Prévia do material em texto
Autor: Profa. Fernando Caiafa Loureiro Colaboradores: Prof. Vinícios Carneiro de Albuquerque Prof. Adilson Silva Oliveira História e Imagem Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Professor conteudista: Fernando Caiafa Loureiro Bacharel e licenciado em História pela Universidade de São Paulo – USP (2000). É especialista em História e Educação pelo Instituto Internacional de Ciências Humanas (2007) e possui mestrado em História da Arte pela Fundação Armando Alvares Penteado – Faap (2014). Colaborador na produção das apostilas do Colégio Objetivo, bem como na elaboração de resoluções comentadas dos principais vestibulares do País. Ministrou cursos relacionados ao uso de imagens no Enem em diversos congressos e feiras de educação. É professor de História e História da Arte do Ensino Médio e curso pré‑vestibular no Curso e Colégio Objetivo há mais de 15 anos. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L892h Loureiro, Fernando Caiafa. História e Imagem. / Fernando Caiafa Loureiro. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 128 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2‑090/16, ISSN 1517‑9230. 1. Imagem. 2. Fotografia. 3. Cinema. I. Título. CDU 7 U503.15 – 19 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Vitor Andrade Giovanna Oliveira Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Sumário História e Imagem APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 O UNIVERSO IMAGÉTICO E A HISTÓRIA ....................................................................................................9 1.1 A arte e o ensino da História ........................................................................................................... 11 1.2 A imagem enquanto representação ............................................................................................. 18 2 METODOLOGIA DE ANÁLISE DAS IMAGENS ......................................................................................... 22 3 JACQUES‑LOUIS DAVID E A REVOLUÇÃO FRANCESA ....................................................................... 25 3.1 Juramento do Jogo da Pela .............................................................................................................. 28 3.2 Os Litores Trazendo a Brutus os Corpos de seus Filhos ........................................................ 29 3.3 A Morte de Sócrates ............................................................................................................................ 31 3.4 O Juramento dos Horácios ............................................................................................................... 33 3.5 O Rapto das Sabinas ........................................................................................................................... 36 3.6 Marat Assassinado ............................................................................................................................... 38 3.7 A Sagração de Napoleão Bonaparte ............................................................................................. 39 4 A PINTURA HISTÓRICA NO BRASIL .......................................................................................................... 42 4.1 Análise de imagens .............................................................................................................................. 44 4.1.1 Independência ou Morte! .................................................................................................................... 44 4.1.2 Batalha dos Guararapes ....................................................................................................................... 47 4.1.3 Tiradentes Esquartejado! ..................................................................................................................... 49 Unidade II 5 O CINEMA E A HISTÓRIA .............................................................................................................................. 59 5.1 O cinema enquanto documento histórico ................................................................................. 60 5.2 O filme como discurso sobre o passado ...................................................................................... 64 5.3 O cinema na sala de aula .................................................................................................................. 66 5.4 Sugestões de filmes ............................................................................................................................. 73 5.4.1 Treze Dias que Abalaram o Mundo .................................................................................................. 73 5.4.2 A Inglesa e o Duque ............................................................................................................................... 74 5.4.3 A Queda ...................................................................................................................................................... 75 5.4.4 Adeus, Lenin! ............................................................................................................................................. 76 5.4.5 Agonia e Êxtase ....................................................................................................................................... 77 5.4.6 Cruzada ....................................................................................................................................................... 78 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 5.4.7 Gladiador .................................................................................................................................................... 79 5.4.8 O Lobo ......................................................................................................................................................... 80 5.4.9 O Nome da Rosa ...................................................................................................................................... 81 5.4.10 Tora! Tora! Tora! ..................................................................................................................................... 82 5.4.11 Ventos da Liberdade ............................................................................................................................. 83 5.4.12 Lutero ........................................................................................................................................................84 6 O CINEMA NO BRASIL ................................................................................................................................... 85 6.1 A construção do herói nacional ..................................................................................................... 85 6.2 Herói às avessas: a chanchada ....................................................................................................... 86 6.3 Cinema Novo .......................................................................................................................................... 87 6.4 Os anos 1990 .......................................................................................................................................... 88 6.5 Dois casos: Eu, tu, eles e Caminho das Nuvens ....................................................................... 90 6.6 Exemplos práticos: análise de filmes ............................................................................................ 93 6.6.1 Olga .............................................................................................................................................................. 93 6.6.2 Mauá: o Imperador e o Rei ................................................................................................................. 94 7 FOTOGRAFIA COMO TESTEMUNHA DA HISTÓRIA .............................................................................. 95 7.1 A fotografia como ilusão da realidade ........................................................................................ 97 8 FOTOGRAFIA NO BRASIL: HISTÓRIA E CRÍTICA SOCIAL ..................................................................103 7 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 APRESENTAÇÃO Neste livro‑texto vamos mergulhar no magnífico mundo imagético da História em outro conteúdo da história da arte. Percorreremos esse caminho através do cinema, da fotografia e da pintura. Inicialmente, abordaremos o cinema como fonte documental para o trabalho do historiador. Trataremos, assim, das relações existentes entre cinema e História, narrativa histórica e narrativa ficcional e cinema no ensino de História. Depois lançaremos nosso olhar sobre a fotografia, a fim de analisá‑la como elemento do discurso ideológico, e abordaremos charge e caricaturas como instrumentos de crítica. Também destacaremos a pintura histórica e suas implicações no processo de construção da própria História e seu uso como material de propaganda. Por conta do gigantesco universo que se impõe diante de nós, faremos um recorte temporal nesta obra. Para tanto, acentuaremos toda essa produção imagética em seus momentos mais férteis, que correspondem aos séculos XIX e XX. Esse período equivale ao próprio nascimento e esplendor, sobretudo da fotografia e do cinema. No caso da pintura, nosso ponto de partida será o revolucionário século XVIII. Bons estudos! INTRODUÇÃO A História naturalmente é intrínseca à própria existência humana e, ao longo dos tempos, foi sendo eternizada das mais diferentes formas, a começar pela tradição oral, caracterizando‑se pelo conhecimento transmitido por gerações, dos mais velhos para os mais jovens, em um ciclo permanente e ao mesmo tempo mutável de saberes. Evidentemente que tal tradição, ainda que tenha sobrevivido por vários séculos, encontrava suas dificuldades na própria natureza do tempo e fragilidade da vida. Parte da cultura se perdia quando o portador desses saberes morria: ao menos uma parte da história não seria transmitida. Desde as primeiras formas para se registrar a sua própria existência, como as pinturas rupestres, passando pelos sumérios e sua escrita cuneiforme, os fenícios e a escrita alfabética, o homem se preocupou de algum modo em gravar sua marca nesse mundo e, ainda que de forma empírica, fazer com que a história pudesse ser registrada, eternizada. 9 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Unidade I 1 O UNIVERSO IMAGÉTICO E A HISTÓRIA Arte não é apenas básico, mas fundamental na educação de um país que se desenvolve. Arte não é enfeite. Arte é cognição, é profissão, é uma forma diferente da palavra para interpretar o mundo, a realidade, o imaginário, e é conteúdo. Como conteúdo, arte representa o melhor trabalho do ser humano. Arte é qualidade e exercita nossa habilidade de julgar e de formular significados que excedem nossa capacidade de dizer em palavras. E o limite da nossa consciência excede o limite das palavras (BARBOSA, 1978, p. 52). É tarefa das mais complexas definirmos arte, mas uma coisa é certa: a imagem é uma das formas mais difundidas de arte. Ao longo dos séculos, a História, a imagem e as artes caminharam juntas. Jean Duvignaud (1968) dizia que “a obra recompõe uma unanimidade que soluciona as parcelas de uma humanidade dividida. Reciprocamente, ao compor uma obra, o artista parece inculcar nela uma comunidade invisível em que se cristaliza esta substância social”. Cabe mencionar que, em seu estudo da condição humana, Hannah Arendt (1995) salienta que: “[...] obras de arte transcendem gloriosamente tanto os períodos como as eras em que foram criadas e as funções às quais foram originalmente criadas para servir”. Observação Para muitos arqueólogos, historiadores e especialistas no assunto, a escrita suméria, grafada em cuneiforme, é a mais antiga língua humana escrita conhecida. Foi criada para a cobrança de impostos e outras formas de medição. Uma das grandes especialistas em arte e educação foi Ana Mae Barbosa. De forma brilhante, definiu de maneiras distintas e ao mesmo tempo complementares seu entendimento sobre arte e imagem. Dizia ela: “na pós‑modernidade, o conceito de arte está ligado à cognição; o conceito de fazer arte está ligado à construção e o conceito de pensamento visual está ligado à construção do pensamento a partir da imagem”. Óbvio que não se trata de nenhum ineditismo, afinal foi Aristóteles quem afirmou que “todos os homens desejam por natureza saber”. Assim, indica o amor aos sentidos, pois, ao lado de sua utilidade, diz que os amamos também por causa deles mesmos, e, dentre todos, destaca a visão. Já na Pré‑história, com as primeiras manifestações rupestres, passando pelas pinturas egípcias e chegando às elaboradas imagens gregas da Antiguidade, o universo imagético sempre exerceu enorme fascínio entre todos os povos: cenas de caça ou guerras, rituais religiosos, personagens anônimos que tinham seus rostos eternizados, enfim, a imagem estava por toda a parte. 10 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Figura 1 À medida que o uso das imagens se difundia, ganhava cada vez mais espaço e importância e seus usos se multiplicavam. No mundo greco‑romano, as pinturas apresentavam desde cenas do cotidiano até imagens de um caráter político extremamente relevante. Outras serviam para manter viva a memória e os ensinamentos transmitidos entre gerações. Durante a Idade Média, a religiosidade se encarregou de ser a grande mola propulsora no que tange à produção de imagens, as quais, inclusive, adquiriram o status de sagradas e por vezes representativas da própria divindade. No Império Bizantino, por exemplo, o culto a determinadas imagens sagradas chegou a ser proibido, pois se temia uma quebra no monoteísmo religioso cristão: foi a chamada questão iconoclasta. Figura 2 11 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Lembrete A chamada questão iconoclasta ocorreu no Império Bizantino entre os séculos VIII e IX, quando os imperadores passaram a perseguir pessoas que veneravam imagens e promoviam a destruição desses objetos devocionais. O termo é originário da tradução e união das palavras gregas eikon (ícone ou imagem) e kláo (quebrar). Sem dúvida, um dos momentos de maior euforia imagéticafoi a explosão criativa, a partir do renascimento cultural do século XV. As imagens ganharam status de arte e se tornaram verdadeiras demonstrações de riqueza, poder e notoriedade. É a época dos grandes gênios italianos, de Massacio a Da Vinci, de Rafael a Michelângelo, apenas para citar alguns mestres de toda a Europa. Figura 3 – O Nascimento de Vênus, Botticelli (1483) Depois, irrompem as pinturas acadêmicas e revolucionárias do século XVIII. Então, a fotografia do século XIX e o cinema do XX revolucionam por completo o mundo das imagens. A partir de então, a riqueza da produção imagética nos impõe um grande desafio. Veremos como as imagens se misturam com a própria construção da História, muitas vezes guiando nosso olhar sem nos darmos conta disso. Estudaremos a pintura histórica do século XVIII no Brasil e no mundo até o início do século XX. Destacaremos, em especial, o impacto das obras de Jacques‑Louis David durante a Revolução Francesa e a pintura acadêmica brasileira do século XIX e seu papel na criação da própria identidade nacional. 1.1 A arte e o ensino da História A arte promove o desenvolvimento das competências, habilidades e conhecimentos necessários a diversas áreas de estudos; entretanto, não é isso que justifica sua inserção no currículo escolar, mas seu valor intrínseco como construção humana, como patrimônio comum a ser apropriado por todos. 12 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I A arte constitui uma forma ancestral de manifestação, e sua apreciação pode ser cultivada por intermédio de oportunidades educativas. Quem conhece arte amplia sua participação como cidadão, pois pode compartilhar de um modo único a interação no meio cultural. Aprender arte envolve a ação em distintos eixos de aprendizagem: fazer, apreciar e refletir sobre a produção social e histórica da arte, contextualizando os objetos artísticos e seus conteúdos. Contextualizar é situar as criações no tempo e no espaço, considerando o campo de forças políticas, históricas, sociais, geográficas e culturais presentes na época da realização das obras. O temperamento do artista e sua trajetória pessoal também são fatores indispensáveis para poder conhecer estilos e poéticas. Observação O estudioso Venturi (2007, p. 45) fala um pouco sobre a natureza da pintura e o sentimento do pintor: “Se fosse possível traduzir em palavras as formas e as cores, todos compreenderiam que a linguagem de Picasso pertence a uma família linguística diferente da de Braque. A importância do cubismo é, portanto, relativa na expressão dos dois temperamentos de um francês e de um espanhol que reagem perante a vida de maneiras tão diversas”. Pensando em todo esse processo de compreensão e aprendizado da arte, o livro didático se tornou peça chave, em especial no que diz respeito ao ensino de História, e a leitura de imagens é parte essencial nesse processo. A imagem pode ser compreendida como documento e material didático no ensino de História, e sua utilização justifica‑se pelo desenvolvimento do conhecimento histórico. Esses materiais devem expressar comunicação e serem analisados de acordo com as especificidades de linguagem, e precisam considerar a articulação entre os métodos dos historiadores e os pedagógicos. O filósofo alemão Walter Benjamin (1985), um dos representantes da escola de Frankfurt, reconhece que “a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo em que seu modo de existência”. Nesse sentido, nossa percepção das experiências vividas é influenciada pelos recursos técnicos disponíveis. “Consumimos hoje, sobretudo fluxos de imagem, de informação, de serviços. Esses fluxos formatam nossa subjetividade, revolvendo nossa inteligência e conhecimentos, nossas condutas, gostos, sonhos e desejos, em suma, nossos afetos” (PELBAR, 2000, p. 125). Daí a importância de colocar as imagens em questão: a que elas nos induzem? O que querem afirmar? Como a escola tem dialogado com elas? De que forma os recursos e o poder das imagens poderiam contribuir com as práticas educativas? Elas não estão a conclamar novas exigências profissionais no âmbito educacional? A disciplina de História está repleta de imagens absolutamente imprescindíveis para a compreensão dos processos históricos. Ao longo da trajetória do ensino de História em nosso País, as imagens têm contribuído para a formação da nacionalidade, com culto a heróis e figuras públicas no decorrer dos séculos XIX e XX. No Brasil, o ensino contribuiu para a constituição da nação e de sua política por meio do uso de iconografias para fins educacionais. Quando nos referimos ao conceito de imagem, consideramos as figuras fixas e em movimento. Estas últimas são mais recentes e certamente são as mais utilizadas em sala de aula. 13 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM É preciso sempre buscar a aplicação de um método dialético que leve ao desenvolvimento de um olhar crítico dos fatos e da própria sociedade. Essa questão está claramente contemplada nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, por exemplo. Para um aprofundamento sobre as questões ligadas aos processos de aprendizagem, vale a pena recorrermos a Paulo Freire, pedagogo que pensou em um método de educação construído com base na ideia de um diálogo entre educador e educando, no qual há sempre partes de cada um no outro. [...] Um dos pressupostos do método é a ideia de que ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho. A educação, que deve ser um ato coletivo [...] não pode ser imposta. Porque educar é uma tarefa de trocas entre pessoas e, se não pode ser nunca feita por um sujeito isolado [...] não pode ser também o resultado do despejo de quem supõe que possui todo o saber, sobre aquele que, do outro lado, foi obrigado a pensar que não possui nenhum (BRANDÃO, 2006, p. 21). Saiba mais Para enriquecer seus conhecimentos sobre a abordagem pedagógica de Paulo Freire, leia: BRANDÃO, C. R. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Braziliense, 2006. (Coleção Primeiros Passos. n. 38) A educação compreendida em um sentido mais amplo deve levar em conta as experiências dos alunos e a aplicação de um método dialético que problematize o objeto de estudo a partir das múltiplas possibilidades que eles oferecem em suas diversas abordagens. A construção do saber histórico não se dá por um método impositivo e sempre afirmativo, mas sim com a análise de teses contrárias e suas várias perspectivas. Maria Circe Bittencourt cita o filósofo francês Henri Lefebvre: [...] sobre o método dialético que atribui primazia às contradições por essas serem inerentes ao pensamento humano e manifestarem‑se em toda a parte e a cada instante. [...] A análise, ou seja, a decomposição dos elementos faz‑se pelo “pró e o contra, o sim e o não”, e as contradições fornecem a possibilidade de perceber não apenas os múltiplos aspectos, mas também os aspectos mutáveis e antagônicos (BITTENCOURT, 2005, p. 231). Segundo Vigotski, a relação entre o ser e o meio social é mediada. Isso quer dizer que o homem se relaciona com o mundo não de forma direta, mas pela mediação de instrumentos ou de signos. Nesse sentido, a iconografia assume um papel protagonista, pois sua leitura é sempre interpretativa, considerando a obra de arte como uma ponte entre a realidade do observador e a memória visual construída. “O que não estamos em condição de compreender diretamente podemos compreender por 14 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I via indireta, através da alegoria, e toda a ação psicológica da obra de arte pode ser integralmente resumida ao aspecto indireto dessa via” (VIGOTSKI, 1999, p. 35). O acesso eletrônico e o farto material iconográfico que temos à disposição nos permite explorar ao máximo todas essas informações. Assim, torna‑se mais fácil a decodificação dessas obrase o que amplia as possibilidades de criação de um conhecimento histórico muito mais sólido. Para Walter Benjamin, é como retirar a aura da obra de arte para que ela possa estar cada vez mais próxima de seus observadores. Benjamin diz que a partir da possibilidade da reprodução técnica da obra de arte, várias possibilidades estão abertas aos olhos humanos. Pode‑se ampliá‑la, destacar uma parte, ressaltar outra (BENJAMIN, 1994). Alguns cuidados sempre são necessários, no sentido de identificar as diferenças inerentes entre a obra e a realidade. Trata‑se de dimensões distintas e que não devem se sobrepor, uma vez que o artista sempre irá desfrutar de certa liberdade criativa a partir da qual se cria uma realidade por vezes imaginária. Segundo Vigotski, “a obra de arte nunca reflete a realidade e toda a sua plenitude e verdade real, mas é um produto sumamente complexo da elaboração dos elementos da realidade, de incorporação a essa realidade de uma série de elementos inteiramente estranhos a ela” (VIGOTSKI, 2004, p. 329). De qualquer modo, a utilização da arte no ensino de História desenvolve a sensibilidade do aluno e amplia seu potencial de entendimento. Mais uma vez é Vigotski quem nos chama a atenção para esse fato. Ele diz que o contato com um quadro, por exemplo, pressupõe a existência de três momentos: a estimulação, que é o primeiro contato, no caso, visual; a elaboração, que é a interpretação física que o espectador faz do quadro, ou seja, a identificação de que aquelas linhas e tintas formam uma paisagem; e a resposta. Esta última é a que faz a aproximação ou não do aluno em relação ao objeto. Vigotski explica que há muito tempo os psicólogos vêm dizendo que todo o conteúdo e os sentimentos que relacionamos com o objeto da arte não estão contidos nela, mas são por nós incorporados, como que projetados nas imagens da arte, e os psicólogos denominaram empatia o próprio processo de percepção. Essa complexa atividade da empatia consiste num reatamento de uma série de reações internas, da sua coordenação vinculada e em certa elaboração criadora do objeto. “Essa atividade é o que constitui o dinamismo estético básico, que, por sua natureza, é um dinamismo do organismo que reage a um estímulo externo” (VIGOTSKI, 2004, p. 330). A intenção é fazer com que se atinja um nível de conhecimento histórico que realmente faça sentido para o aluno, e que ele possa identificar na obra os traços da realidade que o cerca. [...] a aprendizagem é um processo em que um sujeito assume, invariavelmente, uma postura ativa diante do objeto que deseja apreender, mesmo que o sujeito não tenha plena consciência disso. É necessário que ele desmonte e torne a montar o objeto, não necessariamente obtendo o mesmo produto final. Ao se isolar as partes que compõem o todo, novas combinações podem ser produzidas, criando‑se as possibilidades para as emergências do novo. O conhecimento é adquirido, desse modo, por meio da ação do sujeito sobre o objeto que se dá a conhecer. O conhecimento histórico não foge à regra. Ele segue este mesmo padrão de aprendizagem (ROCHA, 1999, p. 63). 15 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Figura 4 – Batalha do Avaí, Pedro Américo (1877) A relação entre imagem e História ganhou relevância na década de 1980 com a história cultural, influenciando mudanças no próprio ensino dessa disciplina. Desse modo, torna‑se importante utilizar imagens no ensino de História por constituirem‑se linguagem portadora de significado, informações e representação da realidade. Nesse sentido, no prefácio de A História nova, Le Goff discorre sobre essa história política renovada, que ele denomina “antropologia política histórica”, que foi de suma importância teórica para a compreensão de diversas obras de David. Saiba mais A nouvelle histoire (novela histórica) foi criada a partir da necessidade de se pensar e de se trabalhar uma História não mais fundamentada em grandes nomes políticos, e sim nos vários fatores que estão nas entrelinhas. Para isso, foi preciso criar uma revista científica sobre os assuntos e as vertentes históricas a serem trabalhadas, revista essa que se intitula Annales d’Historie Economique et Sociale. Essa revista pode ser considerada o primeiro passo para pensar a “nova história”. Para mais informações, consulte: REIS, J. C. Escola dos Annales: a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000. O estudo das liturgias políticas (as cerimônias de sagração e coroação dos reis, por exemplo), dos espaços políticos, das insígnias de poder, das estratégias simbólicas – dos poderosos e dos Estados – que decorrem nas embaixadas, do encontro de príncipes, das festas e dos funerais dos grandes e da difusão dessas práticas e dessas imagens no conjunto do tecido social deve conduzir‑nos a uma “nova” história política a que eu chamo antropologia política histórica (SALIBA, 1999, p. 29). 16 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I No entanto, o uso de iconografias requer a compreensão do contexto de produção, as intencionalidades de quem a produziu, a fim de utilizá‑la como fonte de pesquisa e ensino e para não cometer anacronismos e, assim, ultrapassar os aspectos ilustrativos. Nesse sentido, independentemente da imagem que nos é apresentada, saber elaborar a leitura do material visual considerando as especificidades das imagens permitirá ampliar a capacidade informativa. A imagem não exclui a linguagem escrita e vice‑versa, pois ambas se complementam, compartilham e trocam mensagens e significados. Desse modo, em uma representação, seja em que nível for – no falar, no pensar ou no apresentar –, seu significado é produto de uma série de interesses e manipulações, não correspondendo necessariamente à realidade concreta de onde deriva. Então, faz‑se necessário “quebrar com o efeito de real” que as imagens (representações) provocam, deixando de “confundir o mapa com o território real” (SALIBA, 1999, p. 440). Saiba mais Para uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de “representação” e suas relações com a realidade e o imaginário, leia: PESAVENTO, S. J. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 15, 1995. Dessa maneira, o uso de uma dada “representação” revela um sem‑número de implicações e finalidades, principalmente quando utilizada no campo político como instrumento de glorificação de quem detém o poder, tendo como propósito “impressionar mais do que convencer e sugestionar em vez de explicar”, procurando persuadir espectadores, ouvintes ou leitores através da propagação de determinadas ideias e imagens, inserindo‑se, portanto, dentro de um projeto propagandístico e de legitimação do poder. Chegamos, assim, à “representação” como expressão de uma ideologia, apresentando implicações políticas e sociais (CAPELATO et al., 1998, p. 73). Vejamos o seguinte excerto: Assim, trabalhar com “representações” é penetrar nos bastidores das imagens e se aventurar a desocultar por trás delas uma série de intenções, desmembrando‑as em vários elementos, que, por falarem mais diretamente ao inconsciente, estão ocultos à primeira vista, procedendo a uma “arqueologia da comunicação política” (HAROCHE, 1998, p. 97). Segundo Pesavento (1995, p. 24) Ao mergulharmos nestas “representações”, deparamo‑nos com o uso do “imaginário social” e sua dimensão afetiva (porta de entrada privilegiada 17 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM para o apelo, a persuasão e a inculcação de ideias e imagens); com a idealização que muitas vezes está presente na construção de imagens; com as relações de mecenato; com o uso de símbolos e a teatralidade do poder, com a propaganda e a publicidade; com meios de comunicação, etc. Estes elementos apresentam inúmeras combinações e provocam resultadosdiversos, que fogem, algumas vezes, do próprio intuito com que foram arranjados. Consoante Burke (2004, p. 206), “as imagens são evidências para a História, resquícios do passado que se encontram no presente. Esse pensamento contrapõe‑se à ideia de ‘pureza’ obtida nas fontes e defende o uso de imagens juntamente com outros documentos”. Paiva (2006, p. 19) relata que as “imagens como fontes na pesquisa em História têm instigado novas reflexões metodológicas”. Schmidt e Cainelli (2015, p. 93) tratam a imagem como documento histórico a ser utilizado em sala de aula, porque [...] tornou‑se uma forma de o professor motivar o aluno para o conhecimento histórico, de estimular suas lembranças e referências sobre o passado e, dessa maneira, tornar o ensino menos livresco e dinâmico. Os docentes, ao estimularem seus estudantes com a utilização de documentos, reconhecem ser instrumento didático porque pode possibilitar “tirar o aluno da passividade e reduzir a distância de sua experiência e seu mundo de outros mundos e outras experiências descritas no discurso didático” (grifo do autor). O uso de fontes históricas em sala de aula pode contribuir para introduzir os estudantes ao pensamento histórico, ao exercício inicial de métodos empregados pelos historiadores. Assim, entendemos que os documentos podem ser utilizados como recursos didáticos: retratando uma situação histórica, reforçando determinadas ações de tempos e pessoas, servindo para introduzir temas de estudos: “para que o documento se transforme em material didático significativo e facilitador da compreensão dos acontecimentos vividos por diferentes situações, é importante haver sensibilidade ao sentido que lhe conferimos enquanto registro do passado” (BITTENCOURT, 2005, p. 331). Exemplo de aplicação Muitos alunos reconhecem facilmente algumas imagens recorrentes em livros didáticos e acabam identificando‑as como representativas de uma verdade histórica absoluta. Contudo, deve‑se ter a consciência de que boa parte dessa iconografia oficial interpreta certos grupos sociais que a forjam. Pesquise esses livros didáticos e selecione um tema e algumas imagens relacionadas a ele. Analise outras imagens em outras fontes e reflita sobre as múltiplas facetas desse universo imagético, que possibilita perceber os diferentes discursos produzidos por diferentes grupos e em diferentes circunstâncias. 18 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Observação [...] o livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demostram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores de grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança e etnia de acordo com preceitos da sociedade branca burguesa (BITTENCOURT, 2005, p. 72). 1.2 A imagem enquanto representação Os trabalhos sobre o ensino de História atualmente têm se dividido entre duas grandes discussões: a primeira centrada nos estudos sobre os materiais didáticos, como o livro didático e sua relação com os usos e marcos historiográficos; e a segunda voltada aos saberes construídos no espaço escolar e as experiências com ideias substantivas como democracia e cidadania dos alunos. Nessa direção, seja na primeira, seja na segunda abordagem, segundo Estevão de Rezende Martins, a missão do ensino de História é promover o estabelecimento da experiência dos sujeitos de forma a estabelecer uma “[...] correlação substantiva entre a vida quotidiana do presente e o passado historiador” (MARTINS, 2011, p. 43). Essa relação apontada pelo autor revela um ofício voltado a instigar a capacidade de reflexão e consciência histórica de seu lugar social no processo histórico dos sujeitos. Para ele, é inegável que, no conjunto de relações sociais dentro de determinada cultura, destacam‑se as formas como os indivíduos se percebem dentro de processos históricos, que, a princípio, seriam meros fatos ocorridos, mas que, a partir de um esforço de reflexão, transformam‑se em História. Portanto, de acordo com Martins (2011, p. 45), essa relação é certamente constituída pela “experiência da vida pessoal em sociedade e a reflexão pela qual o agente racional humano, a cada momento e em cada lugar, se apropria do tempo vivido para transformá‑lo em tempo refletido e, com isso, em História”. O mundo como o conhecemos hoje é o mundo das imagens, e a cada dia essa realidade se espalha por tudo o que nos cerca. Pesquisas na França demonstram que 85% de nossa aprendizagem informal se faz através da imagem e 55% é feita inconscientemente. Barbosa (1978) destaca: Temos que alfabetizar para a leitura de imagens. Através da leitura de obras de artes plásticas estaremos preparando a criança para a decodificação da gramática visual, da imagem fixa e, através da leitura do cinema e da televisão, a prepararemos para aprender a gramática da imagem em movimento. É fundamental que se desenvolva a habilidade de ver. Não se deve apenas olhar as obras de arte, mas avaliar todas as suas imagens constitutivas de um mundo visual, pois elas têm muito a nos dizer. A história da arte, por exemplo, ajuda‑nos a entender o tempo e o espaço nos quais as obras de arte estão 19 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM situadas, afinal nenhuma obra está vagando pelo vazio: é absolutamente inegável que grande parte da compreensão de qualquer obra vem do entendimento do seu contexto. “A estética esclarece as bases teóricas para julgar a qualidade do que é visto” (BARBOSA, 1978). O historiador de arte Simon Schama (2012, p. 45) tem uma bela definição sofre umas das funções da arte: Se a arte consegue nos deixar felizes, será que também consegue nos tornar bons? Se é capaz de nos levar ao êxtase ou às lágrimas, será que também deveria nos transformar em cidadãos corretos? A moderna pintura secular tem o poder conversivo das obras‑primas cristãs? Tem o poder de salvar almas, não do pecado, mas do egoísmo? O poder da arte deveria se prestar à arte do poder? Outro aspecto extremamente relevante é percebermos como se dá a construção da imagem pública na sociedade contemporânea, fato intimamente ligado ao senso de publicidade. A imagem é produzida como propaganda voltada para atingir determinados resultados práticos, inclusive servindo como instrumento de legitimação do poder. Não há como negar que, na atualidade, sua importância é cada vez maior, dada a massificação em larga escala dos meios de comunicação. Nesse contexto, cada um de nós possui um verdadeiro universo de mídia dentro dos bolsos, que é acessado por meio do uso de nossos smartphones. Excelente exemplo de aplicação dessa agressiva exposição midiática são as campanhas eleitorais. Hoje uma boa assessoria de marketing pode garantir o triunfo dos candidatos que melhor conseguirem manipular a opinião pública. Para os homens de poder, nota‑se que a qualidade da imagem e os símbolos que carregam em suas exposições públicas têm se tornado cada vez mais decisivos. Observação Jânio Quadros foi um dos primeiros homens públicos a explorar aquilo que podemos chamar de marketing político. Sua campanha “varre vassourinha” foi extremamente bem‑sucedida e ajudou a construir a imagem de um homem realmente “do povo”. Sua expressiva votação foi tão surpreende quanto sua repentina renúncia. Lembrete Outro famoso caso de grande exposição midiática na política foi o de Fernando Collor de Melo. Durante a campanha eleitoral de 1989, Collor se apresentava como o “caçador de marajás”. Prometia limpar o Brasil dos corruptos e convenceu grande parte da população. Contudo, depois de eleito, sofreu um processo de impeachment seguido de renúncia devido a muitas acusações de corrupção antes de completar metade do seu mandato. 20 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 UnidadeI Exemplo de aplicação Faça um levantamento de outros casos de grande exposição imagética na política. Reflita a respeito de como essas imagens foram construídas para atingir um determinado objetivo e se, posteriormente, a verdade da imagem se confirmou. Girardet (1987, p. 58) relata que “as imagens que inspiram os signos reivindicados pelo poder político constituem um elemento determinante para assegurar sua representação ao longo do tempo perante a sociedade”. Esse é o caso que estudaremos mais à frente, em que discutiremos os elementos da propaganda revolucionária existentes na obra de Jacques‑Louis David. Observação David valeu‑se de uma verdadeira campanha de marketing em favor da causa revolucionária. É importante notar seu modo de produção, organização e mudanças consideráveis ao longo do processo revolucionário desde o início do chamado “terror jacobino” até a apoteose napoleônica. Lembramos que há, com frequência, um diálogo ambíguo, complementar ou divergente entre descrição e a representação oficial dos fatos e a sua real ocorrência, resultante da decisão de trazer a público apenas a interpretação que é de interesse do governo, tendo como consequência a idealização, a celebração ou mesmo a supressão de certos fatos. O discurso oficial, através de gestos, palavras, objetos ou imagens, acompanha e justifica novas medidas governamentais, apresentando vários sentidos: ruptura, estabilização, continuidade, conservação etc. Essa questão destaca o problema amplo da interpretação das mensagens literárias, visuais, gestuais etc., foi o ponto crucial dos debates sobre a leitura e a “nova crítica” nos anos 1960 e levanta a questão quase insolúvel da natureza da interação autor‑obra‑público. Que a imagem é uma produção consciente e inconsciente de um sujeito é um fato; que ela constitua uma obra concreta e perceptível também; que a leitura dessa obra a faça viver e perpetuar‑se, mobilizar tanto a consciência quanto o inconsciente de um leitor ou de um espectador, é inevitável. Realmente, existem poucas chances de esses três momentos da vida de qualquer obra coincidirem. Entretanto, se persistirmos em nos proibir interpretar uma obra sob o pretexto de que não temos certeza de que aquilo que compreendemos corresponde às intenções do autor, é melhor parar de ler ou contemplar qualquer imagem de imediato. Ninguém tem a menor ideia do que o autor quis dizer; o próprio autor não domina toda a significação da imagem que produz. Tampouco ele é o outro, viveu na mesma época ou no mesmo país, ou tem as mesmas expectativas; interpretar uma mensagem e analisá‑la não consiste certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas 21 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM em compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca de significações aqui e agora, ao mesmo tempo em que se tenta separar o que é pessoal do que é coletivo. Decerto, são necessários, é claro, limites e pontos de referência. Segundo Roger Chartier, o conceito de representação engloba: As representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam [...]. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a pôr uma autoridade à custa de outros por elas menosprezadas, a legitimar um processo reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (CHARTIER, 1996, p. 26). Observação Bandeirante: herói ou vilão? Essa é uma das grandes questões da história brasileira no que toca à construção do imaginário coletivo. Não raro a figura do bandeirante é associada ao heroísmo e à virtude de um conquistador, imagem que se opõe ao seu aspecto violento de sua relação com os nativos. Exemplo de aplicação Pesquise outros eventos e personagens da História cujas imagens são contraditórias. Discuta os pontos positivos e negativos de cada um dos itens escolhidos. Ainda sobre o argumento apresentado por Chartier (1996), podemos concluir que uma representação está longe da imparcialidade e que os conteúdos oferecidos pelos livros didáticos, por exemplo, estão carregados de ponto de vistas e visões de mundo calcadas sobre o interesse de quem as remete. Somente para agregar uma contribuição a essa linha interpretativa, a tradição intelectualista da filosofia busca, assim, evitar sistematicamente as ilusões, o equívoco gerado pela sensibilidade, defendendo a objetividade, a racionalidade como única possibilidade de se chegar à verdade tão almejada, e priorizando a palavra escrita como forma de expressão. Esperar que as imagens expressem exclusivamente verdades e comprovem fatos, revelando seu caráter indicial é operar tratamento ingênuo e reducionista sobre elas. Além do mais, dicotomizar palavras e imagens, diferenciá‑las como forma de linguagem essencialmente distinta remete‑nos a visões dualistas, fragmentárias, positivistas da realidade. É essa posição dicotômica que está presente na afirmação de Kubrusly, quando diz: 22 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I [...] a palavra é racional, dissertativa, prolixa. A imagem, emocional, sintética, direta. A palavra pode expor com clareza uma ideia, conceituar com precisão. A imagem é de natureza mais onírica (incluindo‑se aí os pesadelos), mais ilógica e nebulosa. É insubstituível para transmitir, num relance, toda a emoção de um evento, mas falha ao tentar analisá‑lo (KUBRUSLY, 1991, p. 77). Será mesmo que as palavras são racionais, como afirma Kubrusly? Carlos Drummond de Andrade (apud DUARTE, [s.d.]) parece discordar quando poetiza: “chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave?” Merleau‑Ponty (1995), ao dizer o que é indispensável na obra de arte, também nos faz problematizar o que Kubrusly (1991, p. 83) relata sobre as imagens: Que contenha, melhor que ideias, matrizes de ideias que nos forneçam emblemas cujo sentido não cessará jamais de se desenvolver, que, precisamente por nos instalar em um mundo do qual não temos a chave, nos ensine a ver e nos propicie enfim o pensamento como nenhuma obra analítica o pode fazer, pois que a análise só revela no objeto o que nele está. [...] Nada veríamos se não tivéssemos, em nossos olhos, um meio de surpreender, interrogar e formar configurações de espaço e cor em número indefinido. Merleau‑Ponty (1995) reafirma o caráter polissêmico da imagem, sua permeabilidade receptiva a múltiplas leituras. Nossa posição neste texto centra‑se na possibilidade de estabelecermos uma relação logopática com as imagens, isto é, aproximá‑las ao mesmo tempo da razão e da emoção. Considerando que a visão filosófica consiste em transcender a visão naturalista das coisas, ao olhar para uma imagem, poderíamos perguntar de imediato: O que essa imagem sugere? O que ela inclui ou exclui? Muitas vezes é na ausência que se encontra a significação. Ao formular nossas perguntas, é interessante ainda perceber os signos presentes na imagem: cor, forma, linha, volume, luminosidade, composição, profundidade. Estar atento ao impacto emocional que ela nos causa, algo que nos chame atenção, que nos faça ficar perplexos, que nos disponha a pensar, a buscar um significado. Daí poderão surgir experiências fecundas, reflexões conceituais mediadas pela sensibilidade, pelo afeto, transformando a leitura de uma imagem em uma vivência única e singular, em um acontecimento. 2 METODOLOGIA DE ANÁLISE DAS IMAGENS As imagens que iremos estudar adiante podem ser investigadas sob diferentes perspectivas. O material selecionado será analisado através da descrição literal dos eventos tratadose suas possibilidades interpretativas no contexto da Revolução Francesa. A análise formal terá como fundamento a construção teórica de Rudolf Arnheim, que nos descreve uma leitura da imagem sob o ponto de vista da análise dos elementos que constituem a imagem e a relação entre eles. Trata‑se de uma análise de pura visibilidade, teoria criada por Henrich Wolfflin, em que a preocupação fundamental era as formas artísticas e suas linguagens, dentro de certa autonomia em relação ao seu contexto. Segundo Ribolla (2013): 23 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Mediante uma forma muito hábil, ele consegue deslocar a consciência da imanência das influências de uma época para uma gramática da visão, [pela qual], através de alguns princípios opostos entre si, todas as realizações da escultura, pintura e arquitetura dos séculos XVI e XVII poderiam ser analisadas dentro de critérios objetivos e com um método mais científico. [...] Todas as análises formais realizadas por Wolfflin não foram, então, alvo de sua simples intuição, mas um reflexo da própria Erlebnis (experiência vivida). Wolfflin diversas vezes citava: “nem tudo é possível em todos os tempos [...], a visão tem sua história, e a revelação destas categorias óticas deve ser considerada a tarefa primordial da história da arte”. Outro autor que se debruçou sobre o tema foi o francês Henri Focillon (1979). Em seu livro A Vida das Formas, menciona: Seremos sempre tentados a procurar para a forma um outro sentido que não o dela própria, e a confundir a noção de forma com a de imagem, que implica a representação de um objeto e, sobretudo, com a de signo. O signo significa, enquanto a forma se significa (FOCILLON, 1979, p. 78). O psicólogo alemão Rudolf Arnheim (1998) apresenta uma construção teórica em seu livro Arte e Percepção Visual, que tem como fundamento os princípios da psicologia da forma como suporte para a compreensão das obras artísticas. Ele mostra a necessidade do desenvolvimento da visualidade para a assimilação dos fenômenos, Temos negligenciado o dom de compreender as coisas através dos nossos sentidos. O conceito está divorciado da percepção, e o pensamento se move entre abstrações. Nossos olhos foram reduzidos a instrumentos para identificar e para medir; em consequência, sofremos uma carência de ideias exprimíveis em imagens e de uma capacidade de encontrar significado no que vemos. É natural que nos sintamos perdidos na presença de objetos que fazem sentido apenas para uma visão diluída e que procuremos refúgio no meio familiar das palavras [...]. A capacidade inata de compreender através dos olhos está adormecida e deve ser despertada (ARNHEIM, 1998, p. 49). Ribolla (2013) ainda ressalta que as configurações visuais são compostas de um “alfabeto” formado por elementos como a cor, o espaço, a luz, a linha e uma “sintaxe” que ordena esses elementos, apresentando o equilíbrio, as tensões e o dinamismo, ou seja, a expressão presente em cada imagem. Arnhein (1998) aponta que: “[...] a percepção da expressão é imediata e evidente demais para ser explicável simplesmente como produto de aprendizagem. Quando observamos uma bailarina, a melancolia ou felicidade da alma passa a ser diretamente inerente aos próprios movimentos”. Desse modo, podemos falar no caráter universal das imagens e como estas dão corpo a um mundo invisível, ou seja, a igualdade que existe entre as estruturas internas ou mentais e sua representação ou expressão. Assim, as imagens nos mostram características perceptivas entre seus elementos, que, antes 24 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I do processo de análise, remetem‑nos a algo que sentimos ser familiar, nossas próprias experiências corporais e sensoriais com o mundo. Erwin Panofsky, crítico e historiador de arte do século XX, entendeu a história da arte como a história das imagens. Em seu método de estudo, buscava desvelar o que havia de conteúdo intrínseco nas obras de arte. O autor narra que a iconologia preocupa‑se com a origem, a transmissão e o significado das imagens, isto é, uma área de investigação da cultura e do pensamento. Portanto, como ressalta Panofsky (2001): O sufixo “grafia” vem do verbo graphein, “escrever”; implica um método de proceder puramente descritivo, ou até mesmo estatístico. A iconografia é, portanto, a descrição e classificação das imagens [...]. Coleta e classifica a evidência, mas não [se] considera obrigada ou capacitada a investigar a gênese e a significação dessa evidência. O autor ilustra que existem três níveis de análise para se compreender o significado de uma obra de arte. Todos se relacionam e não existe entre eles uma relação hierárquica. Primeiramente, deve‑se proceder a uma descrição iconográfica, ou seja, a captação das formas básicas da expressão artística de tudo o que é perceptível, como: formas, cores, linhas, volumes, materiais, estruturas animadas ou inanimadas e modos de expressão. Segundo o autor: O mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos constituiria uma descrição pré‑iconográfica de uma obra de arte. Nesse ponto, o autor reconhece o processo pré‑iconográfico como uma análise muito próxima à análise formal como definiu Wolfflin (2000). O segundo instante da análise seria a iconografia propriamente dita, que constitui o mundo das imagens, estórias e alegorias que se interpretam através de um conhecimento cultural que pressupõe familiaridade com objetos e fatos que adquirimos pela experiência prática, seja através de fontes literárias obtidas por leitura deliberada, seja pela tradição oral. Assim, há um aprofundamento conceitual nos aspectos culturais, mitológicos, históricos e temáticos. O terceiro e último instante é o da interpretação iconológica, que busca os significados intrínsecos ou os conteúdos das obras dentro do contexto em que foram produzidas, bem como o significado simbólico do tema exposto na obra de arte. “É o momento de apreensão de princípios que estão na formação e que revela a atitude básica de uma nação, de um período, classe social, crença religiosa ou filosófica, segundo o próprio” (PANOFSKY, 2001, p. 52). Há, nesse modo de interpretação, a busca de perguntas que a obra nos faz, e as respostas não serão encontradas na análise da obra em si, mas em um conjunto que possa testemunhar sobre as diferentes questões que foram abertas pelas imagens produzidas. No caso das obras de David, temos questões, sobretudo, de cunho moral. Ribolla (2013, p. 56) reitera: 25 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM O estudo iconográfico pode ser visto com certa superficialidade, pois seu papel é o de expor a superfície da obra artística, quase como um primeiro passo, para abrir o caminho do viajante que quer percorrer as inúmeras incertezas que a imagem lhe traz, que somente serão discutidas através da análise iconológica. Esta sim tem o papel de interpretar e adentrar no mundo das abstrações alegóricas e metafóricas, da poesia, do não dito. 3 JACQUES‑LOUIS DAVID E A REVOLUÇÃO FRANCESA Vamos percorrer o caminho do grande pintor francês Jacques‑Louis David e suas icônicas obras acerca do processo revolucionário francês. Nossa intenção é destacar o poder que essas obras exerceram antes, durante e até mesmo depois da avalanche revolucionária iniciada em território gaulês e mais tarde levada a toda a Europa por Napoleão Bonaparte. David foi, sem sombra de dúvidas, o grande expoente do estilo conhecido como neoclássico, que surgiu em meados do século XVIII e se consolidou a partir da Revolução Francesa até 1830, sobretudo na França e na Inglaterra. Tratava‑se de uma reação a todo o rebuscamento do Barroco e do Rococó, estilos muito mais associadosao luxo da vida na corte ou representativos do grande poder da Igreja Católica naquela época, e que trazia em sua essência o pensamento racional típico do Iluminismo. Naturalmente buscava nos antigos suas referências, revivendo mitos que marcaram a história de gregos e romanos. O neoclássico nutria‑se de todo o espírito crítico e racional do Iluminismo, fato que mais tarde seria de grande importância para os movimentos revolucionários que influeciariam a Europa do século XVIII. Era caracterizado pela extrema disciplina estética e rigor em suas técnicas. Buscava o purismo típico do Classicismo não só na pintura, mas também nas esculturas e arquitetura, manifestações, aliás, intensamente difundidas. A intenção é perceber nas obras de David como é perfeitamente possível e extremamente eficaz a construção de um discurso sobre a História através das imagens. Não se trata de David, mas sim trazer à tona um amplo debate sobre essa verdadeira liturgia de uma obra que se fez revolucionária. Assim, estudaremos a produção de David antes, durante e após a Revolução Francesa e como ela se apresenta em diferentes meios, sobretudo nos livros didáticos. Então, poderemos estabelecer de que maneira essa verdadeira “imposição litúrgica” dirige nosso olhar para o olhar de David sobre o processo revolucionário. É imprescindível definirmos o significado de “poder simbólico” que toda imagem carrega, em especial no momento em que as obras de David foram concebidas. Sua produção não é aleatória, tão pouco isenta de intenções; trata‑se de uma verdadeira liturgia. Nessa conjuntura, a palavra liturgia é entendida como um ritual a ser seguido pelo bom cidadão francês em tempos revolucionários e tudo aquilo que as imagens poderiam representar ou sugerir, contexto no qual a iconografia se denotava como instrumento poderoso de apoio à revolução. Analisaremos as obras mais significantes de David e a forma publicitária como elas foram apresentadas, para que a sua exposição nos livros didáticos possa ser menos ilustrativa e muito mais esclarecedora. 26 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Em cada obra, serão levantadas algumas evocações teóricas destinadas tanto a estimular o estudo quanto a formular certas possibilidades que o emprego dessas imagens sugere. Cabe ainda destacar que as fontes iconográficas que utilizamos foram escolhidas dentre várias outras, que, infelizmente, foram forçosamente preteridas. Por conseguinte, não se trata de uma catalogação de imagens da Revolução Francesa. Assim, não faremos uma análise mais aprofundada de outros artistas que também produziram seus trabalhos ao longo do processo revolucionário, mas citaremos algumas releituras das obras de David e de outros artistas relevantes. Certamente o imagético da Revolução é muito mais amplo do que aquele registrado por David e mostrado nos livros. Entretanto, é inegável o impacto de sua obra tanto ao longo do processo como nos livros didáticos, que até hoje é enorme. Portanto, a intenção é propor uma abordagem racional da imagem, e não oferecer simplesmente receitas interpretativas ou limitá‑las. Deve‑se empregar recursos visuais que ampliem as possibilidades de interação discente‑docente e aproximem o texto e as imagens dentro dos livros didáticos, permitindo, assim, que professores e alunos as compreendam como parte fundamental no processo de ensino‑aprendizado. A produção de David teve um impacto enorme no desenrolar do processo revolucionário na França. A maneira como suas obras foram utilizadas e o significado atribuído a elas nos possibilita entender a importância e o poder dessas obras e das próprias imagens ao longo da História, inclusive sua presença nos livros didáticos – uma verdadeira liturgia revolucionária, um quase manual do “bom revolucionário francês”. Figura 5 – Autorretrato, David (1794) A aguda formulação do historiador marxista e britânico Raphael Samuel perpassa o método analítico com que podemos e devemos nos debruçar sobre a obra de David. Fato é que o conteúdo de uma 27 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM obra é composto de uma variedade de elementos que estão em sintonia, desde que evidentemente saibamos reconhecê‑los. Contudo, no caso de David, a emoção grita mais alto, e o repertório, por vezes insuficiente para uma real compreensão de todos esses elementos, é engolido pela força devastadora do sentido prático da obra. Ela é quem nos empurra para o dever, e, dentro do turbilhão revolucionário francês, para o dever cívico. Toda imagem se forma em um contexto sócio‑histórico e psicológico, o que lhe dá a possibilidade de determinadas ordenações e significados, e isso é fundamental para se compreender o que David estava fazendo. O dever da arte seria educar, e não simplesmente dar prazer. A Academia também seria uma escola de moralidade pública. Os salões poderiam ser frequentados por qualquer pessoa que pudesse pagar ingresso. Autores da época mencionam que as exposições organizadas por David chegaram a reunir multidões – mulheres de mercado vendedoras de peixe até figurões. Figura 6 – Marte Desarmado por Vênus e as três Graças, David (1824) Nesse momento, algumas questões vêm à baila. Até que ponto as obras de David, produzidas na tensão pré‑revolucionária ou mesmo nos momentos mais agudos, serviram como pólvora e ajudaram a lançar tudo pelos os ares e intensificar o rolar de cabeças? Como o uso dessas imagens agravou ou não o radicalismo revolucionário? Por que Davi, tão explorado pelo governo da França, nem sequer teve o direito de ser enterrado em solo francês? Quando a monarquia Bourbon foi restaurada, David foi um dos proscritos. Contudo, Luís XVIII concedeu‑lhe anistia e até mesmo ofereceu‑lhe uma posição na corte, mas David recusou a oferta, preferindo o autoexílio em Bruxelas (ALTMAN, 2002). Lá pintou Cupido e Psiquê, vivendo tranquilamente com sua esposa, dedicando‑se a composições em pequena escala e a retratos. Sua última grande criação foi Marte Desarmado por Vênus e as Três Graças, terminada um ano antes de sua morte. Segundo expressou, desejava que a obra fosse o seu testamento artístico. Exposta em Paris, reuniu uma multidão de admiradores. 28 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Figura 7 – Cupido e Psiquê, David (1817) Observação David faleceu depois de ter sido atropelado por um carro na saída do teatro, em 29 de dezembro de 1825. Seu espólio foi vendido, mas as pinturas remanescentes obtiveram baixos valores. Por suas atividades revolucionárias, seu corpo foi impedido de retornar à pátria, e foi sepultado no cemitério Evere, em Bruxelas. Todavia, seu coração repousa no cemitério Père Lachaise, em Paris. 3.1 Juramento do Jogo da Pela Figura 8 – Juramento do Jogo da Pela, David (1791) 29 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM A cortina agita‑se violentamente e uma verdadeira fúria invade e rasga os espaços acima das cabeças e braços estoicamente juramentados. O barulho é ensurdecedor, gritos e gestos emocionados e potentes criam uma atmosfera revolucionária: são os ventos da mudança; um caminho sem volta, a Revolução está em marcha! Ainda que incompleta, a obra inaugura a liturgia de Davi, a convocação para a batalha e, talvez, para o sacrifício. Um juramento, uma promessa ou mesmo um desejo; o fato é que a raivosa tomada da Bastilha, ainda que extremamente simbólica, não teve, na prática, a importância daquele momento em que os deputados do 3º Estado juravam que não se separariam enquanto não elaborassem para a França uma Constituição. Ali de fato inicia‑se a Revolução, porque limitar os poderes de um rei, que secularmente se apoiou em teorias do Direito Divino, não é tão trivial assim. Mesmo os ingleses, quando empreenderam tal feito em 1689, não arrombaram aporta da monarquia como os franceses estavam por fazê‑lo. Braços erguidos e apontados para uma mesma direção induzem a unidade necessária ao processo que se iniciava; ao mesmo tempo, um grande espaço vazio sobre a cabeça dos deputados deixa em aberto todas as possibilidades que os ventos da Revolução trazem. David não completou sua obra, mas pudera: A Revolução só estava começando. 3.2 Os Litores Trazendo a Brutus os Corpos de seus Filhos Figura 9 – Os Litores Trazendo a Brutus os Corpos de seus Filhos, David (1789) O quadro da figura anterior, que teria sido recepcionado como um chamamento mais consistente ao levante contra a usurpação da nobreza na França, encomendada por Luís XVI. Acredita‑se que a tela tenha sido exibida, ainda que de forma muito breve, após a queda da Bastilha. Devido à recepção de suas obras, David foi saudado como um dos arautos da Revolução Francesa, que estava prestes a eclodir, sendo homenageado por seus líderes como Danton, Robespierre e Marat. Posteriormente, foi eleito deputado na Convenção de 1792, e ainda designado como membro dos Comitês de Arte e de Instrução Pública. Neste último, controlava o funcionamento das associações 30 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I civis. Participou ativamente na política cultural do governo revolucionário. O estreito relacionamento que mantinha com os líderes políticos jacobinos quase ocasionou sua morte, quando Robespierre foi preso e executado. Esteve encarcerado em dois momentos, no final de 1794 e no meio do ano seguinte. Mesmo nessas ocasiões, continuou sua produção, então dirigida para a pintura de retratos e paisagens. Na releitura da obra, David reitera o que se considera como uma de suas características: o uso da Antiguidade como metáfora do presente. O pintor retrata o ato estoico do primeiro cônsul e senador romano Brutus, que mandou executar seus próprios filhos por estes tramarem contra a recém‑conquistada liberdade republicana e a favor da restauração ao poder de Tarquínio Prisco, o último dos reis de Roma. Mais tarde, devido à simbologia republicana, o quadro foi brevemente censurado pela monarquia. Contudo, por pressão popular, acabou sendo exposto com uma escolta de estudantes de arte. A obra neoclassicista causou uma verdadeira comoção no público. Os homens passaram a usar o cabelo cortado a Brutus, as mulheres, a vestirem roupas semelhantes às das mulheres do quadro. David lançou moda na época. Brutus era um dos dois cônsules da república na Roma Antiga. Sua função era defender a república de qualquer ameaça. Seus filhos conspiraram contra ela, desejando alçar ao poder a dinastia dos Tarquínios, ou seja, restaurar a monarquia. Ao descobrir a traição dos filhos, Brutus assina pessoalmente a carta de execução dos conspiradores. Os corpos dos filhos de Brutus são devolvidos à família, para a imensa dor da esposa e filhas do casal. Alguns destaques sobre o quadro: • A luz: — Guia o olhar através do quadro. Primeiro, as mulheres, depois os corpos dos filhos de Brutus e, finalmente, o próprio Brutus, à sombra. Por que ele é retratado na sombra? Brutus não é o vilão, mas o modelo a ser seguido. A sombra diz respeito ao sofrimento deste personagem – o quadro fala, principalmente, sobre a grandeza de Brutus e a sua dor. A luz não é para todos. Os interesses da nação devem sobrepujar os interesses do indivíduo, mesmo que isso signifique o fim de sua felicidade. • As cores: — A toalha vermelha se destaca sob os objetos de costura. É a tragédia de sangue sob as ações cotidianas, nada mais será como antes. Também é vermelha a almofada na qual se senta Brutus. As mantilhas dos filhos de Brutus, no entanto, são azuis. Frias e impessoais, como o cumprimento de uma ordem. • O traço: — É preciso e realista, como manda a cartilha neoclassicista. Embora alguns elementos componham o ambiente, como cadeiras e mesa, não há um excesso decorativo no quadro. As colunas são lisas e a arquitetura é sóbria. 31 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM • Brutus: — Retratado à sombra, traz em uma das mãos a carta com a sentença que ele mesmo assinou. Sua mão faz um gesto natural, e seu rosto está impávido, mas seus pés o denunciam: tensos e rijos. É o semblante de um homem que oculta uma grande dor. • As mulheres: — A emoção em contraste com a razão. A mãe, em um gesto débil, tenta alcançar os filhos mortos. As irmãs se desesperam: uma oculta o rosto em uma manta, a outra cobre a visão com as mãos e uma terceira desmaia. 3.3 A Morte de Sócrates Figura 10 – A Morte de Sócrates, David (1787) Embora essa obra não faça parte dos principais livros didáticos de História, pelo menos não como parte dos capítulos referentes à Revolução Francesa, sua análise seria de grande valia para a compreensão do seu impacto dentro do processo revolucionário e como ela foi utilizada para inspirar o sacrifício daqueles que acreditavam na causa. Observação A obra foi encomendada por um mecenas e trata da morte do filósofo Sócrates, condenado pelo povo de Atenas; Sócrates, rodeado por um grupo de amigos desolados, prepara‑se para o autossacrifício. Na primavera de 399 a.C., três cidadãos atenienses instauraram um processo contra o filósofo. Acusavam‑no de não venerar os deuses da cidade, de introduzir inovações religiosas e de corromper os jovens de Atenas. 32 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I A gravidade das acusações era de tal ordem que se exigia pena capital. A pintura também retrata Platão e Críton, com o primeiro sentado melancolicamente na beira da cama e Críton segurando o joelho de Sócrates. O réu tinha a opção de ir para o exílio (portanto, desistir de sua vocação filosófica) ou ser condenado à morte. Sócrates escolheu a morte. No quadro, de vestes vermelhas, um discípulo de Sócrates segura a taça de cicuta. A mão de Sócrates aponta para o céu, indicando a sua reverência aos deuses e a atitude corajosa pela sua morte. Essa narrativa já era bastante conhecida no tempo de David, e assim o pintor dava continuidade a uma tradição na qual se valia de temas clássicos para explorar questões de sua época. Todas as figuras humanas assemelham‑se às estátuas gregas, com contornos precisos e exatidão física. A figura de Platão é representada com a mesma idade do mestre e com similar tonalidade em sua túnica. Simbolicamente, isso demonstra que as ideias de Sócrates serão perpetuadas através dos escritos de Platão. Segundo o relato de Platão, ele desafiou o júri com as seguintes palavras: Enquanto eu puder respirar e exercer minhas faculdades físicas e mentais, jamais deixarei de praticar a filosofia, de elucidar a verdade e de exortar todos que cruzarem meu caminho a buscá‑la. [...] Portanto, senhores, [...] seja eu absolvido ou não, saibam que não alterarei minha conduta, mesmo que tenha de morrer cem vezes (BOTTON, 1999). Testemunha silenciosa da injustiça cometida, Platão está sentado ao pé da cama do mestre. A seu lado, uma pena e um rolo de pergaminho. Platão contava 29 anos quando Sócrates foi executado, mas David o retratou como um ancião circunspecto e grisalho. No corredor ao fundo, carcereiros conduzem Xantipa, a mulher de Sócrates, para fora da cela. Sete amigos apresentam graus variados de consternação. Críton, seu companheiro mais chegado, está sentado a seu lado e contempla o mestre com devoção e preocupação. Mas o filósofo, cujo torso e bíceps são de um atleta, mantém‑se ereto e altivo, sem que se perceba qualquer sinal de apreensão ou arrependimento. O fato de ter sido acusado de loucura por um grande número de atenienses não abalou suas convicções. O escritor Alain de Botton (1999) ainda destaca: David havia planejado pintar Sócrates no ato de beber o veneno, mas o poeta André Chenier sugeriu que o efeito dramático seria bem maior se ele fosse retratado no momentoem que terminava um argumento filosófico e, ao mesmo tempo, recebia com tranquilidade a taça de cicuta que daria fim à sua vida, simbolizando, dessa forma, tanto um ato de obediência às leis de Atenas como um compromisso de fidelidade à sua missão. Estamos testemunhando os últimos momentos edificantes de um ser extraordinário. É vital destacar a presença da iconografia cristã, usada como forma de dotar o tema de nobreza e relevância. David associa a morte de Sócrates com o sacrifício de Jesus Cristo. Ambos acreditavam em 33 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM uma moral elevada, não deixaram escritos e perpetuaram seus ensinamentos através de seus seguidores. Neste quadro, são doze os discípulos de Sócrates, assim como na tradição do cristianismo. A taça também evoca o cálice da última ceia. É notório que a intenção de David era exaltar a sabedoria e o autossacrifício de Sócrates em contraste com a ignorância e a injustiça dos governantes. Apenas dois anos depois de concluir a obra, a Revolução eclodiria e naturalmente seria apoiada por David. A morte de Sócrates se tornava mais um poderoso instrumento de propaganda. No mesmo viés de leitura sobre a possível recepção como convocação cívica, é possível abordar a obra como um discurso contra a disparidade dos critérios de julgamento. Na cena elaborada por David, estão doze discípulos, numa analogia à condenação de Cristo e à postura de seus apóstolos. Ressalta‑se, ainda, a postura inabalável de Sócrates, que não se isenta de suas obrigações de cidadão, como o respeito às leis, mesmo diante da morte iminente. 3.4 O Juramento dos Horácios Figura 11 – O Juramento dos Horácios, David (1784) Foi com O Juramento dos Horácios que David estabeleceu as regras do neoclassicismo romano e o programa de uma nova tendência na pintura – uma composição inspirada em baixos relevos que devia harmonizar o idealismo grego com o realismo romano. Iniciado em 1781 e concluído em 1784, o trabalho exposto ao público na Piazza del Popolo, em Roma (1785), obteve aclamação imediata por exaltar a grandeza romana. Lembrete No mesmo ano o quadro foi apresentado no Salão de Paris. De acordo com Hauser (1982), a tela foi aclamada como a mais bela pintura do século XVIII. A imagem representaria um modelo de ética cívica, resultado possível da leitura de historiadores, como Plutarco e Tácito, durante seu convívio com Winckelmann. 34 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I A pintura em análise simboliza um episódio da história de Roma Antiga – a luta entre Horácios e Curiácios. Os irmãos Horácios juraram diante de seu pai defender a honra da pátria ou morrer lutando pela sua liberdade. No centro da imagem, vemos três jovens em postura vigorosa marcial diante de um ancião, que representaria a tradição de responsabilidade cívica. Em segundo plano, mulheres a se lamentar, demarcando um posicionamento dos gêneros e sugerindo qual parcela da sociedade deveria atuar nessas circunstâncias. O próprio pai dos Horácios oferece os filhos no sacrifício patriótico, mas o amor se imiscui nesse cálculo frio. Camila, irmã dos Horácios, está noiva de um dos Curiácios. Ao ver o cadáver do rapaz depois da luta, ela o chora abertamente e, por causa dessa deslealdade, é morta por seu irmão, o único sobrevivente. O pai defende o assassino publicamente, alegando que ele cumpriu o seu dever patriótico! Um desenho no qual o pai protetor se posta diante do fratricida impenitente, enquanto o corpo da filha jaz na escada, indica que, inicialmente, esse era o tema tenebroso de David. Contudo, ele acabou escolhendo um momento anterior à história, em que o pai, com as espadas na mão, faz os filhos jurarem que lutarão ou morrerão pela pátria. De acordo com Ginzburg (2014, p. 87): É o manifesto da fraternidade, da união masculina patriótica: três rapazes que se tornam um só, a mão de um deles na cintura do irmão, as pernas musculosas na mesma passada, o braço direito erguido no juramento de lealdade ao pai e à pátria. Uma capa cor de sangue – um toque de brilho na cena sombria – pende dos ombros do patriarca. A ação é contida num espaço sufocante, pouco profundo, teatral, e prossegue – um, dois, três – num minueto de fúria e morte (pois o tema já havia inspirado um balé): três arcos, três irmãos, três espadas, três mulheres chorando como a Níobe dos frisos clássicos. Sabina, a moça de azul e marrom, sentada numa cadeira coberta por mais um pano cor de sangue, é a irmã dos Curiácios casada com um dos Horácios. Ela chora com a certeza de que inevitavelmente perderá o marido, o irmão ou os dois. Ao seu lado, Camila (de branco virginal) antevê a morte do noivo. Ambas estão fadadas ao sofrimento por lealdades divididas, corações partidos. Uma terceira mulher, uma ama, segura os dois meninos. Um deles não assiste ao espetáculo, mas o outro – evidentemente futura vítima de um novo sacrifício patriótico – acompanha tudo de olhos bem abertos. Certo de que um detalhe lançaria ainda mais drama a todo o ambiente em que a obra foi produzida, enquanto trabalhava, David foi pai pela segunda vez. Assim, estava muito claro que os filhos deviam estar em sua mente como bucha de canhão patriótica. Entretanto, a ideia de elaborar um quadro sobre o tema não foi obra de David, mas resultado de uma encomenda feita pelo próprio rei Luís XVI, mas não podemos afirmar quais eram os seus objetivos com essa ação. Durante o processo de negociação, o pintor foi apresentado à filha do contratador, Marguerite Charlotte Pécoul (1764‑1826), que viria a se tornar sua esposa. Na perspectiva de Hauser (1982), essa união teria garantido para David a autonomia financeira necessária para a elaboração de suas obras posteriores. O quadro não se parecia com nada que se tinha visto até então: era uma revolução na arte, muito antes de David se envolver de algum modo com a Revolução no País. Ele sabia que tinha nas mãos um tremendo sucesso. Amigos e alunos em Roma se encarregaram da publicidade. No fim, 60 mil pessoas 35 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM se apinharam no Salon de 1785, onde a obra obscurecia todas as outras. “Dali em diante, David faria quadros para uma coisa chamada ‘A Nação’. O Juramento dos Horácios (Figura 11), por sua vez, era uma incitação às armas” (SCHAMA, 2012, p. 82). Em 1785 David expôs o quadro pela primeira vez em seu ateliê, e foi um sucesso. Realizado durante a estadia de David em Roma no ano de 1784, foi percebido como uma obra que reunia em si “os ideais políticos, morais e estéticos não realizados, as esperanças, as tendências imperfeitamente concretizadas do período” (FRIEDLAENDER, 2010, p. 122). A pintura revelava valores pertinentes ao movimento revolucionário francês, tanto pela tentativa de superação do colorido sensual, sentimental e naturalista da arte rococó realizada na Corte, como pelo tema nitidamente antimonárquico. Assumindo um caráter histórico de primeira grandeza, sobretudo pelos seus ideais republicanos, para muitos, como Hauser (1982), esse quadro constituiu um dos maiores êxitos registrados na história da arte, e fez de David o verdadeiro pintor da nova França (FRIEDLAENDER, 2010). Segundo Francastel (1990), David é o herói de uma arte nova. Talvez, como explica Friedlaender, a posteridade já não compreenda todos esses significados atribuídos ao quadro, não sem uma pesquisa de contextualização histórica. Diria ainda Francastel que a leitura de um signo plástico (ou figurativo) exige um esforço de reconhecimento. Contudo, isso não resolve o problema: é preciso iniciar a investigação travando um diálogo com as imagens. A cena figurada acontece em um ambiente fechado, lembrando a boca de um teatro, onde os personagens estão todos no primeiro plano e distribuídos de forma equilibrada. No lado esquerdo da tela, para quemobserva, notam‑se três homens vestidos como soldados romanos, com roupas em tons de branco, marrom e vermelho, pernas entreabertas e braços esticados, todos exibindo uma rija musculatura. Posicionados em perfil, encontram‑se demasiadamente unidos, o que é reforçado pelo fato de o homem do meio abraçar fortemente o primeiro deles pela cintura. Percebe‑se uma atmosfera de grande unidade entre esses três personagens, como se eles fossem apenas uma pessoa. Seus braços, esticados, apontam para o homem do centro da tela, visivelmente mais velho, que empunha, com a mão esquerda, três espadas, que certamente serão entregues aos rapazes. Apesar da aparência mais velha, sugerida pela barba (ausente nos primeiros), esse homem veste‑se com as mesmas cores e também possui uma rija musculatura. A extrema verticalidade desses quatro personagens, nitidamente romanos, em consonância com as armas (além das espadas, o primeiro dos soldados romanos tem uma lança em suas mãos), e com as colunas dóricas ao fundo, carregam a cena de uma atmosfera de virilidade e robustez. Estando todos figurados em perfil, esses quatro personagens assemelham‑se a baixos‑relevos, gênero de escultura muito utilizado pelos romanos. A grandeza romana era algo muito valorizado pelos pintores franceses da época, sobretudo David, que era engajado no processo revolucionário: os revolucionários franceses gostavam de se considerar gregos e romanos renascidos, e sua pintura, não menos que a arquitetura, refletia seu gosto pelo que era designado como grandeza romana (GOMBRICH, 2013). Em contraste com a verticalidade masculina, no lado direito da tela, observa‑se um grupo de três mulheres sentadas e curvadas. Com aspecto de fraqueza e desfalecimento, choram, certamente, pelo descontentamento com o episódio da cena central. Ao fundo, uma mulher de roupas escuras abraça duas crianças, enquanto as outras duas, destacadas por forte luz, apoiam‑se mutuamente, vestindo‑se nos 36 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I mesmos tons de vermelho e marrom dos homens, porém suas roupas são mais claras ou desbotadas e, aparentemente, mais leves. Outra peculiaridade da imagem é a higiene visual, devido à total ausência de elementos ornamentais, seja no ambiente, seja nas indumentárias. Tudo é muito simples e objetivo, graças à construção baseada em uma pintura linear, em detrimento do estilo pictórico do barroco‑rococó, que privilegiava as pinceladas livres e o cromatismo. São as linhas, e não as cores, que definem os contrastes da cena (reto, vertical, viril: homens, espadas, colunas; curvado, delicado, fraco: as mulheres, seus tecidos, sua posição de repouso). Apesar dessa antítese entre os sexos, existe uma ordem rigorosamente estabelecida: cada um dos três grupos de personagens encontra‑se em um compartimento, uma vez que a arquitetura de colunas dóricas que os condiciona forma três grandes arcos de triunfo, o que garante simetria à obra. 3.5 O Rapto das Sabinas Figura 12 – O Rapto das Sabinas, David (1799) David trabalhou na obra a partir de 1796, quando a França estava em guerra contra outras nações europeias, após um período de guerras civis que culminaram com o Reino do Terror e a Reação Termidoriana, durante a qual o próprio David foi preso por ser partidário de Robespierre. Após a visita de sua esposa na cadeia, ele teve a ideia de contar a história para homenageá‑la, com o tema do amor prevalecendo sobre o conflito. A pintura também era vista como um pedido para que as pessoas se reunissem, após o sangue derramado na Revolução. A pintura mostra a esposa de Rômulo, Hersília – filha de Tito Tácio, líder dos sabinos – entre seu marido e seu pai, e colocando seus filhos entre ambos. Um Rômulo vigoroso, porém hesitante, prepara‑se para atingir Tácio, que está prestes a recuar, com sua lança. Outros soldados já estão desembainhando suas espadas. O cenário rochoso no fundo representa a Rocha Tarpeia. O quadro simboliza a fundação de Roma segundo a lenda de Rômulo e Remo. Para povoar as cidades, os romanos raptaram as mulheres e as filhas dos sabinos, o que acarretou uma guerra após três anos. A obra de David tenta ilustrar esse encontro entre os sabinos e os romanos, juntamente das sabinas, na tentativa de interpor o combate. Na parte esquerda do quadro, situa‑se o templo dedicado a Júpiter construído por Rômulo. Ao redor da colina, vemos as muralhas e as torres redondas das cidadelas, nas quais os sabinos se distribuem pelo beiral, 37 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM armados com arcos e espadas. Aos fundos, na parte central, uma rocha separa as colinas. Em primeiro plano, à esquerda, está Tássio, o rei dos sabinos, armado com capacete, um escudo oval e uma espada de pequeno porte. À sua frente, à direita, Rômulo, armado com um escudo redondo de bronze e uma lança esguia e fina como um dardo, que está prestes a ser lançada. No centro, podemos notar a mulher de Rômulo e outra mulher, que seria possivelmente a filha de Tássio. A moça corre para se interpor entre os dois. Uma jovem se agarra às pernas do rei, enquanto a outra coloca as três crianças no chão, e esta pode ser a própria babá dos filhos do pintor, que suplica ao seu senhor a paz e o fim da guerra. Outras mulheres se apresentam arrancando os próprios cabelos, estendendo seus filhos aos soldados; outra jovem grita e abre os braços na direção do observador. À esquerda está situado o exército sabino, em contrapartida, os romanos se localizam à direita. Ao mesmo tempo em que se inicia o combate, a tormenta invade os céus e alguns mortos aparecem na cena, sendo possível encontrar elementos, dos dois lados, que apontam o querer do fim da batalha. Os romanos colocam seus capacetes em piques em sinal de paz, e outro soldado guarda a sua arma. David elaborou, através de uma mixórdia de elementos, uma cena histórica anacrônica, que funde armas gregas, estandartes romanos e edificações francesas. Porém, mais relevante é a exploração do sentido pretendido pelo pintor ao selecionar e ordenar tais formas. Em primeiro plano, no centro da pintura, uma jovem mulher vestida de branco se interpõe entre dois beligerantes: o mais jovem está em posição de ataque, pronto para atirar uma lança empunhada quase acima de sua cabeça – uma arma de arremesso que lhe permitiria ferir o oponente sem se aproximar, sem envolver‑se; o de mais idade mantém sua guarda aberta e empunha uma espada que está voltada para baixo – uma arma de defesa que o obrigaria a se envolver em um combate aproximado com o adversário. Essas três figuras representariam posicionamentos sociais, significando, respectivamente: a jovem, os que buscam a paz pela tentativa de impedir atitudes impensadas, mão esquerda aberta e voltada para cima, sugerindo a entrega da lança pelo rapaz, assim como através do arrefecimento dos ânimos, mão direita aberta e voltada para baixo, procurando demover qualquer iniciativa da parte do homem; o rapaz, os cidadãos que, em posição mais segura, demonstram impetuosidade e precipitação para retaliar ou atacar primeiro o adversário; e o homem, que até poderia exprimir a moderação obtida pela vivência, mas possivelmente expressa melhor a desconfiança dos que, em desvantagem, têm receio de negociar, pois a figura não dá indícios de que deporá suas armas. Ao redor da mulher no centro, outras estão a se lamentar, a tentar demover os combatentes, e, principalmente, a proteger as crianças. A colocação de crianças numa cena de batalha possivelmente produziu reações nos espectadores do quadro, atuando como um chamamento à reflexão sobre possíveis consequências de ações intempestivas no presente – as maiores vítimas da contenda entre congêneres seriam as futuras gerações. No segundo plano, apesar do mar de lanças eriçadas e do iminente embate entre cavaleiros e infantes, não há feridos ou vestígios de sangue, nem possíveis mortos,mas apenas um guerreiro tombado de arma em punho, próximo ao centro do cenário. Ao fundo, as construções não apresentam analogia com edificações romanas clássicas, mas remetem a alguma fortaleza provavelmente contemporânea ao pintor, como a Bastilha. 38 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I O que esteve separado em Horácios e em Brutus – homens e mulheres, pais e filhos – agora está reunido. Nesse momento, a feição familiar suplanta o dever público. O Rapto das Sabinas, mais do que uma enorme pintura histórica, transmite a mensagem contrária às das tragédias romanas anteriores. Aqui as mães são heroínas e se interpõem entre os guerreiros – sabinos e romanos. Raptadas ou não, as sabinas‑romanas expõem seus bebês nus a uma profusão de armas. Rostos angelicais, traseiros rechonchudos e seios fecundos intervêm na ferocidade dos heróis varões e prevalecem. As duas irmãs que posaram para as figuras principais deixaram o pintor apavorado quando se despiram espontaneamente para lhe mostrar que tinham os atributos necessários para deter a guerra. Estavam certas. Pela primeira vez, as belas vencem as feras. E por algum tempo David continuou produzindo beleza. Em suma, essa obra representa um apelo de David pela reunião nacional e pela paz, depois de tanto sangue derramado na guerra. O quadro deve ter convencido muitos franceses de que o país precisava de pulso firme, e este tinha nome: Napoleão Bonaparte. David se apressaria em pintar esse pulso. 3.6 Marat Assassinado Figura 13 – Marat Assassinado, David (1793) Na noite de 13 de julho de 1793, Marat, “o amigo do povo”, foi mortalmente apunhalado em sua banheira pela monarquista Charlotte Corday. No dia seguinte, um membro da convenção pediu a David que registrasse o evento numa tela – o que ele prontamente atendeu. A imagem do jornalista enfermo estava nítida em sua memória, pois o visitara no dia anterior a seu assassinato, quando o vira trabalhando em sua banheira. Embora se baseando na observação, David aperfeiçoou a realidade, com o intuito de criar o retrato de um novo mártir revolucionário. Ignorou as feições muito desfiguradas de Marat e o colocou em uma pose elegante e heroica contra um fundo chapado. O quadro representa um acontecimento emblemático da Revolução Francesa (o assassinato de um dos seus chefes políticos), denunciando em simultâneo as divergências e os conflitos internos que rodearam o processo revolucionário e que só foram solucionadas com a ascensão de Napoleão Bonaparte. 39 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM A doença de Marat era tão severa que ele devia banhar‑se constantemente em água fresca e usar um turbante embebido em vinagre. Estendia‑se um lençol no interior da banheira para evitar o atrito das chagas com o revestimento. Agora vamos fazer alguns destaques dessa obra tão relevante. A luz é bastante teatral. Enquanto o caixote, a cabeça e os braços de Marat estão bem iluminados, os detalhes mais sangrentos ficam nas sombras. Marat era um homem radical e impetuoso. É retratado jovem e belo, com uma expressão serena no rosto. Os móveis são figurados com simplicidade, e os utensílios no quadro revelam um Marat de poucas posses, um homem do povo. O caixote com a dedicatória de David lembra uma lápide. O assassinato de Marat é retratado nesse quadro instantes após sua morte, pelas mãos da jovem Charlotte Corday. Quase não há sangue, apenas algumas gotas e a água da banheira, avermelhada. David escolhe concentrar a atenção do observador no mártir, e não no crime em si. A faca é deixada no chão, e é do mesmo tamanho da pena utilizada por Marat. Esses objetos contam a história do crime. Enquanto Charlotte usa uma arma, Marat luta com ideias. Por fim, temos os bilhetes: um está nas mãos de Marat, e é o suposto documento que lhe foi entregue pela assassina, Charlotte. Está escrito: “Il suffit que je sois bien malheureuse pour avoir droit a votre bienveillance” (“Basta minha grande infelicidade para dar‑me o direito à sua bondade”). No outro bilhete, Marat faz uma doação a uma viúva de guerra. David procura retratar a generosidade de Marat. Há efeito de profundidade na sobreposição de elementos, uso de claro e escuro (ele quer chamar atenção, usa o efeito da luz e escurece o resto); as cores são modeladas. 3.7 A Sagração de Napoleão Bonaparte Figura 14 – A Sagração de Napoleão Bonaparte, David (1805‑7) 40 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Gênio da propaganda e do espetáculo, o novo imperador não se contentaria com uma simples ratificação de seu título pelo povo. Queria uma unção religiosa para se alinhar acima de outros imperadores do momento, o czar da Rússia e o chefe do Sacro Império Romano Germânico – que reinava em Viena, assim como se demarcar do pretendente dos Bourbons, Luís XVIII (ALTMAN, 2002). Para o local da cerimônia, sonhava com Aix‑la‑Chapelle, antiga capital de Carlos Magno, porém acaba se fixando em Paris. Leva em conta o Champ‑de‑Mars, ainda palpitando de lembranças da Revolução, ou a igreja de Saint‑Louis‑des‑Invalides, pequena demais, mas acaba escolhendo a venerável catedral de Notre Dame, de Paris. O imperador queria fazer dela o símbolo da reconciliação da nação com sua história. A cerimônia de coroação é organizada pelo pintor Jacques‑Louis David, adepto do Neoclassicismo e do retorno ao estilo antigo. Deputado da Convenção e amigo de Robespierre, David votou a favor da morte de Luís XVI. Estreitando laços de amizade com Bonaparte, tornou‑se o pintor oficial do Império. Auxiliado pelo pintor Jean‑Baptiste Isabey, David concebe vestimentas engalanadas para os convidados especiais e para os rudes soldados tornados marechais do Império ou ainda dignitários que deveriam assistir à coroação. O próprio imperador deveria cobrir‑se com um manto de 22 m, todo bordado de abelhas. Às 6 horas, começava a aglomeração do povo na Praça Dauphine, à entrada da Notre Dame, para tomar seus lugares na nave. O papa chega à catedral aclamado pela multidão. Então, chega a vez de Napoleão e Josefina, que deixam o Palácio des Tuileries montados numa luxuosa carruagem, escoltada por seis regimentos de cavalaria. A cerimônia transcorre um pouco desordenada e totalmente despida de espiritualidade e recolhimento. Ela se eterniza durante mais de três horas em meio ao forte frio de dezembro. Pio VII dá a bênção a Napoleão e Josefina, umedecendo de óleos santos sua fronte e suas duas mãos. Após breve sermão, abençoa os emblemas imperiais: anel, espada e manto. O papa não estava numa posição acima do imperador! De acordo com o combinado com o sumo pontífice, Napoleão se coroa a si mesmo, de pé, voltado para a assistência, segundo um rito carolíngio, e depois coroa a imperatriz. O Santo Padre se retira, contrariado, para a sacristia, e, na sua ausência, o novo imperador presta juramento sobre o Evangelho, jurando preservar todas as conquistas da Revolução: ‘‘Juro manter a integridade do território da República, respeitar e fazer respeitar a igualdade de direitos, a liberdade política e civil [...] governar pela exclusiva via do interesse, da felicidade e da glória do povo francês’’ (ALTMAN, 2002). Enquanto o séquito, aliviado, deixa a catedral, saudado por 101 tiros de canhão, a fanfarra militar ataca uma melodia muito popular, que, em outras situações, era cantada com letra bastante vulgar. Esse imprevisto não deixava de ser uma caçoada ao caráter sacrílego da cerimônia, nem cristã nem republicana. A intenção de Napoleão era de fixar para a eternidade a lembrança do acontecimento, tarefa que levou a cabo, tomando grandes liberdades em relação à realidade, inclusive tentou fazer figurar no centro do quadro sua mãe, que preferiu permanecer na Itália em vez de assistir à coroação. Ao ver essa 41 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on- 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM obra imensa no ateliê do pintor, dois anos após a cerimônia, segundo Schama, Napoleão exclamou: ‘‘Como é imensa! Isto não é uma pintura: pode‑se caminhar por este quadro’’ (SCHAMA, 2012, p. 85). Na obra o evento registrado está acontecendo num local amplo e aparentemente religioso. A iluminação está focada em Napoleão e nas pessoas próximas através de um único feixe de luz. O soberano ostenta várias vestes volumosas, com o predomínio da cor branca, dourada e da vermelha. Suas mãos estão elevadas e seguram uma coroa, pronta para ser colocada na cabeça da mulher, sua esposa, que está ajoelhada à sua frente. Ela usa uma capa vermelha com bordados dourados, provavelmente de veludo, bastante macia e avultada, e joias brilhantes. Duas mulheres detêm a capa da esposa de Napoleão, seus vestidos são de cores claras, e elas estão adornadas por coroas de louro na cabeça. Ao seu lado há uma almofada de cor escura com detalhes dourados. Próximo a elas, está a única criança da imagem, que usa vestes vermelhas e brancas. As pessoas representadas na cena, fora do foco principal de luz, usam roupas parecidas, de acordo com seu sexo, e estão assistindo à coroação, umas atônitas, outras com o rosto sem expressão. O ambiente é caracterizado por altos arcos plenos, enfeitados com cortinas verdes e detalhes dourados, que dão uma ideia de divisão entre a cena capital e um público atrás do salão principal. Quase ao centro, em um desses arcos, há um parapeito, onde estão algumas pessoas, entre elas uma senhora sentada que parece estar indiferente ao acontecimento; abaixo dela, homens com o uniforme militar francês, composto pelas cores azul, vermelho, branco e, em alguns detalhes, dourado. Acima da senhora sentada, pessoas são representadas com menos detalhes, talvez porque não tivessem o mesmo prestígio dos que estavam próximos a Napoleão, ou simplesmente para dar profundidade e distância. No plano de fundo desses indivíduos, existe um vitral colorido. As paredes do salão principal são de uma textura de pedra mármore, de cor clara e marrom. Do lado esquerdo da imagem, sobre a parede, há uma tapeçaria, nas cores vermelha e creme: o tecido da primeira cor é liso, e o da segunda possui o detalhe de um brasão ao meio. O piso parece estar coberto por tecido áspero e com coloração verde. No altar, Napoleão está em pé, em oposição ao papa, sentado com cardeais ao seu redor. Atrás do pontífice, existe uma espécie de candelabro de sete velas com um crucifixo, de aproximadamente 3 m, se considerarmos a altura de um dos cardeais, em pé, próximo à vela. Por trás dos arcos, mencionados anteriormente, estão algumas pessoas que notadamente não possuem relevância na cena ou até mesmo no evento, mas ainda assim estão observando a coroação, sem muitas expressões de sentimentos. A imagem interpreta um evento de coroação. Com nossos conhecimentos históricos, podemos afirmar que ela é a catedral de Notre Dame. Rica em detalhes e demonstração de poder de Napoleão, que é destacado sobretudo pelas cores empregadas nas pessoas e no ambiente ilustrado, entre eles o constante uso do vermelho e dourado, denotando o poder e a nobreza. A mulher que se apresenta de joelhos é a sua esposa, que aparentemente será coroada, e sua posição sugere submissão. Logo atrás de Napoleão está o papa, que observa o acontecimento sentado. Essa diferença de posição cria uma ideia de submissão entre Napoleão e a santidade, evidenciando que seu poder seria superior ao da Igreja. É interessante notar, além das vestimentas e outros adornos presentes na obra, que o pintor francês pretendeu retratar o momento em que Napoleão tomou a coroa e a colocou com suas próprias mãos sobre sua cabeça. Napoleão havia conseguido negociar a ida do papa Pio VII a Paris, e o fez para reatar os 42 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I laços entre o Estado francês e a Igreja – rompidos após a Revolução Francesa (1789). De acordo com os rituais de consagração régia, a entidade religiosa era quem colocava a coroa na cabeça de um rei. Com sua atitude, obviamente Napoleão Bonaparte quis sobrepujar o poder religioso. 4 A PINTURA HISTÓRICA NO BRASIL A partir de agora nos concentraremos naquilo que chamaremos de Pintura Histórica no Brasil. Trata‑se de um tipo específico de pintura que nos permite resgatar a imagem que se criou do Brasil desde os tempos da colônia até o momento da criação do Estado‑Nação ao longo do século XIX. Embora tais pinturas não possam ser encaradas simplesmente como representativas de uma memória nacional, elas revelam muito de uma época, e, sendo assim, trata‑se de uma iconografia importantíssima para a compreensão dos acontecimentos históricos e uma espécie de reconstrução visual do passado. Até a vinda da família real portuguesa ao Brasil, a produção artística nacional esteve atrelada apenas aos registros visuais do território, da natureza e dos povos nativos brasileiros. Como exemplo, podemos citar artistas holandeses como Franz Post e Albert Eckout, que, embora possuam brilhantes trabalhos, pouco se relacionam com a história do Brasil propriamente dita. É bem verdade que, no século XVII, a pintura no Brasil já experimentava um desenvolvimento considerável, ainda que difuso e limitado ao litoral, e desde então conheceu um progresso ininterrupto e sempre com maior pujança e refinamento, e com um grande momento em particular: o Barroco de Minas Gerais, com suas pinturas decorativas nas igrejas, sobretudo com mestre Ataíde. Com a chegada da Família Real, instalou‑se no Brasil a Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) como uma escola superior de arte na cidade Rio de Janeiro. A instituição teve papel fundamental nos rumos da arte nacional, pois acabaria se tornando um verdadeiro centro de propagação dos novos ideais estéticos. Teria, mais tarde, um papel educativo, principalmente no governo de D. Pedro II, uma vez que o imperador, além de grande apreciador de arte e novas tecnologias, tinha o intuito de desenvolver um programa cultural nacionalista. Observação A fundação da Academia teria sido um projeto idealizado pelo próprio D. João VI, mas também pelos franceses Lebreton e Taunay, sendo o primeiro encarregado de dirigir os demais integrantes do grupo. Um arquiteto naval, um mestre ferreiro, um engenheiro mecânico, carpinteiros e artesãos também faziam parte do grupo, além, é claro, de artistas como Jean‑Baptiste Debret, aluno do celebrado Jacques‑Louis David e o próprio Nicolas‑Antonine Taunay. Mais tarde outros se juntariam ao grupo, que ficaria conhecido como “Missão Artística Francesa”. A Missão forneceu os recursos humanos, técnicos e conceituais que estruturaram a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, o primeiro nome da instituição – que foi a primeira em seu gênero no Brasil, fundada por decreto real em 1826. 43 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Figura 15 – Joueur d’Uruncungo, Debret (1826) Dentro desse contexto, vamos focar em especial a então chamada pintura histórica, que desempenhou um papel extremamente importante, pois foi responsável pela construção de uma memória nacional: grandes feitos, heróis e batalhas épicas precisam ganhar forma. A criação do projeto político do Segundo Reinado foi acompanhada da elaboração de práticas que também desenvolveram o sentido de identidade nacional. O País acabava de sair de um período extremamente turbulento, fruto das rebeliões regenciais, que, por muito pouco, não levaram à fragmentação do Brasil. Além disso, o Brasil carecia de um sentimento de orgulho nacional, e nada melhor do que um passado glorioso para que essa afeição pudesse aflorar como mais força. Eis então que surgem os pintores oficiais da Academia Imperial de Belas Artes: Pedro Américo e Victor Meirelles. Quase todos nós temos em nossa memória algumas obras que nos acompanham desde os primeirosanos da escola, mas infelizmente muitas dessas impressões sobre a História não são necessariamente verdadeiras. Entretanto, não deixam de ter enorme valor na edificação do projeto da nação brasileira. Quem nunca se impressionou quando viu pela primeira vez as “margens plácidas do Ipiranga” tão cantadas em nosso hino nacional e que na obra de Pedro Américo se tornariam tão “reais” em nosso imaginário? Ou então não achou estranho o Tiradentes Esquartejado? Em relação à pintura histórica, são as obras de Pedro Américo e Vitor Meirelles que mais atingiram o grande público. Fato é que suas histórias de guerras colossais e feitos heroicos estão enraizados no imaginário de todos aqueles que já estudaram a histórica do Brasil. A seguir vamos estudar algumas dessas célebres obras, muitas delas financiadas pelo governo imperial. Após desenvolveram suas técnicas na Europa, esses pintores tornaram‑se peças fundamentais na construção da imagem que o Brasil deveria ter a partir do século XIX. Assim, é sempre importante ressaltar que a visão a ser construída era a visão do Império. Coli (2005, p. 51) nos dá uma excelente definição daquilo que deveria ser uma verdadeira pintura histórica: [...] constitui‑se como o apogeu da arte de pintar, articulando‑se diretamente com o princípio da narração. Trata‑se de contar histórias com clareza, com grandeza; histórias bíblicas, sagradas; histórias dos heroísmos humanos, 44 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I presentes e passados; histórias dos poderosos em suas ações mais magníficas, em seus triunfos soberbos. A questão é, portanto, a de narrar visualmente. O pintor devia articular formas visuais significantes, devia inventar cenas, poses, gestos, ambientes. É fundamental analisar essas grandes obras com uma visão altamente crítica, uma vez que os pintores criavam essas cenas para um determinado fim. O espectador deve ser capaz de fazer tal interpretação, o que não significa descontruir o quadro, mas sim absorver dele muito mais do que os olhos veem. O universo imagético dos livros de História, por exemplo, é recheado de certas imagens consagradas e que muitas vezes alcançam um status de verdade, mas não necessariamente pelo significado real, e sim pela suposta autoridade que lhes é conferida. A interpretação da realidade é parte vital na construção do saber histórico, o que possibilita ir muito além de um texto ou de uma imagem. 4.1 Análise de imagens 4.1.1 Independência ou Morte! Figura 16 – Independência ou Morte!, Pedro Américo (1888) Uma das pinturas mais icônicas na historiografia brasileira é, sem dúvida alguma, Independência ou Morte, de Pedro Américo. Trata‑se de uma obra que assinala um momento decisivo na montagem de um imaginário sobre o Brasil recém‑independente. O Sete de Setembro tornar‑se‑ia um verdadeiro mito fundador da Pátria, ainda mais pelas mãos do príncipe, regiamente trajado em seu alvo e agitado corcel. É muito clara a intenção do artista de chamar nossa atenção para a figura de D. Pedro, dado seu lugar de destaque na composição sob o olhar admirado dos dragões de sua Guarda Real. Outro detalhe relevante é a figura de um camponês solitário, o caipira, que a tudo observa sem compreender a real dimensão daquilo que testemunha, talvez como toda a população brasileira. Pedro Américo também publicaria em 1888 um texto intitulado O Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil: 45 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM [...] são provas cabais de que muitos artistas do século XIX, por meio de suas pinturas, aquarelas, desenhos e gravuras, pretenderam restaurar mentalmente e revestir das aparências materiais do real todas as particularidades de um acontecimentos que passou‑se há mais de meio século, principalmente quando não nos foi ele transmitido por contemporâneos hábeis na arte de observar e descrever. A dificuldade cresce na proporção da necessidade que tem o artista – espécie de historiador peado pelas exigências da estética e pelas incertezas da tradição – de individuar circunstâncias de cuja veracidade se pode duvidar, e que nem por serem reais merecem a atenção da história e a consagração do belo (MELO, 1888, apud OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 95). Pedro Américo ainda enfatizaria que toda a pintura histórica deveria, como síntese, ser baseado na verdade e reproduzir as faces essenciais do fato, e, como análise, em um grande número de raciocínios derivados, a um tempo, da ponderação das circunstâncias verossímeis e prováveis, e do conhecimento das leis e das convenções da arte (MELO, 1888, apud OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 96). Chama atenção para não retratar “desfavoravelmente os traços do augusto moço naquele momento solene”, pois, segundo consta, “D. Pedro, na tarde de 7 de setembro, sofria de um incômodo gástrico”. Para o artista, pintar eminente figura baseado em fato real, mas desfavorável à nobre fisionomia, seria uma atitude “contrária à intenção moral da pintura, e, por consequência, imerecedora da contemplação dos pósteros”. Assim justifica sua atitude: “Exceto nessas circunstâncias acidentais, em que fui aconselhado e guiado pelo raciocínio [...], foi a pintura rigorosamente inspirada da realidade, tanto quanto se pode esta inferir do insuspeito testemunho de diversos presenciadores do fato” (MELO, 1888, apud OLIVEIRA; MATTOS, 1999). Oliveira e Mattos (1999) mencionam que, embora houvesse certa tradição popular de que “Sua Alteza, no momento mais solene daquela tarde memorável, cavalgava um asno baio”, o pintor teve a prudente preocupação em negligenciar certos aspectos que pudessem ser considerados pouco nobres para uma ocasião tão solene. Afinal, o cavaleiro entrava na cidade para um feito histórico, e a intenção era a construção de uma obra que levasse à plena exaltação da nação; “incidentes perturbadores” deveriam ser afastados. Segundo o pintor, alguns aspectos da realidade deveriam ser alterados, por exemplo, a montaria do príncipe, sua fisionomia de futuro imperador, o uniforme da guarda e até mesmo o número de pessoas que acompanhavam o feito histórico. A realidade inspira, e não escraviza o pintor. Inspira‑o aquilo que ela encerra digno de ser oferecido à contemplação publica, mas não o escraviza o quanto encobre contrário aos desígnios da arte, os quais muitas vezes coincidem com os desígnios da história. E se o historiador afasta dos seus quadros todos os incidentes perturbadores da clareza das suas lições e da magnitude dos seus fins, com muito mais razão o faz o artista, que procede dominado pela ideia de impressão estética que deverá produzir no espectador. [...] Finalmente, comparando as tradições, as crônicas, as passagens históricas, 46 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I os ditos e presunções individuais, os testemunhos artísticos e as diferentes opiniões acerca do sucesso “que fez estremecerem de júbilo as margens do Ipiranga”, consegui compor a fraca obra que agora submeto ao benévolo juízo das pessoas ilustradas do meu país; certo de que, se não acertei, ao menos esforcei‑me por ser sincero reprodutor das faces essenciais do fato, sem esquecer totalmente as difíceis e severas lições da ciência do belo (MELO, 1888, apud OLIVEIRA; MATTOS, p. 96). O artista não deve se sentir escravizado pela realidade, tampouco se sentir obrigado a reproduzi‑la em sua totalidade. O próprio pintor afirma em seu texto: “Eis o fato histórico”. Morettin (2001) afirma que o pintor faz uma representação pictórica em sintonia com as correntes históricas da época, acreditando “na ideia ilusória de que é possível encontrar o fato bruto, cristalizado e sobre o qual já não incide nenhum questionamento”. Para Pedro Américo, é como se a tela fosse a ratificação da verdade dos fatos, confirmando que fora guiado pelos tradicionais princípios da pinturahistórica. Era preciso conhecer as estampas, os retratos literários de D. Pedro I, os costumes de uma época “cerimoniosa e brilhante”, afinal os uniformes da Guarda de Honra não poderiam ser representados de maneira modesta, como provavelmente o eram. Não há dúvidas de que sua intenção era construir uma excelsa imagem: um célebre feito de um nobre homem. “Sua intenção é construir uma imagem em concordância com a grandeza da ação do herói, afinal, a lógica de Independência ou Morte é a do feito glorioso: o momento em que o herói, levanta sua espada, em ato simbólico de rompimento dos laços que uniam o Brasil a Portugal” (OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 89). A figura de D. Pedro, ainda que um pouco deslocada para a esquerda, é o centro da cena: o momento célebre em que ergue sua espada e rompe simbolicamente os laços com Portugal. Os soldados que o acompanham acenam lenços e chapéus, repetem a cena e exaltam o feito; os cavalos se agitam em um frenesi heroico. Essa interação com seu séquito, com os soldados ou mesmo o caipira na parte inferior do quadro é o que conduz nosso olhar para a figura do imperador. Quase que interceptando o encontro dos semicírculos na base inferior do quadro, um pouco à esquerda, vemos um caipira, com seu carro de boi. Ele observa a cena e é a figura de delimitação do observador, tanto por sua posição, quanto por seu tamanho e proximidade. Através de seus olhos, voltados para D. Pedro, participamos do momento representado (OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 90). O caipira representa a todos nós, brasileiros, que acompanhamos a vida de perto, mas, ao mesmo tempo, distantes, afinal não tomamos parte da ação, apenas observamos o que se passa. Existe uma clara hierarquia nas posições, percebida através de uma diagonal: o caipira abaixo, o imperador acima. Pedro Américo destaca o caipira de forma simplória, tosca, sem nenhum brilho. Seu corpo roliço contrasta com “a elegância do imperador em seu régio uniforme. O artista não lhe reconhece nenhuma dignidade. E, como mero espectador, é forçado a virar o rosto para ver o nascimento do Brasil, cujo destino foi decidido por D. Pedro, o primeiro imperador do Brasil” (OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 89). 47 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM É nítida a evocação do mito do nascimento da nação: o brasileiro que apenas comtempla; passivo e impotente. D. Pedro, ao contrário, aparece como o grande estadista, responsável pela construção da nação, corajoso e que não se furta de enfrentar os desafios e talvez até se sacrificar. Há outras referências que devemos salientar. Enquanto todas as figuras parecem se movimentar, apenas D. Pedro se mostra rígido, o que naturalmente conduz nossos olhares a ele. Por isso, segundo Christo (2005), “se retirarmos D. Pedro, para quem todos olhariam?” Em outras obras, como Batalha do Avaí, é a ação que se destaca, e não a ação afirmativa do herói, como na obra de Pedro Américo. O autor ainda enfatiza: “o herói contemplativo é ‘engolido’ pela agitação que o circunda, porque a ênfase do artista recai sobre o caos, e não sobre o herói (CHRISTO, 2005). Independência ou Morte confirma a autoridade do primeiro imperador do Brasil, ainda que em sua atitude tão pomposa quanto artificial, não deixa dúvidas quanto à ação afirmativa do herói libertador que irá conduzir os destinos da nação. 4.1.2 Batalha dos Guararapes Figura 17 – Batalha dos Guararapes, V. Meirelles (1879) A obra de Vitor Meirelles, Batalha dos Guararapes, ilustra muito mais do que uma simples estampa de um feito histórico. Como em Independência ou Morte, a pintura histórica assumiu a responsabilidade de construir o orgulho nacional através de seus heróis e seus feitos memoráveis. O País ganhava um passado visual a partir do qual a ordem presente se justificaria. Não por acaso, intelectuais do século XIX se interessavam muito por esse tipo de pintura, como foi visto na Exposição Geral de Arte de 1879. Coli (2005, p. 83) narra: As Batalhas de Avaí e de Guararapes, pintadas por Pedro Américo e Vitor Meirelles são, no século passado, episódios maiores da História que o Brasil está criando para si próprio, instaurando visualmente, e participantes do grande mito de uma identidade nacional, heróica e consciente. A escolha dos 48 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I temas possui intenções evidentes: mito fundador; Guararapes opera uma síntese de raças na mesma luta e funda a primeira legitimação de um país que se descobre senhor de seus destinos políticos. O feito guerreiro é batismo de fogo desta solidariedade entre brasileiros, e a garantia de um sentimento inabalável. Avaí, por sua vez, instaura o heroísmo contemporâneo de uma nação que se confirma pela vitória. A obra, a despeito de evidenciar uma feroz batalha, pode ser vista de uma forma muito mais serena e clara do que se poderia supor. Para alguns críticos, inclusive, trata‑se de uma obra estática, bem diferente da agitação quase caótica da Batalha do Avaí, de Pedro Américo. Há uma composição vegetal no canto superior esquerdo que contrasta com um colorido suave e quase vazio do lado oposto. Na porção inferior da obra, os militares se dividem em dois grupos, que se apresentam em combate de forma límpida e organizada, efeito de luz e sombra, o que faz nosso olhar vagar pela cena como um todo. Ao fundo, ainda se observam o Cabo de Santo Agostinho e alguns esfumaçados soldados. Os personagens principais da obra são André Vidal de Negreiros e Pedro Keeweer, um coronel holandês, figuras de destaque que se apresentam diante do observador de forma impositiva, já que Victor Meirelles lança mão de uma técnica, no que diz respeito à disposição dos personagens por toda a obra: os brasileiros avançam da esquerda para a direita com seus corpos inclinados e que conduzem nossa percepção de forma quase inevitável. Nesse ponto, três outras figuras importantes também se evidenciam: Henrique Dias, com seu escudo levantado; João Fernandes Vieira em seu cavalo e com uma ameaçadora espada; e Antônio Dias Cardoso, sargento‑mor dos Infantes, que é a figura mais destacada e iluminada de toda a composição e avança impetuoso, com a espada abaixada, mas compondo uma linha diagonal que enfatiza seu movimento de ataque. Esse núcleo da cena converge para André Vidal de Negreiros: “figura monumentalizada ao modo de uma estátua equestre, está, como convém, numa posição mais alta do que todos os outros, no topo de um triângulo vasto, cujos ângulos da base são ocupados por Cardoso e Keeweer” (COLI, 2005). Aliás, este último cai de seu alvo cavalo, claramente um sinal da derrota inevitável dos holandeses, que ainda se aglomeram com suas lanças erguidas mais inúteis diantes de uma batalha perdida. Percebe‑se que no fundo o conflito não é exatamente entre dois exércitos, mas sim o enfrentamento de dois líderes, dividindo a cena em dois grupos em pleno estado de tensão: de um lado Negreiros e seu cavalo, que se levanta de forma impositiva e bloqueia o avanço dos adversários; já Keeweer, caído, cria um certo obstáculo, que se interpõe junto às lanças holandesas, que inutilmente parecem se levantar. Coli (2005) sugere um certo retesamento, que se solidifica de forma bastante clara em uma área vazia formada entre as duas montarias, demarcando o espaço de cada agente da ação, supondo uma virtual troca de olhares entre o vencedor e o vencido. Meirelles destaca em primeiro plano alguns soldados feridos e outros mortos, retomando uma tradição que já fora observada em obras do pintor Antoine‑Jean Gros (1771‑1835). As figuras estão inseridas em um pequeno triângulo, do qual se observa em uma extremidade a ponta da lança, que se completa com a mão do comandante no eixo da composição maior. Percebe‑se que é um arranjo plenamente estudado, para que o cavalo de Negreiros não ficasse encoberto. 49 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão: J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM À época, a obra foi bastante criticada por ser considerada “estática” demais, sobretudo quando comparada ao frenesi violento de Batalha do Avaí, feita por Pedro Américo em 1877. Victor Meirelles respondeu às críticas, um escrito de 1880, definindo sua concepção de movimento: O movimento resulta do contraste das figuras entre si e dos grupos entre uns e outros; desse contraste, nas atitudes e na variedade das expressões, assim também como nos efeitos bem calculados das massas de sombra e luz, pela perfeita inteligência da perspectiva que, graduando os planos, nos dá também a devida proporção entre as figuras e seus diferentes afastamentos, nasce a natureza do movimento, sob o aspecto do verossímil, e não com o cunho do delírio (FRANZ, 2007, p. 34). As palavras de Meirelles deixam claro que a visão de movimento que o artista tem é aquela que se constrói a partir de tensões isoladas e que se articulam de maneira calma e lenta, em que a noção de movimento surge quando as partes se articulam, diferentemente do efeito provocado por Pedro Américo em a Batalha do Avaí, obra em que se observa uma ilusão dinâmica. Desse modo, Meirelles se aproxima da tradição neoclássica, cujos expoentes, dentre eles o mestre David, eram incapazes de produzir qualquer tipo de ilusão, ainda que dinâmica. Estudos mais aprofundados sugerem que alguns traços foram deliberadamente alongados, como o pescoço do cavalo, por exemplo, para justamente criar esse efeito de movimento. O próprio autor fala em “contrastes”, “efeitos bem calculados”, “perfeita inteligência da perspectiva”, “devida proporção”, “graduando os planos”. Isso tudo sugere um meticuloso palnejamento, o que se comprova por uma série de estudos e esboços prévios – até que se chegasse ao brilhante resultado: nítido, claro e tremendamente direto, como nos brinda Coli (2005) em sua observação final sobre a obra, dizendo “não haver nenhum cunho de delírio”. Enfim, ressalta‑se que Meirelles também era notável colorista. Para ele, as cores cumprem um papel de grande destaque. Existem os contrastes, que não são tão fortes, mas ainda assim notam‑se claramente as oposições que ele produz. É como se as cores fossem criando o caminho que devemos percorrer para ler a obra. Há uma luminosidade que chama muito a atenção do observador, com transições bem sensíveis, vibrações discretas e suaves, compondo um resultado visual que muito nos remete à Primeira Missa, de Victor Meirelles (1860). 4.1.3 Tiradentes Esquartejado! Tiradentes Esquartejado surpreende por apresentar o herói aos pedaços. Embora renegado pela crítica brasileira, o quadro está em perfeita consonância com a pintura de história, assim como a sensibilidade do final do século XIX, por expor o herói fragilizado e explicitar a violência sobre o corpo (CHRISTO, 2005). 50 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Figura 18 – Tiradentes Esquartejado, P. Américo (1893) Certamente essa é uma das imagens mais icônicas de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. A partir da Proclamação da República (1889), iniciou‑se um esforço por parte do governo brasileiro – comandado pelos militares – para se criar um verdadeiro herói nacional, intenção essa reforçada pelo centenário de morte do próprio Tiradentes, em 1892. O artista Pedro Américo, então com 49 anos e já aposentado da Academia das Belas Artes do Rio de Janeiro e Deputado do Congresso Nacional pela Paraíba, dedica‑se, por contra própria, sem nenhuma encomenda prévia, à criação de uma série composta de cinco quadros – série essa que não foi completada – sobre a Inconfidência Mineira. Esses quadros seriam duramente criticados, pois propunham uma celebração inesperadamente crítica do movimento. Entretanto, o próprio Pedro Américo trataria de se defender em um artigo publicado no Rio de Janeiro pelo jornal Gazeta de Notícias, em julho de 1893: Em primeiro lugar, não é esta uma tela isolada entre as que encetei acerca da conjuração mineira, mas a última da série, trazida e exposta à consideração dos meus compatriotas, sem as mais relativas ao assunto, por circunstâncias independentes da minha vontade. No meio daquelas, não totalmente aperfeiçoadas e secas para triunfarem dos inconvenientes do transporte no momento em que os meus deveres de patriota me obrigaram a afastar‑me do santuário do trabalho artístico, ou antes como remate da série – na qual desde a cena idílica de Gonzaga a bordar a fio de ouro o vestido nupcial de sua Marília até a mais importante das reuniões dos conjurados, a cena da constatação de óbito, passada diante do cadáver de Cláudio Manuel da 51 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Costa, e a prisão de Tiradentes em uma casa da antiga rua dos Latoeiros, tudo foi minuciosamente estudado; como representação “pinturesca” do último período de um capítulo tão glorioso quanto cruel da história das nossas liberdades e dos nossos sofrimentos; digo, o trabalho que agora exponho, teria produzido no meio dos outros impressão diversa e por ventura menos terrível (AMÉRICO apud FRANZ, 2007, p. 91). Apesar de todo o drama envolvido na obra de Pedro Américo, não se percebe nenhum tipo de exaltação dedicada àquele que morreu; não se destaca uma morte virtuosa no cumprimento do dever físico, algo tão evidente como vimos anteriormente nas obras de Jacques‑Louis David. É uma representação quase realista de um corpo esquartejado, o que nos remete a uma interpretação cristã de um mártir violentamente assassinado. Há algumas semelhanças, nessa imagem de Tiradentes, com essa tradição religiosa: em primeiro lugar, a presença do braço pendente da Pietá de Michelângelo. Além disso, quando observamos a posição do corpo de Tiradentes no cadafalso, a referência seria a Deposição de Cristo, de Caravaggio. Então, podemos afirmar que, de algum modo, Pedro Américo despreza aquela ideia do herói que triunfa com sua morte gloriosa. Para alguns críticos, isso seria interpretado como uma tentativa do pintor de tirar de Tiradentes o protagonismo da Inconfidência Mineira. Contudo, efetivamente, não seria assim que a obra tornar‑se‑ia conhecida: a propaganda republicana faria exatamente o contrário, tratando o quadro como uma verdadeira prova de sacrifício de um brasileiro pobre, católico e republicano convicto. Figura 19 – Pietá, Michelangelo (1498‑1500) 52 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Figura 20 – Deposição de Cristo, Caravaggio (1603‑4) Christo (2005) destaca: [...] Mesmo almejando a transcendência inerente ao martírio cristão, é a imagem do cadáver esquartejado que permanece na memória. Entretanto, a série pensada inicialmente fornece maior coerência ao quadro. Ela é fundamental para desvendar o julgamento do artista a propósito da Conjuração Mineira: um movimento débil internamente, condenado ao fracasso antes mesmo de sua repressão. O corpo despedaçado, sem mais vontade própria, alvo da ação de outrem, seria não apenas a denúncia da violência, mas o ápice do sentimento de fracasso e solidão, presente em toda a série. Em carta endereçada ao Barão de Rio Branco, Pedro Américo sintetiza seu juízo sobre Tiradentes se referindo a ele como audaz e imprudente conspirador, cujo maior defeito foi ser ignorante das coisas e dos homens do seu tempo. Não é redundante frisar: Pedro Américo pintou o esquartejamento tão somente como parte de uma narrativa; não acreditando que tê‑lo‑ia feito se objetivasse inicialmente representar o herói em um único quadro. Após a tela de Pedro Américo, o esquartejamento de Tiradentes só foi concebido pelas artes plásticas, igualmente, no interior de uma narrativa, a exemplo dos trabalhos de Portinari e João Câmara. Pedro Américo expõe o herói como vítima, e seu corpo destroçado é representativo do que se fez com o sonho dosinconfidentes por um Brasil livre e republicano. A cena não é uma narrativa da execução em si, tampouco uma denúncia sobre a violenta dominação portuguesa. Fosse isso, o quadro inundaria nossos olhos com sangue e dor; ao contrário, apresenta‑nos um herói até certo ponto fragilizado, sem poder reagir, mas que tem ao seu lado um crucifixo, para que a ideia de um mártir cristão não se perca. 53 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM Como comparação, podemos nos lembrar de Marat Assassinado, de David: dois heróis, dois assassinatos e duas revoluções em curso, ainda que com finais bem diferentes. Lembrete Um século separa Tiradentes esquartejado de Marat assassinado (1793‑1893), e em ambas nota‑se a solidão dos heróis e as mesmas referências cristãs. O historiador britânico Hugh Honour avalia que a morte dentro do Neoclassicismo é o verdadeiro encontro com o sublime, mas sem nenhum apelo à questão religiosa. Sua visão está em sintonia com o pensamento iluminista do século XVIII, em que a razão deve sempre sobressair, mesmo na hora da morte. Se o Marat Assassinado enquadra‑se nessa análise, o mesmo não podemos dizer de Tiradentes Esquartejado: a inclinação de sua cabeça em direção a um céu luminoso – Marat está debaixo de uma enigmática e pesada mancha preta – e o crucifixo serenamente posto ao lado de suas partes são indícios evidentes dessa morte celestial, e não racional. Nota‑se que as partes de seu corpo estão cuidadosamente colocadas, e não jogadas de qualquer forma, como seria de se supor em se tratando de um criminoso condenado à morte. Embora essa obra seja parte importante do projeto republicano de construção do herói nacional, percebemos que são inúmeras as possibilidades e usos que podemos dar a ela. É exatamente esse o mérito e ao mesmo tempo o perigo que residem nesse tipo de interpretação imagética. Para terminar essa análise, mais uma brilhante citação de Christo (2005): Entre a beleza dos fragmentos escultóricos e o fascínio/repulsa do corpo aberto pela ciência ou pela arte; entre a afirmação da pintura histórica e seu enfraquecimento enquanto gênero, ao longo do século XIX, situa‑se com angustiante originalidade “Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo”. Que outro herói nacional político foi representado em grande tela aos pedaços? Exemplo de Aplicação Compare os quadros de David, A Morte de Sócrates e Marat Assassinado, com Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo. Reflita sobre semelhanças e diferenças. Procure outros personagens históricos que também foram exaustivamente referenciados e faça o mesmo tipo de análise iconográfica. 54 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Saiba mais Sobre a construção do mito Tiradentes, há duas obra de suma importância: CARVALHO, J. M. Tiradentes: um herói para a República. In: ___. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHRISTO, M. C. V. Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e “Tiradentes Esquartejado”. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de Campinas, 2005. Resumo Iniciamos nossos estudos fazendo uma breve retrospectiva iconográfica. Ressaltamos a importância que a imagem teve ao longo da História da humanidade e os conceitos daquilo que pode ou deve ser considerado arte. Começando pelas mais primitivas pinturas rupestres, passando pelas clássicas produções da Antiguidade, a religiosidade imagética medieval, a explosão criativa e racional do Renascimento até chegarmos ao ponto crucial da nossa unidade, que foi a pintura histórica do século XIX. Para compreendermos melhor o valor das imagens, discutimos a relação dessa produção imagética com a História e a maneira como os discursos históricos se utilizam dessas imagens para reforçar sua verdade. Também estudamos as diferentes correntes dentro da historiografia que tratam dessas questões. Vimos que o uso das imagens para o ensino da História se tornou mais recorrente a partir da manifestação da chamada História Nova – proposta pela Escola dos Anais, graças ao trabalho de Marc Ferro entre outros. Assim, é fundamental entendermos o contexto em que as imagens foram construídas, pois só desse modo é possível analisá‑las em todas as suas possibilidades, sobretudo na criação de um discurso favorável. É preciso que a imagem possua uma verdadeira prova, que não apenas ilustre o texto, mas que dê a ele genuina legitimidade. Segundo a visão positivista, é como se a imagem fosse o próprio testemunho da história exatamente como ela ocorreu. Compreendemos que as imagens enquanto representações podem adquirir sentidos e interpretações das mais variadas, e que esse aspecto deve sempre ser 55 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM considerado pelo professor. Por exemplo, no caso das obras de Jacques‑Louis David, observamos que o uso que se faz da imagem vai muito além das questões estéticas do estilo neoclássico, pois evidenciam uma verdadeira intenção panfletária dentro da propaganda revolucionária na França. Depois adentramos no terreno da pintura histórica brasileira do século XIX, com destaque para as obras de Pedro Américo – Independência ou Morte! e Tiradentes Esquartejado – e de Vitor Meirelles, com sua celebrada Batalha dos Guararapes. Essas pinturas tiveram notabilidade na composição da identidade nacional e foram amplamente empregadas pelos governos do Brasil República, inclusive para reviver a figura do herói nacional, como no caso de Tiradentes. Por outro lado, foi essencial percebemos que, embora essas obras possam ter sido utilizadas para um determinado fim, nem sempre o uso que se fez delas foi o mesmo. Então, cabe ao historiador não apenas atentar para essas questões, mas sempre estimular o pensamento crítico quando da leitura e interpretação de quaisquer imagens, sobretudo aquelas carregadas de amplo sentido histórico. Exercícios Questão 1. Leia o trecho do texto Imagem e Técnica, de Maria Teresa Cruz. Para Platão, a verdade do mundo está contida nas ideias, por isso todos os fenômenos são sensíveis. E todo o mundo visível não é senão imagem, reflexo. O que essa economia metafísica nos diz é o inverso: não diz que tudo o que é imagem é visível, mas que tudo aquilo que é visível é imagem – o fato de ser imagem caracteriza o que é visível. De certa forma, é uma ideia estranha a de haver uma onipresença estranha da imagem vinda dos gregos, de tudo o que se vê ser imagem. É um todo que está a ser definido como imagem pelos pós‑ socráticos: “tudo aquilo que aqui vês é imagem”. Isso significa que tudo o que se vê, o mundo todo, tudo aquilo que nos rodeia, é um duplo, um desdobramento, reflexo de qualquer coisa, ou seja, é uma enorme fantasmagoria, daí que essa frase, entendida em todo o seu sentido, seja algo aterrador, como o cenário alegórico que Platão criou para explicar esse processo. É a noção de imagem que serve para definir o visível para os gregos, e não o oposto. Como entidades visíveis, são cópias, reproduções. Também não é por acaso que a metáfora das sombras e do reflexo é uma das primeiras que irrompe para narrar essa duplicidade inerente ao conceito de eikon, e não a de cópia ou duplo, que só aparece posteriormente, com um âmbito mais compreensível, muito menos aterrador, e implica uma raiz comum, como a de um artesão que as fabricou à imagem de qualquer coisa, articulando‑se com a noção de artefato. Por isso os artesãos e artistas estarem envolvidos em toda essa questão. 56 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I Hoje, ícone é sinônimo de (quase sempre invocado para dizer) cópia ou reprodução. Pensar ícone sem fazer articulação com a capacidade de o homem produzir artefatos, de fabricação, é muito mais incomodativo. Para os gregos, o exemplo primeirode uma imagem é o de reflexo ou sombra, isto é, sem nenhuma interferência do homem, o mundo é ele próprio um desdobramento, um fantasma. Em virtude disso é que é compreensível o espanto do primeiro homem a ver a sua imagem refletida na água. A primeira experiência de uma imagem é a do reflexo ou da sombra (não da pintura, daí ela ter mesmo alimentado durante muito tempo uma reflexão em si, uma narrativa mítica da sua história, acerca da sua origem, como sombra, como através do mito de Plínio). Leia as seguintes afirmativas: I – Para Platão, tudo que é visível é imagem, portanto, tudo que é imagem não é visível. II – Para Platão, a verdade do mundo está nas ideias e o mundo visível é imagem. III – Para Platão, tudo o que nos rodeia é um duplo, desdobramento, reflexo de qualquer coisa, ou seja, o visível serve para definir a noção de imagem. Está correto o que se destaca na(s) alternativa(s): A) Todas as afirmativas são corretas. B) Apenas I e III são corretas. C) Apenas I e II são corretas. D) Apenas II é correta. E) Apenas III é correta. Resposta correta: alternativa D. Análise das afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: a economia metafísica, de acordo com o texto, diz que tudo aquilo que é visível é imagem. II – Afirmativa correta. Justificativa: a visão platônica aponta para o fato de a verdade do mundo estar contida nas ideias, portanto, todo o mundo visível é imagem. 57 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 HISTÓRIA E IMAGEM III – Afirmativa incorreta. Justificativa: para os gregos, contrariando o que diz a afirmativa, é a noção de imagem que serve para definir o visível. Questão 2. Leia o texto e analise as imagens a seguir. Jacques‑Louis David, discípulo de Vien (diretor da Academia), aperfeiçoou a sua linguagem clássica durante uma prolongada estadia em Roma, entre 1774 e 1780. De volta à França, o pintor estabeleceu fortes ligações com os líderes políticos da Revolução Francesa, o que lhe permitiu assumir um papel de relevo sobre a produção artística nesse país. Revolucionário não só no nível político, mas também enquanto artista, David assinala, através de uma suas obras pioneiras, O Juramento dos Horácios (1784), o fim do estilo rococó (representado por Fragonard) e a ascensão da estética neoclássica. O quadro A Morte de Marat representa um acontecimento emblemático da Revolução Francesa (o assassinato de um dos seus chefes políticos), denunciando em simultâneo as divergências e os conflitos internos que rodearam o processo revolucionário e que só foram solucionadas com a ascensão de Napoleão Bonaparte. Jean‑Paul Marat, amigo de David, tinha uma doença de pele especialmente dolorosa que o obrigava a permanecer dentro de uma banheira durante o dia enquanto trabalhava. Um dia, Charlotte Corday entrou no aposento, tendo como pretexto a entrega de uma mensagem e assassinou‑o, cravando‑lhe uma faca no peito. Para David, esse quadro foi concebido como um monumento para um homem que foi simultaneamente herói, mártir e amigo. Embora dominada por uma forte emotividade, a obra deve também ser entendida a partir de um ponto de vista documental, enquanto testemunho e descrição da ação. Como em muitos outros trabalhos iniciais, todos os objetos presentes na tela têm uma função concreta, tendo sido evitado qualquer detalhe ou alusão supérflua de forma a não prejudicar a clareza do tema. Então, a composição é francamente encenada, de modo a incluir todos os sinais e pistas para uma identificação e compreensão do acontecimento: a banheira, a faca, a carta, a ferida e o sangue. À simplicidade e estaticidade da composição, dominada por fundo escuro liso que encerra a imagem, contrapõe‑se o expressivo e vital tratamento da luz e da cor que revelam uma direta inspiração em algumas experiências pictóricas de temática religiosa dos pintores barrocos Caravaggio, Pietro da Cortona, Ribera e Zurbarán, pelos quais David nutria uma especial admiração. Uma fonte luminosa rasante ilumina a figura a partir de um ponto alto, criando uma atmosfera mística acentuada pela vibração cromática do fundo. A utilização de tons frios e tendencialmente escuros permitiu realçar alguns pormenores do corpo morto, recorrendo a sutis e simbólicas manchas avermelhadas, contribuindo igualmente para destacar a caixa de madeira onde David inscreveu a sua dedicatória. Veja as imagens a seguir e assinale a alternativa correta. 58 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 3 0/ 05 /1 6 Unidade I I – II – III – IV – Com base nas descrições apresentadas no texto, assinale apenas a alternativa que contém as imagens que representam versões da obra A Morte de Marat, de Jacques‑Louis David. A) I, II e IV. B) II e III. C) Todas as imagens são versões de A Morte de Marat. D) II e IV. E) I, II e III. Resposta desta questão na plataforma.