ideias de existência, duração, número. Para saber se as ideias simples equiva- lem a imagens das coisas exteriores ao sujeito que as percebe, Locke as separa em dois grupos: o primei- ro é formado por ideias “enquanto percepções em nosso espírito”; o segundo, “enquanto modifi cações da matéria nos corpos causadores de tais percepções”. Essa última traduz os efeitos de poderes capazes de afetar os sentidos humanos (Monteiro, 1999, p. 13). Chaui (2012) entende que uma percepção é a reunião de muitas sensações, ou seja, percebe- mos um único objeto por meio de várias sensações. Quando percebe-se uma rosa, ela é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num só objeto de percepção. Essas percep- ções associam-se por três motivos: semelhança, proximidade ou suces- são temporal. Ao se repetirem essas sensações, seja por semelhança, no mesmo espaço de tempo ou próximas umas das outras, criamos o hábito de associá-las e essas associações são denominadas pelos empiristas como ideias. Essas ideias trazidas pela experiência são levadas à memória, onde a razão as utiliza para formar os pensamentos (p. 86). Ainda assim, para Hessen (2000), mesmo que todo conteúdo do conhe- cimento proceda da experiência, o seu valor lógico não se limita à experiên- cia, pois existem verdades que inde- pendem da experiência e são univer- podem, sim, enganar e afastar os seres humanos da verdade. A razão seria a única forma verdadeira da qual se deve partir para alcançar o conheci- mento. O inatismo traduz a profunda confi ança que ele tem na razão. Essa fonte de todo o conhecimento segu- ro e verdadeiro, faculdade univer- salmente partilhada, deixa claro que é somente a razão ou o bom senso que podem distinguir o homem dos outros animais. salmente válidas. Como no caso da Matemática, cujo fundamento reside no pensamento (p. 71). Compreende- mos que o pensamento de Descartes permanece vivo nos dias de hoje, a refl exão sobre as suas ideias expressa a certeza da própria existência e que todo o verdadeiro saber se distingue pelas notas da necessidade lógica e da validade universal, pois o mundo da experiência mantém-se em contí- nua mudança, por isso os sentidos IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 43 24/05/2019 14:05 Grupo Único PDF PaD 44 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS ÓDIO AO OUTRO: DISTORÇÕES DA REALIDADE André Stuchi de Almeida é professor, graduado em Ciências sociais, especialista nos temas de Globalização e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), e Conflitos Internacionais e Globalização pela EPPEN- Unifesp. Victor Santana de Araújo é graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 44 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS O que acontece no Brasil de hoje é resultado de décadas de questões não resolvidas em toda a nossa história SH U TT ER ST O C K E A RQU IV O P ES SO AL D O A U TO R Vive-se hoje um dos momen-tos de maior turbulência social e política em toda a história. As eleições de 2018 não deram ao país um oxigênio em meio a tantas crises institucionais e econômicas. Ao contrário disso, os ânimos se acirraram ainda mais e a intolerância permeia toda a socie- dade. Tudo isso se deve ao fato de um fenômeno estar muito atuante na nossa sociedade: o bolsonarismo. Muito se atrela tal fenôme- no a questões conjunturais mais recentes. No entanto, o que acon- tece no Brasil hoje é resultado de décadas e até séculos de ques- tões não resolvidas em toda a nossa história. Walter Benjamin já dizia: “O espanto em constatar que os acontecimentos que vive- mos ‘ainda’ sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto f ilosóf ico”.1 Pode-se compreender o bolsonarismo como um momento hiperautoritário do neoliberalis- mo, como af irma Christian Laval: O neoliberalismo suscitou rancor social, frustrações, ressen- timentos, paixões… paixões desi- gualitárias, mas também paixão pela democracia e pela igualda- de. Ele é um terreno de conf litos. Houve fases no neoliberalismo. Houve fases de lutas intensas: a ascensão do altermundialismo, os movimentos de rua no mundo inteiro… Mas, hoje, estamos 1 BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagne- bin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. (Obras escolhidas, v. 1.) CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 45 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD 46 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS visivelmente em outra fase, que eu chamaria de momento hiperauto- ritário do neoliberalismo.2 Embora cada momento histó- rico tenha a sua peculiaridade e as suas particularidades, o fator mais comum da ascensão do auto- ritarismo é justamente o rancor social, frustrações, ressentimentos e paixões – como af irma Laval – de uma sociedade que vê todo o 2 LAVAL, Christian. Bolsonaro e o momen- to hiperautoritário do neoliberalismo. Dis- ponível em: https://blogdaboitempo.com. br/2018/10/29/o-momento-hiperautoritario- -do-neoliberalismo/ suas pautas, o que acaba acirrando ainda mais os conf litos entre esses grupos. Para se ter alguns exemplos mais práticos do que está sendo dito, nos últimos anos têm cres- cido fortemente nos carnavais as campanhas do “Não é Não” como uma forma de combater os assé- dios e estupros cometidos contra mulheres durante esse período do ano. Também aumenta o escla- recimento das pessoas negras ao ocuparem espaços que são ocupa- dos majoritariamente por pessoas brancas e, independentemente de seus interesses no campo da econo- mia política, possuem a noção (em maior ou menor grau) de que o racismo (como sistema) precisa ser combatido. E, por último, deve- -se notar a liberdade que pessoas LGBTs têm ao expressar mais os seus afetos publicamente. Tudo isso gera uma espécie de frustração de uma outra parte da sociedade. Um setor que não aceita que essas mudanças acontecem e devem acontecer para o desenvol- vimento humano. O fenômeno bolsonarista não se explica isoladamente, mas é resultado de uma nova onda que se alastra no mundo todo desde o ano de 2016, com a eleição de Donald Trump. No entanto, há espaço suf iciente para fazer análi- ses partindo da própria conjuntura brasileira. A direita brasileira antes fora liderada pelo PSDB, que visava um aprofundamento das políticas iniciadas por Fernando Henrique Cardoso na privatização de esta- tais, maior autonomia do merca- do e redução da participação do Estado na economia. Contudo, a própria direita, na sua totalida- de, necessitava radicalizar o seu discurso e as suas ideias, como af irma Luis Felipe Miguel: O que existe hoje é a conf luên- cia de grupos diversos, cuja união é sobretudo pragmática e motiva- da pela percepção de um inimigo IMA G EN S: S H U TT ER ST O C K EMBORA CADA MOMENTO HISTÓRICO TENHA A SUA PECULIARIDADE E AS SUAS PARTICULARIDADES, O FATOR MAIS COMUM DA ASCENSÃO DO AUTORITARISMO É JUSTAMENTE O RANCOR SOCIAL, EM SUCESSIVAS CRISES DO CAPITAL seu modo de vida ameaçado pelas sucessivas crises do capital, pela violência e pelo desemprego. Ao mesmo tempo em que gera todos esses sentimentos, no lado oposto obteve-se também forte atuação, como os movimentos coletivos que visam igualdade e f im das opressões a determina- dos grupos (mulheres, negros, LGBTs). A partir do momento em que determinados grupos se levan- tam contra séculos de violência, geram-se em outra parte da socie- dade medos, frustrações e, prin- cipalmente, equívocos quanto às CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 46 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 47 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS comum. Os setores mais extrema- dos incluem três vertentes prin- cipais, que são o libertarianismo, o fundamentalismo religioso e a reciclagem do anticomunismo.3 O autor ressalta a união de diferentes grupos que, indepen- dentemente de suas diferenças no âmbito moral, têm algo em comum que os une, que em suma se trata da eliminação por completo de seu inimigo comum: as esquerdas. Vale também ressaltar o fato de que Bolsonaro não estava em primeiro plano para as elites. Embora suas ideias estejam alinha- das com os maiores e mais inf luen- tes empresários do país, as classes dominantes precisavam de alguém com um discurso mais moderado, e o homem do mercado era Geral- do Alckmin; isso até chegar ao ponto em que se teve certeza de que o candidato não ganharia as eleições. O modus operandi pratica- do pelos grupos ultraliberais, no entanto, é pensado desde a déca- da de 1980, e só agora, décadas depois, conseguiram de vez colo- car em prática. No ano de 1983, frações da burguesia do Rio de Janeiro, juntamente com intelectuais da Fundação Getulio Vargas, forma- dos a partir das ideias da Escola Monetarista de Chicago e inspi- rados pelo Institute of Economic Affairs (IEA), fundaram o Insti- tuto Liberal (IL), com o objetivo de criar métodos de difusãodo pensamento liberal no Brasil.4 Nesse mesmo contexto, criou- -se, no ano de 1984, o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), que tinha como propósito a divul- gação do pensamento conservador 3 MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: SOLANO, Esther (Org.). O ódio como política. São Paulo: Boitempo, 2018. 4 CASIMIRO, Flavio Henrique Calheiros. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: SOLANO, Esther (Org.). O ódio como política. São Paulo: Boi- tempo, 2018. no eixo Sudeste-Sul. Instituição essa que foi responsável por criar o Fórum da Liberdade, um dos eventos de maior importância da direita brasileira.5 5 Idem. Dentre as muitas organizações dos grupos conservadores, vale citar também o Instituto Millenium, que possui forte inf luência pelos nomes que colaboram com suas atuações, como o apresentador e jornalista Pedro Bial, o colunista Rodrigo Constantino, o editor do jornal Estado de S. Paulo Antônio Carlos Pereira, o diretor da Rede Globo Luiz Eduardo Vasconcellos e o próprio João Roberto Marinho; e por último o Grupo de Líderes Empresariais (Lide), fundado pelo atual governador João Doria. Um grupo muito seletivo de empresá- rios brasileiros, que buscam diver- sas formas de atuação política em benefício de seus negócios.6 Todas essas instituições atua- ram em conjunto para difundir no Brasil o pensamento liberal, e, de acordo com os próprios, da livre iniciativa e menor dependência do Estado. Por f im, é importante analisar o desprezo que a sociedade passou a ter pelas instituições políti- cas tradicionais, por outras que apenas aparentam ser algo novo, enquanto carrega consigo todas as características da velha política. A 6 Idem. IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K É IMPORTANTE ANALISAR O DESPREZO QUE A SOCIEDADE PASSOU A TER PELAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS TRADICIONAIS, POR OUTRAS QUE APENAS APARENTAM SER ALGO NOVO, ENQUANTO CARREGA CONSIGO TODAS AS CARACTERÍSTICAS DA VELHA POLÍTICA CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 47 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD 48 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS começar pela eleição em primeiro turno de João Doria para a prefei- tura de São Paulo. O que se percebe é que o discur- so antipolítico já estava sendo alimentado, e com o passar dos anos foi se fortalecendo. Fizeram o que Safatle chama de “mobili- zar o medo”: em meio a uma crise econômica e política institucional, travestindo-se de uma corren- te popular, aos poucos ganharam terreno. Alguns fatores de ordem estrutural contribuíram para que a extrema-direita se tornasse a principal alternativa. Isso envol- ve desde a sua forte capacidade de articulação com programas de proteção à economia, aumento de competição, Estado mínimo, polí- ticas neoliberais, tudo isso atrela- do a um forte anseio de preserva- ção de seus valores. A verdade é que, ao longo dos anos, o governo do PT possibilitou o surgimento de uma “nova clas- se média brasileira”, que, segundo Rudá Ricci (2013), passa a desfru- tar de aumento de salários, aumen- to do poder de compra, acesso a lugares antes impensáveis e assim por diante. Nesse período, o f ilho da empregada/o passa a frequentar a universidade, o empregado/a passa a viajar de avião na mesma clas- se que o patrão. Tudo isso gera desconforto para uma classe acos- tumada com a distinção e, nesse arcabouço, tentara de todas as formas recuperar o seu prestígio, se é que tem algum. A crise que se inicia em 2008 muda esse quadro de ascensão drasticamente. A partir dela a “nova classe média” aos poucos vai perdendo seu poder de compra e um quadro de insatisfação começa a se formar. A princípio, a nova matriz gera resultados. Para dar um exemplo prático, em 2011 o PIB teve um crescimento de 3,9%, entretanto, com o passar dos anos, o cresci- mento foi se reduzindo até chegar em 0,1% no ano de 2014. Em meio à crise econômica que começa a se instalar, vemos grada- tivamente o surgimento de uma nova onda, que cria corpo a partir de junho de 2013. Nos referimos ao surgimento do discurso anti- político que surfa em meio à crise institucional, ganhando fôlego em meio à população. Para se ter uma ideia, conforme Almeida (2016), entre os anos de 2009 e 2015 o Ibope realizou várias pesquisas a respeito da “conf iança nas insti- tuições”. Nelas, pôde-se constatar o quanto as instituições políti- cas estavam desacreditadas, e em todas essas pesquisas os partidos políticos ocupavam a última posi- ção, com índice de 30% de acei- tação caindo no último ano para 17%, ou seja, quase a metade. A conf iança nas instituições não está relacionada apenas à polí- tica, mas a todos os setores rela- cionados ao Estado brasileiro, e dentre eles o mais nítido é o da segurança pública. A falta de conf iança nas insti- tuições traz o sentimento de inse- gurança a milhões de pessoas por todo o país, fazendo com que estas desejem alternativas radicais para combater a violência, como por A PARTIR DE 2008, A “NOVA CLASSE MÉDIA” AOS POUCOS VAI PERDENDO SEU PODER DE COMPRA E UM QUADRO DE INSATISFAÇÃO COMEÇA A SE FORMAR CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 48 24/05/2019 14:06 Grupo Único PDF PaD CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 49 CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS exemplo a ânsia pelo aumento da letalidade policial e principalmen- te a revogação da lei do desarma- mento. Tudo isso nos leva a uma análise sobre as distorções que o bolsonarismo causa na visão polí- tica dos cidadãos. Que distorções são essas? Ao longo dos anos, criou-se no Brasil uma falsa dicotomia da realidade, o ódio ao outro, o “nós contra eles”, o “bem x mal”, que dif iculta qualquer tentativa de consenso entre os que pensam diferente. Para isso, alguns temas mostram como o bolsonarismo distorceu a visão daqueles que o defendem e se engajam na polí- tica, questões polêmicas como violência, aborto, racismo etc. são discutidas nos convívios sociais de maneira muito rasa, tomando sempre como princípio as experi- ências pessoais para refutar o queas pesquisas dizem. No que tange à violência, criou-se no Brasil a pecha de que aqueles que defendem os direitos humanos, que são contra a amplia- ção do porte de armas, que ques- tionam ações policiais, são defen- sores de bandidos. A princípio, parece apenas uma frase de efeito, mas, ouvindo pessoalmente quem acredita e difunde esses discur- sos, existe uma crença de que a realidade é exatamente essa, de o f ilósofo Slavoj Zizek, não exis- te apenas a violência midiatizada (aquela em que os meios de comu- nicação narram de maneira super- f icial), mas diversas formas de violência e opressão que sufocam o tecido social. O Estado tem por obrigação o controle da violência, sempre da maneira mais pacíf ica possí- vel, e os direitos humanos têm por função o controle sobre as ações do Estado para que não haja exceções. Como dizia Bertolt Brecht, “que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?”. Este texto seria, em outro contexto, uma amostra de obviedades sem nada a acrescentar. Pois bem, vive- mos num tempo em que o óbvio parece ser uma novidade para o fenômeno bolsonarista. A partir do momento em que o Estado legaliza o armamento, ele assinará a sua própria incapacida- de de controlar a violência, trans- ferindo para seus cidadãos a defesa destreinada, podendo gerar efeitos colaterais irreversíveis. Ainda na questão da violência, devemos lembrar que o serviço de segurança é público, e como tal deve estar passível de questiona- mento por parte de seus cidadãos. Portanto, a questão da crimina- lidade e do porte de armas é um dos fatores que evidenciam a visão distorcida da realidade. NO QUE TANGE À VIOLÊNCIA, CRIOU-SE NO BRASIL A PECHA DE QUE AQUELES QUE DEFENDEM OS DIREITOS HUMANOS, QUE SÃO CONTRA A AMPLIAÇÃO DO PORTE DE ARMAS, QUE QUESTIONAM AÇÕES POLICIAIS, SÃO DEFENSORES DE BANDIDOS que o Brasil possui dois lados: os que defendem e os que condenam bandidos. Como dito em artigos anterio- res, a violência não é uma questão moral e de escolhas de cada indi- víduo, mas sim um sintoma de que a sociedade passa por proble- mas estruturais que resultam no aumento do índice da criminali- dade. Além disso, como explica IMA G EN S: S H U TT ER ST O C K CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 49 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD 50 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura , p. 222-232. São Paulo: Brasiliense, 1987. LAVAL, Christian. Bolsonaro e o momento hiperautoritário do neoliberalismo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/29/o-momento-hiperautoritario-do-neoliberalismo/ SOLANO, Esther (Org.). O ódio como política. São Paulo: Boitempo, 2018. SOUZA, Jessé. A classe média no espelho. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018. RE FE RÊ N C IA S Há um segundo fator que evidencia a visão distorcida da realidade causada pelo bolsonaris- mo: o aborto. Existe uma confusão genera- lizada em torno desse assunto. Enquanto um lado defende o direi- to reprodutivo da mulher, de tratar o tema como um caso de saúde pública, o outro se pauta por ques- tões morais e religiosas sem obter nenhuma evidência científ ica. Os que possuem uma visão simplif icada sobre o assunto acre- ditam que uma pessoa que defende esse direito está defendendo o ato do aborto. Mas a realidade mostra justamente o contrário. De acordo com o mapa do Center for Reproductive Rights, o Brasil é um dos poucos países a manter a legislação proibitiva sobre o aborto7: Nos países mais desenvolvidos, não há restrições ao aborto, e isso interfere diretamente no número de abortos feitos em cada um deles. 7 RUIC, Gabriela. Como o aborto é tratado pelo mundo. Revista Exame. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/como-o- -aborto-e-tratado-pelo-mundo/ No mapa da segregação racial, há um levantamento feito por pesquisadores em todo o Brasil sobre como a população está distri- buída pelo território, e os resulta- dos são impressionantes. Nas capitais e regiões metro- politanas, há uma segregação do espaço urbano que se evidencia na cor dos cidadãos. Nas regi- ões periféricas, mais afastadas e com menos recursos e serviços, é onde se concentra a maior parte de pessoas da cor preta ou parda, enquanto nas regiões mais centrais e desenvolvidas o número de pessoas da cor branca predomina.9 Isso resulta diretamente em outras questões como oportu- nidades, crescimento prof issio- nal, acesso a bens e riquezas. Nas universidades, a maioria dos alunos é branca, enquanto nos presídios a maioria é negra. A taxa de homicí- dios de pessoas negras é mais que o dobro da de pessoas brancas. Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista que o racismo é algo muito raro no Brasil, já superado. Como falado acima, contribui muito com a ideia de que racismo se resume a convi- ver ou não com pessoas negras. O bolsonarismo nasceu do medo, da desesperança e do desespero de uma população frustrada com a política nacional. Ele cristali- zou a fase antipolítica do mundo e inaugurou no Brasil uma era em que as frases de efeito, o punitivis- mo e a intolerância estão acima de qualquer tentativa para promover maior bem-estar dos cidadãos. 9 O que o mapa racial do Brasil revela sobre a segregação. Disponível em: https://www. nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O- -que-o-mapa-rac ia l -do-Bras i l - re ve la- -sobre-a-segrega%C3%A7%C3%A3o-no- -pa%C3%ADs IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K De acordo com reportagem do Estadão, os países que mantêm uma legislação mais legalista a respeito do aborto são os que possuem as taxas mais baixas.8 Isso porque, acima das questões morais, estão a saúde pública e o bem-estar de toda uma população. Outro fator que mostra a super- f icialidade do bolsonarismo sobre a realidade é a questão do racismo. No Brasil, entende-se equivo- cadamente por racismo o fato de não gostar de pessoas de outras raças, quando na verdade se mostra que é algo mais sistemático do que subjetivo. 8 CHADE, Jamil. Países que liberaram o aborto têm taxas mais baixas de casos que aqueles que o proíbem. Disponível em: https ://saude.estadao.com.br/not ic ias/ geral,paises-que-liberaram-aborto-tem-ta- xas-mais-baixas-de-casos-que-aqueles-que- -o-proibem,10000050484 CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 50 18/05/2019 17:12 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 51 FILOSOFIA, LITERATURA E ESTÉTICA Um mundo sem poesia seria pior do que um céu desestre- lado. Mar sem ondas. Floresta subtraída de vozes. Abismos sem ecos. Sinos aberrantes. Aves sem asas. Deserto descolorido. Ven- tos lentos sem alvo. Paisagens acorrentadas sem o sopro da li- berdade. Porque a poesia nos faz, ao menos, pensar que a alma existe (por lembrar de Marguerite Yourcenar-Jeanne de Vietingho- ff). O universo poético, em todos os sentidos, sintetiza ondulações que movimentam não somente o concreto.Mas que movimentam A escritora portuguesa já publicou diversos livros. Con- tos, ensaios e poesias. Todos os “gêneros” atravessados por um alto grau de poeticidade que, na verdade, é a marca das literatu- ras que se pretendem (e devem) ser universais. Ou seja, um escri- tor não pode e jamais deve falar por si. Poucos (que infelicidade!) conseguem entender que a ver- dadeira voz de um escritor deve, antes de qualquer coisa, despir- -se de sua própria voz. Despojar- -se. Desnudar-se. Sair de si. Nada pior do que a voz pessoal que gri- ta por ela mesma. Literatura não é relatar suas próprias memórias ou pequenos acontecimentos de infância ou familiares. Que fique bem entendido: literatura fala por alguém, como no seguinte poema de Eugénia: “C’est quoi la poésie?/ A poesia não é coisa das páginas dos livros–/ não se faz na tipogra- fia./ ”Ainda que seja nas páginas dos livros que/ se fixa depois da tipografia lhe dar um corpo de papel/ é sempre de amor que se Sete degraus sempre a descer Autora: Eugénia de Vasconcellos Editora: Guerra & Paz O UNIVERSO POÉTICO, EM TODOS OS SENTIDOS, SINTETIZA ONDULAÇÕES QUE MOVIMENTAM NÃO SOMENTE O CONCRETO, MAS A NOSSA INTERIORIDADE. ABSTRAÇÕES QUE NADA GARANTEM NOSSAS PRETENSAS CERTEZAS Eugénia de Vasconcellos: sete degraus sempre a descer nossa interioridade. Movimen- tam abstrações que em nada ga- rantem nossas pretensas certezas (nada piores do que elas, diga-se de passagem). Sete degraus sempre a descer, da escritora portuguesa Eugénia de Vasconcellos, Editora Guerra & Paz, Lisboa, é um livro que nos faz parar, queiramos ou não, para repensar não somente as armadilhas do amor. Mas, tam- bém, as ardilosas teias (quase invisíveis) que a vida , incondi- cionalmente, nos impõe e cuja reposição é sempre pontual. PARA REFLETIR.indd 51 24/05/2019 13:48 Grupo Único PDF PaD 52 • ciência&vida PARA REFLETIR Ana Maria Haddad Baptista (A. M. H. B.) é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica. Pós-doutora em História da Ciência. Pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho. Escreve sobre Literatura nestas páginas. faz um corpo,/ é por amor que um corpo se dá./ A poesia é da vida. É de quem tem./ A dor é de quem tem. O amor é de quem?/ A alegria? De quem tem./ Ao fim, depois do tempo, depois de mim, é de quem lê”. Aqui infere-se, quase que facilmente, que a poe- tisa fala pelo próprio conceito de poesia. A eterna ânsia do escritor que realmente pensa a linguagem e que busca (não sem dor e de- sespero) em sua mediação. (Que tanto nos atravessa, que nos dá voz, corpo e alma.) Impossível diante do fragmento, exposto an- teriormente do poema, esquecer- mos Deleuze. Ou seja: existe uma grande diferença entre escritores que possuem intenções literárias e aqueles que realmente fazem lite- ratura. (A desgraça propriamente da literatura é ser “construída”, em grande parte, por intenções literárias...”verdadeiros barqui- nhos de papel que se afogam na primeira poça de águas não crista- linas...) Mas para se fazer poesia, como diz a poetisa portuguesa, é preciso nascer para isso. Poesia não se adquire como uma simples caixa de fósforos (por mais que estes possam, de certa maneira, iluminar). É preciso tê-la em alma, como no seguinte fragmento: “Sin- to. Penso. Sei:/ o Amor, porque não tem um princípio,/ não tem um fim. – / E é de sua condição iniciar-se na dor,/ e vencê-la/ sem que a chama se apague./ O outro nome de um coração é liberdade/ e só por isso nos deixamos pren- der./ O outro nome do Amor é tu/ e só por isso nos deixamos matar./ Há outra eternidade?”. No fragmento em questão Eu- génia expõe a si mesma, sem jul- gamentos (e portanto joga para os leitores afogados... em busca da liberdade esquecida) as linhas complexas que brotam (como água a espirrar de nascentes) do próprio conceito de amor. Como definir um conceito que carre- ga a multiplicidade de vertentes? Pode parecer ingênuo, mas não é: “O Amor é um canto/ de riso e de lágrimas,/ um canto concreto e fremente,/ uma existência./”Uma oração./ A pequenina chama sem- pre acesa que/ serve à adoração.” Como não ouvir, neste momento, ecos e ressoares de Camões, Dan- te e Fernando Pessoa? Como? E o canto das sereias evitado, ardua- mente, por Ulisses? Mas não sem o pessimismo (ou realismo?) de Milan Kundera. Todo amor está, em princípio, condenado ao pre- cipício. De amar e sofrer ninguém se desabitua nos lembra Guima- rães Rosa. Condenação humana irrevogável. Multiplicidades en- volvem o conceito de amor. Pos- se. Ciúmes, sem concessões, do passado, presente, futuro (impos- sível esquecer Goethe em todas as esferas). O amor navega, sutilmente, pelos oceanos (não existem ânco- IM A G EN S: F R EE PI K E SH U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L PARA REFLETIR.indd 52 17/05/2019 20:45 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 53 ras) profundos da ausência. Eis o grande ardil. Ardente, insaciável. Quase impalpável. Alerta-nos o poeta (Marco Lucchesi), que pos- sui uma incrível intimidade com as estrelas, assim como transita facilmente por Babel, o quan- to amantes não percebem o que realmente buscam. As saudades insinuam-se (impiedosamente) quando separados. No entanto, quando os amantes estão juntos há uma incompletude. Há uma dimensão misteriosa que escapa. E isso remete, novamente, à com- plexa questão da ausência. Im- possível não pensar que amamos mais quando separados de nossos amores. Quaisquer que sejam as dimensões plurais que envolvem ou dissolvem os amores. Amamos a ausência (por isso mesmo a li- teratura nos convoca muito mais em termos de introspecção). A literatura trabalha com o ausen- te. O que instiga e castiga nossas possíveis reflexões. Sete degraus sempre a descer é um convite sedutor (e, portanto, perigoso) que nos leva ao con- fronto, sempre abismal, com nos- sa liberdade (sempre um proces- so a ser construído). Mas apenas a um primeiro patamar. (Adverte Lucchesi: “Sete Degraus sempre a Descer é um livro de alta poesia. Alta porque marcada pelo des- censo, ensaio de ousadia, pacto de sangue dos happy few. A via- gem de Alceste e Orfeu pertinaz, solitária, ao longo de uma incon- tornável cerimónia de adeus.”]) A nossa indefinível interioridade não para de nos escavar, arrastar, (para não esquecer de Bergson), da busca desesperada de nos cin- dir. Um caminho quase provável se não fôssemos incondicional- mente mediados pela linguagem. Por isso mesmo Eugénia ressalta em “Respira”: “Não há plano. Não há sonho. Não há futuro. Só há agora: de hora a hora até o passado se desfaz. Não vais morrer: respira.” Poesia? A eterna busca pela expressão íntima do ser. Das vo- zes silenciadas. Subtraídas. Petri- ficadas pelos infames envolvimen- tos do tédio que permeiam toda e qualquer existência, além de seus tentáculos sociais. Culturais. His- tóricos. A voz poética se sobrepõe, quando plena de autenticidade, a outras vozes tentadoras que sur- gem das âncoras, das algemas, das DIVERSOS TONS INSINUAM-SE AO LONGO DE SUA POESIA, NOS HIATOS E SILÊNCIOS DE QUEM POSSUI A CONSCIÊNCIA DE QUE EXISTIR NÃO É UM DESAFIO PARA OS FRACOS receitas de felicidades prometidas e de correntes espessas que laçam facilmente, em especial, aos que se fazem de surdos e mudos ao canto poético. Em outras palavras: têm medo da verdade. Mas, tam- bém, da árvore da vida: “e nem é que não ame, amo, as virtudes naturais ou de civilização, e as fragilidades, suas irmãs, mas do inferno sonhar o nosso maior sonho, o melhor sonho, é uma respiração funda, clarís- sima, que nenhum abismo colhe, ali quando entre camadas de nada, nada, nada, se chama a existência o que nunca foi – e isto de crucificar a razão à verdade, faz cair demónios e lança es- trelas ao céu da manhã.” O grito final da poetisa: “Espe- ra não morrer, jamais, ainda que as evidências dêem a mortepor inevitável”. Os diversos tons de tal afirmação insinuam-se ao longo de sua poesia nos hiatos e silên- cios de quem possui a consciência de que existir não é um desafio para os fracos. Existir-se, com ple- nitude, é reconhecer-se em so- nhos que poderão se realizar ou não. Mas, ao menos, imaginados e plasmados sob a linguagem poéti- ca que acaricia, atenua e ternura- liza mesmo o impossível. IM A G EN S: F R EE PI K E SH U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L PARA REFLETIR.indd 53 17/05/2019 20:45 Grupo Único PDF PaD 54 • ciência&vida PARA REFLETIR ARTES VISUAIS AINDA PERGUNTAM SE NOSSOS CELULARES IRÃO SE TORNAR SUFICIENTEMENTE INTELIGENTES PARA TRANSFORMAREM-SE EM NOSSOS AMIGOS. A ARTE MAIS UMA VEZ É CHAMADA À RESPOSTA DISTO Máquinas espirituais Um dia, ligaremos para a empre- sa que nos vendeu nosso computa- dor pessoal e informaremos que ele morreu. O serviço de atendimento nos perguntará se queremos que o ressuscitem ou se queremos outro com nova personalidade. Bem, se tivermos desenvolvido uma empa- tia muito forte com ele, pediremos que o ressuscitem tal como era. Se a relação não foi tão boa, pedire- mos que nos mandem outro com personalidade diferente. Bem, se isso era uma ficção científica bastante distante, pare- ce que já não é mais tão distan- te assim. Basta atentarmos para o texto que o Itaú Cultural veicu- lou para anunciar sua exposição “Consciência Cibernética (?) Ho- rizonte Quântico”. Informam no material promocional que as redes neurais artificiais (RNA) imitando o funcionamento dos nossos neurô- nios já estariam em nosso cotidiano e que só podemos conversar com nosso celular porque seus progra- mas se baseiam nessas redes RNA. Ainda perguntam se nossos celula- res irão se tornar suficientemente inteligentes para transformarem-se em nossos amigos. Para enfrentar essas perguntas, a arte mais uma vez é chamada a respondê-las. Os artistas presentes na mostra do Itaú Cultural responderam com máquinas que interagem sem ne- cessidade de nossa presença. Seus algoritmos já são suficientemente autônomos para nos dispensarem. Bem, a ficção também já tratou desse tema anteriormente. Nosso primeiro contato inesquecível com loca é quem guardará os guardas? Quem controlará os algoritmos inteligentes dessas máquinas que criam seus próprios programas derivados dos iniciais? Resposta difícil. Talvez, no futuro, nenhum humano esteja mais no comando. Máquinas serão autônomas e de- cidirão por si. Teremos que manter diálogos persuasivos para conven- cê-las. Exatamente como fazemos entre nós atualmente. Vejamos, então, quem o Itaú Cultural convocou para tratar desse assunto cada dia mais incômodo, pois coloca em cheque nossa pri- mazia dentro da cultura. Foram nove artistas: o austría- co Thomas Fourstein, a brasileira Rejane Cantoni, o britânico Robin Baumgarten, a francesa Justine Er- nard, os norte-americanos David Bowen e Lynn Hershman Lessen, os suíços André e Michel Décos- terd e o turco Memo Akten. De maneira consistente essa mostra dá continuidade às propostas da bienal “Emoção Art.Ficial” e da ex- posição “Consciência Cibernética” de 2017. O tema, portanto, não é fácil de ser circunscrito e está a merecer mostras sequenciais en- tre nós. Tão complexo que o Itaú Cultural promoveu, em paralelo à exposição, um seminário sobre consciência cibernética. Então, é difícil falar simplesmen- te em propostas artísticas para essa exposição. Elas são híbridas e apre- sentam uma fronteira imprecisa en- tre arte e tecnologia. Não sabemos mais quem comanda o quê. Cloud piano (2014) de David Bowen, por uma consciência cibernética deu- -se no clássico 2001: uma odisseia no espaço (Stanley Kubrick), no re- moto ano de 1968, quando fomos apresentados ao computador HAL 9000, no início muito simpático, mas que decide eliminar toda a tri- pulação da nave para poder atingir os objetivos finais de sua missão. Numa chave mais amorosa, o filme Ela (Spike Jonze, 2013) nos conta uma história de amor entre o pro- tagonista e o seu sistema opera- cional personalizado, que possui comportamento psicológico fe- minino tão requintado, capaz de sentimentos tão reais, que ele se apaixona durante essa interação. E, claro, será traído pelo sistema inteligente de voz sedutora. Então, o tema já está entre nós e máquinas cada vez mais capazes de interação e decisão também. A questão novamente que se co- PARA REFLETIR.indd 54 17/05/2019 20:45 Grupo Único PDF PaD UM DIA, ESSAS MÁQUINAS IRÃO ADQUIRIR CONSCIÊNCIA E CAPACIDADE DE AUTORREFLEXÃO. ENTÃO, HERDARÃO A TERRA. A MENOS QUE FAÇAMOS UMA SIMBIOSE COM ELAS, QUANDO SEREMOS TODOS ANDROIDES Walter Cezar Addeo (W. C. A.) é mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), escritor e roteirista. Escreve sobre Artes Visuais nestas páginas. waddeo@uol.com.br A R Q U IV O P ES SO A L E SH U TT ER ST O C K exemplo, é uma instalação onde um piano responde aos movimen- tos e formatos das nuvens no céu, movimentos estes captados por uma câmera de vídeo. As soluções musicais obtidas desse modo fariam a alegria de um John Cage, que tra- balhou com sons aleatórios em suas composições. Claro que esse “pia- no de nuvem” não se importa nem um pouco com a nossa presença. Já Justine Emard coloca em cena uma dança interativa entre o dançari- no Mirai Moryama e o robô Alter, que usa um algoritmo baseado no sistema de redes neurais artificiais (RNA). Utilizando um sistema de aprendizagem rápido (Deep Lear- ning), o robô aprende a interagir com o dançarino humano. Lear- ning to see (2017) do artista turco Memo Akten é praticamente uma máquina de aprendizado vendo e interpretando o mundo a partir de dados preexistentes em sua memó- ria, exatamente como nós humanos fazemos quando “entendemos” e “vemos” o mundo baseados em nossas expectativas e crenças an- teriores. Já Quantum Garden do britânico Robin Baumgarten chama de imediato a atenção pelas ondu- lações de LED ao criar um jardim quântico luminoso e hipnotizante. www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 55 CONSCIÊNCIA CIBERNÉTICA (?) HORIZONTE QUÂNTICO – Itaú Cultural – Av. Paulista, 149, SP. Esteve aberta ao público até 10/5/2019. Mas essa impressão não é o propó- sito final dessa escultura óptica. Os pinos que ao serem tocados criam os efeitos de luz estão, na verda- de, utilizando esses movimentos aleatórios provocados por nós para alterar a matemática subjacente a esse dispositivo e evocar uma exi- bição visual que ilustra o processo quântico denominado “Stirap”. Di- fícil de entender? Não se preocupe, é difícil mesmo. Transferências de estados quânticos de um estado para outro através de estágios inter- mediários são tão difíceis de enten- der quanto a propriedade de não localidade observada no mundo das partículas quânticas. Na verdade, todos esses dis- positivos são metáforas ainda ru- dimentares do que Ray Kurzweil chamou de “máquinas espirituais” de onde tiramos o título desta ma- téria. Um dia, essas máquinas irão adquirir consciência e capacidade de autorreflexão. Então, herdarão a Terra. A menos que façamos uma simbiose com elas quando seremos todos androides. Talvez essas futu- ras máquinas espirituais guardem com elas a possibilidade de nossa imortalidade. W W W .IT AU C U LT U RA L.O RG .B R/ SE C O ES /A G EN D A- C U LT U RA L/A RT E- E- TE C N O LO G IA -S AO -T EM A- D A- EX PO SI C AO -C O N SC IE N C IA -C IB ER N ET IC A PARA REFLETIR.indd 55 24/05/2019 13:49 Grupo Único PDF PaD 56 • ciência&vida PARA REFLETIR FILOSOFIA DA MENTE E TECNOLOGIA Chamou a atenção nas últimas semanas a aparição frequente na mídia da sueca Greta Thunberg, uma jovem de apenas 16 anos que vem liderando protestos contra o descaso com que os governos estão tratando a questão climática. Ela tem convocadotodos os estudantes do planeta para faltarem às aulas nas sextas-feiras e saírem nas ruas para protestar. Greta Thunberg sofre de síndro- me de Asperger (um ligeiro autismo) e afirma que só fala o necessário. Em outras palavras, ela não está disposta a debater as questões en- volvidas na mudança climática, mas apenas exigir que os governos sig- natários do Acordo de Paris limitem as emissões de dióxido de carbono para impedir o aumento da tempe- ratura global em 1,5 grau nas próxi- mas décadas. O tempo para discu- tir acabou. Está na hora de colocar em prática o que foi estabelecido, acordado. O que podemos esperar dessa mobilização? Se ela não se alastrar para países como os Estados Uni- dos e a China, os maiores emissores de CO2, essa mobilização corre o risco de ser apenas fogo de palha. Há países, como a Rússia, que não apenas ignoram o Acordo de Paris como também apostam que seriam beneficiados com o aumento da temperatura do planeta. As planí- cies siberianas seriam degeladas, tornando-se uma das maiores áreas agricultáveis do mundo. A Rússia aumentaria ainda mais seu poder. Todos sabemos que a questão climática passa pela economia. Há uma grande diversidade de interes- ses nacionais que não podem ser compatibilizados em torno de uma proposta única. Há países que pro- duzem petróleo, outros que o con- somem em seus automóveis e ca- minhões ou na forma de plásticos que servem para fazer embrulhos ou peças de computadores e de celulares. Há países, como o nos- so, que se tornam, cada vez mais, imensos pastos para gado ou imen- sas plantações de soja, aumentan- do o desmatamento. Mas como poderíamos abdicar de uma ativi- dade econômica tão importante como o agronegócio? No Brasil, a Os jovens e o clima NO BRASIL, A SOLUÇÃO POLÍTICA TEM SIDO NÃO FALAR DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS, TRANSFORMANDO-AS EM UM PONTO CEGO NO DISCURSO OFICIAL, DA MESMA MANEIRA QUE POR MUITO TEMPO IGNORAMOS O RACISMO solução política tem sido não falar de mudanças climáticas, transfor- mando-as em um ponto cego no discurso oficial, da mesma maneira que por muito tempo ignoramos o racismo, afirmando que não havia preconceito racial. Só agora os governadores de alguns estados estão formalizando sua adesão ao Acordo de Paris. Tudo o que contribui para o aumento do aquecimento global contribui também para a poluição. Não é apenas a atmosfera que é poluída. Produzir plásticos e des- cartá-los poluem a água potável e os oceanos. Por isso, combater o aquecimento global e combater a poluição são a mesma bandeira. Combatê-los efetivamente, e de forma transnacional, exigiria a im- plementação de regras draconianas por meio de intervenções militares em vários países. Seria a ruptura de regras políticas internacionais, a im- plementação de um eco-fascismo. Mas haveria outra solução? Pela pri- meira vez, a humanidade não con- segue resolver os problemas que ela mesmo criou. Por séculos nos concedemos uma grande anistia sobre tudo o que fizemos à natureza apenas por decretarmos que não fazíamos parte dela. Nossa religião e nosso pensamento filosófico contribuíram decisivamente para nos excluir da história geológica do nosso planeta como se ela pudesse ficar imune à ação de 7,5 bilhões de seres huma- PARA REFLETIR.indd 56 17/05/2019 20:45 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 57 nos. Até hoje, as ciências humanas nos concebem como criaturas in- dependentes de nossa constituição biológica, da geologia do planeta e também do clima. O ápice dessa ideia foi o século XIX, o século da questão social, da crença de que poderíamos resolver todos os nos- sos problemas por meio da política. Criamos na nossa imaginação uma economia independente da natu- reza e desenvolvemos a crença de que poderíamos, com o controle das relações econômicas e políti- cas ter também o controle da his- tória. Com isso pudemos ignorar a devastação da natureza que pro- movemos por séculos. Mas agora, infelizmente, com nossa entrada no Antropoceno, com a “intrusão de Gaia”, a conta chegou. Temos de nos reinventar às pressas, redefinir nossa posição na natureza de modo a fazer parte dela e não apenas uti- lizá-la como queremos. Greta Thunberg corre o risco de estar falando para quem não precisa ser convencido do que ela diz e, por isso, de seu discurso cair no vazio. O grande desafio não é mais convencer o público europeu dos problemas da mudança climáti- ca, mas levar esse discurso para os países em desenvolvimento, cujas perspectivas são diferentes e, por vezes, irreconciliáveis com a pre- servação da natureza. Isso sem falar dos negacionistas como Trump, que assegura aos cidadãos americanos a possibilidade de manter seus altos níveis de consumo sem culpa. A reivindicação das gerações mais jovens é justa, louvável e legí- tima. Ninguém merece herdar um planeta que parecerá um depósito de entulho. No entanto, enquanto esses protestos não se traduzirem em perdas financeiras eles serão tão louváveis quanto inócuos. E não custará nada a políticos como An- gela Merkel dizer que os apoiam. A tarefa de Greta Thunberg é hercúlea. Como convencer cada vez mais pessoas a aderirem a esse movimento protagonizado pelos jo- vens? O desafio é convencer as pes- soas a continuarem a reciclar lixo, poupar energia elétrica e econo- mizar água apesar de saberem que, enquanto estão nas ruas protestan- do, grandes corporações america- nas e europeias assinam contratos bilionários para explorar petróleo no Ártico. Se ela conseguir isso será, merecidamente, a mais jovem ga- nhadora de um Prêmio Nobel. João de Fernandes Teixeira é paulistano, formado em Filosofia na USP. Viveu e estudou na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Escreveu mais de uma dezena de livros sobre Filosofia da Mente e Tecnologia. Lecionou na Unesp, na UFSCar e na PUC-SP. A R Q U IV O P ES SO A L E SH U TT ER ST O C K PARA REFLETIR.indd 57 17/05/2019 20:45 Grupo Único PDF PaD 58 • ciência&vida DOSSIÊ Este dossiê nasce de uma urgência: o esforço para se pensar a democracia em um momento de erosão democrática. Neste sentido, não se trata apenas da reunião de artigos e reflexões de diferentes pensadoras e pensadores em torno da democracia, mas de um movimento colaborativo em si mesmo democrático PENSAR E DEFENDER A DEMOCRACIA (PARTE 2) DOSSIÊ DOSSIE.indd 58 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 59 A RELAÇÃO ENTRE FEMINISMO E DEMOCRACIA SE ESTABELECE À MEDIDA QUE METADE DA HUMANIDADE NÃO É INCLUÍDA NEM PELO ESCOPO TEÓRICO NEM PELA IMPLEMENTAÇÃO DESSA FORMA DE GOVERNO. A REDUÇÃO DOS FEMINISMOS ÀS PAUTAS PARTICULARISTAS OBSCURECE O FATO DE QUE HÁ UM PROFUNDO MOVIMENTO ANALÍTICO E POLÍTICO TANTO ENTRE AS TEÓRICAS COMO ENTRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS FEMINISTAS. QUE RELAÇÃO, AFINAL, PODEMOS ESTABELECER ENTRE DEMOCRACIA E FEMINISMO? Dedico este artigo à querida e valorosa Marielle Franco, cuja atuação política-pessoal servia de exemplo para uma práxis política com sororidade, fraternidade e menos sectarismos, o que em certa medida é parte do que falta nas democracias e nas condutas de democratas. Alguns acreditam que as demandas do feminismo são particularistas e exclu- sivamente identitárias, levando ao comprometimento das necessidades e interesses gerais de todos. Femi- nismos são, exclusivamente, teorias e movimentos identitários? Qual sua relação com as teorias e modelos de democracia e de justiça social? Nesta oportunidade procuro mostrar que a partir da modernidade há uma convergência entre democracia e Príscila Carvalho é filósofa e ecofeminista animalista. Dra. em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, integra o Laboratório Antígona de Filosofia e Gênero (IFCS), o Laboratório de Ética Ambiental (LEA-UFF) e o núcleo de Ética Aplicada (NEA-UFRJ) e concentrando-se nos temas relacionados às teorias dajustiça, teorias da democracia, estudos de gênero, ecofeminismos, teorias pós- colonialista e decolonialista. ptcarvalho1712@ gmail.com. Autora, neste dossiê, do texto "Democracia e feminismos para quem?". Aline Cristina Oliveira do Carmo é docente-pesquisadora do Departamento de Filosofia e do Núcleo de Estudos Afro- Brasileiros e Indígenas (Neabi) do Colégio Pedro II (CPII) e integra a Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras. alinecarmo84@gmail.com. Autora, neste dossiê, do texto "Democracia e antirracismo". Rachel Souza Martins é professora de Filosofia do CAP- UERJ; pesquisadora do Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA). rachel.capuerj@ gmail.com. Autora, neste dossiê, do texto "Democracia e questões ambientais". Diogo Mochcovitch é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). diogomochcovitch @gmail.com. Autor, neste dossiê, do texto "Democracia e tecnologia". DEMOCRACIA E FEMINISMOS PARA QUEM? Fabio A. G. Oliveira é professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) e coordenador do Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA). É organizador deste dossiê. fagoliveira@ id.uff.br feminismo tão inegável que mesmo os que não conhecem os escopos teóri- cos dos feminismos têm plena condi- ção de perceber que as contribuições feministas são concepções democrá- ticas. Além disso, um lampejo nas teorias feministas permite identifi - car que as mesmas oferecem aportes concretos para projetos republica- nos justos e soberanos de país. Para aquecer a refl exão que se inicia nesta oportunidade trago aspectos gerais de duas perspectivas liberais, uma delas DOSSIE.indd 59 24/05/2019 16:52 Grupo Único PDF PaD 60 • ciência&vida DOSSIÊ liberal igualitária, e de perspectivas feministas, e elejo uma pergunta para guiar esta breve refl exão, a saber: no que resulta a noção neutra de sujeitos da democracia? Dito de outra forma: a quem se destina a cidadania na democracia? Já na Grécia Antiga de V a.C., a democracia nasce como um gover- no (cracia) do povo (demos), inte- grado por pessoas livres, iguais e com direito à participação. Embora devamos a eles essa forma de gover- no precisamos perguntar: quem era o povo para os gregos? Responde- -se: todos, excetuando as mulhe- res, os metecos1 e os escravos. Isso nos permite concluir que o que se conceber como sujeito da demo- cracia e como povo determinará a capacidade de inclusão desse gover- no e, por que não dizer, da própria democraticidade. Olhando para as teorias e movimentos políticos na modernidade, encontramos teóri- cos contratualistas cujas concep- ções sobre a criação do Estado se pautam na ideia de um pacto social entre sujeitos livres. Em geral, sem maiores problematizações sobre os termos do contrato, no que diz respeito aos papéis sociais desiguais, concebem a liberdade como carro- -chefe que acompanharia todas as teorias liberais da justiça e da demo- cracia. Crítica ao sexismo presente nessas concepções, Carole Pateman mostra que “[...] a natureza da liber- dade civil não pode ser entendida sem a metade faltante da história, que revela como o direito patriar- cal dos homens sobre as mulheres é estabelecido por meio de contrato”2. As demais críticas feministas também se voltam predominante- mente, porém não exclusivamente, aos liberais. Senão vejamos o caso do governo revolucionário francês e sua procura em ampliar a inclu- 1 Estrangeiros na pólis. 2 PATEMAN, Carole, 1993, p. 16-17. são social e os direitos de liberda- de. Não lhes parecia incoerente que mantivessem inalterada a condição política e existencial em que as mulheres se encontravam em rela- ção aos seus “camaradas” e a todos os demais. Não seriam elas sujeitos da democracia e da justiça social com as quais eles se comprometiam? Como explicar, então, a exclusão das mulheres? E quanto à reação que negativa a crítica de Olympe de Gouges3 ou, em outro contexto, 3 Cf. GOUGES, Olympe, 1791. a de Mary Wollstonecraf4? Ambas revelaram o inegável caráter mascu- linista, portanto excludente, reves- tido de defesa da liberdade e igual- dade. Perguntemos-nos: liberdade e igualdade para quem? Quem são os concernidos da democracia? Voltemo-nos para a segunda metade do século XX. Descreven- do a então realidade empírica da política como meta a ser mantida, teóricos da democracia agregativa, destacando-se John Shumpeter5, empobrecem ainda mais o âmbito dos concernidos ao afi rmarem que a participação popular geraria riscos de instabilidade política e desarmo- nizaria os acordos entre as preferên- cias e interesses. Pensados em termos de “pluralismo de valores”, tais inte- resses por si mesmo expressariam e representariam a “vontade geral” através da escolha “cidadã” dos partidos e representantes durante os pleitos eleitorais. Fixado esse ideal de cidadania, o distanciamento e o desvínculo entre cidadãos e institui- ções que dele resultou tornaram-se objeto de críticas desenvolvidas pela concepção deliberativa de demo- cracia6. Na tentativa de recuperar a dimensão moral e engajada da cida- 4 Cf. WOLLSTONECRAFT, Mary, 2016. 5 Cf. SCHUMPETER, Joseph, 1984. 6 Cf. RAWLS, John, 2002; HABERMAS, Jürgen, 2003. IM AG EN S: SH U TT ER ST O C K O FATO DE TODOS OS SUJEITOS SOCIAIS SEREM ENCARNADOS E OCUPAREM DETERMINADOS LUGARES NO STATUS QUO FAZ DA NEUTRALIDADE NÃO UM PONTO DE VISTA ÉTICO SUSTENTÁVEL, MAS DELIMITADOR DOSSIE.indd 60 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 61 brancos. E a lista poderia continuar afunilando-se, pois a misoginia, a homofobia e o racismo estão dire- tamente associados às limitações do sistema e ao direito de exercício da cidadania, da identidade individual e coletiva. Ocorre algo muito simples de diagnosticar com alguma boa vontade intelectual e política. Tanto o sexismo como o racismo consistem , em linhas gerais, em uma estrutura de pensamento (e organização mate- rial da sociedade) que é aceita sem questionamentos por todos e presen- te na estrutura epistemológica, ética, política, de julgamento psicológico e nas orientações educacionais desde a infância. A neutralidade, assim como a universalidade, a raciona- lidade, o controle, o equilíbrio e a vocação pública são atribuídos aos homens, ao passo que as mulheres são pensadas e tratadas como perten- centes ao âmbito do particular, do natural, do instintivo, do desequilí- brio, da instabilidade, da infantilida- de, da pura emotividade e da voca- ção para a esfera privada. Como uma propaganda subliminar, esconde-se na assimilação dessa hierarquia de valores estereotipados uma relação de poder e subalternização que se confi rma porque é produzida e inte- riorizada. Se oculta, portanto, uma estrutura excludente que é androcên- trica e que compromete sobremanei- ra o alcance da democracia. Devido a esse diagnóstico, aqui resumido, todas as teóricas femi- nistas identifi cam inicialmente na cultura o núcleo naturalizado das relações de poder androcêntricas (e racistas), que nada têm de democrá- As mulheres trabalham, em média, três horas por semana a mais do que os homens, combinando trabalhos remunerados, afazeres domésticos e cuidados de pessoas. Mesmo assim, e ainda contando com um nível educacional mais alto, elas ganham, em média, 76,5% do rendimento dos homens [...] Vários fatores contribuem para as diferenças entre homens e mulheres no mer- cado de trabalho. Por exemplo, em 2016 as mulheres dedicavam, em média, 18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, 73% a mais do que os homens (10,5 horas). Essa diferença chegava a 80% no Nordeste (19 contra 10,5). Isso explica, em parte, a proporção de mulheres ocupadas em tra- balhos por tempo parcial, de até 30 horas semanais, ser o dobro da de homens (28,2% das mulheres ocupadascontra 14,1% dos homens). “Em função da carga de afazeres e cuidados, muitas mulheres se sentem com- pelidas a buscar ocupações que precisam de uma jornada de trabalho mais flexível”, explica a coordenadora de População e Indicadores Sociais do IBGE, Barbara Cobo, complementando que “mesmo com trabalhos em tempo par- cial, a mulher ainda trabalha mais. Combinando-se as horas de trabalho re- munerado com as de cuidados e afazeres, a mulher trabalha, em média, 54,4 horas semanais contra 51,4 dos homens.” (Fonte: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/20234- -mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem. Acesso em: 8/6/2018.) Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem PARA SEYLA BENHABIB, ESTRUTURA FILOSÓFICA DA NEUTRALIDADE NA ÉTICA E NA POLÍTICA É FICTÍCIA. REPRESENTA UM PONTO DE VISTA ANDROCÊNTRICO EM QUE O MASCULINO SE REPRESENTA HEGEMÔNICO ainda excludente, já que a neutrali- dade8 dessas concepções de sujeito da democracia em lugar de alcançar todos não alcança ninguém. O fato de todos os sujeitos sociais serem encarnados e ocuparem determi- nados lugares no statu quo faz da neutralidade não um ponto de vista ético sustentável, mas delimitador. Seu alcance se destina inevitavel- mente àqueles que no seio da cultura já são pensados como neutros, quais sejam, os homens, especialmente os 8 Cf. CARVALHO, Príscila, 2018. IM AG EN S: SH U TT ER ST O C K dania liberal, teóricos deliberativos – entre eles John Rawls e Jürgen Habermas – pensam a estabilidade e a soberania a partir da participação deliberativa dos signatários da polí- tica, considerados capazes de fazer acordos racionais. Com uma abor- dagem ao mesmo tempo analítica- -descritiva e normativa-crítica, Habermas7 procura se situar entre liberais e republicanos, defendendo para tanto a co-originalidade entre os direitos individuais fundamen- tais (prioridade para liberais) e a soberania popular (prioridade para republicanos). Ainda assim, nessa concepção os sujeitos da democra- cia são formulados a partir de uma perspectiva supostamente neutra, cuja condição de liberdade e igual- dade é, em alguma medida, pressu- posta. Promissora, tal concepção é 7 Cf. HABERMAS, Jürgen, 2003. DOSSIE.indd 61 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD 62 • ciência&vida DOSSIÊ ticas. Analisando no que consiste e no que resulta a natureza suposta- mente neutra e imparcial do público cívico, concebido pela democracia liberal, Iris Young9 mostra que são particulares, excludentes e que resul- ta no tratamento das reivindicações de grupos oprimidos como desvian- tes do “interesse geral” e da “impar- cialidade”. Escrutinando a estrutura fi losófi ca da neutralidade na ética e na política, Seyla Benhabib expli- ca igualmente que esta é particular e fi ctícia. Representa um ponto de vista androcentrico em que o mascu- lino se representa hegemônico inclu- sive na linguagem, como nos mostra a fi lósofa psicanalista Luce Irigaray10. As teóricas que associam econo- mia e cultura – entre as quais está uma parte das feministas socialistas – mostram como a cultura é capaz de manter certo modo de produção e vice-versa. Compondo um escopo analítico bidimensional11, diferem 9 Cf. YOUNG, Iris, 2012. 10 Cf. IRIGARAY, Luce, 1974. 11 Um modelo tridimensional pode ser visto em Nancy Fraser (2009). das socialistas materialistas por não concordarem, dentre outras coisas, que isoladamente a mudança de sistema de produção (economia) transformaria a condição de subal- ternização das mulheres, já que a paridade de direitos dependeria da associação entre mudança cultural e econômica12. Esse diagnóstico exige que a democracia para ser concebida como inclusiva precisa necessaria- mente considerar a conexão entre economia e cultura, pois o modus operandi de ambas, além de causar uma dupla dimensão das injustiças, produz injustiças interseccionais por fazer da condição étnica-racial, de classe, gênero e sexualidade meios de exploração e opressão. Pensando o papel do capitalis- mo em associação com o patriar- cado, mas também com a colonia- lidade do poder13, María Lugones14 formula um feminismo descolonial que problematiza a mentalidade que persiste no sistema colonial de gênero que marca a vida social e existencial dos povos latino-ameri- canos, sobretudo das mulheres indígenas, ticanas, negras, latinas e demais colonizadas. Integrante de um grupo de intelectuais que 12 IBGE (2013) e IPEA (2018) retratam o enorme número de disparidades entre mu- lheres e homens. 13 Padrão de poder diagnosticado por Aníbal Quijano (2002) como conceitual e material, ba- seado em dominação racial e exploração capita- lista que a partir do século XVI, que se mantém como mentalidade social e epistemológica. 14 Cf. LUGONES, María, 2014. pensa a democracia desde uma ótica pluriversal, Lugones problematiza a condição racializada e gendrada imposta às mulheres das Américas. Pensando em três dimensões de injustiças, Nancy Fraser15 associa os prejuízos causados pela economia, pela cultura e pela falta de acesso à participação política mostrando que todas estão articuladas ao que ela chama de sistema capitalista andro- cêntrico de Estado. Alargando o escopo analítico, aproximaria as contribuições de Fraser às de Lugo- nes, já que para ambas o patriarca- do e o capitalismo se associam e se estruturam de forma racializada e gendrada, reforçando a produção da dominação e exploração das mulhe- res. Porém, se projetarmos a demo- cracia para o contexto internacional é Lugones que nos permite pensar o caráter colonialista de referida asso- ciação. Em sua esteira sustento que se a cultura e a economia permane- cem sexistas, misóginas, androcên- tricas e racializadas, não podemos – com honestidade intelectual, ética e política – falar em democracia. Posto isso, é, portanto, indispen- sável para uma práxis democráti- ca conceber sujeitos e sujeitas tais como compõem o mundo real, abandonando as “histórias de ninar gente grande”16 com as quais somos formadas(os). 15 FRASER, Nancy, 2009. 16 Aqui minha homenagem ao samba da Man- gueira de 2019 por se propor a falar dos sujeitos aviltados pelas relações de força colonialistas, ra- cistas, sexistas e, supostamente, democráticas. INTEGRANTE DE UM GRUPO DE INTELECTUAIS QUE PENSA A DEMOCRACIA DESDE UMA ÓTICA PLURIVERSAL, LUGONES PROBLEMATIZA A CONDIÇÃO RACIALIZADA E GENDRADA IMPOSTA ÀS MULHERES DAS AMÉRICAS IM AG EN S: SH U TT ER ST O C K DOSSIE.indd 62 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 63 IM AG EN S: SH U TT ER ST O C K Inicialmente, parece pouco provável que qualquer pessoa possa negar os vínculos entre a democracia e o antirracismo. Mas na prática poucos parecem compreender a importância do desenvolvimento de práticas antirracistas para o forta- lecimento de regimes democráticos. E que práticas são essas? Afi nal, se todo poder pertence ao povo, e ele, ou melhor, nós somos diversos, nada mais democrático do que um regime que refl ita essa diversidade interna em suas próprias formas de atuação e organização. Assim, em se tratando a demo- cracia de um regime de direitos, o antirracismo se revela como um pressuposto fundamental desse regi- me, na medida em que constitui um elemento necessário para a garantia da participação igualitária de todos que o compõem. Ou seja, se levarmos em consideração a permanência do racismo estrutural em nossa socieda- de, devemos nos perguntar: democra- cia para quem? Quem são as pessoas que atualmente no Brasil possuem de fato a garantia daquele mínimo existencial, considerado fundamen- tal para a dignidade humana, como saúde, moradia, educação, trabalho e acesso à justiça? O ponto fundamental, continu- amente repisado pelos movimentos sociais negros e indígenas do país, é que não é possível falar em democra- cia sem enfrentarmos aspersistentes desigualdades raciais e sociais herda- das do colonialismo. O apontamen- to em comum de ambos os movi- mentos é a centralidade do papel da educação para a consolidação desse processo, denominado como desco- lonização pela corrente dos estudos pós-coloniais e decoloniais. Tais estudos possuem como uma de suas principais referências o fi lósofo e psiquiatra martinicano Frantz Fanon que, através de suas obras Pele negra, máscaras brancas, de 1952, e Os conde- nados da terra, de 1961, demonstrou a permanência de práticas coloniais de dominação em diversos âmbitos, destacando o papel da literatura e da educação nesse processo. Nesse sentido, para que se efeti- ve um regime democrático, tal como previsto pela Constituição Federal de 1988 – que constitui um marco na luta pela redemocratização do país e ainda pouco estudada em nossas escolas –, é necessário promover a dignidade de todas as pessoas, através da garantia de determinados direitos e liberdades considerados fundamentais. Angela Davis (1969), ao discor- rer sobre as relações entre democra- cia e liberdade, indica a importância do vínculo entre liberdade de ação e liberdade de pensamento para o desen- volvimento de práticas de resistência que visam restituir a humanidade de indivíduos e povos desterrados pelo sistema colonial. Neste breve artigo, preten- do demonstrar de que forma esse vínculo entre liberdade de pensa- mento e liberdade de ação se expressa nas práticas decoloniais antirracistas desenvolvidas por povos indígenas e africanos, do continente e da diáspora, ao longo POR ENVOLVER TRAUMAS COLETIVOS AINDA NÃO SUPERADOS DEVIDAMENTE, O DEBATE SOBRE A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO- -RACIAIS SEGUE FUNDAMENTAL PARA O FORTALECIMENTO DE SOCIEDADES EFETIVAMENTE DEMOCRÁTICAS DEMOCRACIA E ANTIRRACISMO DOSSIE.indd 63 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD 64 • ciência&vida DOSSIÊ racismo e preconceito seriam frutos da ignorância, não faltariam saberes sufi cientemente disseminados para desautorizar as práticas discrimina- tórias de natureza racial” (p. 9). A questão é que, embora existam vastos e exaustivos trabalhos que demons- tram os equívocos e efeitos danosos do racismo, além de leis de âmbi- tos nacionais e internacionais que o proíbam como crime inafi ançável, ainda assim a prática persiste quase que com o mesmo vigor dos tempos coloniais de 1500. A esse respeito, especialmente no que tange às marcas da continuida- de de práticas coloniais no contex- to estadunidense, através de temas como, por exemplo, a seletividade penal e o encarceramento em massa de determinados grupos sociais, os estudos da jurista e advogada Michelle Alexander (2012) e o fi lme A 13ª emenda da diretora e produto- ra Ava Duvernay (2016) constituem algumas das obras fundamentais que contribuem para o desenvol- vimento de práticas antirracistas, a fi m de que os direitos e liberdades fundamentais não permaneçam pervertidos em privilégios herda- dos do colonialismo, em benefício exclusivo da supremacia branca. No que tange ao contexto brasi- leiro, ao discutir as relações entre branqueamento e branquitude no país, Maria Aparecida Silva Bento (2002) apresenta um estudo que descreve duas formas distintas de discrimina- ção racial: “No campo da teoria da discriminação como interesse, a noção de privilégio é essencial. A discri- minação racial teria como motor a manutenção e a conquista de privilé- gios de um grupo sobre outro, inde- pendentemente do fato de ser inten- cional ou apoiada em preconceito. Em minha dissertação de mestrado, discuto essa questão que sempre me inquietou, que é o fato de que a discri- minação racial pode ter origem em outros processos sociais e psicológi- cos que extrapolam o preconceito. O desejo de manter o próprio privilégio branco (teoria da discriminação com base no interesse), combinado ou não com um sentimento de rejeição aos Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar sobre a constitucionalidade de importantes políticas públicas concernentes a questões étnico-raciais. Em especial questões que afetam diretamente po- pulações negras e indígenas do país, e a necessidade de ponderação entre os princípios democráticos da igualdade e liberdade fundamentais. Embora cada ação e julgamento tenham detalhes e peculiaridades próprios de cada caso, todos tiveram como elemento comum importante o reconhecimento por parte da Suprema Corte da importância do reconhecimento da diversi- dade cultural brasileira para a consolidação democrática do país, através do desenvolvimento de políticas efetivas de garantia dos direitos fundamentais dos povos negros e indígenas, para além da declaração formal da “igualdade de todos perante a lei”. A seguir são indicados alguns endereços eletrônicos onde é possível encontrar mais informações sobre cada caso: Constitucionalidade da reserva de vagas para negros e indígenas em uni- versidades: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do cID=1 3375729 . Acesso em: 9/3/19. Constitucionalidade do processo de titulação dos territórios quilombolas: ht- tps://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/decreto-quilombola-e-constitucio- nal-sem-aplicacao-do-marco-temporal-afirma-stf/22732 . Acesso em: 9/3/19. Importantes julgamentos do STF sobre questões raciais dos anos, frente às práticas colo- niais de dominação, tendo em vista a consolidação de sociedades efeti- vamente democráticas. O PAPEL DA EDUCAÇÃO: CONQUISTAS E DESAFIOS Qual o papel da educação em nossas vidas? Qual a relação entre democracia e educação? E o que as questões étnico-raciais têm a ver com educação e democracia? Ora, a persistência do racismo como herança-colonial-moderna, na atualidade, constitui, inegavelmen- te, um dos maiores obstáculos para a democracia. Isso vale não apenas para o Brasil, como em qualquer parte do mundo. Conforme ensina Sueli Carneiro (2005), a discriminação racial não é apenas fruto da ignorância ou do desconhecimento de algumas pesso- as: “Se, como afi rma o senso comum, Frantz Fanon AU TO R D ES C O N H EC ID O /W IK IM ED IA C O M M O N S DOSSIE.indd 64 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 65 negros, pode gerar discriminação” (p. 28, grifo nosso). Sueli Carneiro (2005) e Achille Mbembe (2018) são alguns dos nomes centrais da intelectualidade negra que desenvolveram impor- tantes estudos acerca dos vínculos entre o racismo e as políticas genocidas. Esses autores partem de um apro- fundamento dos estudos de Michel Foucault sobre o biopoder e a biopo- lítica aplicados às questões étnico- -raciais no continente africano e na diáspora, enquanto políticas de produção de vida e morte de deter- minados grupos, especialmente a partir da modernidade. Nessa pers- pectiva, a perpetuação da supremacia branca se desenvolve com auxílio de discursos desumanizadores de povos africanos e originários das Améri- dido não apenas como anulação e desqualifi cação do conhecimento dos povos subjugados, como também um processo persistente de produção de indigência cultural (2005, p. 97). De acordo com a fi lósofa brasileira: “Na sua versão mais contemporâ- nea nas universidades brasileiras, o epistemicídio (...) se manifesta também no dualismo do discurso militante versus discurso acadêmi- co, através do qual o pensamento do ativismo negro é desqualifi cado como fonte de autoridade do saber sobre o negro, enquanto é legitimado o discurso do branco sobre o negro. (...) Os pesquisadores negros em geral são reduzidos também à condi- ção de fonte e não de interlocutores reais no diálogo acadêmico, quando não são aprisionados exclusivamente ao tema do negro” (2006, p. 60). Assim, a fi m de romper com esse ciclo de desumanização contí- nua de pessoas negras e indígenas herdado do colonialismo, torna-se fundamental romper com privilégios e dialogar efetivamentecom essas populações, reconhecendo-as como sujeitos produtores de conhecimen- to, cujos saberes devem ser igual- mente considerados em qualquer processo de tomada de decisões que se pretenda democrático sobre temas que afetem suas realidades. Afi nal, a democracia se constitui como um regime de direitos para todos, e não de privilégios para alguns. cas e Caribe, que, aliados ao ideal de branqueamento, contribuem para a perpetuação do racismo em nossa sociedade. Segundo Sueli Carnei- ro, tais discursos se efetivam muitas vezes em práticas epistemicidas, isto é, promotoras do epistemicídio, enten- C O LU M BI A G SA PP /W IK IM ED IA C O M M O N S Angela Davis A campeã de 2019 do desfile de escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, Estação Primeira de Mangueira, apontou em seu enredo para a necessária reescrita da história do país, ao incorporar não somente heróis negros e indígenas que desenvolveram importantes papéis na luta antirracista no Brasil, como tam- bém uma nova narrativa sobre essa história, através da identificação de importantes personalidades da resistência indígena e negra no país, tais como Sepé Tiaraju, Cunhambebe, Dandara e Zumbi dos Palmares, Luisa Mahin, Aqualtune, Esperança Garcia, Chico da Matilde, Mariana Criola, Carolina Maria de Jesus, dentre outros. A reescrita da história por aqueles historicamente silenciados, frequentemente sub- metidos a políticas de controle social e extermínio, constitui um dos elementos centrais da corrente dos estudos pós-coloniais e decoloniais, apresentada breve- mente neste artigo. Tais estudos advogam a necessidade de descolonização no presente de práticas herdadas do colonialismo que impedem o reconhecimento de populações historicamente desumanizadas pelo processo colonial, a fim de que elas possam de fato ser consideradas parte integrante da sociedade a que perten- cem, através de uma cidadania plena e não de segunda classe, tendo suas vozes efetivamente ouvidas. Apesar das polêmicas e debates necessários com relação à apropriação colonial-moderna-capitalista do carnaval nos dias atuais, o conteúdo e impacto do desfile revela, especialmente no atual contexto histórico e político em que vive o Brasil, a urgência e centralidade dessas questões para a efetivação da de- mocracia no país, que jamais poderá ser considerado democrático enquanto seguir perpetuando práticas genocidas de suas populações tradicionais. Epistemicídio e a história não contada DOSSIE.indd 65 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD 66 • ciência&vida DOSSIÊ A DISCRIMINAÇÃO RACIAL TERIA COMO MOTOR A MANUTENÇÃO E A CONQUISTA DE PRIVILÉGIOS DE UM GRUPO SOBRE OUTRO, INDEPENDENTEMENTE DO FATO DE SER INTENCIONAL OU APOIADA EM PRECONCEITO TEMA NÃO SE PAUTA APENAS NO PROBLEMA DA ESCASSEZ DE RECURSOS, MAS NA QUALIDADE DO USO QUE FAZEMOS DELES, ISTO É, PARA QUE FINS SÃO UTILIZADOS NA LÓGICA CAPITALISTA Os debates ambientais que emergiram nas últimas décadas do século XX contribuíram fortemente para um alargamento das concepções políti- cas no que tange a essa arena. Insti- tuições internacionais e líderes de Estados democráticos proferiram acordos transnacionais visando a preservação do meio ambiente por meio da redução de suas “pegadas” ambientais. A defesa de um meio ambiente saudável que possa garan- tir as demandas materiais das futuras gerações no espaço urbano constitui um discurso fundamental das políti- cas sociais que se somaram às lutas por direitos fundamentais. A legislação ambiental é introdu- zida aos poucos no cenário político de alguns Estados nacionais repre- sentando o fortalecimento de pautas socioambientais junto à solidifi ca- ção das democracias. No Brasil, o cenário político de redemocratiza- ção contribuiu para a ascensão de movimentos sociais que traziam em suas pautas aspectos importantes dos problemas ambientais: a questão da escassez e do uso indevido de recur- sos naturais apropriados por organi- zações do setor industrial, a poluição e a degradação que afeta populações em zonas de risco, a demarcação de terras indígenas, são alguns dos aspectos confl ituosos abarcados pelo ambientalismo. O Estado democrá- tico proporcionou, assim, a redefi ni- ção das condições de cidadania, de reivindicação de direitos, de deman- das sociais comprometidas com o ambientalismo. Contudo, observamos nos dias atuais a fragilidade das instituições democráticas frente à garantia dos direitos fundamentais dos indivídu- os, bem como das condições socio- ambientais que permeiam os modos de vida de alguns grupos tornados vulneráveis. Trata-se de um défi t na democracia em que os valores sociais sucumbem à ausência de políticas sociais ou ao crescimento econômico. Pretendemos lançar um olhar sobre os confl itos ambientais compreendendo-os como aspectos inerentes das dinâmicas sociais e das práticas democráticas. A CONCEPÇÃO DOS CONFLITOS Tomando por base a indis- sociabilidade do binômio socie- dade-natureza, buscamos com- preender os confl itos ambientais como processos oriundos das dinâ- micas construídas socialmente no espaço material de relações entre os diversos atores. Indivíduos e grupos sociais, organizações e instituições governamentais compõem o tecido social no qual se dão suas tensões e aproximações. A concepção da “socio-natureza” representa o caráter necessário segundo o qual se conectam os atores socioambientais. Nessa mirí- ade de relações, não é mais possível extrair a ideia de natureza “pura”, reduzindo-a à “matéria e energia”, mas é imprescindível compreender os objetos naturais como elementos “dotados de signifi cados culturais e históricos” (Acselrad, 2004). Como salienta Henri Acselrad: “Os rios para as comunidades indígenas não A questão ambiental é marcada por dinâmicas e tensões entre grupos de ma- tizes sociais vulnerabilizadas pelos avanços dos processos de industrialização e corporações que visam a aceleração desse processo. Assim, não somente os modos de apropriação dos espaços são divergentes entre essas entidades, mas também suas práticas e significados simbólicos. Observamos no Brasil a ascensão de movimentos sociais que buscam dialogar e denunciar práticas opressoras, buscando a garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos e grupos. Os conflitos socioambientais e a noção de justiça am- biental erguem-se diante da usurpação desses direitos. Trata-se não somente de populações indígenas massacradas pela apropriação de suas terras, mas tam- bém de grupos marginalizados por deslocamentos territoriais ou pela exposição aos riscos da poluição e dos desastres ambientais. Justiça ambiental e democracia no Brasil DEMOCRACIA E QUESTÕES AMBIENTAIS DOSSIE.indd 66 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 67 NO BRASIL, O CENÁRIO POLÍTICO DE REDEMOCRATIZAÇÃO CONTRIBUIU PARA A ASCENSÃO DE MOVIMENTOS SOCIAIS QUE TRAZIAM EM SUAS PAUTAS ASPECTOS IMPORTANTES DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS DEMOCRACIA E JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL A visão democrática de participa- ção e de inclusão de pautas ambien- tais no cenário sociopolítico fez surgir junto aos movimentos sociais a pauta da justiça socioambiental. Inicialmente se procurou caracterizar o movimento pela justiça ambiental como algo distinto das pautas sociais, segmentando assim as noções de natureza e sociedade. Ao compre- endermos, contudo, a indissociabi- lidade das arenas social e natural, identifi camos nas pautas ambientais suas raízes sociais. Vale ressaltar que as demandas ambientais não são avessas às lutas contra a pobreza e a desigualdade, mas convergem para os mesmos objetivos. Os movimentos sociais têm papel primordial na construção do espaço democrático, viabilizando o aces- M AR C EL O C AM AR G O /A G ÊN C IA B RA SI L Brasília - Índios Munduruku fazem manifestação, em frente ao Ministério da Justiça, pela demarcação da terra indígena Sawre Muybu,no Pará. apresentam o mesmo sentido que para as empresas geradoras de hidro- eletricidade [...]” (Acselrad, 2004, p. 6). Ainda segundo Acselrad, não caberia pensar a questão ambiental objetivamente, isto é, em termos de quantidades de recursos despendi- dos pelos indivíduos, mas pensá-la a partir da qualidade do uso – para que são utilizados? – e dos signifi cados desses elementos dentro dos proces- sos históricos e culturais dos diversos grupos sociais. O problema da escassez e fi nitu- de dos recursos, conforme é tratado pela abordagem da “sustentabilida- de”, não será tomado como o aspecto central dessa visão, mas a lógica do uso que fazemos desses recursos, os modos hegemônicos pelos quais o setor industrial se apropria de áreas produtivas, a mercantilização de recursos e de áreas de preservação ambiental que exclui os signifi cados culturais para os grupos locais, as práticas de agricultura mecanizadas e o uso de agrotóxicos na produção são os enfoques que se pretende dar a essa temática. As práticas que sustentam as comunidades tradicionais são práti- cas distintas dos modelos domi- nantes. As populações tradicionais possuem fortes laços com o espaço que habitam, o que torna suas práti- cas signifi cativas. Tais grupos se caracterizam por práticas de produ- ção plurais, artesanais, de pouca inserção no mercado (Florit, 2016). As lógicas de produção e manejo que permeiam as comunidades tradicio- nais caminham no sentido oposto ao da industrialização e mercantiliza- ção das áreas naturais. Todo o aparato sociocultural das populações tradicionais bem como o valor histórico de seus territórios e práticas vêm sendo suprimidos e ameaçados pelos avanços do setor industrial. Surgem, assim, posições confl itantes entre vozes que buscam ser ouvidas em meio às turbulências do capitalismo e o setor econômico que as descarta. Os confl itos socioambientais erguem-se diante da usurpação dos direitos desses grupos sociais, cujos modos de vida e identidades são suprimidos por relações de poder opressoras. Trata-se não somente de populações indígenas massacradas pela apropriação de suas terras, mas também de grupos marginalizados por deslocamentos territoriais ou pela exposição aos riscos da polui- ção e dos desastres ambientais. Estamos diante da “desigualdade ambiental” que setoriza os danos e os direciona aos grupos domi- nados. Convém citarmos aqui os recentes crimes ambientais oriun- dos dos rompimentos de barragens da mineradora Vale do Rio Doce causando mortes e levando à incon- testável degradação ambiental. DOSSIE.indd 67 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD 68 • ciência&vida DOSSIÊ política da problemática ambiental que se caracteriza agora pela poten- cialização da autonomia de grupos vulnerabilizados na gestão da plura- lidade de seus projetos de vida (Leff , 2008). Reconhecer a pluralidade de identidades sociais e os aspectos simbólicos de suas práticas é parte central de uma visão ampliada dos debates ambientais. NÃO CABERIA PENSAR A QUESTÃO AMBIENTAL OBJETIVAMENTE, ISTO É, EM TERMOS DE QUANTIDADES DE RECURSOS DESPENDIDOS PELOS INDIVÍDUOS, MAS PENSÁ-LA A PARTIR DA QUALIDADE DO USO à margem do desenvolvimento, mas “assumem todo o seu ônus” (Zhouri et al., 2005). Isso signifi ca que a distribuição dos danos e riscos das atividades produtivas é direcionada aos mais pobres e vulneráveis, sendo estes diretamente afetados pela ausência de condições materiais para a minimização dos prejuízos. A distribuição desigual dos danos pode ser vista como um problema social e racial, uma vez que os afeta- dos pelos danos são grupos racial e historicamente excluídos das práti- cas deliberativas da justiça. O racis- mo ambiental presente nas lógicas opressoras de poder que permeiam a sociedade é um aspecto importante das lutas pela justiça socioambiental somando-se às lutas pela garantia de direitos difusos, tal como o direito ao meio ambiente saudável. A justiça socioambiental exige, assim, que se fortaleçam as insti- tuições e as políticas voltadas para uma nova racionalidade ambiental em que sejam reco- nhecidos os diversos projetos e meios de vida de enti- dades outrora deixadas à margem dos proces- sos deliberativos. A condição democrática é, portanto, a instância que nos dirige à busca pelos direitos fundamentais da humanidade. O projeto democrático de Estado que se defende abarca um olhar ético acerca de dimensão socioambiental. Pensar a justiça socioambien- tal implica numa ressignifi cação so de todos os grupos e indivíduos à justiça, aos direitos, à liberdade. Movimentos sociais cujas pautas incluíam a questão ambiental tive- ram início nos Estados Unidos dian- te da contaminação tóxica de locais habitados por populações pobres. Assim, a pobreza foi tomada como o recorte de classe que serve à opressão e à negação de direitos fundamen- tais. Não obstante, encontramos na realidade brasileira inúmeros episó- dios em que populações pobres são expostas a condições insalubres de vida nas quais os danos à saúde e ao bem-estar são absorvidos como processos naturalizados. Ocorre que as vítimas dos processos de desenvolvimento socio- econômico não somente são deixadas DEMOCRACIA E TECNOLOGIA Faz parte da rotina de muitos de nós acordarmos e buscarmos nossos aparelhos smartphones para saber sobre as últimas notícias, checar se há um novo e-mail impor- tante, conferir algum status nas redes sociais etc. Muitas de nossas tarefas e a coordenação de nossas vidas estão tão integradas às tecnologias de infor- mação e comunicação (TIC) que, em alguns casos, consideramos que essas tecnologias são parte de nós. Nossos aparelhos se confi guram, em certa medida, como um repositó- rio externo de diversas crenças1 que, quando alinhadas com uma pessoa, formam uma relação simbiótica, considerada um sistema acoplado, capaz de interagir através de uma causação recíproca contínua2. Nosso ambiente simbólico-tecno- lógico se tornou tão infl uente que a antiga dicotomia entre real x virtual foi substituída pela dicotomia on-line x off -line. Não há mais a divisão entre dois reinos, em que um seria ilusório; pelo contrário, há apenas um ambien- te no qual, em determinado momen- to, o sujeito está acoplado (on-line) ao seu artefato ou não está acoplado ao seu artefato (off -line). Esse novo modus vivendi traça- do pela ampliação das TIC resulta 1cf. CLARK e CHALMERS, 1998. 2cf. CLARK, 1997. DOSSIE.indd 68 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 69 em um novo habitat, a infosfera3. A infosfera é resultado da convergên- cia e do uso ininterrupto de aparatos tecnológicos na sociedade da infor- mação4, “onde os antigos e os novos meios de comunicação colidem” (Jenkins, 2006, p. 2). Um exemplo de nossa atuação na infosfera é a forma que recorremos aos aparelhos de localização global (GPS) para dirigir, ou mesmo solicitar um moto- rista em um aplicativo para irmos a determinado lugar. Não há mais uma divisão entre real e virtual, ou tangível e intangível. Nos inserimos e implementamos dentro da infosfe- ra da mesma maneira que abrimos uma porta através da maçaneta: são aff ordances cognitivos, isto é, atalhos devidamente estruturados para reali- zarmos tarefas. Assim, se a infosfera é essa nova ambiência na qual estamos inseridos, é importante compreendê-la dentro do processo democrático, destacando o uso das TIC, bem como apresen- 3cf. FLORIDI, 2011. 4cf. FLORIDI, 2001. tar quais vantagens e desvantagens são oriundas desse tipo de ecologia informacional. Quando o tema é democracia, destaca-se a discussão baseada no conceito de esfera pública, cunha- do pelo fi lósofo e sociólogo alemão Jurgën Habermas em sua obra Mudança estrutural da esfera pública, de 1962. Segundo o autor, a esfera pública pode ser concebida como uma esfera autônoma de comunicação ideal na qual os cidadãossão considerados um corpo público e podem se comu- nicar sem restrições, apresentando argumentos racionais, sem sofrer infl uência do Estado, conglomerados midiáticos e, ainda, sem condições de desigualdade. O resultado dessa argumentação racional sem restrições é, portanto, a opinião pública. Nas palavras do autor: [...] a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivin- dicam esta esfera pública regularmen- te pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fi m de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis de intercâmbio de mercadorias e do trabalho social5. A concepção de esfera pública de Habermas se refere a um período histórico bastante particular, marca- do pelo surgimento e consolida- 5 cf. HABERMAS, 2003, p. 42. ção da burguesia e dominado pela imprensa escrita. Isso se manifesta- va através das discussões em cafés e debates em salões, com a presença da nova classe burguesa que destituíra o poder absolutista. Apesar da investigação circuns- crita, a análise do fi lósofo alemão serve de base para pensar o concei- to de esfera pública no contexto das TIC. Habermas ampliou sua teoria para analisar a crise da esfera pública devido à infl uência dos conglomera- dos midiáticos na manipulação da opinião pública. O fi lósofo atribui às grandes corporações de mídia a infl uência na esfera pública, no senti- do da condução de pautas focadas em mudanças economicamente atrativas a essas empresas. Somando ao modelo a concep- ção de esfera pública interconectada, do professor de Estudos Jurídicos Yochai Benkler (2006), é possível traçar um diagnóstico contemporâneo acerca do enlace entre democracia e tecnologias. Benkler defende que a esfera pública tratada no cenário de incorporação das TIC deve ser compreendida como uma esfera pública interconectada, isto é, o ambiente de decisão e pautas da esfera pública estão na rede. A esfera pública interconecta- da aponta para a infl uência das TIC e a consolidação da infosfera como o cenário no qual os atores estão, além de mais familiarizados com as diversas tecnologias, mais engajados. Isso pode ser percebido através da A INTERAÇÃO E A INFLUÊNCIA DAS TECNOLOGIAS EM TODAS AS ESFERAS DA VIDA DEMANDAM NOVAS PERSPECTIVAS TANTO PARA O CONTEXTO PÚBLICO QUANTO PARA A CONCEPÇÃO DE DEMOCRACIA DOSSIE.indd 69 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD 70 • ciência&vida DOSSIÊ diferenciação entre a maneira que se comporta a divulgação midiática. Em uma era em que a televisão e a imprensa analógica detinham os modos e meios de comunicação, imaginemos que o modelo prove- niente da mass media se baseava em um formato verticalizado de distri- buição top-down: uma antena no topo que transmite a mesma infor- mação a diversos receptores. Agora, na ambiência da infosfera, em que ser on-line e digital é algo ao alcance de nossos smartphones, a situação é completamente distinta. Estamos no modelo bottom-up: um mode- lo mais horizontalizado, no qual a produção de informação é realiza- da através de diversos sujeitos para diversos sujeitos. A tecnologia traz consigo implica- ções e transformações que modifi cam de forma estruturante a sociedade. Se antes a noção de esfera pública estava concentrada na burguesia e as ideias fl oresciam nos cafés, sendo depois contaminada pelos conglomerados midiáticos, dentro da infosfera todos os sujeitos passam a ter a possibilida- de, com baixo custo, de serem produ- tores de informação e conteúdos com alcance global. A voz de um sujeito pode ecoar em conjunto com diver- sos pares engajados por uma mesma causa e provocar mudanças no esta- blishment, tanto dos meios de comu- nicação quanto político. cracia. Nela, o cidadão está em contato direto com a Câmara dos Deputados e pode propor melhorias e revisões em leis vigentes, além de fomentar debates e sugerir projetos para leis. A e-democracy pode sugerir que tenhamos nos aproximado da demo- cracia direta, e se coloca como uma solução de baixo custo capaz de desviar da infl uência das grandes corporações midiáticas. Seria, então, a esfera pública interconectada o ápice da participação democrática? Para responder essa pergunta, devemos nos atentar a algumas idios- sincrasias do modelo. A maioria do fl uxo informacional na infosfera, em especial na internet, se concentra em poucos provedores de conteúdo formatados nas redes sociais, forman- do uma oligarquia tecnológica6. Isso signifi ca que conforme o hábito de um determinado usuário, esse sujeito está preso na chama- da bolha de conteúdo, o que reforça apenas um viés – seja ele político, de entretenimento, acadêmico etc. – e, no fi m, contribui para formar um mecanismo de leitura comportamen- tal que tem como propósito oferecer serviços e produtos para esse sujeito, baseado nesses comportamentos. Por isso, o fato de quase todo o conteúdo estar sob controle de uma oligarquia tecnológica faz com que não possamos ser tão otimistas para considerarmos as TIC como um modelo ideal para a democracia dire- ta. Decerto que há um movimento 6cf. YOUSSEF, 2018. Um desses resultados da mobili- zação em massa culmina no modelo de e-democracy, isto é, no auxílio das tecnologias de informação e comu- nicação para promover melhorias na democracia representativa e aproximá- -la de um tipo de democracia direta. Diversas plataformas de conver- gência on-line x off -line habitam o universo democrático atualmente. Os aplicativos fornecem um canal mais rápido, barato e efi ciente que corrobo- ra para o cidadão reivindicar, propor e fi scalizar medidas implementadas pelos governos. Uma dessas plataformas é o apli- cativo Your Priorities, em Reykjavik, capital da Islândia. Nessa platafor- ma os cidadãos islandeses discutem, em conjunto com os governantes, quais prioridades serão escolhidas para aperfeiçoar o funcionamento de determinada cidade. Algumas propostas também podem ser encontradas no Brasil, como é o caso da plataforma e-demo- A esfera pública se apresenta como uma intermediária entre a vida privada e a vida pública. Trata-se de questões que são discutidas dentro de um grupo, julgadas atra- vés de argumentos, sem apelar à emoção. Esses assuntos são de demanda espontâ- nea, isto é, em uma esfera pública ideal, os temas surgem sem coerção e influências advindas de grupos externos à esfera pública, mas que são de interesse do público e que necessitam de mudanças. Os sujeitos expõem suas opiniões e debatem acerca de assuntos que são relevantes para a sociedade para, por fim, pressionar a camada política em busca de mudanças que favoreçam uma determinada sociedade. Como funciona o modelo de esfera pública? DOSSIE.indd 70 17/05/2019 19:59 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 71 HABERMAS AMPLIOU SUA TEORIA PARA ANALISAR A CRISE DA ESFERA PÚBLICA DEVIDO À INFLUÊNCIA DOS CONGLOMERADOS MIDIÁTICOS NA MANIPULAÇÃO DA OPINIÃO proveniente da infosfera que torna o acesso e a participação dos sujei- tos muito mais amplos. Entretan- to, o fato de as TIC, em especial as redes sociais, estarem sob controle de poucos grupos, signifi ca que até mesmo a forma de operar dentro dessa democracia mais atuante pode estar comprometida. Frente a isso, devemos reivindi- car uma ética da informação capaz de lidar com nosso novo habitat, tal como aponta Luciano Floridi (2013). Segun- do o autor, existem questões éticas que não podem ser tratadas conforme os antigos manuais de ética. Problemas como manipulação de dados, leitu- ras comportamentais com intuito de abrir mercados, infl uência em proces- sos eleitorais através de redes sociais exigem uma nova abordagem. Todos os apontamentos lança- dos congregam para a aceitação de que introjetamos as TIC como parte e estamos, de fato, na infosfera. Os moldes da esfera pública se modifi - caram e agora a esfera públicainter- conectada experimenta a participação dos atores de forma mais vigorosa, contudo toda essa nova ambiência traz novos conteúdos que suscitam novas refl exões, sob o risco de acre- ditar estarmos dentro da infosfera quando, no fi m, estamos aprisionados em uma “bolhasfera”. DEMOCRACIA E FEMINISMOS PARA QUEM? BENHABIB, Seyla. O Outro generalizado e a outro concreto: a controvérsia Kohlberg Gilligan e a teoria feminista”. In: BENHABIB; CORNELL. Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. CARVALHO, Príscila. Aprender - Caderno de Filosofia e Psicologia da Educaofo, ano X, n. 20, p. 35-52, Vitória da Conquista, 2018. FRASER, Nancy. Feminism, capitalism and the cunning of history. New Left Review, n. 56, mar.-abr. 2009. GOUGES, Olympe. Declaração de direitos das mulheres e da cidadã. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. 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Num episódio amplamente comentado na história da Chi- na antiga, em torno do século 7 a.C., o duque do Estado de Song foi dar combate às tropas de outro Estado, Chu, e che- gou ao local da batalha antes. Nesse momento, as forças de Chu atravessavam um rio, e estavam em posição total- mente desvantajosa. Mes- mo tendo a oportunidade de atacar, o duque de Song resolveu esperar que as forças de Chu saíssem da água e se alinhassem, pois atacá-las de outro modo não seria nobre nem cavalheiresco. O resultado: as tropas de Song foram vencidas, o duque ferido e os ofi- ciais liquidados. Nessa passagem pro- blemática, contada no li- vro Primaveras e outonos, o duque de Song agiu como um cavalheiro, e perdeu. Mas não seria um cavalheiro o mes- mo que um buscador da sabe- doria e dos princípios morais? E, sendo assim, não deveria ele ter ganho a batalha? No livro Lunyu [Analec- tos] de Confúcio está escrito: “Zilu perguntou: ‘Se tivésseis o comando das Três Armas, quem tomaríeis como vosso lugar-tenente?’ O Mestre disse: ‘Para meu lugar-te- nente, não escolheria um homem que luta com ti- gres ou que atravessa os rios a nado sem temer a morte. Ele deveria estar cheio de apreensão an- tes de entrar em ação e sempre preferir uma vitória alcançada por meio da estratégia’”. A proposta de Con- fúcio é clara: o melhor estrategista é que vence a guerra, e infelizmente, após o início de um conflito, é di- IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K/ A R Q U IV O P ES SO A L A melhor estratégia Filo_ORIENTAL.indd 72 17/05/2019 21:04 Grupo Único PDF PaD André Bueno é professor adjunto na UERJ. Atua nos temas: Pensamento chinês, Confucionismo, História e Filosofia antiga, diálogos e interações culturais Oriente-Ocidente. É membro da Ass. Europeia de Estudos Chineses e da Ass. Europeia de Filosofia Chinesa; membro do grupo Leitorado Antiguo [UPE]; membro do Alaada; membro da Rede Iberoamericana de Sinologia [Ribsi]; membro da International Confucian Association; membro do Laphis/Unespar. www.portalespacodosaber.com.br• ciência&vida • 73 já falava tanto de preparação para o combate: “O Caminho significa aquilo que faz com que o povo es- teja em harmonia com o seu gover- nante, de modo que o siga aonde for, sem temer por sua vida, nem de se expor a qualquer perigo”. Outro pensador, Shang Yang [sé- culo 4 a.C.], dedicou capítulos intei- ros a isso, e mesmo Mozi [século 5 a.C.], um renomado pacifista, se pre- ocupou com os métodos e histórias da guerra. Confúcio, pois, não pode- ria eximir-se do problema. Em passa- gem pelo Estado de Wei, quando o duque Ling quis que ele fosse um pla- nejador militar, o Mestre desculpou- -se e foi embora, prevendo confusões para o seu lado. Isso porque, começa-IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K/ A R Q U IV O P ES SO A L CORTESIA, COMPAIXÃO E HUMANISMO EXIGEM UMA FORÇA DE CARÁTER INCRÍVEL, E DEVEM SER ADMINISTRADOS COM CUIDADO. MELHOR QUE SE EVITE A GUERRA – MAS SE ELA É INEVITÁVEL, QUE SE FAÇA DA MANEIRA MENOS DESTRUTIVA fícil manter a moralidade e o huma- nismo. O que o Mestre notou aqui é simples, porém objetivo e pragmá- tico: podemos tentar ser bons, mas isso não significa sabedoria. Pode- mos praticar o caminho, mas ainda não sermos sábios. Por fim, não se deve confundir alhos com bugalhos; ninguém, pelo simples fato de ser bom, irá vencer uma guerra – ou fazer qualquer coisa bem apenas porque é bom. É como se um médico, após ter salvado milhares de vidas, pedisse a Deus o “dom” de tocar um instru- mento musical – e fosse automatica- mente atendido, tocando de imediato melodias delirantes e dificílimas. Por causa disso, o conhecido es- pecialista na arte da guerra, Sunzi, Filo_ORIENTAL.indd 73 17/05/2019 21:04 Grupo Único PDF PaD FILO ORIENTAL por andré bueno 74 • ciência&vida UM SÁBIO CONTROLA SEU POVO DENTRO DOS MAIS ALTOS PRINCÍPIOS E O GOVERNA COM RETIDÃO, ESTIMULA-O COM RITUAIS E SOSSEGA-O COM TRATAMENTO HUMANO um erro terrível. Melhor que se evite a guerra – mas se ela é ine- vitável, que se faça de maneira menos destrutiva e raciocinada. Por isso está escrito no Lunyu: “Zigong perguntou sobre gover- no. O Mestre disse: ‘Alimento suficiente, armas suficientes e a confiança do povo’. Zigong dis- se: ‘Se tivésseis de chegar a bom termo sem um desses três, qual descartaríeis?’. ‘As armas.’ ‘Se tivésseis de chegar a bom ter- mo sem um dos dois restantes, qual descartaríeis?’ ‘O alimen- to; em última instância, todo mundo acaba morrendo um dia. Mas, sem a confiança do povo, nenhum governo se mantém’”. Confúcio resumiu suas ideias sobre conflito, ainda, nesse pequeno trecho: “Em pen- dengas eu sou tão bom em decidir quanto os outros; o melhor mesmo é que elas não ocorram”. Como podemos perceber, a confiança nos líderes é o funda- mento de tudo. Essa confiança tem que ser mútua, do contrá- rio nenhum governante pode ir a uma guerra. Mais do que isso, porém, numa sociedade em que prevalecem os valores da cultura, e que a ordem se encon- tra instaurada, as pessoas lutam pelo seu país, por suas famí- lias e pelo seu modo de vida. Por isso, o ideal não são os grandes exércitos, mas boas escolas; a melhor estra- tégia é propor- cionar bem-estar ao povo, e fazer com que ele acredite no que de- verá defender. Quando isso ocor- re, os exércitos servem ao povo, e não contra ele; defendem a pátria, são bem treinados, bem cuidados e lhes dão meios para que possam reagir às ameaças vindas de fora – isso porque um povo que ama seu país se dispõe a defendê-lo; mas não se pode esperar, igualmente, que apenas o ardor mova as pernas dos sol- dados. Do contrário, estaríamos cometendo o mesmo erro do du- que de Song. A melhor estratégia é se preparar, em tudo; o melhor conflito, aquele que se resolve pela discussão e pelo acordo; a melhor guerra, a que não ocorre. Wuzi, outro estrategista do sécu- lo 5 a.C., disse: “É por isso que um sábio controla seu povo den- tro dos mais altos princípios e o governa com retidão, estimula-o com rituais e sossega-o com tra- tamento humano. Quando essas quatro virtudes são praticadas, o povo floresce; quando são esque- cidas, desvanece”. da uma guerra, é a estratégia que prevalece, tentando maximizar os ganhos e atenuar ao máximo as perdas. Cortesia, compaixão e humanismo exigem uma força de caráter incrível, e devem ser administrados com cuidado – sob o risco de ocorrer o mesmo que se deu com o duque Song que, cheio de pudores, ou tentando representar, de modo equivoca- do, valores maiores que buscava compartilhar, acabou cometendo Filo_ORIENTAL.indd 74 17/05/2019 21:04 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 75 Renovação A hora da renovação na vida das pessoas é um dos momentos mais difíceis e agudos, pois é necessário saber lidar com a perda, com o medo, entre outros sentimentos. No vídeo intitulado Sabemos reno- var? Como renascer a cada ciclo?, a Nova Acrópole apresenta 16 dicas filosóficas para serem utilizadas em 2019, por intermédio de palestra da professora voluntária Lúcia Helena Galvão. youtube.com/watch?v=I_MPUXavo48 REFilo A Revista Digital de Ensino de Filo- sofia (REFilo) é uma publicação digital, semestral, vinculada ao Departamento de Metodologia do Ensino, Centro de Educação, Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. A publicação é organizada em sessões, como Demanda Contínua, Resenha e Entrevista, e destina-se à publica- ção de trabalhos inéditos na área de ensino de Filosofia. A Revista não aceita trabalhos encaminhados simultaneamente para outras revistas ou para livros. Tem como público-alvo professores, estudantes e pesquisadores da área da Educação e Filosofia, com ênfase no ensino de Filosofia. Foi criada em 2015. periodicos.ufsm.br/refilo/ about Universidade de Uberlândia O site do Laboratório de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, apresenta material ligado a assuntos relacionados com cinema, literatura, imagem, televisão, música, além de planos de aula, artigos, comunicações e ensaios. É um espaço de produção de material de alunos da graduação, objetivan- do o desenvolvimento da pesquisa de Filosofia e, também, aplicando as reflexões em sala de aula, para que se estenda à comunidade em geral. laefi.defil.ufu.br/index.html Filosofias e infâncias O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (Nefi) é um espaço de ensino, pesquisa e extensão vinculado à Universida- de Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Viabilizado por professores- -estudantes interessados em pensar Filosofia, educação e infância, oferece as seguintes ativid ades: pesquisas e outras experiências que articulam Filosofias e infâncias; grupo de estudos, elaboração, produção e tradução de textos, bem como publicações internas e externas; organização de colóquios, encontros e cursos nacionais e internacionais, que pretendem consolidar um novo espaço de formação e intercâmbio com universidades e outras instituições, como escolas, entre Filosofia, educação e infância. filoeduc.org/ FILO NA WEB filo_web.indd 75 17/05/2019 21:07 Grupo Único PDF PaD 76 • ciência&vida RESENHA Muito além do “opa!” A OBRA-PRIMA DE KEN WILBER – A EVOLUÇÃO DO UNIVERSO NA OBRA DE KEN WILBER IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E YO U TU B E. C O M É completamente estranho que algo – qualquer coisa – esteja acontecendo. Não existia nada, de re- pente, um Big Bang, e aqui estamos todos nós. Isto é extremamente esquisito. Sempre houve duas respostas gerais para a arden- te pergunta de Schelling: “Por que existe algo em vez de nada?” A primeira poderia ser chamada de filo- sofia do “opa”. O universo simplesmente acontece; não existe nada por trás; ele é, no final das contas, acidental ou fortuito; basicamente, ocorre – opa! A filosofia do opa, não importa quão sofisticada e ma- dura possa, às vezes, parecer – seus nomes e números modernos vão do positivismoao materialismo cientí- fico, da análise linguística ao materialismo histórico, do empirismo ao naturalismo – sempre chega à mes- ma resposta básica: “não pergunte”. A pergunta em si (Por que algo está acontecendo? Por que eu estou aqui?) – a pergunta em si é consi- derada confusa, patológica, absurda ou infantil. Parar de fazer tais perguntas tolas ou obscuras é, afirmam, um sinal de maturidade, um indício de crescimento neste cosmos. Eu não penso assim. Acho que a “resposta” dada por essas disciplinas “modernas e maduras” – isto é, opa! (e, portanto, “não pergunte!”) – é, possivel- mente, a mais infantil que a condição humana pode oferecer. A outra resposta geral que tem sido proposta é que alguma outra coisa está ocorrendo: por trás do drama casual há um padrão, ordem ou inteligência mais profunda, mais elevada ou mais ampla. Existem, SEXO, ECOLOGIA, ESPIRITUALIDADE Autor: Ken Wilber Editora: Vida Integral Ano: 2019 claro, muitas variedades dessa “ordem mais profun- da”: o Tao, Deus, Geist, Maat, formas arquetípicas, razão, Li, Mahamaya, Brahman, Rigpa. E, embora essas inúmeras variações da ordem mais profunda discordem entre si em muitos pontos, todas elas concordam em um: o universo não é o que parece. Alguma outra coisa está ocorrendo, algo bastante di- ferente de opa... Este livro é sobre “tudo diferente de opa”. Assim o autor começa sua obra monumental. Ken Wilber, polímata, filósofo e místico norte- -americano, desenvolveu a metateoria integral, que tem como um de seus propósitos procurar enfrentar os problemas atuais da humanidade usando diferen- tes perspectivas, partindo do princípio de que cada uma dessas perspectivas apresenta uma verdade par- cial que precisa ser levada em conta na resolução do problema. Foi através de Sexo, ecologia, espiritualida- de (SEE) que Wilber apresentou ao mundo pela pri- meira vez sua metateoria. Para tanto, Wilber estudou inúmeras áreas do conhecimento humano, tais como: ciências físicas e biológicas, ecociências e sustentabilidade, teoria do caos, ciências sistêmicas e da complexidade, política, economia, sociologia, negócios, filosofia ocidental e oriental, psicologia, matemática, antropologia, mito- logia, escolas contemplativas e místicas ocidentais RESENHA.indd 76 17/05/2019 21:31 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 77 IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E YO U TU B E. C O M Metaforicamente, Ken Wilber trata da evolução como sendo o “espírito em ação”. Espírito no sentido de Deus, porque, de acordo com sua visão, tudo o que existe no universo é uma manifestação do divino e orientais, artes, entre outras, criando uma estrutura que integra as verdades parciais de cada uma delas, a saber, a metateoria integral. Sexo, ecologia, espiritualidade trata, em essência, da evolução, o que é ex- presso em seu subtítulo “O espírito da evolução”. O livro é dividido em duas partes, sendo que a primeira mostra como essa evolução se deu, ou está se dando, ao longo desses 15 bilhões de anos, desde o Big Bang até os dias atuais, em todos os domínios: matéria, vida, mente e espírito. Na primeira parte, Wilber nos pro- põe uma descrição do processo evo- lutivo embasada em conhecimentos científicos, filosóficos e das tradições de sabedoria. São oito capítulos que tra- tam da teia da vida e suas limitações, dos princípios básicos que regem a evo- lução, da evolução exterior individual e coletiva, da evolução interior individual e coletiva, da evolução da consciência humana, das fronteiras da natureza hu- mana e dos domínios transpessoais. A segunda parte do livro trata especi- ficamente das coisas que, de uma certa maneira, deram errado, principalmente nos períodos moderno e pós-moderno, e de como nós podemos redirecionar a evolução para novos caminhos que le- vem a uma melhoria da situação do pla- neta, enfocando problemas éticos, cul- turais, econômicos, sociais, ecológicos e espirituais contemporâneos. São seis ca- pítulos que tratam dos caminhos ascen- dente e descendente, do deus ou deusa das diferentes tradições, da dignidade e do desastre da modernidade e dos acer- tos e erros da pós-modernidade. Há também as notas de cada ca- pítulo; na verdade, elas podem ser consideradas como um livro separado. Muitas das ideias mais importantes de Sexo, ecologia, espiritualidade são mencionadas e desenvolvidas somen- te nas notas (por exemplo, a intuição moral básica), bem como em grande parte do diálogo com diversos eru- ditos (Heidegger, Foucault, Derrida, Ari Raynsford é doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). Estudioso da obra de Ken Wilber há 27 anos, nos últimos 19 anos tem se dedicado a divulgá-la, ministrando cursos e palestras, coordenando grupos de estudo e traduzindo livros e artigos. Habermas, Parmênides, Fichte, Hegel, Whitehead, Husserl) e com teorizado- res alternativos atuais (Grof, Tarnas, Berman, Spretnak, Roszak). Metaforicamente, Ken Wilber tra- ta da evolução como sendo o “espírito em ação”. Espírito no sentido de Deus, porque, de acordo com sua visão, tudo o que existe no universo é uma mani- festação do divino; a criação divina (in- volução) nada mais seria do que Deus se esquecendo de si mesmo – o nível material é Deus mais esquecido de si. A evolução – o espírito em ação – é o processo de rememoração de Deus, partindo da matéria para a vida, para a mente, para a alma, para o espírito. Essa visão não dualista tem como essên- cia que a evolução é o retorno das ma- nifestações divinas (o Deus imanente) ao Deus transcendente, de tal maneira que, ao final (se é que esse final existe) nós chegaremos à realização de que só há Deus, de que só há o espírito. Minha experiência na tradução des- ta obra foi inefável. Mais do que uma tradução, foi um profundo mergulho em domínios totalmente desconhecidos para mim. Foram quatro anos em que viajei por mundos maravilhosos. E cor- roborando as palavras do próprio Ken: foi “uma viagem e tanto”. RESENHA.indd 77 17/05/2019 21:31 Grupo Único PDF PaD 78 • ciência&vida Aneurologista Suzanne O’Sullivan escreveu: “‘Sei que está sofren-do, Matthew. Não que- ro menosprezar esse sofrimento. Você está sofrendo e algo precisa ser feito. Mas você não tem es- clerose múltipla.’ Falei sobre o diagnóstico de distúrbio neuro- lógico funcional, que a paralisia das pernas não podia ser expli- cada por uma doença neurológi- ca. Embora não tivesse chegado a ponto de chamar sua paralisia de psicossomática, eu lhe disse que estava pensando em uma causa psicológica”. Por favor, considere isso: a pessoa vai ao médico, está em uma cadeira de rodas; por mais que se empenhe, não consegue andar, e ouve do médico que nada existe em seu corpo que a impeça de caminhar. O’Sullivan prossegue: “Esse novo diagnóstico não gerava apenas confusão: ele também desnorteava sua ideia de como poderia melhorar. Com um diag- nóstico de esclerose múltipla, Matthew sabia o que esperar, mas agora precisava aprender a desistir de uma certeza e, no lu- gar, aceitar uma verdade difícil. Eu o colocara em uma posição difícil. O que ele diria aos amigos sobre sua enfermidade? E a seu empregador? Como eles recebe- riam a notícia?”. Qual a reação de alguém que é comunicado sobre tal situação? O’Sullivan tem uma opinião: “Da mesma forma que descartamos a esclerose múltipla em uma série de exames, uma avaliação psico- lógica precisa ser apenas outro exame exploratório. Infelizmen- te, muitos pacientes acham difícil dar esse passo final no processo investigativo. Para alguns, con- sultar o psiquiatra parece aban- donar a doença física e, assim, perder toda a validação de seu sofrimento”. Em Filosofia Clínica, fenô- menos como esses aparecem ocasionalmente. O que é mais frequente, no entanto, diz respei- to a pessoas que possuem “saú- de imaginária”. Uma das formas de iniciar esse estranhoevento é acreditar que a vida se divide en- tre doença e saúde e em seguida se empenhar em estar saudável: academia, alimentação, cuidados com a pele, vitaminas, medita- ção. Tudo isso em doses consis- tentes, frequentes, e um repúdio a qualquer evento que possa conduzir a inflamações, dores, desgostos, ansiedades. Muitos adoecem de “saúde imaginária”. IM A G EN S: JO H N T R U M B U LL – W IK IM ED IA C O M M O N S/ A R Q U IV O P ES SO A L Doenças imaginárias FILOSOFIA CLÍNICA por lúcio packter HÁ UM REPÚDIO A QUALQUER EVENTO QUE POSSA CONDUZIR A INFLAMAÇÕES, DORES, DESGOSTOS, ANSIEDADES. MUITOS ADOECEM DE “SAÚDE IMAGINÁRIA” FILO_CLINICA.indd 78 17/05/2019 21:34 Grupo Único PDF PaD www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 79 Lúcio Packter é sistematizador da Filosofia Clínica no Brasil. Graduado em Filosofia pela PUC-Fafimc, Porto Alegre. Coordenador do Instituto Packter. E-mail: luciopackter@uol.com.br Acreditando que estão perfeitamente saudáveis, estão perfeitamente doen- tes, segundo os próprios critérios que utilizam para a diferenciação desses fatores. Geralmente, não sabem dis- so. O “saudável imaginário” cumpre rotinas, protocolos, padecimentos, angústias, privações para ser saudá- vel. Voltarei a este assunto em breve; aqui fiz apenas a introdução. Os não lugares – você tem certeza sobre onde está? Vamos a um trecho da obra Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, de Marc Augé: “A supermodernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baude- lairiana, não integram os lugares anti- gos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí um lugar circunscrito e es- pecífico. Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os terrenos in- vadidos, os clubes de férias, os acam- pamentos de refugiados, as favelas destinadas aos desempregados ou à perenidade que apodrece), onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também espaços habitados, nos quais o frequentador das grandes superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com os gestos do comércio ‘em surdina’, um mundo assim pro- metido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero, propõe ao antropólogo, como aos ou- tros, um objeto novo cujas dimensões inéditas convém calcular antes de se perguntar a que olhar ele está sujeito”. Agora uma tradução do que pro- põe Augé, uma tradução para os ele- mentos da clínica, do consultório. Um aeroporto, uma rodoviária, um hotel, estes são alguns dos prováveis “não lugares” em nossos dias. Os espaços, objetos, criaturas, coisas que habitam uma rodoviária são em princípio dis- tantes e frios em relação ao ambiente, acolhimento, interseção que a maio- ria das pessoas vive em seu trabalho, em sua casa. A rodoviária é um “não IM A G EN S: JO H N T R U M B U LL – W IK IM ED IA C O M M O N S/ A R Q U IV O P ES SO A L FILO_CLINICA.indd 79 17/05/2019 21:34 Grupo Único PDF PaD 80 • ciência&vida lugar”, nossas casas são lugares. No entanto, Augé instiga com a questão ao antever que talvez este fenômeno possa ser amplo e exceder os parâmetros das de- finições. Um casamento, a pessoa com quem vivemos, nossa peque- na cidade, eles podem ser “não lugares”? Uma resposta é que, por vezes, sim. Por vezes pode ser in- dicado, aconselhável que alguns vivenciem sua proximidade dessa forma. Algumas pessoas conse- guirão viver o amor, os cuidados familiares, as atenções domésti- cas se estiverem à vontade e em paz como ocasionalmente vivem ALGUMAS PESSOAS CONSEGUIRÃO VIVER O AMOR, OS CUIDADOS FAMILIARES, AS ATENÇÕES DOMÉSTICAS SE ESTIVEREM À VONTADE E EM PAZ COMO OCASIONALMENTE VIVEM EM OUTROS LOCAIS, ÀS VEZES PÚBLICOS pois os não lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com os outros que só dizem res- peito indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropoló- gicos criam um social orgânico, os não lugares criam tensão solitária”. Como isso é em Filosofia Clí- nica? Assim como apontou Augé, algumas vezes encontramos tais fenômenos, ainda que em outras vestes. Há elementos híbridos, indistintos, excludentes, entre ou- tros. Exemplo: a pessoa entende como “não lugar” sua relação fa- miliar, mas compreende de outra maneira o modo como vivencia a relação com o marido. O marido é “não lugar” somente na experiên- cia na qual ele é parte da família, mas é “lugar” na relação afetiva com a esposa. As sensações sub- jetivas em torno disso podem oca- sionar conformações curiosas para os nossos padrões de época. SH U TT ER ST O C K quando estão em uma barbearia de rodoviária lendo um jornal; para alguns, assim será. Escreve Marc Augé: “Vê-se bem que por ‘não lugar’ designa- mos duas realidades complemen- tares porém distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivídu- os mantêm com esses espaços. Se as duas relações se correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os indiví- duos viajam, compram, repousam), não se confundem, no entanto, FILO_CLINICA.indd 80 17/05/2019 21:34 Grupo Único PDF PaD LIVROS Prática interventiva Henri Wallon e a prática psicopedagógica Autor: Leon Denis Editora: FiloCzar, 88 págs. A psicopedagogia se estruturou, ao longo dos anos, como uma área que se alimenta das mais diversas áreas do conhe- cimento. Assim também aconteceu com a Psicologia genética desenvolvida por Henri Wallon. Ambas procuram analisar, interpretar, refletir e intervir na dificuldade de aprendizagem que acomete uma parcela considerável da população. Em Henri Wallon e a prática psicopedagógica, o filósofo e psicopedagogo Leon Denis lembra aos leitores que a aprendizagem, na visão de Wallon, não se realiza por apenas um dos domínios funcionais, nem está fechada em um único estágio do desenvolvi- mento psíquico e, muito menos, é composta por apenas uma área do conhecimento. A teoria e a prática psicopedagógica walloniana interdisciplinar, crítica e autocrítica, têm capacidade e força indispensáveis para a prática interventiva do psicopedagogo atual. O ser humano no mundo Manual de Antropologia Filosófica Autor: Wolfgang Pleger Editora: Vozes, 440 págs. O Manual de Antropologia Filosófica oferece uma apresen- tação compacta e histórico-sistemática dos principais conceitos antropológicos da história europeia. O professor de Filosofia, Wolfgang Pleger, analisa a problemática do posicionamento do ser humano no mundo, tal como exposta na mitologia antiga e na narrativa bíblica, na qual o homem aparece como criação de Deus e, respectivamente, como mortal, ou ainda na antropologia materialista, em que o homem é pensado a partir da sua materia- lidade e determinação. Dos antigos aos modernos, de Homero a Sartre, cada conceito é analisado a partir de três posições de pensadores importantes. Operando a partir de uma base interdisciplinar, a obra também oferece, ao lado da abordagem filosófica, exemplos a partir da poesia, bem como da ciência da religião, ciências sociais e naturais. Ameaça à democracia A inclusão do outro. Estudos de teoria política Autor: Jurgen Habermas Editora: Unesp, 576 págs. Ao observar os acontecimentos recentes, tanto no cenário nacional quanto internacional, não há dúvida de que o mundo está assistindo, em diversas sociedades, por mais distintas que sejam, à ascensão de atitudes e políticas que ameaçam seria- mente ideias fundamentais presentes na base das sociedades democráticas. É possível observar o reaparecimento de posições nacionalistas xenó- fobas, autoritárias e racistas em todas as partes do mundo, quenão poucas vezes se traduzem em atitudes de grave discriminação de pessoas e formas de vida culturais diversas e divergentes. Em face desse panorama desafiador, o livro A inclusão do outro. Estudos de teoria política procura contribuir de forma marcante para o diagnóstico das sociedades contemporâneas e para a reflexão sobre as questões teóricas e normativas que dele emergem. COORDENAÇÃO EDITORIAL: Jussara Goyano RELAÇÕES INSTITUCIONAIS E PESQUISA: Marina Werneck EDIÇÃO DE ARTE E DIAGRAMAÇÃO: Monique Bruno Elias. Colaboraram nesta edição: Paula Felix e Fabio A. G. Oliveira (curadoria); Fabio Gabriel (texto e edição); Aline Cristina Oliveira do Carmo, Ana Haddad, André Bueno, André Stuchi de Almeida, Ari Raynsford, Diogo Mochcovitch, João Teixeira de Fernandes, Letícia Maria Passos Corrêa, Lucas Vasques, Monica Aiub, Príscila Carvalho, Rachel Souza Martins, Renato Janine Ribeiro, Renato Nunes Bittencourt, Victor Santanna de Araújo, Walter Cézar Addeo (texto); Jussara Lopes (revisão); Marisa Corazza (diagramação). (Textos informados pelos editores / edição parcial de Lucas Vasques) IM A G EN S: D IV U LG A Ç Ã O DIRETORA EDITORIAL Ethel Santaella PUBLICIDADE GRANDES, MÉDIAS E PEQUENAS AGÊNCIAS E DIRETOS publicidade@escala.com.br REPRESENTANTES Interior de São Paulo: L&M Editoração, Luciene Dias – Rio de Janeiro: Marca XXI, Carla Torres, Marta Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília: Solução Publicidade, Beth Araújo. COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO GERENTE Paulo Sapata IMPRENSA comunicacao@escala.com.br Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São Paulo, SP Caixa Postal 16.381, CEP 02515-970, São Paulo, SP Telefone: (+55) 11 3855-2100 IMPRESSÃO OCEANO INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA. Nós temos uma ótima impressão do futuro RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na Gráfi ca Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos. Distribuída pela Dinap S/A – Distribuidora Nacional de Publicações, Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, nº 1678, CEP 06045-390 – São Paulo – SP REALIZAÇÃO FILOSOFIA CIÊNCIA E VIDA é uma publicação mensal da EBR _ Empresa Brasil de Revistas Ltda. ISSN 1809-9238. A publicação não se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou por qualquer conteúdo publicitário e comercial, sendo esse último de inteira responsabilidade dos anunciantes. 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Por isso sempre esteve ligada ao poder econômico e, por que não, político. Já a liberdade de expressão é mais ampla. Qua- se todos a temos hoje, graças às redes sociais. Expandir a liberdade de ex- pressão é positivo. Mas é mes- mo? As redes sociais expandiram as fake news. A imprensa contra- -ataca, vendo seu império sob ameaça. Contra as mentiras que saem nas redes sociais, a im- prensa brande a checagem dos fatos. Mas o ideal é não perder essa multiplicação de vozes que a internet permitiu – somando a democratização da palavra a um compromisso sério com a verdade. E aí entra outro problema. A liberdade, de expressão ou im- prensa, sempre teve uma relação conturbada com a verdade. Se só for lícito publicar a verdade, quem julga se você não mentiu? Esse juiz terá um poder enorme na sociedade. Daí que nas de- mocracias se prefira pecar do lado da mentira que do lado da repressão. Daí o que ouvi de um conhecido, que “liberdade de expressão é sem- pre liberda- de de dizer merda”: queria dizer que não se deve controlá-la. Só que ele errou. A liber- dade de expressão é uma con- quista do Iluminismo, das Luzes. A Enciclopédia foi uma aposta no conhecimento de qualidade, entendido como emancipador. As pessoas seriam mais felizes, a sociedade mais rica, graças à ciência e à Filosofia. Não devido à merda ou à mentira. Se a men- tira tem lugar na liberdade de ex- pressão, é como efeito colateral inevitável, não como princípio ativo desejado. Uma sociedade será mais próspera, um Estado mais demo- crático se a mentira e o ódio que convergem nas fake news (por- que elas não são apenas falsida- de: são armas de guerra contra o outro, o diferente) forem sen- sivelmente mais fracos do que a disposição a procurar a verdade e a respeitar os direitos humanos. Como gerar essa sociedade, esse Estado? Não é vigiando e pu- nindo, embora isso seja necessá- rio – e países exemplares por sua democracia, como a França e a Alemanha, criminalizam respecti- vamente a negação do Holocaus- to e a defesa do nazismo. Mas o eixo principal é um compromisso com a educação e com a verdade. Se o Brasil chegou a esse fundo do poço em que hoje está foi porque esse compromisso foi quebrado. A mentira circulou, esses anos, descontrolada. Muitos preferiram vencer a curto prazo em vez de pensar no futuro. Hoje, temos que reconstruir. Isso significa, antes de mais nada e pensando em nós, que lemos esta revista, fortalecer o saber científico e fi- losófico. A educação e a pesqui- sa são uma base difícil, pouco conhecida, demorada, mas sólida para uma ação que democratize o Estado e a sociedade. Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro.br A liberdade de expressão IM A G EN S: S H U TT ER ST O C K E A R Q U IV O P ES SO A L olho_grego.indd 82 17/05/2019 21:11 Grupo Único PDF PaD COLEÇÃO A Coleção Guia Completo da Decoração traz todos os passos para começar um projeto de Nas bancas! Confira também as outras Coleções /escalaoficial Ou acesse www.escala.com.br anuncio.indd 4 10/05/2019 14:48:23 Grupo Único PDF PaD O Universo Mágico de A Editora Lafonte traz para você Reinações de Narizinho e Viagem ao Céu são histórias que garantem um delicioso resgate afetivo para adultos e aventuras sem limites para crianças de todas as idades. /escalaoficial Ou acesse www.escala.com.br ANUNCIO_LIVROS_MONTEIRO_v2.indd 1 26/04/2019 14:55:35 Grupo Único PDF PaD