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2 Índice 1. A partir do olhar de Nick Ut (Alexandre Huady Torres Guimarães/ Ronaldo de Oliveira Batista) 2. O leitor, a foto e o fato (Marisa Lajolo) 3. Carregue no gatilho, nós imortalizamos o instante (Luís Cunha) 4. Entre fotografia e literatura: paralelos marcantes (Lilian Cristina Corrêa) 5. Uma foto, um registro, uma memória documental: a fotografia como documento histórico (Rosana Schwartz) 6. Como a imagem da Química pode ser revelada a partir de uma fotografia (Melissa Dazzani) 7. Uma imagem, uma mensagem (João Leonel) 8. Reflexões sobre Accidental Napalm: cultura visual e o cotidiano ultrajado (Vera Lucia Harabagi Hanna) 9. Em sala de aula, uma foto pode valer mais do que mil palavras (Maria Lucia M. Carvalho Vasconcelos) 10. A fotografia de guerra: Canudos e Vietnã e a imagem como afirmação (Manoel Nascimento) 11. A imagem, a narrativa histórica e a imaginação inquietante (Ana Lúcia Trevisan) 12. Mito e imagem: a menina de Napalm e a reconstrução como Deucalião e Pirra (Elaine Cristina Prado dos Santos) 13. O olhar geopolítico a partir de Nick Ut (Alice Costa) 14. Seria bom se não fosse triste: a foto de guerra que virou anúncio da paz (Lourdes Gabrielli/ Tânia Hoff) 15. Uma imagem grita em nossa direção (Marcos Nepomuceno Duarte) 16. Ressignificando a aula de leitura e produção textual por meio dos gêneros fotografia e notícia: sugestões de atividades didático-pedagógicas para aulas de língua portuguesa no ensino superior (Luciano Magnoni Tocaia) 17. Tempo/espaço justapostos: molduras de uma imagem de guerra (Lucy Figueiredo) 18. Imagem midiática e memória: do clique do fotojornalista à representação social do sofrimento de um povo (Lurdes Macedo) 19. Fragilidade e força de um corpo nu: a menina do Vietnã (Marlise Vaz Bridi) 20. O olhar de Nick Ut na Educação Básica: um projeto interdisciplinar (Valéria Bussola Martins) 3 21. A estética do horror fixado no instante (Isabel Orestes Silveira) 22. O dia em que a fotografia de Nick Ut foi carnavalizada pela linguagem das escolas de samba. Deveria ter sido? (José Maurício Conrado Moreira da Silva) 23. O fato e a foto: sensacional? (Alexandre Huady Torres Guimarães) 24. A foto “Vietnã do Sul” do fotógrafo Nick Ut: uma análise semiótica (Maria de Lourdes Bacha) 25. Uma perspectiva da filosofia a partir do olhar de Nick Ut: o uno e o múltiplo (Marcelo Martins Bueno) 26. A fotografia como instrumento de propaganda ideológica ou como o invento francês, operado por um americano que ajudou a derrotar franceses e americanos na guerra contra vietnamitas (Adolpho Queiroz) 27. Efeitos de sentido na fotografia jornalística (Diana Luz Pessoa de Barros) 28. Poder tecnocientífico, vulnerabilidade e responsabilidade diante da vida ameaçada: uma reflexão bioética (Paulo Fraga da Silva) 29. Interpretação da fotografia por Estudos Culturais (Edson Capoano) 30. Kim Phúc pela sintaxe fotográfica de Nick Ut (Alexandre Huady Torres Guimarães) Organizadores 4 À Vibe, razão da emoção. Ao Paulo, irmão querido, que me deu sua F3 para que eu iniciasse minha carreira profissional. Alexandre À minha esposa, Mirian, e aos meus filhos Michelle, Gabriel e Leonardo. Fred Para minha mãe, que, na década de 1980, me comprou uma Pentax, me ajudando pela segunda vez a abrir os olhos. Ronaldo Aos colegas e amigos que colaboraram com a ampliação das leituras da fotografia de Nick Ut. Alexandre, Fred e Ronaldo 5 Eu acredito muito mais no verbo do que na imagem. Quem diz que a imagem vale mais que mil palavras está enganado. Uma boa frase vale mil imagens. Mas não neste caso. Estas fotos fazem parte de um tesouro, que é o tesouro da memória. É preciso conservá-lo e distribuí-lo. Preservá-lo para o futuro, para sempre. Até o fim dos tempos. Elie Wiesel (sobrevivente dos campos de concentração, Prêmio Nobel da Paz – 1986). 6 “Uma imagem vale mais de mil palavras”, reza o ditado. De fato, um signo visual proporciona muitas interpretações, obtidas através dos códigos das diferentes mentes que a analisam. Essa possibilidade de leituras diversas gera outra variedade de discursos produzidos a partir do estímulo proposto por essa forma de linguagem. A interpretação de uma imagem, portanto, por mais explícita que seja, nem sempre é consensual. Essa condição é extremamente relevante quando nos inserimos num estágio da civilização em que a comunicação midiática é baseada majoritariamente no componente imagético para a elaboração de suas mensagens. O estímulo visual é único, mas as interpretações – expressas por palavras – surgem de acordo com o repertório do intérprete e as condições nas quais um discurso é construído. A interpretação e o discurso estão presentes no emissor e não apenas na imagem. Esse é o ponto de partida dos textos apresentados neste livro. Vinte e nove especialistas de diversas áreas do conhecimento foram desafiados a produzir um discurso, de cerca de mil palavras, sobre uma foto, a partir da perspectiva de suas áreas de estudos. A imagem é a mesma – “a menina de Napalm”, capturada por Nick Ut em 1972 –, mas os discursos são singulares. Os resultados são provocativos e convidam à reflexão da relação comunicacional entre a imagem e o texto. Uma imagem vale mais que mil palavras? É muito provável. Mas... e uma palavra? Ela também evoca à mente milhares de imagens? Boa leitura! Os organizadores 7 Alexandre Huady Torres Guimarães1 Ronaldo de Oliveira Batista2 Durante dezesseis anos, ou seja, entre os anos de 1959 e 1975, convivemos com um dos vários conflitos bélicos do século XX, a Guerra do Vietnã. A história dessa problemática remonta a tempos anteriores, entretanto aprofunda-se a partir do final da II Guerra Mundial (1939-1945), quando em 1945, o Vietnã, à época, foi dominado pela ideologia comunista. Nesse período, a França, que em 1859 ocupou a Indochina, depois dividida em Vietnã, Laos e Camboja, interveio tentando tomar o controle da região, fato que iniciou uma nova guerra entre os franceses e os vietnamitas do norte. Tentando evitar o avanço comunista, os Estados Unidos postaram-se ao lado dos franceses, quando, então, criou-se um Estado no Sul do Vietnã, governado por vietnamitas ligados às forças norte-americanas e, consequentemente, dividindo o país. O auge do engajamento norte-americano, nessa guerra, deu-se entre 1965 e 1968, quando 500.000 toneladas de bombas foram despejadas no Vietnã do Norte e 200.000 no Vietnã do Sul. Pela primeira vez na história, as forças norte-americanas utilizaram armamentos químicos em massa, entre eles, desfolhantes, fósforo e napalm. No dia 8 de junho de 1972, o fotógrafo Nick Ut estava na Estrada Um, no início de uma tarde de chuva, quando sua atenção foi chamada pelo barulho de dois aviões sul- vietnamitas que despejavam bombas seguidas de bombas. Nesse instante, Ut iniciou sua sessão de fotografias. Imediatamente, o fotojornalista congelou o momento capturando imagens dos aviões, das explosões das bombas de napalm e, após um fragmento temporal, das pessoas que percorriam a Estrada Um. Várias dessas pessoas ficaram registradas pelas câmeras e pelas objetivas do fotógrafo: a mãe que carregava nos braços seu filho morto, soldados americanos, crianças correndo e, entre elas, Kim Phúc, a menina que retirou suas roupas 8 queimadas pela bomba napalm que, além das vestes, queimou, também, suas costas. O registro imagético de Nick Ut, à época fotógrafo da Associated Press, transformou-se em uma das imagens mais vistas, divulgadas e comentadas do século XX. A fotografia da menina que corre nua e chorando na Estrada Um foi veiculada em várias publicações jornalísticas daquele período e, ainda hoje, obtém espaço na imprensa e em mídias que tratam de diversos temas, entre eles os históricos, os sociais, os políticos, os de direitos humanos e, sempre, os que tratam das grandes imagens da história da fotografia. Assim sendo, a repercussão e importância do fragmento captado por Ut ultrapassaram as fronteiras do jornalismo e ganharam destaque em várias outras áreas do saber. Um dia depoisdo bombardeio observado na Estrada Um, no Brasil, portanto, no dia 9 de junho de 1972, a fotografia foi publicada em alguns jornais. No Jornal do Brasil, na primeira página do primeiro caderno, o leitor da época teve acesso à seguinte legenda: “O terror tomou conta das crianças que escaparam do bombardeio com napalm, por engano, na Estrada I de Trang Bang”. A Folha de São Paulo, em seu Caderno Exterior, na página dois, registrou como legenda da fotografia: A MISÉRIA DA GUERRA – Estas crianças correm desesperadas na Estrada Número Um, perto de Trang Bang, onde estavam refugiadas, depois que um avião sul-vietnamita atingiu a localidade com bombas de napalm para desalojar uma posição inimiga. A criança nua sofreu graves queimaduras nas costas. Percebemos que a fotografia, nascida nesse caso específico de uma atividade jornalística de Nick Ut, recebeu interpretações diferentes das duas empresas de comunicação brasileiras. O Jornal do Brasil validou o terror que dominou o bloco de crianças que corria na estrada após o bombardeio. Percebe-se, entretanto, que em sua legenda não há nenhum destaque para Kim Phúc. A Folha de São Paulo, por sua vez, concede relevância à menina que corre nua, além de oferecer mais informações sobre o contexto do bombardeio. Esse fato chama a atenção para a questão da leitura e da própria interpretação das imagens, uma vez que esse exemplo, do dia 9 de junho de 1972, não é pontual. Muitas vezes, deparamo-nos com imagens que são lidas, compreendidas e utilizadas de modos e com fins diferenciados. Um caso mais recente e muito famoso de diversidade de interpretação e, some-se, de utilização de uma fotografia de imprensa, deu-se com a imagem que Stuart Franklin captou de um homem enfrentando uma fileira de tanques em 1989, na China, na Praça Tiananmen. Naquela época, os jornais ocidentais veicularam a fotografia interpretada como um símbolo da repressão do governo contra o povo chinês que se manifestava contra a corrupção e pedia mais democracia. O governo chinês, por sua vez, valeu-se da mesma fotografia de Franklin, à qual atribuiu a seguinte legenda: “Olhem! Não reprimimos o povo. O tanque não esmagou o rapaz” (CAPA PRODUCTION/ARTE. Praça da Paz Celestial. In: As 100 fotos do século, 1999). A partir dessa problemática, buscamos Alberto Manguel (2001, p. 21), que discute 9 a questão da leitura das imagens: Mas qualquer imagem pode ser lida? Ou, pelo menos, podemos criar uma leitura para qualquer imagem? E, se for assim, toda imagem encerra uma cifra simplesmente porque ela parece a nós, seus espectadores, um sistema autossuficiente de signos e regras? Patente, entretanto, é o fato de que o próprio autor, na mesma obra, enuncia resposta à sua polêmica: As imagens, porém, se apresentam à nossa consciência instantaneamente, encerradas pela sua moldura – a parede de uma caverna ou de um museu – em uma superfície específica. [...] com o correr do tempo, podemos ver mais ou menos coisas em uma imagem, sondar mais fundo e descobrir mais detalhes, associar e combinar outras imagens, emprestar-lhes palavras para contar o que vemos mas, em si mesma, uma imagem existe no espaço que ocupa, independente do tempo que reservamos para contemplá-la (MANGUEL, 2001, p. 25). Inúmeras vezes deparamo-nos com a tentativa de traduzir imagens em palavras. Em alguns casos, essa empresa é impossível, principalmente quando nessa tradução entra em jogo a subjetividade, ou seja, o refletir sobre a sensação, a percepção, elementos estes, muitas vezes, difíceis de serem colocados em palavras. Mas não é só a palavra, a linguagem verbal, que é deficiente. Todas as linguagens possuem suas limitações de expressão, como se observa no fragmento a seguir: Nenhuma linguagem é completa em si mesma, pois se organiza pela limitação expressiva de seus signos, que não apresentam as intenções do sujeito em sua plenitude; consequentemente, nenhuma linguagem é suficientemente capaz de dizer tudo o que o emissor intenciona, além do fato de que cada linguagem guarda suas próprias características e particularidades (GUIMARÃES, 2010, p. 29). Para muitos, uma imagem pode vir a sugerir até uma epifania, para outros, por vezes, a mesma imagem pode passar despercebida. Rudolf Arnheim, em Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora (2000), amplia a questão, afirmando que temos negligenciado nossa capacidade de compreender as coisas por meio dos nossos sentidos. Nesse texto, o autor afirma que nossos olhos reduziram-se a ponto de necessitarmos de palavras para exprimir nossos sentimentos diante de objetos visuais. Adiante, consolida a questão, declarando que a capacidade de entender com os olhos, hoje adormecida, precisa ser despertada. Ao trabalhar com imagens, ao despertar o nosso olhar, é de fundamental importância que as analisemos ponderando tanto sua pluralidade contextual, tal como as coordenadas políticas, sociais e culturais, quanto as convenções artísticas da época de sua produção (cf. BURKE, 2003). Assistimos, hoje, a uma nova época de popularização da fotografia – linguagem cuja criação, em 1827, foi atribuída a Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) e a Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) – principalmente em função do processo digital, dos smartphones e das redes sociais. Diante desse fato, não há a possibilidade de excluir a presença da fotografia no cotidiano e, portanto, é fundamental que se desenvolvam raciocínios, pesquisas, questões, juízos, reflexões, conceitos sobre a mesma. Contudo, vale ressaltar que esse exercício não deve aprisionar a produção imagética 10 apenas às coordenadas de sua época, cabendo ao leitor adentrar a pluralidade significativa que o texto imagético possa nele provocar, em função de seu referencial pessoal e intelectual. Esse exercício pode ser verificado no presente livro por meio de textos, sempre compostos com mais de mil palavras, que corroboram a relevância da fotografia de Nick Ut sob o olhar da análise do discurso, da antropologia, das artes plásticas, da bioética, do direito, da educação, da filosofia, dos estudos de gênero, da geopolítica, da história, da ilustração, do jornalismo, da leitura, da linguagem, do multiculturalismo, da narrativa, da psicologia, da semiótica, da teologia, da teoria da comunicação, dentre tantas outras áreas que poderiam compor essa obra. Pretende-se, portanto, por meio dos textos que a seguir serão apresentados, que os olhos não sejam mais classificados apenas como artifícios meramente mecânicos, mas que sejam despertados para que venha à tona, além do fruir, do estimular do gosto – parafraseando Saramago (1995) –, a ampliação do caminho que vai do olhar para o ver e do ver para o reparar. Referências ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000. BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2003. GUIMARÃES, A. H. T. “Fotografia: escritura e representação imagética”. In: FERREIRA, Dina Maria Martins. Imagens – O que fazem e significam. São Paulo: Annablume, 2010. MANGUEL, A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. CAPA PRODUCTION/ARTE. Praça da Paz Celestial. In: As 100 fotos do século, 1999. Refugiados atingidos por napalm. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 jun. 1972. Exterior, p. 2. Saigon lança “napalm” por engano em civis. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 jun. 1972, c. 1, p. 1. SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 1. Doutor em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2. Doutor em Linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 11 Marisa Lojolo1 Para Alberto Dines, amigo e mestre. […] é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! Drummond A palavra fotografia, que começa a circular em meados do século XIX, é composta por dois segmentos, ambos de origem grega: foto (que significa luz) + grafia (que significa representação por meio de traços/linhas).Reunidos os dois segmentos, eles ganham um sentido sugestivo, quase etéreo: indicam uma representação por meio da luz, uma escrita com luz. É porque a fotografia, enquanto arte ou enquanto técnica, é uma escrita, que ela pode ser lida. Enquanto escrita, ela ambiciona o que qualquer sistema de escrita ambiciona: registrar de forma concreta uma mensagem, fazê-la transcender o lugar e o momento de sua emissão, pôr em contato – a distância e através do tempo – interlocutores e mensagens. Os comentários acima introduzem o assunto deste capítulo: como ler a fotografia que Nick Ut tirou em 8 de junho de 1972, em uma estrada do Vietnã (na época, chamado do Sul)? E ainda: como, quarenta anos depois, ler a imagem dos camponeses em fuga das bombas de napalm, uma das quais havia atingido Kim Phúc, a menina que, no centro da foto, corre em direção à câmara com os braços abertos? Vamos a algumas hipóteses, que se iniciam por outra questão: será possível ler a foto, hoje, sem conhecimento de seu contexto? E a leitura resultante será adequada? Vejamos. E se fosse lida, por exemplo, a foto das pessoas correndo com soldados ao fundo como parte de um filme de aventuras? E se fossem concebidas as figuras humanas como artistas representando? E se fosse julgada a paisagem da estrada com construções ao fundo como o set de um estúdio? E se fosse lida a fotografia da 12 menina correndo como fotograma de um filme? Nessa leitura, não incluiríamos, nos sentidos a serem construídos, a informação fundamental de que a foto circulou inicialmente não em telas de cinema, mas em páginas de jornais, veículos que costumamos pensar que transmitem notícias verdadeiras e não ficções. Nessa leitura, talvez, o sentido que daríamos à imagem fosse diferente e seu impacto, em nossa sensibilidade, fosse menor do que o impacto construído por uma foto que o leitor sabe que documenta um episódio real. Todas essas leituras – possíveis – iriam na contramão de leituras que a foto recebeu no momento de sua primeira circulação. Talvez, a primeira leitura que a foto recebeu tenha sido a de um editor da Associated Press que, inicialmente, recusou sua publicação, porque ela continha um nu frontal,2 o que contrariava as normas da publicação. Que leitura foi essa? Teria sido adequada? Talvez fosse a leitura esperada de alguém encarregado de controlar quão estritamente o material jornalístico cumpria as normas da empresa. Mas como seguir normas estritas em situação de exceção, como é, por definição, a situação de guerra? Numa foto tirada em campo de batalha, a nudez ou as roupas das pessoas fotografadas são relevantes? A história desse editor, que pensou em vetar a difusão da foto pelo que ela não mostrava (as roupas da menina), pode ilustrar magnificamente a tese de que o leitor sempre escolhe – isto é, constrói a partir de seus pressupostos, situação e objetivos da leitura – o sentido do que lê na escrita pela qual seus olhos (ou seus dedos) passeiam. A leitura do editor gerou discussão, negociação e, finalmente, a foto foi liberada e distribuída para agências de notícia de todo o planeta. Resolvida, assim, editorialmente a questão da nudez de Kim Phúc – a menina barbaramente queimada pelo napalm despejado por um avião na aldeia onde ela morava –, a foto ganhou o mundo nas páginas de jornais. Seu autor ganhou o prêmio Pulitzer, e a imagem ganhou outros suportes. Figura, por exemplo, no belíssimo documentário de Peter Davis Hearts and Minds (1974), que estreou no festival de Cannes e, posteriormente, ganhou um Oscar. Mas, independente de seu trânsito – hoje pela internet e em livros como este –, o jornal foi o suporte inicial da foto: foi em suas efêmeras páginas que ela recebeu as primeiras leituras. É, portanto, por aí, que vêm novas perguntas. Como é que se lê um jornal? A pergunta talvez não esteja bem formulada. Reformulo-a: liam-se jornais em 1972 da mesma forma que se leem jornais hoje, quarenta anos depois do bombardeio da aldeia vietnamita de Trang Bang? Talvez não. Mas, talvez, essa forma mais antiga de ler jornais seja quase irrecuperável hoje, quando o desenvolvimento da tecnologia facilita a multiplicação dos textos visuais. Jornais, hoje, são muito mais “ilustrados” do que o eram antigamente. Mas imagens em jornais, ainda hoje, dividem espaço com textos verbais. E quem pode mais? A imagem ou a palavra? 13 A resposta depende: muitas vezes, o texto – legenda de uma imagem – tem por função dirigir a leitura da imagem. Outras vezes, como ilustração de um texto, a imagem cumpre a mesma função, porém em sentido inverso: dirige a leitura do texto verbal, salientando (pela visualidade) alguns de seus componentes. Ou seja, ao articular imagem e palavra, um jornal pressupõe um leitor poliglota, que transita por diferentes linguagens, que as articula na construção de sentidos, sabendo decidir, inclusive, que hierarquia estabelecer entre elas. Foi, pois, um leitor assim, poliglota, que, abrindo jornais ao redor do planeta, nas imediações de 8 de junho de 1972, deparou-se com a imagem de uma nuvem de fumaça escura que servia de fundo para figuras humanas correndo que pareciam gritar. Que sentidos podia construir para o que lia este hipotético leitor? Não é apenas através do que está materialmente presente ante seus olhos que o leitor constrói sentidos para o que lê. Seus valores, suas preocupações, suas expectativas têm papel importante. Leitores brasileiros, por exemplo, em 9 de junho de 1972, na primeira página do Jornal do Brasil,3 encontraram a fotografia que deu o prêmio Pulitzer a Nick Ut. Que leitura poderiam fazer da fotografia? Quem poderia ser este leitor? Em que Brasil este leitor lia a fotografia? Junho de 1972 era o tempo da ditadura militar. O Brasil era governado pelo General Garrastazu Médici. O leitor sabia disso, embora, talvez, não definisse o governo como ditadura. O mesmo leitor talvez tivesse se horrorizado, no mês de fevereiro, com notícias do incêndio do Edifício Andraus em São Paulo. Desde abril, talvez a leitora tivesse notícias – sempre pelo jornal? – de um movimento armado contra a ditadura que se organizara no Araguaia. E todos – leitores e leitoras –, provavelmente, sabiam que 1972 era o ano de comemoração do sesquicentenário da Independência. De que forma esses elementos todos podiam articular-se à leitura da fotografia? Ou não se articulavam? Um incêndio de grandes proporções sensibiliza ou anestesia o público para grandes tragédias? A presença dos Estados Unidos no violento conflito do Vietnã acentuava ou enfraquecia a questão da luta armada no Brasil? E a festa do sesquicentenário? Voltemos à fotografia de Kim Phúc. Uma foto de primeira página nunca é uma foto trivial. Equivale, talvez, à capa de um livro. Além de estar na primeira página, a foto desfrutava de uma posição de destaque. Vinha logo depois do título do jornal, a cavaleiro da página. Na mesma linha do título, um quadrado, à esquerda, trazia a previsão do tempo. Dos dois lados da fotografia, dois blocos de texto como que a emolduravam. À esquerda, informações sobre o jornal: seus endereços, correspondentes e preços. À direita, uma narração sóbria do episódio que deu origem à fotografia. Logo abaixo da foto, a legenda que traduzia em linguagem verbal o que a imagem 14 registrava em linguagem visual: O terror tomou conta das crianças que escaparam ao bombardeio com napalm, por engano, na estrada I de Trang Bang. Voltando a nosso leitor e leitora presuntivos: eles poderiam se perguntar a que elemento da frase referia-se o “por engano”: ao bombardeio? Ao napalm? Ao fato de as crianças haverem escapado? Deixando esses leitores rindo da talvez involuntária ambiguidade do texto jornalístico, a menção a crianças tomadas de horror direciona o sentido a ser construído pelo leitor, bem como sugere uma (desejável) reação ao que vê/lê na foto. Em seu conjunto, a foto de Nick Ut e os textos que a emolduravam no JB de 9 de junho de 1972 oferecem preciosa oportunidade para discutirmos procedimentos e protocolos da leitura de imagens.Como a desta foto, que talvez em todas as suas reproduções (inclusive as contemporâneas) possa relembrar à humanidade os horrores da guerra, cristalizados na imagem da menina atrozmente queimada, que – conta o fotógrafo – gritava que “estava quente, quente, muito quente”. Referências ANDRADE, C. D. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1973. Barthes, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FAAS, H.; FULTON, M. How the Picture Reached the World. Disponível em: <http://digitaljournalist.org/issue0008/ng4.htm>. Acesso em: 23/4/2012. MILLER, N. K. The Girl in the Photograph: The Vietnam War and the Making of National Memory. Disponível em: <http://www.jaconlinejournal.com/archives/vol24.2/miller-girl.pdf>. Sontag, S. On Photography. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1977. 1. Doutor em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2. “...an editor at the AP rejected the photo of Kim Phúc running down the road without clothing because it showed frontal nudity. Pictures of nudes of all ages and sexes, and especially frontal views were an absolute no-no at the Associated Press in 1972. While the argument went on in the AP bureau, writer Peter Arnett and Horst Faas, then head of the Saigon photo department, came back from an assignment. Horst argued by telex with the New York head-office that an exception must be made, with the compromise that no close-up of the girl Kim Phúc alone would be transmitted. In: FAAS, H.; FULTON, M. How the Picture Reached the World. Disponível em: <http://digitaljournalist.org/issue0008/ng4.htm>. Acesso em: 23/4/2012. 3. Disponível em <file:///Volumes/KINGSTON/2012/ABRIL/Hoje%20na%20Historia% 20-%20JBlog%20- %20Jornal%20do%20Brasil%20-%208%20de%20junho%20de%201972%20- %20Napalm%20destrói%20Vietnã.webarchive>. Acesso em: 23/4/2012. 15 Luís Cunha1 Desafiado a escrever a partir de uma fotografia tornada icônica, pensei em estruturar este breve contributo em torno de algumas outras imagens, provavelmente não menos icônicas, mesmo que o parentesco entre elas não fosse particularmente evidente. Parece boa, tal intenção: imagens que desfilariam na prosa, como assombrações entrelaçadas pela ars poética; lúcidas evocações capazes de conduzir o leitor com agrado e proveito. Sendo mais que duvidosa a posse dos necessários atributos por parte de quem deste lado escreve, tentarei, ainda assim, seguir o caminho em que pensei, e faço-o tomando como ponto de partida uma evocação cinematográfica. Há já muitos anos, num documentário com um curioso título, Os médicos voadores da África Ocidental (Die Fliegenden Ärzte von Ostafrika, 1969), Werner Herzog colocou-nos perante a prova irrebatível de que todo signo exige um código e que esse se estrutura, necessariamente, na história e na cultura. Bem sei que não era essa a intenção primordial do autor, mas com aquele conjunto de imagens em movimento, Herzog opera uma demonstração relevante para o que aqui argumentarei. As imagens a que me refiro operam um efeito surpreendente, como sempre sucede quando algo contraria o que tomamos por evidente, nesse caso, ao sermos levados a duvidar da inevitabilidade de uma leitura objetiva e unívoca daquilo que nos parece objetivo e unívoco. Colocados perante cartazes que representavam signos evidentes, notoriamente literais, como seja um olho humano, os nativos inquiridos por Herzog mostravam-se incapazes de qualquer identificação válida. Como podia um olho humano ter aquele tamanho? Como podia surgir assim, desamparado, sem um corpo que o sustentasse? Talvez fossem essas algumas das razões que levavam aquelas pessoas a ver na representação proposta qualquer coisa reconhecível – o sol, um peixe… –, mas não um olho humano. Razões que importam pouco, na verdade. Convoquei essa ilustração apenas para sinalizar traços demarcatórios, desde logo o 16 que separa universal de particular: pode o sofrimento humano, expresso numa imagem, ter uma leitura universal? Mas também o que distingue verdade de narrativa, memória de esquecimento ou, ainda, acontecimento de interpretação. Maurice Halbwachs (1925, p. 279), numa obra escrita há quase um século, percebeu que “Os homens vivendo em sociedade usam palavras cujo sentido compreendem: essa é a condição do pensamento coletivo”. Ideia simples, dir-se-á, embora a base necessária para chegar mais longe: perceber os quadros sociais da memória e mostrar que “a sociedade não pode viver senão na condição de que entre os indivíduos e os grupos que a compõem exista uma suficiente unidade de pontos de vista” (1925, p. 289). São esses os pilares de uma ponte intangível, mas decisiva, que liga o indivíduo ao grupo a que pertence. Perceberemos essa ponte ascendendo à vida dos signos e ao conhecimento dos códigos que os estruturam. Signos linguísticos – essas tais palavras de que fala Halbwachs, – mas também signos visuais – as inesgotáveis imagens a que atribuímos sentido. Signos atravessados por códigos de reconhecimento partilhados, dessa forma, constituindo-se em lugares de encontro, como sucede com algumas imagens, nomeadamente com as que se inscrevem decisivamente na vida e na história dos grupos. Pode ser a fotografia do casamento que funda uma família, o instantâneo de uma guerra ou uma paisagem admirável. Imagens com diferentes sentidos, consensuais ou conflitantes, todas elas tornadas signos à medida que transcendem a singularidade de quem as observa, ganhando vida como testemunho e expressão de memórias partilhadas. Esse é o ponto preciso a partir do qual convoco a fotografia de Nick Ut. Convoco-a para dela afastar-me de imediato, propondo que recuemos no tempo em busca de outra evocação que considero sugestiva: a dos cartazes publicitários com que Georges Eastman declarou a fotografia acessível a toda a gente. Fê-lo em 1888, servindo-se de um slogan forte, You press the button, we do the rest – slogan que tomei a liberdade de deturpar para dar título a estas linhas –, e se tivesse que escolher um único cartaz dos vários que veicularam a mensagem, escolheria o que mostra um anjo de tímidas asas segurando a câmara. Os complexos procedimentos técnicos, que restringiam a fotografia apenas a profissionais treinados, passavam a ser assegurados pela Kodak, o que permitiu que qualquer pessoa pudesse fotografar, sem mediação, o que entendesse relevante. As implicações no modo de olhar e, sobretudo, de recordar, talvez nunca cheguem a ser completamente apreendidas. A eternização de um momento, do rosto de um parente ou de um acontecimento, ficava assegurada por uma imagem fiel e verdadeira. Porém, se na memória social, diferentemente do que prevalece na história, importa menos a verdade que a exemplaridade, que papel cabe ao momento cristalizado numa imagem? Talvez possamos incluir a fotografia naquilo a que Pierre Nora (1984, XXIX) chamou “materialização da memória”, dessa forma, aludindo ao desenvolvimento de instrumentos de registo e conservação, sejam eles arquivos, museus ou bibliotecas. A fotografia inscreve-se, portanto, num plano diferente do que cabe a outros registos de memória coletiva, nos quais impera a 17 ductilidade e a abertura à reinterpretação, de tal forma que permitem fazer da narrativa do passado a explicação e legitimação do presente. Acresce que, além de produzir efeito na ordem temporal, a fotografia possibilita a elisão do espaço, ou seja, ultrapassar o local alargando as fronteiras da experiência do grupo. Não falo da experiência do vivido nem do testemunho presencial, mas tais critérios nunca foram essenciais na gestão das memórias coletivas. Como mostrei noutro local (Cunha, 2006, p. 281), a memória social vive, justamente, da incorporação de experiências alheias, do não vivido que se torna vivenciado, fenômeno que conduz a uma pergunta inevitável: o que liga uma fotografia à memória de um grupo; o que torna, afinal, uma fotografia memorável? Em busca de resposta, vale a pena considerar outra interrogação, esta formuladapor Joël Candau (1998, p. 175): Não poderemos, então, supor que a força das memórias – quer dizer a sua capacidade para organizar identidades coletivas – dependerá, em parte, da capacidade de uma sociedade propor aos seus membros estruturas memoráveis suficientemente explícitas e compreensíveis? Sublinhe-se que a ligação entre memória e identidade tem tanto de evidente quanto de complexo: do mesmo modo que, para a estruturação de uma identidade pessoal, contribuem instrumentos narrativos associados à memória – como a aprendizagem genealógica ou a narrativa de atos exemplares atribuídos a parentes – a memória coletiva não vive sem processos estruturados de rememoração. Tem razão Candau, portanto: na vida de uma sociedade, é determinante a capacidade de propor, com eficácia vinculativa, estruturas memoráveis e compreensíveis aos seus membros. Estruturas que podem ser da ordem da palavra ou da imagem, uma história que se conta e vale pela sua exemplaridade, ou uma fotografia que se mostra e conta, ela própria, uma história. A eficácia de qualquer narrativa depende da capacidade de produzir sentido, quer dizer, de ser reconhecida validade à mensagem que transmite. Consideremos então, sob esse prisma, a fotografia de Nick Ut. A sua exemplaridade pode ser pensada em vários níveis. Do ponto de vista técnico, não posso deixar de notar o equilíbrio da composição, a sugestão de movimento e o importante elemento de descontinuidade, permitido pela criança correndo nua no centro da imagem. Pode acrescentar-se, ainda, o acerto com aquilo a que Cartier- Bresson chamava o “momento decisivo”, a captação do instante que melhor permite contar uma história. Por outro lado, o conflito que a foto ilustra tem, ele próprio, uma exemplaridade que o destaca. Pelo menos no entender de Gisèle Freund (1980, p. 161), que defende que é só a partir das guerras da Coreia e do Vietnã que os repórteres de guerra deixam de estar excessivamente vinculados a uma das partes em conflito. Não se trata propriamente de defender o valor de uma duvidosa neutralidade, mas de se negar a um comprometimento que sempre matizara a dimensão trágica de outros conflitos, por exemplo, a II Guerra Mundial. A foto de Nick Ut conta-nos uma história forte, uma história que tem uma estrutura narrativa semelhante a outras que adquirem uma exemplaridade que as perpetua na 18 memória coletiva. Temas como os da luta fratricida, do bombardeamento por engano ou do sofrimento de crianças inocentes, contêm, todos eles, uma densidade trágica capaz de assegurar essa exemplaridade. De resto, à semelhança do que acontece noutras expressões de memória coletiva, a história contada por uma fotografia não se esgota, necessariamente, no instante que a imagem perpetua. De fato, vinte e quatro anos após o acontecimento captado por Ut, o reverendo John Plummer, que reivindicou a autoria do ataque, pediu perdão à menina nua que vemos no centro da foto (cf. Visão). Pretendo argumentar, portanto, que esse pedido de perdão pode ser visto numa aproximação à gestão das memórias coletivas. Como vimos atrás, elas não se devem confundir com a história, porque elas têm a capacidade de se transmutar, se não no conteúdo expressivo, pelo menos na interpretação, ou seja, no conteúdo moral que as envolve. O arrependimento do reverendo e o presumível perdão da vítima não só acrescentam densidade ao acontecimento como atualizam a narrativa, permitindo, assim, um olhar contemporâneo sobre o passado, um olhar onde cabe culpa, arrependimento e, talvez, também complacentes justificações, acenadas à conta da história ou da realpolitik. Marc Augé (1998, p. 24) serve-se de uma bela metáfora para pensar a relação entre recordação e esquecimento. Trata-se, na sua perspectiva, de um processo de classificação e seleção que se assemelha ao trabalho de um jardineiro. Recordações e plantas convergem uma vez que é necessário eliminar algumas para que outras se afirmem e floresçam. Retomemos, então, a questão que colocamos acima: o que torna uma fotografia memorável? Por que foi esta uma das flores escolhidas por esse jardineiro a que chamamos memória? Convém ter presente, naturalmente, que os instrumentos de promoção midiática desempenharam um papel relevante e que transcende a memória tal como aqui falei dela. Porém, para lá das contingências promocionais, o instante captado por Nick Ut é tocado por uma asa que assombra também outras representações do sofrimento humano. Evoquemos outra imagem, a de Guernica, eternizada por Picasso, onde encontramos o mesmo excesso, o mesmo toque certeiro dessa asa que sinaliza o limite do humano. À estética do mal, que uso damos? Será que sempre definimos limites apenas para os ultrapassarmos, como uma droga que tem que ser cada vez mais forte para produzir o mesmo efeito? De que forma evitar a banalização da violência e a sua redução a uma estética que verdadeiramente não nos toca senão enquanto voyeurs? A resposta talvez esteja no toque sutil de uma asa; um toque capaz de contrariar a tentação de nos colocarmos de fora ensaiando um conveniente olhar distanciado (Sontag, 2003, p. 105). A asa de que falo pode bem ser a asa de um anjo, o que nos conduz a uma última imagem, o Angelus Novus, pintado por Paul Klee e pensado por Walter Benjamin (1974, p. 13-4) como o Anjo da História. Uma figura alada, que volta o rosto para as ruínas e catástrofes de um passado que resiste a abandonar: “gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído”. Impossível o olhar distanciado tanto quanto a reversão do que foi feito: um vendaval, 19 a que Benjamin chama progresso, empurra esse anjo para o futuro. O que fica é o seu olhar; os olhos esbugalhados pintados por Klee, que são, afinal, os nossos olhos. São eles o toque de humanidade, onde o humano parece ter sucumbido. Referências Augé, M. Les formes de l’oubli. Paris: Manuels Payot, 1998. Benjamin, W. O Anjo da História. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. Candau, J. Mémoire et Identité. Paris: PUF, 1998. Cunha, L. Memória social em Campo Maior. Usos e percursos da fronteira. Lisboa: Dom Quixote, 2006. Freund, G. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, 1995. Halbwachs, M. Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Paris: Albin Michel, 1994. Nora, P. “Entre mémoires et histoire. La problématique des lieux”. In: Nora, P. (org.). Les Lieux de Mémoire, vol. 1. Paris: Gallimard, p. XVII-XLII, 1984. Sontag, S. Olhando o sofrimento dos outros. Lisboa: Gótica, 2003. Visão: Grandes Fotos do Século. Lisboa: Publimédia, 1998. 1. Doutor em Antropologia Social pela Universidade do Minho. 20 Lilian Cristina Corrêa1 Fala do velho do restelo ao astronauta Aqui, na Terra, a fome continua, A miséria, o luto, e outra vez a fome. Acendemos cigarros em fogos de napalme E dizemos amor sem saber o que seja. Mas fizemos de ti a prova da riqueza, E também da pobreza, e da fome outra vez. E pusemos em ti sei lá bem que desejo De mais alto que nós, e melhor e mais puro. No jornal, de olhos tensos, soletramos As vertigens do espaço e maravilhas: Oceanos salgados que circundam Ilhas mortas de sede, onde não chove. Mas o mundo, astronauta, é boa mesa Onde come, brincando, só a fome, Só a fome, astronauta, só a fome, E são brinquedos as bombas de napalme. José Saramago Não há como negar o inevitável choque ao se tentar definir o indefinível: violência, sangue frio, morte, sofrimento. Qual o espaço ocupado pela imagem implacável a que nos remete a cena mote deste estudo? De que maneira traçar um paralelo entre o que se vê nessa imagem e a literatura? Ao tomarmos a fotografia e a literatura como manifestações artísticas e, portanto, passíveis de inter-relações, a proposta é a de traçar um elenco de situações comparativas entre ambas, no intuito de que seja estabelecido um diálogo intertextual entre o que se vê e o que se lê nessas vertentes. Assim como a literatura, a fotografia, segundo Monteiro (2001, p. 15), “é um exemplo de descoberta múltipla, ou seja, num dado momento a solução de determinados problemaspassa a preocupar mais de uma pessoa, em diferentes lugares, de forma independente e simultânea”. 21 Dessa forma, torna-se inegável eleger o processo de intertextualidade como principal ferramenta para o estudo do diálogo que se apresenta entre a imagem e a palavra e as múltiplas possibilidades de leitura que advêm dessas manifestações, uma vez que, segundo Bakhtin (1988), a orientação dialógica é fenômeno próprio a todo tipo de discurso. “Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa” (p. 88). E é no âmbito do diálogo que se estabelece essa relação de certo caráter testemunhal – no caso de fotos como esta, a tarefa de mostrar o que não se quer imaginar e, ao mesmo tempo, confirmar a veracidade cruel do fato, bem como provocar diversas reflexões, que, por sua vez, encontram campo frutífero nas veias da discussão literária. De alguma forma, um processo semelhante ocorre na composição da narrativa literária, uma vez que a construção de personagens, em um determinado tempo e espaço, acaba por criar a atmosfera de um universo que, embora fictício, apresenta-se tão real quanto uma descrição pode torná-lo e tão ficcional quanto a imaginação possa concebê-lo. A questão a ser levantada seria, então: como conceber essa “imagem” proposta pela narrativa literária e, em perspectiva, como compreender o processo imagético na narrativa fotográfica? O que, de fato, compõe esses dois universos distintos, mas complementares? Em seu artigo “O corpo como território do político” (2007), a pesquisadora Annateresa Fabris retoma os estudiosos John Pultz e Anne de Mondenard, que sugerem o seguinte questionamento: “Por que certas fotografias nos obrigam a olhar para o que não queremos ver?” (p. 1). Segundo a autora, em resposta a tal colocação, tem-se o corpo como imagem, objeto. O corpo como objeto seria aquele que denomina o “corpo trágico” como fruto da pobreza, de atos violentos, da exclusão, da marginalidade, da loucura, da angústia e, até, da morte. Todo esse objeto serve a uma perspectiva política, uma vez que coloca esse mesmo corpo em evidência, assim como a literatura o faz quando retrata realidades e lança críticas sociais. Palco para diálogos que se estabelecem perante temáticas e contextos diversos, a literatura acaba, por sua vez, também assumindo o papel de retrato ao trabalhar com um foco e observá-lo por diversos ângulos e perspectivas, com diferentes linguagens em diferentes circunstâncias – eis seu papel testemunhal, muito próximo ao da fotografia. Entretanto, mais do que testemunhar ou discutir situações, é necessário pontuar que a percepção ocupa lugar imprescindível em ambas as linguagens e discursos, uma vez que é a partir da percepção do fotógrafo ou do escritor perante determinado fato ou situação que resultam diferentes vertentes de um mesmo assunto, momento histórico ou visão de mundo. Em Literatura e Fotografia: um anseio pela apreensão do instante (2008), Fonseca e Sousa discutem o fato de que, ainda enquanto atividade artística experimental, no século XIX, já havia a percepção de que o mundo sentia a necessidade de documentar, “fixar momentos de existência” (p. 2), distinguindo, conforme a crítica 22 de arte Rosalind Krauss (1990), representação e percepção. A segunda é considerada de maior autenticidade, devido ao seu caráter imediatista, e a primeira, um tanto suspeita, por se tratar da recriação de algo já existente. A autora também acrescenta que: “A percepção está diretamente em contato com o real, enquanto a representação está separada dele por um fosso intransponível, restituindo a presença da realidade apenas sob forma de substitutos, quer dizer, por intermédio de signos” (idem, p. 10). Eis mais uma similaridade entre as perspectivas oferecidas pela literatura e pela fotografia: o representar e o perceber, dissociáveis ou não, comportam significados que ultrapassam a mera menção à imagem ou à palavra escrita, uma vez que transcendem àquilo que se apresenta como produto final, seja no texto literário ou na imagem fotografada, mas que, de alguma forma, remontam ao tempo como aliado na absorção do que se apreende desses “textos”. Representado por uma série de instantes fragmentados, o tempo gera a necessidade da inserção de uma nova linguagem que transite entre o que se apresenta pelas imagens e o momento em que as palavras convencionais deixam de ser suficientes para a explicação dos fatos. Retomando Fonseca e Sousa (2008, p. 7): Para o homem, que se percebe fragmentário a partir do modernismo, a fotografia se apresenta como a arte ideal desse tempo [...] convertido numa série de instantes fragmentados e que perde a ligação com o passado e com o futuro. Se o instante é tudo o que há e ele é inapreensível, é preciso, pelo menos, tentar comunicá-lo. A fotografia seria, então, uma alternativa à interpretação, uma alternativa de linguagem, igualmente rica e misteriosa, capaz de criar artifícios e fazer fluir o pensamento daquele que a observa como o de um leitor ao se envolver com a leitura de uma obra literária. Tão real é essa postura que Roland Barthes, em A câmara clara (1974), afirma que a proximidade da fotografia com a arte não se dá tanto pelo veio da pintura, mas pelo teatro, como se as imagens fossem máscaras da realidade. Cabe, no intuito de finalizar essas tentativas de paralelismo entre a fotografia e a literatura, mencionar Susan Sontag (2004, p. 112), que, ao estabelecer relações entre ambas, considera que a fotografia esteja mais próxima do processo poético moderno do que da pintura, comentando que: Enquanto a pintura se tornou cada vez mais conceitual, a poesia (desde Apollinaire, Eliot, Pound e Willian Carlos Williams) definiu-se cada vez mais como uma atividade ligada ao visual (“Não há verdade senão nas coisas”, como declarou Williams). O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem do poema corresponde ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos supõem descontinuidade, formas desarticuladas e unidade compensatória: arrancar as coisas de seu contexto (vê-las de um modo renovado), associar as coisas de modo elíptico, de acordo com as imperiosas, mas não raro arbitrárias exigências da subjetividade. Assim, se retornarmos ao ponto de partida deste ensaio, o poema de Saramago, podemos fortalecer a perspectiva de que as linguagens fotográfica e literária, mais do que alternativas à representação do mundo, constituem verdadeiras formas de concepção de valores, de momentos significativos de toda a história, conforme o próprio poeta menciona: “Aqui, na Terra, a fome continua, / A miséria, o luto, e outra vez a fome.” Assim como continuam as guerras e as vítimas por elas atingidas, cujas 23 histórias chegam até nós, espectadores, observadores ou leitores, como notícias, relatos, como se fôssemos o astronauta, que observa tudo do ponto de vista da distância, que privilegia a imagem, mas rouba o instante, ressaltando o desejo da compreensão perdida entre essas linguagens e as realidades por elas descritas, como as bombas de napalm, brinquedos de morte. Referências BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1988. BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FABRIS, A. “O corpo como território do político”. In: Baleia na Rede: Revista online do grupo de pesquisa em cinema e literatura. V. 1, n. 6, ano VI, dez/2009. Disponível em: <http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/Edicao06/2c_CorpoPolitico_imagens.pdf>. Acesso em: 13 de abril de 2012. FONSECA, P. C. L. & SOUSA, F. D. A. de. “Literatura e Fotografia: o anseio pela apreensão do instante”. In: Revista Signótica, v. 20, n. 1, p. 149-174, jan/jun 2008. KRAUSS, R. O fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1990. MONTEIRO, R. H. Descobertas múltiplas: a fotografia no Brasil (1824-1833). Campinas: Mercado de Letras, 2001; São Paulo: Fapesp,2001. SARAMAGO, J. Poemas Possíveis. Editorial Caminho: Lisboa, 1981. SONTAG, S. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 1. Doutora em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. 24 Rosana Schwartz1 Crianças correm. Soldados atrás. Tudo em preto e branco, Ao fundo uma enorme escuridão... fumaça. As crianças fogem dos soldados? Lá ao fundo, à direita de quem vê, há um soldado olhando... Não para de olhar, Olha caminhando, trôpego. À frente deste soldado, pouco atrás... uma menina, outro soldado... crianças. Soldados andam e crianças correm... Soldados andam calmos, enquanto as crianças correm assustadas. A fumaça engolirá? Certamente... Crianças: que a cegueira e a opressão não nos engulam... Soldados: só nos resta o ardor da guerra. Não queremos morrer... Uma menina nua: Eva expulsa do Paraíso... realidade nua e crua... projeção de um pesadelo. Menina redentora, qual é o teu suplício? É grito de Edvard Munch globalizado... A Guerra do Vietnã. O olhar seletivo, por meio das lentes do fotógrafo Nick Ut, tornou-se cognoscente, um relato/narração da história, um registro, documento/monumento que contém informações suficientes para que o observador compreenda a mensagem que o autor desejou perenizar e cristalizar. Sob a perspectiva da História, é uma composição que potencializou os impactos da Guerra do Vietnã e serve de testemunha sobre as dimensões do conflito no presente. A foto inseriu-se na categoria índice, indicou a existência do fato fixado, podendo, assim, contar história. A partir das problematizações de historiadores da Nova História, como Carlo Ginzburg, Michel Vovelle, Jacques Le Goff e Georges Duby, as fontes visuais foram debatidas e entendidas como documento. Antes, pela história tradicional, relegadas às notas explicativas e ao plano da ilustração exemplificadora, ganharam status legítimo 25 de registro de um tempo, de uma mémoria, espaço histórico, geográfico, social, político e mental (SCHWARTZ; MINARDI, 2010). As fontes visuais remontam à polissemia da palavra história, enquanto processo, notícia, conhecimento e saber. Relacionam-se com a história essencialmente pelo verbo “ver”, (wid-weid dos indo-europeus), com a tomada de conhecimento, observação, e com o fazer ver, eidô. Essa relação se encontra na base da apropriação da história como relato-testemunho dentro do olhar de quem vê, sabe e deseja tornar conhecimento (LE GOFF, 1996). A fotografia de Nick Ut é um documento, um registro que desencadeia um saber, uma densidade histórica, uma pista com possibilidade de reconstruir, investigar e rastrear um acontecimento na Guerra do Vietnã. Possibilita o olhar para trás, o ir em busca da apreensão do tempo, com as vivências do presente. Nick Ut reteve um instante da guerra que possibilita recriar o passado, o episódio, sob o olhar do presente; ou seja, o fotógrafo, naquele momento, tornou-se o historiador do instante e sua fotografia, um registro, um documento que repousa na temporalidade passado/presente. Jacques Rancière, Michel de Certeau, Roger Chartier, Michel Foucault, Jacques Derrida e Roland Barthes defenderam o caráter discursivo e documental da fotografia impulsionados pelo diálogo multidisciplinar, e refletiram sobre as relações existentes entre o discurso narrativo, as noções de temporalidade e de poder existentes na imagem congelada. No geral, defenderam a ideia de que a fotografia constitui, assim como a escrita e a oralidade, forma válida e necessária de capturar e representar o passado com peculiaridades específicas do presente. A fotografia torna presente o que não está mais presente. Sob a perspectiva da história, o documento fotografia é fonte de informação que decodifica e contextualiza não apenas um fato/acontecimento, mas também a dimensão social e cultural do fotógrafo. Desvela, por meio da eleição de um recorte, um aspecto que se desejou preservar e as experiências de leitura do fotógrafo impregnadas de subjetividades, objetividades e memórias. Na fotografia, existe a relação contemporânea intrínseca entre o testemunho do fotógrafo, o fato fotografado e o fazer história. Assim, a foto de Nick Ut, analisada pela perspectiva da história, apresenta o olhar do presente sobre o passado, um passado “cheio de agoras”, transformado pelos sistemas de valores e condutas do hoje, em contínuo confronto com o período do seu registro. Evidencia questões do passado reconstruídas como memórias no presente. Toda e qualquer memória se faz continuamente dentro de um acontecido, que é finito; entretanto, por se caracterizar como infinita, abre possibilidades de diálogos, redefinições e reconstituições no presente. Apresenta uma versão sobre o acontecido, é uma fixação repleta de significados, emoções e sensibilidades. Oferece pistas que exigem aprender a dialogar e decifrar os códigos implícitos e explícitos existentes em seu interior, a entender seus silêncios, seus significados, ou seja, o sentido escondido, 26 conjuntamente com a aparência exterior. É um fato congelado dentro de um conjunto maior e complexo da Guerra do Vietnã, uma fixação e preservação de um instante, que marcou a história dessa guerra. Não é inócua, é a eternização da guerra, é instrumento de poder, uma representação do real, dentro da circularidade histórica, que promoveu um ir e vir dentro dos antecedentes do conflito até o impacto na opinião pública internacional da época intensificados pelos questionamentos sobre a política do presidente Nixon (SONTAG, 2004). Sob a perspectiva da história, não é apenas um registro, uma imagem fixada e congelada, matéria e expressão do autor publicada em veículo de comunicação. É fonte de informação, de transformação geracional e relacional, um documento que se tornou “monumento” pelo que representou e representa. A análise da fonte fotográfica não é fácil, pois não contempla, em história, regras de observação norteadoras rígidas ou uma metodologia completa. O olhar de cada indivíduo interfere na observação. Todo sujeito é portador de suas experiências de vida, carrega construções de gênero, cultura e geração, características próprias que recriam a narrativa, da mesma maneira que o olhar do autor ao criar a foto. Cada parte da composição é forma essencial de acesso para redes de significações históricas profundas que se movimentam segundo cada contexto e observador (BARTHES, 1984). A criação do fotógrafo, que selecionou o que desejou enfocar e centralizou o que queria evidenciar, conjuntamente com a recriação por quem observa, é parte integrante do documento no processo de análise. Uma vez compreendidas essas questões, sugere-se como procedimento inicial, para a análise desse documento, problematizar a primazia: Quem fotografou? O quê? De que forma? Por quê? Para quem? Em que contexto? Pois, como já se apontou, a foto não é apenas um registro de um instante, é interpretação subjetiva e objetiva. Em seguida, deve-se abordar questões referentes à forma como foi produzida ou capturada a imagem e seus signos formais. Existe o fato e a sua representação fotográfica. O terceiro passo está ligado à compreensão de que a foto de Nick Ut é uma fonte primária, um documento único e original que aporta um discurso sobre um determinado fenômeno histórico representado. Todos os detalhes são significativos: o entorno, o caminho se abrindo, o aparentemente irrelevante fundo sombrio e esfumaçado pela bomba, assim como a menina vietnamita nua de nove anos, Phan Thi Kim Phúc, no centro, que só existe por conta do entorno (LE GOFF, 1996). Como todo documento/monumento, sempre haverá algo a se perguntar ou que passou sem ser problematizado na imagem. A interpretação é múltipla, subjetiva e objetiva. Esses procedimentos possibilitam compreender formas de comunicação não verbais, registradas por meio dos gestos, poses, olhares, expressões faciais, orientações do corpo, posturas, distância e distribuição espacial entre os indivíduos na 27 cena. As vestimentas dos soldados e das crianças, prolongamentos do corpo,fornecem pistas para a ambientação, o local do episódio. A menina nua potencializa o sofrimento, aflora as teias, que escondem e, ao mesmo tempo, revelam as tensões do conflito. Traz indignação e memorização. A composição, que dá vida àquelas crianças e aos soldados, nos conduz aos medos e incertezas da Guerra Fria. Tornou-se símbolo, que vai sendo interpretado e reinterpretado continuamente, oscilando em seus significados e oferecendo margem para a compreensão de um processo de construção da realidade contemporânea (KOSSOY, 2002). A imagem de Nick Ut oferece, para todo pesquisador, a compreensão de que a leitura de uma fotografia é sempre histórica. Referências BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. LE GOFF, J. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996. KOSSOY, B. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. SONTAG, S. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. SCHWARTZ, R.; MINARDI, I. “Retratos da História: imagens em documentos”. In: FERREIRA, D. M. M. Imagens: o que fazem e significam. São Paulo: Annablume, 2010. 1. Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 28 Melissa Dazzani1 Conhecemos, nos dias de hoje, um pouco mais de uma centena de elementos químicos que, juntos, formam todas as substâncias que nos cercam. A Química é uma ciência que estuda a matéria, sua estrutura e suas transformações, transitando do mundo atômico ao mundo macroscópico. A Química está presente em nosso dia a dia, permitindo melhorar a qualidade de vida das pessoas. No entanto, é comum o uso pejorativo da palavra química, como sinônimo de algo prejudicial à saúde. A Química pode ser boa ou má, dependendo do uso que se faz dela. A fotografia, tirada em 1972, durante a Guerra do Vietnã, mostra Phan Thi Kim Phúc, uma menina de apenas nove anos de idade, que precisou fugir após ver seu vilarejo e o templo, no qual se refugiava, serem atacados. Ao sentir seu corpo inteiro queimar, arrancou, desesperadamente, suas roupas, que também estavam em chamas. Eles haviam sido atingidos por um armamento químico denominado napalm, e, como consequência, Kim Phúc teve 65% de seu corpo queimado. A realidade do Vietnã, entre os anos de 1959 a 1975, foi regada por bombas e explosivos que superaram, cerca de três vezes, a quantidade utilizada durante a Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez, as forças norte-americanas utilizaram armamentos químicos em massa, e, entre eles, encontravam-se desfolhantes, fósforo, napalm e gases lacrimogêneos. O napalm é uma goma obtida a partir da gasolina gelificada pela adição de sais de alumínio derivados do ácido palmítico e dos ácidos naftênicos. O nome “napalm” surgiu pela junção das iniciais dos ácidos naftênico e palmítico. É um agente incendiário que foi desenvolvido em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, por pesquisadores norte-americanos da Universidade de Harvard, liderados pelo químico Louis Fieser. Após a Guerra do Vietnã, o napalm foi aperfeiçoado: a gelificação da gasolina passou a ser feita com poliestireno, que faz com que o produto permaneça 29 por mais tempo aderido ao alvo. Surge, assim, o napalm B. Mais da metade das vítimas atingidas pelo napalm sofreram queimaduras de altíssimo grau, tendo inclusive seus músculos e ossos queimados. As dores e a intensidade da corrosão causada por esse agente incendiário provocou a morte de muitas pessoas. O fósforo branco, outro agente incendiário, também foi utilizado nessa guerra, devido à dificuldade de se apagar o fogo produzido, causando queimaduras graves. Além disso, esse componente é capaz de reagir espontaneamente com o ar, produzindo uma densa fumaça de P2O5 (pentóxido de difósforo), que é utilizada como fumaça de cobertura. Um gás lacrimogêneo amplamente utilizado durante a Guerra do Vietnã foi o 2- clorobenzalmalonitrila, conhecido como gás CS. Trata-se de um gás irritante aos olhos, garganta e pele, acarretando sérios problemas respiratórios. O ácido cacodílico, outra arma empregada, é um composto à base de arsênio utilizado por ser um forte exterminador de plantas, ou seja, atua como agente desfolhante, com a finalidade de impedir o esconderijo de inimigos. Outro agente desfolhante utilizado durante a Guerra do Vietnã foi o 2,4-D (ácido 2,4-diclorofenoxiacético), que, se usado adequadamente, possui baixo nível de toxicidade, mas, em altas concentrações, pode causar irritação aos olhos e problemas estomacais. O 2,4-D foi empregado juntamente com o 2,4,5-T (ácido 2,4,5- triclorofenoxiacético), este um pouco mais tóxico. Essa mistura, em diferentes proporções, forma os chamados agentes laranja, azul e branco. O agente laranja é capaz de corroer as folhas, queimando-as e destruindo-as. No entanto, esse produto não causa apenas um desastre ambiental, mas também impregna-se ao corpo do ser humano, provocando sérios prejuízos genéticos. Tanto o 2,4-D como o 2,4,5-T possuem impureza, como a dioxina formada em reações paralelas. A dioxina é tóxica, teratogênica (causa dano ao embrião ou feto durante a gravidez) e hepatotóxica (causa danos ao fígado), conduzindo à perda de peso, lesões vasculares e úlceras gástricas. Já o agente azul foi utilizado para destruir uma imensa área cultivada, com o principal objetivo de matar de fome os representantes das forças rebeldes e opositoras à presença do contingente militar. As consequências relacionadas à utilização de armas químicas não recaíram somente sobre os que foram diretamente atingidos pelos ataques, mas também sobre os próprios soldados norte-americanos. Muitos tiveram filhos com problemas de pele ou com Síndrome de Down. Quando as notícias sobre o uso de armas químicas se espalharam, os norte- americanos se defenderam afirmando que esses produtos, como os agentes laranja e azul, não causavam danos às pessoas, mas somente ao meio-ambiente. Essas afirmações foram combatidas pela comunidade científica internacional, que assinou uma petição contra a utilização de armas químicas e biológicas na Guerra do Vietnã. No entanto, o uso dessas armas só cessou em 1974, quase no final do conflito. 30 Mas os danos causados ao meio-ambiente não deveriam também ser uma preocupação da sociedade? Hoje em dia, temos a consciência de que um dano ao meio-ambiente atinge diretamente o ser humano, já que necessitamos dos recursos naturais para nossa sobrevivência. Nota-se, no entanto, que, felizmente, a visão de algumas décadas atrás, é muito diferente de nossa atual preocupação em relação aos cuidados com o meio-ambiente. Todos os produtos químicos lançados nesses dezesseis anos de conflito no Vietnã contaminaram o solo e os lençóis freáticos, gerando sérias consequências, também, às gerações posteriores. Assim como os que tiveram contato direto com esses produtos, as novas gerações continuaram tendo problemas relacionados à ingestão de gases ou líquidos provenientes das bombas utilizadas no período do conflito. Ao observar a foto e ler um pouco sobre as armas químicas utilizadas durante a Guerra do Vietnã, pode nos vir à mente que a Química é a grande responsável por tudo isso. Em parte, realmente é. Mas não podemos nos esquecer das boas contribuições que a Química nos deixa a cada dia. Para traçar um paralelo, Louis Frederick Fieser, o químico que liderou as pesquisas para o desenvolvimento do napalm, durante a Segunda Guerra Mundial, nos deixou uma série de contribuições relevantes. Ele nasceu em 1899, em Columbus, Ohio. Em 1920, obteve a Licenciatura em Química; em seguida, fez pós-graduação em Harvard, defendendo uma tese sobre os potenciais de oxidação e redução das quinonas. Tornou-se, em 1968, professor emérito da Universidade de Harvard. As pesquisas de Louis foram muito variadas. Seu interesse por quinonas levou aos estudos e síntese da vitamina K. Durante a Segunda Guerra Mundial, Fieser dedicou grande parte de seu esforço de pesquisa para a síntese e análise de quinonas como agentes antimaláricos, e, em 1942, suas pesquisas sobre materiais incendiários levaram-noà invenção do napalm. Fieser também era conhecido como um professor dedicado e talentoso. Recebeu muitos prêmios por suas pesquisas e seu ensino, incluindo a eleição para a Academia Nacional de Ciências (1940) e um prêmio da American Chemical Society como um “gigante na educação em Química” (1976). Em sua homenagem, em junho de 1965, a edição do Journal of Organic Chemistry publicou cento e doze trabalhos de seus ex- alunos e colaboradores. Ele também recebeu muitos títulos honoríficos. Apesar de tantas contribuições importantíssimas para a Química, Fieser faleceu em 1977, seis anos após Nick Ut publicar a foto. Ao olharmos para a fotografia da menina, correndo nua com as costas queimadas, não conseguimos pensar em todas essas contribuições que Fieser nos deixou, mas sim no desenvolvimento do napalm, que infelizmente fez muitas vítimas. Podemos, então, retornar à questão: a Química é boa ou má? Vanin, em seu livro Alquimistas e Químicos (1994), responde, deixando-nos claro, que a Química, sendo fruto da atividade racional do ser humano, não pode ser intrinsecamente má. Ajudando o homem a interagir com a natureza e a se adaptar ao ambiente, a Química 31 acompanhou todas as etapas das transformações sociais. As transformações químicas permitem, por exemplo, que utilizemos, além dos combustíveis derivados do petróleo ou do carvão, outras fontes alternativas de energia como o etanol, fabricado a partir da cana de açúcar, e os biocombustíveis, derivados dos óleos vegetais. O uso de produtos químicos naturais e sintéticos na própria agricultura tem a finalidade de aumentar a produtividade e melhorar a qualidade das colheitas. Só estamos vivos, inclusive, graças a uma infinidade de reações químicas que ocorrem a cada instante em nosso organismo. Assim, com muito entendimento, bom senso e criatividade, podemos contar com a ciência, com a tecnologia e, principalmente, com a Química para um futuro promissor. Referências ALCÂNTARA, M. R.; VANIN, J. A. “Armas químicas”. In: Química Nova, v. 15, n. 1, 1992, p. 62-72. SIMONI, R. D.; HILL, R. L.; VAUGHAN, M.; TABOR, H. “Contributions of Organic Chemists to Biochemistry”. In: LOUIS, F.; FIESER, M.; TISHLER, M. The Journal of Biological Chemistry, v. 278, n. 52, 2003. VANIN, J. A. Alquimistas e químicos: o passado, o presente e o futuro. São Paulo: Moderna, 1994. 1. Mestre em Ensino das Ciências pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. 32 João Leonel1 Toda imagem conta uma história. [...] Para embelezar um livro, o pintor deve escolher a mais bela cena de cada história. [...] Nossos olhos, cansados de ler as histórias, distraem-se com as imagens. E se alguma coisa, numa história, cria uma dificuldade para nossa inteligência ou para nossa imaginação, a imagem vem nos socorrer: as imagens são a história florescendo em cores, mas uma pintura sem uma história que a acompanhe é inimaginável! Orhan Pamuk Introdução Coube-me analisar em uma perspectiva teológica a foto de Nick Ut em que registra a menina vietnamita Kim Phúc correndo nua em uma estrada, com queimaduras, fruto de um bombardeio de napalm. Uma das fotos mais conhecidas na história dos conflitos bélicos ganhou o Prêmio Pulitzer em 1973. Para desempenhar tal tarefa, julgo conveniente pensar, inicialmente, o que é a Teologia para depois pensar se ela pode, de fato, dizer algo sobre uma foto da Guerra do Vietnã. Geralmente, a Teologia2 é vista como uma unidade. Não obstante, se divide em várias áreas, cada uma delas com suas especificidades: Teologia Dogmática, que elabora e estuda os dogmas da fé cristã; Teologia Pastoral ou Prática, que aborda questões relativas ao cuidado e desenvolvimento das comunidades religiosas, como a Educação Cristã, a Pregação e a Missiologia; Teologia Filosófica, que vincula a Teologia a diversas correntes filosóficas; Teologia Histórica, que estuda o desenvolvimento das Igrejas cristãs, de suas teologias e de suas estruturas no decorrer dos séculos; e a Teologia Exegética, que se concentra na análise dos textos bíblicos nas línguas em que foram escritos, hebraico e grego, bem como nas matérias de caráter contextual necessárias para a compreensão dos textos, como geografia, arqueologia, história, sociologia e literatura. A última subdivisão apresentada acima é relevante para a análise que aqui será feita, uma vez que se concentra no estudo de textos. E, dentro deles, de imagens. Os 33 textos bíblicos são, em sua essência, fortemente retóricos. Eles visam o convencimento de seus leitores e ouvintes a partir de várias perspectivas: motivar a adesão a uma ideia ou ação; advertir a respeito de uma prática equivocada; reforçar posturas ou ideologias etc. Para tanto, texto e imagem somam-se compondo uma poderosa ferramenta. As imagens estão a serviço da imaginação. Na Bíblia, elas aparecem principalmente nos textos proféticos, que propõem uma nova realidade, um novo mundo que surge a partir do velho mundo sofrido e corrompido sob os poderes que nele atuam. Tal opressão provém da prepotência e arrogância das nações, que se materializam, no mais das vezes, em conflitos bélicos. Portanto, embora pareça inicialmente estranha a ideia de associar uma imagem do século passado com a Teologia e a Bíblia, este estranhamento não se justifica, visto que a Bíblia está familiarizada com imagens, inclusive aquelas que expõem o sofrimento humano diante do poder das armas. A seguir, relacionarei a foto, que é motivo deste livro, e o texto bíblico. Mais do que isso, a imagem se transformará em texto, e o texto bíblico se transformará em imagem. A imagem que vira texto Certamente outros colegas farão análises mais profundas e pertinentes do que aquela que faço aqui. Mas, mesmo assim, consciente das limitações dos meus propósitos, sigo adiante. Primeiramente, observo o aspecto geral da foto, os seus componentes. A primeira observação, que não deixa de ser óbvia, é que ela está em preto e branco. Não penso, entretanto, que essa informação seja descartável. Tal bicromia tem seus efeitos. Ela insere os componentes em um mesmo padrão visual, gerando um tipo de identidade entre eles. Para além do preto e branco, predomina o cinza, fusão das duas cores. Dessa forma, todos os elementos da foto, por mais distintos que sejam, são representados a partir do mesmo tom básico. Os dois elementos que estão no meio da foto são a estrada, que está centralizada e ocupa a maior parte da imagem, e, ao fundo, uma cortina negra de fumaça, que funciona como limitador de horizonte. A estrada se dirige para o paredão escuro ao fundo da imagem e é delimitada por ele. Dentro desse quadro estão algumas pessoas que se dividem em dois grupos: soldados e crianças. Ambos caminham para longe da fumaça. Ou seja, do ponto de vista da composição, a estrada se dirige para a parede escura ao fundo; movimento contrário, os personagens seguem pela estrada para longe da fumaça. Quanto à temática, o eixo central da imagem é a relação entre as crianças, a menina Kim Phúc, em particular, e a guerra. Dois grupos opostos. O primeiro, desprotegido, dependendo dos adultos para viver e sobreviver, que se relaciona com iguais,3 sob sofrimento e dor caracterizados por expressões que não deixam nenhuma dúvida a esse respeito, correndo em direção incerta. Neste grupo, o destaque está posto em Kim Phúc, que ocupa o centro da foto e, diferentemente das demais crianças, está nua 34 por decorrência de queimaduras ocasionadas pelo bombardeio. Os soldados, segundo elemento, caracterizam-se pela passividade. Enquanto as crianças correm apavoradas, eles caminham sem pressa. Embora carreguem armas, elas estão abaixadas, sinal de que não se sentem ameaçados e de que o conflito já faz parte de suas vidas. Mesmo que os efeitos do bombardeio sejam visíveis, indicando sua ocorrência momentos atrás, eles não se perturbam. A cortina de fumaça sinaliza a agressão promovida por soldados inimigos. Se presentes, estes sofreriam a represália dos militares da foto. Ou seja, os exércitos envolvidos na guerra não possuem nenhumapossibilidade de convivência, mesmo que pertençam ao mesmo povo.4 Podemos dizer que, embora a foto seja o registro histórico de um conflito entre vietnamitas do norte e do sul, nela o confronto se instala na estrada onde estão crianças e soldados. Conflito caracterizado pela reação oposta de uns e de outros. É possível dizer mais. Não há apenas oposição a partir das ações. Os adultos, soldados, são os responsáveis pelo sofrimento das crianças. Há os que arremessaram as bombas, responsáveis diretos, causando dor e sofrimento às crianças. Mas os soldados que estão no caminho também possuem parcela de responsabilidade. Não se percebe na passividade deles nenhum movimento para socorrer Kim Phúc ou os demais pequeninos. Para os soldados, eles praticamente inexistem. A guerra e os soldados transtornam o mundo das crianças. O texto que vira imagem Voltando o olhar para a Bíblia, lembro-me de um texto onde também estão soldados e uma criança. Mas para a terra que estava aflita não continuará a obscuridade. Deus, nos primeiros tempos, tornou desprezível a terra de Zabulon e a terra de Neftali; mas, nos últimos, tornará glorioso o caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios. O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu- lhes a luz. Tens multiplicado este povo, a alegria lhe aumentaste; alegram-se eles diante de ti, como se alegram na ceifa e como exultam quando repartem os despojos. Porque tu quebraste o jugo que pesava sobre eles, a vara que lhes feria os ombros e o cetro do seu opressor, como no dia dos madianitas; porque toda bota com que anda o guerreiro no tumulto da batalha e toda veste revolvida em sangue serão queimadas, servirão de pasto ao fogo. Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo estará sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz; para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para sempre. O zelo do Senhor dos Exércitos fará isto (Isaías 9,1- 7). O texto é vívido e intenso. Apresenta realidades cruéis e, ao mesmo tempo, sensíveis. Fala de guerra e de paz. O profeta propõe uma imagem aos nossos olhos. O texto vira imagem. O que está sendo representado? No contexto dos conflitos de Israel com povos vizinhos, no século VIII a.C., principalmente egípcios ao sul e assírios ao norte, o profeta Isaías aponta para tempos de opressão e sofrimento que atingem seu povo. Entretanto, a voz profética lembra 35 que o quadro não perdurará e apresenta três indicativos: a glória substituirá o desprezo; no lugar das trevas, surgirá a luz; e a alegria será abundante. Motivo? Os opressores, simbolizados por botas de guerreiros que pisam o campo de batalha ensanguentado, serão destruídos, assim como suas botas e as vestes encharcadas de sangue serão queimadas. Como? Eis aqui a novidade. Em lugar de descrever um exército mais poderoso que dará fim ao mais fraco, o profeta afirma que uma criança será a responsável por tal feito. Embora, inicialmente, houvesse a expectativa de que o texto se referisse ao momento histórico do profeta e de Israel, com o tempo, ele passou a ser tratado de forma futura, apontando para um tempo quando os valores humanos, simbolizados pela crueldade da guerra, serão transtornados por uma criança que imporá os seus próprios valores. Ele será um conselheiro maravilhoso, representará Deus, proporá uma eternidade repleta de harmonia, e seu governo terá a paz como ponto central. Os escritores do Novo Testamento viram nessa criança o Deus encarnado, Jesus Cristo, e projetaram, em seu ministério terreno, o início de tal revolução, com complemento e plenificação no mundo vindouro. Eis agora uma imagem na qual a criança vence a guerra. Onde o pequeno se impõe aos homens e seus conflitos. Imagem que não apenas revaloriza a criança como bem maior da humanidade, mas como o caminho e o meio para que esta não se aniquile. Conclusão Inicio a conclusão voltando para a citação do livro Meu nome é vermelho, na epígrafe. Nela há a relação entre imagem e história. Se uma imagem carece de uma história, esta não pode prescindir daquela para se fazer compreender. Propus, neste capítulo, o diálogo entre uma imagem e um texto. A imagem tem sua própria história, mas quis relacioná-la com um texto que a completa, que lhe dá sentido e esperança. Por outro lado, quis trazer a imagem para o texto, antigo texto, a fim de que ele volte a dizer o que já disse, agora de forma mais clara, atualizada. A imagem precisa do texto. O texto precisa da imagem. Se a primeira imagem é de uma criança correndo desesperada por um caminho, com o corpo queimado, sem que os soldados a socorram, nesta segunda e velha imagem, vemos uma criança que dá fim à bestialidade da guerra, que destrói os soberbos e arrogantes que enviam milhares de jovens aos campos de batalha para que se matem em seus nomes. Uma criança que impõe seus valores, que são desejáveis, prazerosos, que dão sentido à vida. A Teologia trabalha com a realidade, mas também com a imaginação. A realidade fala da dor e do sofrimento; a imaginação é desafiada a superá-las a partir da certeza de outro mundo possível, viável, que começa com crianças sendo cuidadas, acalentadas, amadas e se efetiva com crianças que nos ensinam a viver, que nos dão exemplo de convivência pacífica e harmoniosa, que eliminam nossos conflitos. Referências 36 BÍBLIA Sagrada. Revista e atualizada no Brasil. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. PAMUK, O. Meu nome é vermelho. São Paulo: Companhia das letras, 2007. 1. Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas. 2. Os itens apresentados dizem respeito à Teologia Protestante, ramo religioso ao qual pertenço. Não obstante, mantêm proximidade com o que é desenvolvido na Teologia Católica. 3. Na foto, há várias crianças correndo juntas, como se estivessem agrupadas, provavelmente amigas ou, pelo menos, conhecidas. 4. Pelo que a imagem permite distinguir, os soldados são vietnamitas do sul, em guerra com seus coirmãos do norte. 37 Vera Lucia Harabagi Hanna1 For the first time in the process of pictorial reproduction, photography freed the hand of the most important artistic function which henceforth devolved only upon the eye looking into a lens. Walter Benjamin A potencial verdade/autenticidade da fotografia está diretamente ligada à ideia de que ver é acreditar. Annette Kuhn “Culture is Ordinary” (A cultura é comum, vulgar, trivial, é de/para todos), de Raymond Williams, é título de um dos textos mais contundentes a respeito de um novo modo de interpretar as dimensões simbólicas de nossas vidas. A partir de sua publicação, em 1958, seu autor, que começara a praticar Estudos Culturais antes mesmo de o termo ser cunhado, provocaria uma das mais importantes discussões sobre o entendimento do termo cultura, e, antes de tudo, exigiria sua retirada do lugar privilegiado de produção artística (alta cultura) para a experiência vivida por todos os indivíduos (o cotidiano). No interesse das transformações da noção de cultura nos últimos oitenta anos e no distintivo maior de nosso campo de pesquisas, o dos Estudos Culturais, a intersecção do cotidiano, a importância de explicar o concreto, as questões da vida real, e a rede de práticas e relações que as constituem, em que o papel do indivíduo está em primeiro plano, junto às articulações entre o dia a dia e as formações de poder na qual a cultura está inserida, é que, primeiramente, nos atemos ao dirigirmos o olhar à eternizada fotografia de 1972, em que a garota vietnamita, Kim Phúc, nua, foge de um bombardeio de napalm. Segundo, ao considerarmos que os Estudos Culturais são radicalmente praticados em contexto – um acontecimento, uma prática, um texto, não existem se separados das forças do contexto que os constitui –, quaisquer que
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