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TEXTO BÁSICO DA UNIDADE 1 OS EVANGELHOS SINÓTICOS 1. Definição Os primeiros três evangelhos, em conjunto, recebem o nome de sinóticos. Esta palavra, sinóticos, é de derivação grega (sun-optikos) e pode ser definida como “visto juntamente” ou “visto do mesmo ponto de vista”. Aplica-se aos evangelhos Marcos, Mateus e Lucas pelo fato deles seguirem o mesmo plano geral para a narrativa da vida de Jesus. Nenhum dos três, no entanto, pretende contar a história completa da vida do Mestre, não sendo biografias propriamente ditas. Marcos trata quase exclusivamente do ministério, enquanto Mateus e Lucas acrescentam alguns dados sobre o nascimento e a infância de Jesus como matéria introdutória. O quarto evangelho, João, deve ser discutido separadamente, pois a sua narrativa não corre parelha com a dos sinóticos, senão em diminuta proporção. Consiste, em grande parte, de matéria ignorada, ou talvez, para melhor dizer, omitida por Marcos, Mateus e Lucas. 2. O Problema Sinótico O que os investigadores das origens evangélicas chamam de “problema sinótico” surge da aparente relação de interdependência desses três evangelhos quando sujeitos a um estudo comparativo, pois apresentam muitas semelhanças e não poucas diferenças que pedem explicação. Ao processar-se a comparação surgem certas perguntas que merecem uma cuidadosa resposta, antes que se dê por segura qualquer conclusão no tocante ao problema. Algumas delas são as seguintes: Qual é a explicação de tantas diferenças? E, sendo tão diferentes, como é que em outras partes apresentam tantas semelhanças, como por exemplo no caso de usarem as mesmas palavras em muitos lugares? Qual destes três evangelhos é o mais antigo? Os autores dos outros dois conheciam o primeiro, quando escreveram os seus próprios? O último a escrever conhecia as outras duas obras? Se conhecia, por que insistiu em escrever outro? Um ou mais deles copiaram exatamente do outro ou dos outros? Teriam os autores utilizado também outros documentos escritos além dos evangelhos que já conhecemos? Naturalmente as questões de data e de identidade dos autores também são de grande importância e interesse para os estudiosos. Estas são algumas das perguntas que um estudante cuidadoso dos evangelhos deseja ver respondidas e, bem assim, saber em que se baseiam as respostas. 3. Os Autores Seguem algumas palavras a respeito da autoria dos três evangelhos sinóticos, na ordem em que se presume que foram escritos, ainda que a questão da data seja discutida mais adiante. 3.1. Marcos A tradição tem atribuído a João Marcos a autoria do segundo evangelho do Cânon Cristão, bem como tem destacado que ele era auxiliar do apóstolo Pedro. Pápias, em cerca de 130 d.C., citou o testemunho de alguém relacionado com o círculo apostólico que declarava que Marcos, tendo-se tornado o intérprete de Pedro, escreveu o seu evangelho baseado nas pregações desse apóstolo, o que fez com todo o cuidado, mas sem se preocupar com a cronologia dos fatos, pois ele próprio não havia ouvido Jesus nem o acompanhara. Não há razão para se duvidar que isso represente mais ou menos a verdade no caso. Marcos não menciona o próprio nome no seu evangelho, nem sequer como autor do mesmo, embora alguns defendam que exista uma possível referência a ele em Marcos 14.50-52, episódio da prisão de Jesus, quando todos os discípulos o abandonaram. O texto diz o seguinte: “Então todos o deixaram e fugiram. Certo jovem o seguia envolto em um lençol sobre o corpo; e o agarraram. Mas ele, largando o lençol, fugiu despido”. Sabemos de Atos 12.123 que Marcos era filho de Maria, em cuja casa estavam os discípulos orando por Pedro, quando este foi milagrosamente liberto da prisão em que se encontrava. Ele também era parente de Barnabé, e companheiro deste e de Paulo na primeira viagem missionária. Se Marcos foi de fato companheiro e intérprete de Pedro, isso explicaria muitos dos indícios de testemunho ocular que se encontram na sua obra, pois tantas vezes ouvira o apóstolo contar a história do ministério terreno do Salvador que era como se ele mesmo tivesse presenciado os acontecimentos que relatava. Um dos indícios de testemunho ocular, por exemplo, encontra-se em Marcos 6.39, onde é destacado que a grama onde o povo se assentou era verde. Veja o que diz o texto: “Então lhes ordenou que fizessem todos se assentar em grupos sobre a grama verde”. Este pormenor, destacando que a grama estava verde, revela em que estação do ano Jesus realizou o milagre da multiplicação de pães que alimentou mais de cinco mil pessoas e é importante para calcular o tempo do ministério do Mestre. 3.2. Mateus Aqui surge uma dificuldade. A tradição liga o nome de Mateus com o primeiro evangelho, mas declara que Mateus escrevera em hebraico (isto é, aramaico) e que cada um o interpretava como podia. Um estudo comparativo revela que o evangelho grego chamado de Mateus tem uma relação de dependência para com o Evangelho de Marcos, pois muitas vezes repete verbalmente a linguagem deste. Houve quem alegasse que foi Marcos quem lançou mão não só de Mateus como também de Lucas, mas esta teoria não merece mais a confiança dos críticos abalizados. Os princípios de criticismo literário quando aplicados à comparação dos três evangelhos sinóticos, mostram claramente que Lucas e o autor de Mateus (em grego) usaram o Evangelho de Marcos, ou uma fonte escrita anterior a este e muito semelhante. A maior vivacidade da narrativa de Marcos é uma das provas. Outra é que quando nas passagens quase idênticas Mateus e Lucas divergem da linguagem de Marcos, geralmente o fazem a propósito de melhoramento literário, para suavizar as expressões, ou para resumir pela omissão de pormenores. Se, pois, Mateus, como o temos 3 Veja o que o texto diz: “Depois de refletir nessas coisas, dirigiu-se à casa de Maria, mãe de João, também chamado Marcos, onde muitas pessoas estavam reunidas e oravam”. agora, usou de Marcos como uma das suas fontes, como explicar o fato da tradição afirmar que Mateus, o apóstolo, escreveu em aramaico? E se fosse Mateus, testemunha ocular que era, autor do evangelho em grego que traz o seu nome, por que teria usado o documento de Marcos que não era testemunha ocular? A conclusão mais ou menos satisfatória a que os pesquisadores têm chegado teve que satisfazer estas indagações. Pápias, na sua referência ao documento aramaico de Mateus o chama de “logia”, isto é, “oráculos” ou “ditos” de Jesus. Com efeito, se Mateus tomou notas sobre os discursos de Jesus em aramaico ou os assentou de memória mais tarde, este documento seria de inestimável valor para qualquer pessoa que quisesse escrever a vida de Cristo. Seria muito natural que alguém traduzisse o mesmo para o grego e é possível que o próprio Mateus o tenha feito. Quando o autor do atual, Evangelho de Mateus se preparou para escrever, ajuntou os documentos que pode encontrar e que julgava fidedignos, como o Evangelho de Marcos, a “logia” de Mateus, e outros, à semelhança do que Lucas declara que ele próprio fez. Depois de estudá-los cuidadosamente e de definir o plano que queria seguir, e de acordo com o seu propósito em escrever, elaborou o livro maravilhoso e divinamente inspirado que hoje conhecemos como obra de Mateus. Este nome se justifica por ser a obra baseada, na parte que trata dos ensinos de Jesus, na “logia”, ou seja, os discursos do Mestre escritos pelo apóstolo. Segundo os costumes literários da época, isso seria razão bastante para chamá-lo “Evangelho segundo Mateus”. 3.3. Lucas O erudito A. T. Robertson, na sua introdução ao comentário sobre Lucas em “Word Pictures in the New Testament”, apresenta de forma resumida o argumento pela autoria de Lucas para o evangelho que traz o nome deste. Os passos no argumento são os seguintes: Em primeiro lugar, o evangelho e o livro de Atos têm o mesmo autor, como se vê pela comparação das palavrasintrodutórias dos dois, e pelo estilo literário de um e outro. O segundo passo é o fato bem patente que o autor de Atos era um dos companheiros de Paulo. Isso se conclui do emprego da primeira pessoa do plural de verbos em diversas partes desse livro. Robertson cita várias obras de Harnack em que este argumento é elaborado pormenorizadamente. Em terceiro lugar, este companheiro de Paulo era médico, como se verifica do seu emprego de vocábulos próprios a essa profissão. O médico dentre os companheiros de Paulo era Lucas, conforme se vê em Colossenses 4.14, que diz: “Lucas, o médico amado, e Demas vos cumprimentam”. Afinal, todos os manuscritos gregos deste Evangelho o atribuem a Lucas, enquanto a tradição eclesiástica é unânime no mesmo sentido. Plummer acha tão certa a autoria de Lucas para o terceiro evangelho quanto a autoria de Paulo para 1 e 2 Coríntios, Gálatas e Romanos. Até Rénan admitia não haver forte razão para não acreditar fosse Lucas o autor deste evangelho. 4. A Interdependência dos Sinóticos Já se fez menção disto na discussão da autoria de Mateus, mas é um ponto digno de maior estudo. Uma comparação dos três revela que praticamente todo o de Marcos foi incluído em Mateus, ou em Lucas, ou mesmo nos dois. A parte não usada por eles é calculada entre trinta e quarenta versículos apenas. Lucas na sua introdução diz que muitos tinham “empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos” do evangelho. Declara ainda que estes fatos haviam sido transmitidos pelos “que foram deles testemunhas oculares desde o princípio.” Mas continua que lhe pareceu bem escrever “uma narração em ordem”, a fim de que Teófilo conhecesse a verdade das coisas em que fora instruído. Estas palavras de Lucas nos dizem muito do estudo que ele fez do assunto antes de começar a escrever; do seu profundo interesse nos fatos de que tratava; dos seus hábitos literários e cuidados de historiador de responsabilidade. Aqui ele não somente afirma ter usado, como fontes de informação, as narrativas que já existiam em forma escrita; ainda sugere e implica que usou todas as fontes de tradição oral ao seu alcance. É certo que o Evangelho de Marcos estava entre as muitas narrativas que examinou e é provável que tenha usado a “logia” de Mateus, embora não haja tanta certeza aí. Fora da matéria comum aos três ainda há uns duzentos versículos que são comuns a Lucas e Mateus. A opinião dos estudiosos varia quanto ao grau de dependência de um documento comum para esta parte da matéria de Mateus e Lucas; diverge também quanto a ser este documento a tal “logia” unicamente, ou mais de um documento. É inegável, todavia, que, embora tivessem um ou mais documentos em comum, havia ainda outros inteiramente independentes. Prova disto se encontra nos capítulos 1 e 2 destes evangelhos; na diferença entre as genealogias; e ainda na matéria peculiar a Lucas compreendida nos textos de 10.1- 18.14 e que abrange o ministério ulterior de Jesus na Judéia e na Peréia. Além disso, o sermão da montanha é bem mais extenso em Mateus do que em Lucas. Diante do exposto, surgem naturalmente algumas interrogações. Uma delas é como explicar o desaparecimento da “logia” de Mateus, se de fato existiu. A resposta é que sendo transferida praticamente na sua inteireza para os Evangelhos de Mateus e Lucas, aquela se tornou desnecessária. Mas, alguém pode perguntar: Se isso se deu com a “logia”, como não aconteceu o mesmo com o Evangelho de Marcos, uma vez que se encontra quase completo nos outros dois sinóticos? Respondemos que a “logia” era principal, senão inteiramente, composta de doutrinas (ensinos), e em vez de perder ganharia força com o ser colocada no seu ambiente próprio dentro da narrativa do ministério de Jesus. O Evangelho de Marcos, pelo contrário, é principalmente narrativa, escrito com um propósito definido, em estilo vigoroso e cheio de características próprias. Não é tão polido como os outros dois, mas por isso mesmo, e porque se preocupa mais com os feitos de Jesus, demorando pouco sobre os discursos, a impressão criada pela leitura é bem diferente. Isto basta, humanamente falando, para justificar a sua sobrevivência e a sua inclusão no cânon, sendo como era, embora por meio indireto, a história do ministério de Jesus pela boca do seu impetuoso apóstolo, Simão Pedro. Afinal, apesar de qualquer grau de semelhança ou de interdependência, as diferenças é que estabelecem os evangelistas como testemunhas independentes quanto à vida e às obras de Jesus. O fato de todos testemunharem das mesmas realidades garante de modo geral concordância do seu testemunho. A sua variedade na apresentação dos pormenores, e mesmo sua escolha da matéria diversa apresentada, nos interessa tanto quando o fazem as semelhanças. Se os três nos dissessem a mesma coisa do princípio ao fim, não os tomaríamos por testemunhas independentes nem por um instante. Bastava-nos um só deles, pois seria bem evidente que dois eram cópias mais ou menos exatas do terceiro, ou que todos os três haviam lançado mão das mesmas fontes. Damos graças a Deus pelas diferenças mesmo quando, devido aos nossos poucos recursos, não nos é possível harmonizá-las inteiramente. A maior parte das diferenças que existem é perfeitamente explicável, se tomarmos em consideração os diferentes pontos de vista dos evangelistas, a variedade de leitores para os quais escreviam, e ainda o fato que as fontes de evidência por eles consultadas, fossem orais ou escritas, não eram de todo idênticas. Não queremos, de maneira alguma, desprezar o fator divino, aquele “Espírito da Verdade” que movia os respectivos escritores. Com certeza eles foram inspirados e isto seria bastante para explicar a sobrevivência dos três evangelhos sinóticos. Marcos foi inspirado a escrever a impressionante história de Jesus, o maravilhoso, que tantas vezes ouvira Pedro contar. Era o homem talhado para levar aos súditos e aos cidadãos do Império Romano uma justa compreensão do poder e da autoridade de Jesus, o divino Filho de Deus. A Mateus, porém, o Espírito Santo escolheu para empregar os seus dotes em registrar os discursos do Mestre em língua aramaica para que servissem mais tarde de fonte preciosa aos que, como Lucas, e o autor do Evangelho segundo Mateus, em língua grega, empreendessem a gloriosa tarefa de escrever uma narrativa coordenada tanto dos feitos como dos ensinos de Jesus. O Evangelho de Mateus, baseado nesse documento aramaico, era dirigido principalmente ao povo israelita e apresenta Jesus como o Messias prometido pelos profetas e cita as escrituras do Antigo Testamento noventa e tantas vezes. Ainda o Espírito de Deus levou Lucas, o médico amado, quando da sua viagem à Palestina com Paulo, a colecionar todo o material já escrito que pudesse encontrar sobre a vida de Jesus, e a consultar as testemunhas oculares que ainda viviam e, assim, escrever o evangelho segundo seu ponto de vista, para que Teófilo e o mundo conhecessem “a verdade das coisas”. 5. A Data de Cada um dos Evangelhos Sinóticos É mais fácil tratar dos três em conjunto. Torna-se patente, logo de início, que Marcos foi usado pelos outros, forçosamente os precedeu, mas porque espaço de tempo o fez é indagação que não se responde facilmente. Quanto a Lucas, temos certeza que foi escrito antes de Atos dos Apóstolos. Robertson concorda com Harnack em atribuir a Atos a data de 63, no máximo. Assim Lucas teria escrito Atos em Roma enquanto Paulo, ali preso, esperava a solução do seu caso pelo imperador. É possível que tenha escrito o seu Evangelho também em Roma. Parece mais provável que o tenha feito quando em Cesaréia, antes da viagem para Roma. Podia ter consultado ali algumas das “testemunhas oculares”, ou tê-las visitado em outras partes da Palestina, no seu afã de colecionar material. Ramsay sugere a possibilidade de Lucas ter-se encontrado com alguém do círculo íntimo da família de Jesus. Em todo caso, a sua narrativa da anunciação e do nascimentoé feita do ponto de vista de Maria. Afinal concluímos que este evangelho foi escrito em 60 ou antes e, se isto é verdade, então o de Marcos devia tê-lo precedido por tempo suficiente para ser divulgado e assim chegar ao conhecimento e às mãos de Lucas antes dele começar a escrever. Robertson acha que a data seria então não muito depois de 50 d.C. e possivelmente nesse ano, mas sempre antes de 60. Quanto à data de Mateus, já vimos que segue a Marcos, mas não há meio de sabermos exatamente quantos anos depois. Diríamos, ainda com o apoio de Robertson, que o ano 60 não estaria longe da verdade. 6. As Características Particulares de Cada um dos Evangelhos Sinóticos As características principais de cada um dos sinóticos serão apresentadas nas próximas linhas, de forma bem reduzida. A ordem será a que entendemos ser a cronológica. Ou seja, Marcos, Mateus e Lucas. 6.1. Marcos Dos três, Marcos é o menos literário. A linguagem que ele emprega é a do uso comum e tem por finalidade simplesmente reproduzir o que o autor sabia de Jesus, mormente do seu ministério, e isso sem qualquer esforço para efeito literário. Não obstante a sua linguagem, por vezes um tanto rude, e certa tendência para o pleonasmo, o seu estilo é vigoroso e cativante. A própria redundância muitas vezes torna a narrativa mais viva. O uso de pormenores na descrição ajuda o leitor a reconstruir na imaginação as cenas que se descrevem. A preferência de Marcos pelas orações diretas faz com que os protagonistas dessas cenas se movam diante dos olhos e falem para os ouvidos dos que leem este evangelho. Está salpicado de perguntas e exclamações de surpresa ou de indignação. Com efeito, Marcos sabia contar uma história. Dos três evangelhos, é este o que mais cativa a imaginação das crianças quando elas o ouvem ler com o devido cuidado e expressão. 6.2. Mateus Como vimos, Mateus dá mais atenção do que Marcos aos ensinos do Mestre. A ordem em que ele dispõe o seu material revela um fim didático, pois o reúne por tópicos; estes por sua vez se relacionam ao tema geral do seu evangelho, a saber: “O Rei Messiânico e o seu Reino”. Começa com a genealogia real e termina com a declaração do Rei, já vencedor sobre a morte, de que possui toda a autoridade no céu e na terra, pelo que ordena aos seus súditos a conquista do mundo para o seu reino. Entre estes dois pontos o escritor se preocupa em apresentar as realizações e os ensinos de Jesus que provam ser ele o Rei Messias profetizado no Antigo Testamento, e que revelam a natureza do reino dos céus. É lógica a sua colocação no princípio do Novo Testamento por causa da sua relação com o Antigo Testamento embora não fosse o primeiro a ser escrito. O grego de Mateus é melhor do que o de Marcos, apresentando poucas peculiaridades, como por exemplo o frequente emprego do advérbio “então”. 6.3. Lucas Sobre o caráter deste livro citaremos as palavras de um dos seus melhores intérpretes, o erudito A. T. Robertson: “Aqui há, indiscutivelmente, encanto literário. É um livro que somente um homem de cultura e de gênio literário genuínos poderia escrever. Tem a mesma graça da simplicidade que possuem Marcos e Mateus e mais uma qualidade indefinível não encontrada neles, maravilhosos embora sejam. Há um acabamento delicado quanto às minúcias e uma proporção entre as suas partes que o dotam de equilíbrio e precisão, característicos estes que resultam de um conhecimento profundo do assunto; e é isso, segundo James Stalker, o elemento principal de um bom estilo. Lucas, o médico de espírito científico, este homem das escolas, gentio convertido, amigo devotado de Paulo, aproxima-se da vida de Cristo com um intelecto disciplinado, com o método de pesquisa de historiador, com o poder de discriminação e de diagnóstico próprio ao médico, com atrativos de estilo todo seu, e acompanhado tudo isso de reverência e de lealdade para com a pessoa de Jesus Cristo como o seu Senhor e Salvador. Não dispensaríamos, de certo, nenhum dos quatro evangelhos. Eles se suplementam de modo maravilhoso. O de João é o maior livro do mundo, alcançando as mais sublimes alturas. Entretanto, se tivéssemos apenas o Evangelho de Lucas, mesmo assim teríamos um retrato adequado de Jesus Cristo como Filho de Deus e Filho do Homem. Se é que Marcos escreveu para os Romanos e Mateus para os judeus, Lucas por sua vez visava o mundo gentio. Ele manifesta compaixão pelos pobres e pelas classes desprezadas. É ele que tão bem compreende as mulheres e as crianças, de modo que o seu é o evangelho universal da humanidade em todas as suas fases e condições. Tem sido caracterizado como o evangelho da mulher, o evangelho da infância, o evangelho da oração e do louvor. É em Lucas que temos os primeiros hinos cristãos. É com ele que alcançamos umas ligeiras vistas da infância de Jesus, pelas quais temos razão de ser gratos. Lucas foi amigo e companheiro de Paulo e emprega algumas expressões no evangelho que parecem com a linguagem paulina nas epístolas, mas isto não dá margem para alguém dizer que haja propaganda a favor da Paulo neste evangelho. Moffatt refuta cabalmente semelhante acusação. O prólogo foi escrito em koinê literário e merece comparação com os melhores escritores gregos e latinos. O seu estilo apresenta uma variedade agradável, e não raro é colorido pela fonte donde tira as informações. Era leitor assíduo da Septuaginta, tradução grega da Bíblia Hebraica, como revelam certos hebraísmos conservados nas suas citações. Ramsay, baseando-se no evangelho e em Atos, ousa declarar que Lucas foi o melhor de todos os historiadores, inclusive Tucídides. Foi a obra de Ramsay que tanto fez para restaurar Lucas ao seu lugar merecido na estima dos pesquisadores modernos. Certos críticos alemães tinham por costume citar Lucas 2.1-7 como o trecho que mais apresentava erros históricos dentre todos os escritos de historiadores, levada em conta a sua extensão. A história de como os papiros e as inscrições tem corroborado com Lucas item por item, encontra-se bem elaborada nos vários livros de Ramsay, mormente no “The Bearing of Recent Discovery on the Trustworthiness of the New Testament”. Os pontos salientes da prova se encontram em “Luke the Historian in the Light of Research” (A.T.R.). “Tantos casos, em que outrora Lucas se achava só, já foram comprovados pelas descobertas recentes que, quem duvida agora das suas declarações, está na obrigação de prová-las insubsistentes” (Citado e traduzido de ‘Word Pictures in the New Testament’, tomo II, sobre Lucas, pp. XIII a XV da introdução). Segundo a tradição, Lucas era pintor. Não se sabe se há verdade nisto. O que é certo é que nos deixou quadros bem vivos dos incidentes na vida de Jesus relatados no seu evangelho. Uma das histórias mais lindas contadas em toda a literatura é a parábola do filho pródigo. Outra é o relato do encontro dos dois discípulos com o Cristo ressurreto no caminho de Emaús.
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