Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Apresentação Estêvão Azevedo, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2014 com o livro Tempo de espalhar pedras Salvo terraplanistas, ninguém duvida de que chegar até a Lua foi das mais admiráveis façanhas da humanidade. Havia o risco de morte, se algum dos cálculos ou dos equipamentos falhasse. Porém, em meados do século XX, dotados de tecnologia avançada, os corajosos desbravadores já eram capazes de antecipar o que poderiam encontrar nos áridos terrenos de nosso satélite natural. Certamente nenhum alienígena de pistola laser em punho, como os do cinema ou da literatura. Coisa bem distinta é avançar rumo ao completo desconhecido, a locais jamais vislumbrados e nos quais de fato podem habitar feras ou canibais, míticos ou reais. É por isso que poucas aventuras humanas fascinam tanto quanto a dos grandes descobrimentos, capitaneados por portugueses e espanhóis nos séculos XV e XVI. É ao coração desse período que o jornalista Júlio Moredo nos transporta em seu romance de estreia. Narrado pelo degredado trasmontano Cosme Pessoa Fernandes, de apelido O bacharel, O apátrida nos convida a conhecer na intimidade desde os nobres salões lisboetas onde a façanha ultramarina foi gestada até as distantes ocupações pioneiras no território em que seria constituído o Brasil, então dominado por carijós, tupiniquins, guaranis e outros povos indígenas. A mistura engenhosa de excelente pesquisa e fértil imaginação resulta numa prosa ao mesmo tempo elaborada e fluida, de ritmo vertiginoso, na qual convivem, para deleite do leitor, intriga palaciana, desventura amorosa e a inigualável aventura que era atravessar o Atlântico, passando pela costa da África, rumo à povoação do continente recém-descoberto. Coordenação geral Mary Lou Paris Prearação de texto Adriane Piscitelli Revisão Lila Zanetti Projeto gráfico e capa Antonio Kehl CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M835a Moredo, Júlio, 1991- O apátrida [recurso eletrônico] : a saga de um degredado no Novo Mundo / Júlio Moredo ; [coordenação Mary Lou Paris]. - 1. ed. - São Paulo : Terceiro Nome, 2020. recurso digital ; 1 MB Formato: ebook Requisitos do sistema: conteúdo autoexecutável Modo de acesso: world wide web Textos de orelha e contracapa assinados ISBN 978-65-87618-04-3 (recurso eletrônico) 1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Paris, Mary Lou. II. Título. 20-65661 CDD: 869.3 CDU: 82-31(81) Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135 Copyright © Júlio Moredo 2020 Todos os direitos desta edição reservados a EDITORA TERCEIRO NOME Rua Professor Laerte Ramos de Carvalho, 159 01325-030 – São Paulo, SP (Brasil) www.terceironome.com.br fone: (11) 32938150 http://www.terceironome.com.br/ Eu não sei prá onde a gente vai Andando pelo mundo Eu não sei prá onde o mundo vai Nesse breu vou sem rumo (...) Vanessa da Mata in “Onde ir”, Álbum Vanessa da Mata,Sony-Brasil, 2002 Sumário I. Meu regaço trasmontano II. Erudição no claustro III. De Coimbra a Lisboa IV. A capital da ganância V. Labuta e masmorra VI. Encontrar e perder VII. Julgado ao mar VIII. A aparição de Madonna IX. A travessia X. São Tomé XI. Mare clausum XII. Pioneiro apagado XIII. Chegança XIV. Mutu-pá-pá-bá, Cari acaba XV. Maratayama XVI. Adentrando ao prenúncio XVII. Um encontro inesperado XVIII. O porto do desgarrar XIX. Trovões de fado XX. Entrincheirar-me em Icapara XXI. Armageddon Tupã Epílogo: A partida de Caniné N I. Meu regaço trasmontano asci numa noite primaveril do ano de Nosso Senhor de 1474 na vila raiana de Miranda. Chamo-me Cosme Pessoa Fernandes, mas entre as autoridades penais de meu país e companheiros de prisão duma isolada ilha etíope na Guiné fui cognominado como “O Bacharel”, talvez por ter estudado em Castela e por ter atuado como ouvidor em Lisboa, nunca o saberei. Cá vivo agora em outras terras, outros oceanos, com outras gentes e pássaros. Isso, porém, é outra história, me escusem os leitores destas confusas memórias de um velho que viveu em sua vida muito mais do que lhe aprazia. Varão do orgulhoso clã dos Fernandes, tinha eu meus catorze anos, já à caça de linces e raposas no vale do Douro, quando soube novas por meu pai que o tal genovês dispensado, segundo ele, anos antes por nosso rei d. João II, havia chegado às Índias antes de nossos paisanos. Pelo oeste! Papá dizia ser lorota dos reis de Castela. Eu tendia a crer nele, homem patriota que apoiou, com nossa modesta força viscondal, o sereníssimo Príncipe Perfeito d. João contra aqueles bastardos dos Bragança. Esta família era nossa vizinha feudal há séculos e usurpadora da gloriosa casa de Avis desde que meu bisavô Sancho Fernandes ajudou d. Nuno Álvares e nosso futuro rei d. João I a pelejar contra os castelhanos em Aljubarrota, com eles apoiando os inimigos da independência da pátria. Eram tempos estranhos, diziam-me por todo o lado. Mudanças repentinas a norte, sul e leste desta Europa operavam galopantemente. Rumores delas chegavam à nossa herdade dos Fernandes, com mãmã sempre reportando o que ouvia de papá à mesa, na ceia, quando pela manhã ele saía para encontros com o padre mirandês. Turcos em Constantinopla, avançando por Balcãs e Cárpatos. Veneza e Gênova guerreando pelo comércio otomano com o apoio de ducados germânicos. Limitado ao norte pela céltica Escócia, o reino dos saxões, o qual chamamos de Inglaterra, estava, na sua ilha, em ascensão absolutista similar à ocorrida cá em Portugal, séculos atrás. Em França, conflitos por cada pedaço de chão daquele vasto país, com todo fragmento de terreno ainda cobiçado por francos e ingleses, numa guerra que meu avô dizia ter durado cem anos. Por aqui, Castela e Aragão estavam unidos e batiam-se de frente com nossa Coroa pela hegemonia do mar Atlântico, o Tenebroso, e pelo monopólio dos escravos etíopes e suas ilhas de África, havendo eles expulsado de uma vez por todas a moirama da península que nos alberga a todos. Eram tempos estranhos. Estranhos não, velozes nas rodas da História, em que Miranda se quedava tão longe e tão perto de tudo. A mim, porém, essas questões pouco me importavam. Estando apenas obrigado a honrar minha linhagem pela primogenitura e inconfundível barba ruiva de meus antepassados. Haveria de estudar direito, física médica ou rumar à cura episcopal que, por razões incompatíveis que recaíam sob meu perfil, era tarefa impossível, e minha família o sabia. Teria de ir a Coimbra ou a Salamanca para os estudos. Optei pela mais próxima de ambas, já em terras da rainha Isabel. Estava eu com dezessete anos e respirando a pureza libidinosa da juventude. Raríssimas vezes saíra de minha Miranda, onde vivi feliz os anos irresponsáveis e escassos de minha garotice. Minha existência, de Salamanca para diante, foi acelerada quase em paralelo com a ladina roda histórica, em frenesi tão forte que duro foi a um trasmontano por acidente do destino a acompanhar. Uma vez havia ido com meu pai à cidade do Porto negociar nosso excedente de vinho roxo e cortiça. Lá percorri um real burgo, sem fazendas ou arados. E soube que nossos produtos iam longe, a algures como Frísia e Dinamarca, onde os povos nortenhos parecem apreciá-los junto a suas boas cervejas e hidromel. Aterrorizei-me um pouco ao ouvir, em português quase galaico do barqueiro, um normando, a largueza da viagem. Dias imensos até o destino, terríveis como a descrição do traslado pelo Tenebroso: duas semanas de navio por tormentas, sobretudo no canal inglês. Noutra ocasião fomos a Zamora, em Castela, para sua feira anual. Acompanhei o velho Fernandes fronteira adentro por pura precaução. Dois dias em coche de mulas eram suficientes para ladrões naquelas plagas montanhosas e agrestes. Por lá experimentei o amor de Manola e percebi de vez, aos quinze, que minha sina era me dotar de motivação aventureira contanto que estivesse sob a bula protetorade braços silenciosos e ternos de uma mulher. Quanto prazer, euforia e serenidade simultâneos desbravei naquele corpo espanhol, quanta satisfação deu-me saber que a possuía com os louvores do orgasmo. Meu velho mal viu minhas escapadelas com Nola naquelas duas noites mágicas, em que o mundo tinha razão pela sua desimportância. Era tudo uma aventura – namorávamos ao luar, sob as margens do nosso Douro, aos uivos dos lobos no frio vociferado de dezembro, a sinfonia musical daquela adoração. Prometi à rapariga voltar pronto, ainda que escapasse a pé de Miranda para resgatar aquela morena campesina com olhos de águia. Salvando-a de seu pai violento, crápula hortaliço. Iríamos pela escuridão da madrugada até as Astúrias e de lá para França, quem sabe mais para donde? As terras sobre o firmamento pertenceriam ao nosso afeto. “Tu vens mesmo, meu lusitano de fogo? Quero-te comigo, longe dessa nossa península esquecida. Fujamos para Itália, onde a arte e o amor são cultivados sem a barbárie daqui.” Jurei que iria. Não seria a primeira promessa que quebraria na vida. Papá era mais maroto que havia previsto. Sabia do meu caso e, com duas irmãs e um irmãozinho a caminho, fui proibido sob ameaças de abandonar o brasão de minha Casa. Era Salamanca, sem escalas em Zamora, que me aguardava. Um sítio só de homens! Lástima, ódio de toda essa falsa pompa que deveria honrar. Um brasão de uma família dona de porcos e parreiras! Lá teria eu de ficar num claustro, sem damas, até terminar o curso de ouvidoria e direito. Jurei que correria para a costa assim que saísse. Meu mano bebê que cuidasse da tal “Casa nobre”. Quanto a mim, nada faria sentido sem a chama ardente de uma anja me acolhendo. Soube por meu tio Miguel, comerciante da fronteira, que Nola fora obrigada a se casar com um taverneiro de Segóvia e foi às bodas quase amarrada pelo seu chauvinista genitor. Meses depois ouvi que um sócio seu esteve de viagem à capital de Castela e havia fornecido vinhos do sul de França a um taverneiro que tinha uma linda esposa de cabelos escuros e um filho de pelos vermelhos. Não deixei de misturar sarcasmo com a dor de relembrar das escassas noites em que concebi um feto de puro amor que nunca encontrará meus olhos nem eu os dele. Como sofri nessa visita de meu tio, quando da leitura da carta de seu comparsa. Restou-me Salamanca e seus muros universitários cheios de clérigos e de alfacinhas. Conheci o vinho, que me ajudou a aturar a coisa toda. Lisboa, a capital de meu reino, cheia de possibilidades femininas, era agora minha meta depois de três anos de graduação naquela fria região. No futuro o leitor (de modo piedoso, espero) verá que acabei por conhecer as intimidades, os encantos e os charmes de fêmeas de Lisboa àquilo que, não sabia o porquê, chamaram de “Novo Mundo”. E só com uma delas, já nas margens do litoral poente, cheguei à explosão do prazer conjugal sem mencionar instintivamente o nome Nola… Curioso, caros amigos atemporais: escrevo-lhes esta missiva memorial em gravetos, pela areia batida e dura da longa praia que me alojou por décadas. Sei que a maré levará embora minhas palavras de viveres, mas quem sabe as apagando na terra este mesmo Atlântico não se encarregue de entregá-las à eternidade? Guiado pelas constelações até o meu antigo Portugal, a São Tomé donde também vivi, enfim, à posteridade? Com minha vida já feita e fatigado por uma batalha de morte contra meus antigos patrícios, creio serem dignas de nota todas as minhas agruras neste redondo plano de Deus e de deuses. Mas essa também é outra história. Voltemos a Salamanca. N II. Erudição no claustro ão posso dizer que no triênio em que estive na capital estudantil espanhola a conheci por inteiro, muito menos que tenha sido feliz e prazenteira minha passagem por lá, muito por fatos já conhecidos de vossa mercê, meu amigo (não importe se o chamar assim, é a carência de quem vê várias facetas de um só globo, a solidão de quem muito conheceu). Já dormia a pensar no sufocante pátio interno, cheio de regras e sermões de monges e padres, nossos tutores. O tédio era nosso companheiro de primeiríssima hora e os castigos a quem o demonstrava de feição eram físicos e brutais até para quem conheceu invernos e infernos. Minha família, desde o fundador dos Fernandes, um intrépido visigodo chamado Ferdinando de bodas com a filha de uma condessa sueva, sempre jurou fidelidade e credo à Santa Madre Igreja. Meus questionamentos sobre essa fé quase cega foram crescendo de modo proporcional ao avanço de meus estudos em filosofia, teologia e dialética greco-romana. Os vigários não podiam esconder as patranhas lucrativas que impunham à Cristandade, as ameaças vis e covardes de um inferno post mortem para os que não pagassem o dízimo. O álcool me auxiliava a escarnecer de tudo isso com Alonso, um aragonês dos poucos ali que considerava meu amigo. “O frade Cabrera é o pior. Acha que vai extorquir minha família além das quotas absurdas da Universidade. Ele finge que não sabemos dos seus desvios com cabritas, humanas e animais, nos barrancos desta cidade. Ah se as muralhas daqui falassem ao cair da tarde! De mim ele não terá mais um tostão. Tampouco aceitarei que meu pai aloje qualquer pároco dele em Alcañiz, minha Puebla. E tenho dito!” “Não demorará muito para que vejas teus pais novamente? Não será veloz a chegada da carta dele agora que teu rei Fernando se casou com Isabel deste daqui?”, respondia eu sem querer desanimá-lo (a raiva que sentia por Cabrera e por todos aqueles decrépitos tarados era a mesma que ele sentia). “Não creio, Hernandes, caso não saibas, meu padre é mui bem conhecido cá no coração castelhano. Sempre tivemos comércio pelas estradas daqui aos Pirineus. Já me antecipei aos vivaldinos e, numa das raras folgas daqui, entreguei ao estalajadeiro no início da estrada o alerta em letras ao meu senhor e à senhora minha mãe, que haverão de dar ouvido a quem não mente, mesmo indo contra a Igreja”, cravou o que disse com a confiança dos justos. “Ah, pois então era isso que fazias naquela noite enquanto eu visitava o celeiro junto daquela messalina que abandonou o convento?”, indaguei-lhe, tentando dissipar a seriedade do diálogo. “Pois sim, homem, não misturo meu sangue com a leviandade de um português! Minha prometida me espera em Saragoça. E a porta na cara de Cabrera o espera em Alcañiz, perro dos sete infernos e do paraíso. Ui, não ofendamos Roma e seu Jefe Borgia, não é, Hernandes?” As risadas eram uníssonas e inevitáveis. Havia encontrado outro com o mesmo desprezo pela soberba e pela hipocrisia humana. Ajudávamo-nos mutuamente nos estudos, no convívio, nos alertas para falsos colegas e mesmo nas saídas noturnas do prisional pátio colegial. Alonso haveria de ser meu melhor amigo nessa complicada fase de minha vida, uma pessoa a mais, a somar a Manola, que a mim faria companhia nos devaneios de minha mente durante as longas vigílias oceânicas, cruzando os mares com os melhores de Sagres, a olhar para constelações. Os tempos, segundo sempre ouvi dos mais velhos nas ruelas mirandesas, de fato estavam passando mais rápido. As novas nunca chegaram de tão longe e tão rápido. E naquela ligeireza o triênio em Salamanca passou-se num momento entre bebedeiras e escaladas ridiculamente perigosas dos muros da escola de direito, os sexos miseráveis com as putas das bordas citadinas e as torturas físicas e psicológicas daqueles curas de almas sem colhões ou virilidade, moral e física. A formatura veio em abril de 1497, quando habilmente convidei meu tio não para as cerimônias, que eram intimistas e fechadas a externos, mas, sim, à cidade, onde haveria de lhe perguntar se conhecia alguém na papelocracia do reino que pudesse me levar à capital. Soube por ele, sempre muito bem informado das coisas portuguesas, que nosso el-rei d. João havia morrido de forma precoce e abrupta. Ao contar os poucos detalhes, nada tirava da cabeça do velho a tese de venenocolocado pelos Bragança, em conluio de interesses com os Reis Católicos da nova Espanha. “Foi uma lástima, garoto. Nosso Príncipe Perfeito merecia vida mais longeva, com mais glórias terrenas. Ele conseguiu um acordo maravilhoso arrancado a ferro do casal poderoso de Espanha em Tordesilhas. Metade do mar Tenebroso é nossa para leste das tais ilhas de Cabo Verde, já com gente portuguesa. A África, a par das Canárias, também ficou conosco. Nossas feitorias e o tráfico de etíopes estão assegurados. E agora, com essa dobra do Cabo sul-africano… Bartolomeu Dias começou e um fidalgo do Alentejo, Vasco da Gama, estimado almirante, há de terminar esse périplo. Chegaremos às Índias, Cosme, e pelo leste, como teu pai sempre alertou.” Sempre me fascinava o modo empolgado com que o tio Migué contava tudo o que considerava importante: “Sei disso, tio, nunca duvidei de papá, que é um homem rígido como um marinheiro sem suas crenças, mesmo nunca tendo remado um bote sequer no Douro”, ri-me com um misto de mágoa e saudade daquele velho turrão, meu pai Viriato Fernandes, de nome mais lusitano impossível. “O problema, meu tio”, prossegui, “é que, pelo que me diz o senhor, senta- se agora no trono de Sintra um rei dos Bragança, pelo menos do lado materno. Ele era primo em primeiro grau d’el-rei d. João, que mandou matar seu pai, que era seu primo e cunhado. Que gran confusão! Não que eu me atenha muito a isso de casas, mas será mais difícil para um Fernandes conseguir emprego na corte de um Bragança?” Era isso que mais me inquietava no momento. “Nunca nada é difícil para Miguel Fernandes, Cosminho, queda-te tranquilo, chavalo! Hei de falar com um Bragança amigo meu e companheiro de justas cavaleiras em Chaves. Ele é do ramo ‘pobre’, por assim dizer, do clã deles, mas por isso mesmo é mais refratário a essas inimizades medievais. O mundo está mudando e essas coisas têm de mudar com ele. Vou recomendar sua ida a Coimbra. Ficarás na sua pequena quinta enquanto ele enviará a Lisboa uma petição ao próprio duque da Beja, el-rei d. Manuel I, para que tu trabalhes junto ao Terreiro do Paço como ouvidor e conselheiro jurídico dos ministérios reais.” Senti como poucas vezes meu coração inflar de alegria: “Tu te escondes facilmente atrás dessas roupas de viageiro, não, tio Migué? Muito obrigado de todo. Devo partir em uma semana destas serras castelo-leonesas.” “Ótimo, avisarei a ele com antecedência. Daqui sigo para Miranda, depois a Coimbra. Devo chegar lá em quatro dias. Tempo suficiente para despachar alguém a Lisboa em nome de Proêncio Bragança, o dito-cujo que irá te hospedar. Deve-me favores equinos o homem.” “Não sei o que te dizer, tio. Só me arrependo de não conseguir ir mais um pouco a leste antes de voltar a Portugal. Ainda gostaria de raptar Manola de Segóvia, nem que fosse por brevíssimos minutos.” Meu bom parente arrepiou o largo bigode branco-carmesim: “Deixa disso, homem! Tens agora carreira e solteirice pela frente. Lisboa nunca esteve tão cheia de estrangeiros, de diplomatas a prostitutas. Nossa maior cidade é um dos maiores entrepostos do continente. Fará tu esqueceres dessa chavala em pouquíssimo tempo. Uma aldeota não pode com mulheres de todas as proveniências, qualidades e sabores, hás de ver”. Meu íntimo palpitava com a ajuda paternal daquele irmão de meu pai. Tão mais parecido comigo. Quando e onde poderia retribuir-lhe? Nunca mais, e pensar que também nunca jamais o veria de novo. Tio Migué: outra face inolvidável de minhas desolações tropicais. Dei afetuoso adeus a Alonso, caríssimo moço do vale do Ebro. “Vás a Barcelona um dia, Hernandes, hemos de nos divertir naquela cidade condal à beira-mar. Depois irás querer um peixe assado de minha Puebla, riquíssimo em sabor.” Agradeci e abracei-o imenso. Minha humanidade começava a aflorar mais do que pequenezes de morais e bons costumes. Era mais um que jamais veria. S III. De Coimbra a Lisboa aí de Salamanca em plena primavera, em maio de 1497. Mal celebrei a quadra pascoal com os “estimados” párocos da faculdade, se bem me recordo. Preferi ir em comboio de coches com um sacerdote navarro que iria a Braga, cidade bispal. Aproveitei a boleia para viajar escoltado pelos perigosos e visados desfiladeiros do Douro. Soldados do pequeno reino entre Aragão e o sul de França eram agora minha guarda particular. O preço disso foi aturar por mais três dias e duas noites as ladainhas religiosas de outro homem corrupto, amigo do instrutor chefe de Salamanca Saul de La Mancha, antissemita contumaz e colega de seminário de ninguém menos que o infame Torquemada, o inquisidor da flor pútrida que era a beata rainha Isabel. O homem realmente não podia ser boa coisa tampouco boa companhia. Ao cruzar o vale de Bemposta entramos em território português pela minha inevitável praça de Miranda. Despedi com júbilo da terrível comitiva do religioso. Tive que segurar minha resiliência de partir sem visitar a casa ancestral de meus pais. Nosso Senhor, se de fato existe e andou encarnado pelo mar Morto e da Galileia, fez por bem me mandar lá para ao menos poder rever minha mãe e irmãs e dar uma única olhada naquele menininho que seria o futuro dos Fernandes. Plácido Galba Pessoa Fernandes era seu nome. Costume visigodo dos meus era dar nomes romanos. Meus antepassados nórdicos usavam desse recurso para serem aceitos pela população celta-romana que aqui habitava. Galbinha sorriu ao me ver. Estava junto dos braços de minha já idosa mãe, velha demais para ter de arcar com um rebento. Ainda, todavia, uma luz de esperança para minha família! Espero que tenha tido aptidão para a governança feudal, pois, felizmente (e não penseis vós que não me conscientizo do egoísmo), pude ter a liberdade da escolha de abandonar a miúda atividade de zelar escudos e de casar com gordas nobres para ter fedelhos mais feios do que elas próprias. Realmente leguei isso ao pequeno Galba. Que minha mãe não me condene por deixá-lo com essa responsabilidade, e que ele tenha pena do que veio a me ocorrer depois. Dela também me despedi com um “até breve”, que voltaria com novas de Lisboa, das fofocas da corte e das últimas desse amálgama de cultura que passava pelo Tejo. Dona Jacinta Seixos Pessoa, prima em terceiro grau de meu pai, abraçou seu varão como se nunca mais o viesse a vê-lo, naquele instinto maternal que todas as espécies peludas têm. Deus, Alá, Javé, Júpiter ou Odin bem sabem o quanto queria eu haver retribuído com a mesma emoção aquele toque que de pronto tornei protocolar por minha parte. Tinha por irmãs duas criaturas vivazes a quem muito bem queria: Berengária, mulher já feita em regras, e Custódia, já a caminho da maturidade física e sapiente. Ambas fizeram o mesmo ao seu parceiro de ensinos de caça e corridas. “Adeus a todos. Amo vocês” é o que digo agora, orando a Ele para que valha por suas almas. Aceitei ainda passar o final daquela primavera junto dos meus, tratando dos pormenores da transferência de herança para Galbinha. Éramos pequenos nobres, viscondes, e mesmo assim tínhamos um belo palacete campestre, muito melhor do que os pobres reféns da papelocracia mirandesa, que controlávamos inteira em nome da Coroa. Algo me dizia que aquelas mudanças além- fronteiras fariam de alguns novos ricos, de velhos ricos mais ricos e da massa empobrecida uma maior porção de si mesma para se estatelarem na lama da miséria. Com o raiar do verão, em princípios de junho, essas questões documentais foram finalmente superadas e minha ansiedade já não me segurava por lá. Estava seguro em viajar pela Estrada d’el-Rei, obra de nosso sereno Príncipe Perfeito d. João, que ligava Trás-os-Montes à capital passando pelas Beiras Altas, chegando a Coimbra. Era um trajeto de umas vinte milhas até as várzeas do Mondego. Nunca havia pisado tão ao sul de meu país. As gramíneas, carvalhos isolados e figueiras seculares se assomavam na bela vereda. Meu Portugal era mais fértil do que a seca e poeirentaCastela e seus morros cor de chumbo eram repletos de ruínas imemoriais de torres de menagem dos tempos da finda Reconquista Cristã. Não que cá não tivéssemos tudo isso também. A paisagem, porém, se desmantelava de milha em milha em novas descobertas de charnecas virgens e pequenos vaus dos afluentes do Mondego, vindos dos lendários Montes Hermínios, cordilheira de que sempre ouvi falar e divisei ao longe, com seus picos já sem a neve invernal. Ao cair da noite cheguei à cidade estudantil. Uma segunda quinzena daquele quente mês. Cavalgava sem pressa, com suprimentos e cumprimentos contrariados do visconde Viriato, a quem muito desagradou meu plano com seu irmão Miguel. Desgostoso, meu pai havia sido o mais frígido, quase indiferente, na despedida de véspera. Seguindo as indicações de tio Migué, fui ultrapassando o centro velho da antiga cidade romana, de nome Conímbriga, berço de filósofos ibéricos nos tempos de Roma que iam discorrer latim e tomar banhos termais. Pude notar grande mossa na urbe e muito mais mulheres à rua do que em Salamanca. Portugal ainda não havia conhecido seu Torquemada para levar adiante o Santo Ofício. A casa de Proêncio foi encontrada na traseira do Mosteiro de Santa Cruz, onde está enterrado o pai de nossa pátria, d. Afonso Henriques. Era uma morada no mesclar entre o nobre e o aristocrático com a pressa desordeira do covil de um mascate. Certamente alguém que não ficava muito tempo em seus cômodos a habitava. À minha batida de palmas recepcionou-me um jovem muito negro, provável oriundo daqueles trópicos infernais do sul do Bojador. Falava bem nosso idioma e era polido, com certeza um escravo treinado para o servir doméstico. Nijumbo era sua graça. Identifiquei-me como sobrinho de Miguel Fernandes e ele pareceu já saber do que necessitava. “Meu amo não está. Mas tudo o farei para aliviar essa ausência até sua volta. Sente-se. Deseja vinho, conhaque ou cerveja escura da Bavária?” Aceitei de bom grado o vinho e agradeci-o por sua educação, que deve ter sido afiada nos mercados dos Algarves, muito provavelmente em Lagos, onde tio Migué diz haver um grande mercado escravista. Não quis aprofundar o assunto com Nijumbo pois este parecia mais um ser de automatismos do que alguém de leve prosa. Aguardei seu mestre sozinho, à sala daquela residência tão desordeira quanto o quintal. Dois quartos de hora se passaram até avistar o dito Proêncio, de chapéu ainda em riste. “Quem és tu, rapaz? Nunca o vi em Coimbra. Novo no comércio ou na papelocracia?” Levantei-me em decoro ao anfitrião: “Nenhum dos dois, senhor. Sou Cosme, sobrinho de Miguel Fernandes. Ele havia me dito que do senhor receberia instruções de onde poderia trabalhar na capital, para el-rei d. Manuel”. “O homem chegou há quase uma hora, senhor. Entregou-me uma missiva fechada para vós”, completou o africano. Passou a pestana depressa pelo papel e abriu a boca em sinal de surpresa esquecida: “Ah, pois sim. Miguel, Miguel, aquele velho tratante, enquanto não reaver suas reses e seus cavalos o pilantra não há de me deixar em paz por favores, mais ainda agora que o rei é um dos nossos, filho de minha prima em segundo grau, Beatriz de Bragança. Devia haver te reconhecido por essa pelagem vermelha dos Fernandes”. “Foi mais ou menos o que ele disse, senhor, mas com um largo sorriso de saudades de sua pessoa”, respondi falsamente. “Aliás, ele comentou que cá encontraria um Bragança com tanta ojeriza dessas coisas de sobrenome quanto ele e eu.” Enchido de si mesmo pela forçosa homenagem, o dono da casa se aproximou de mim e tocou meu ombro: “De fato, chavalo, e tu tens sorte dupla, pois fui com a tua cara. Vamos aos negócios. O velhaco do teu tio me incumbiu há mais ou menos quatro dias da tarefa que vens me lembrar. De imediato enviei meu outro servente a galope para Lisboa, a essa altura deve estar chegando com as expressas recomendações de sua competência e erudição ímpar para trabalhos na corte. Sou mui bem acercado no Ministério de Além- Mar. Nada temas! Pernoita e janta comigo e com minha esposa, uma Coimbrões daqui das Beiras. Amanhã cedo te instruo detalhes antes de partires. Por hoje adoraremos falar de coisas castelhanas e trasmontanas”. Fiquei para a ceia e me diverti com o homem. Apesar de um tanto bruto, era bom contador de anedotas da zona e mui informado dos rumores da vida alheia local. Sua dama era mais reservada. Filha de barões do azeite de Figueira da Foz, a moça tinha pouca prosa, cabelos negros, olhar penetrante e um rosto plácido como a plenitude solar. Vez por outra pousava sua forte auréola em minhas faces púrpuras. De Marialva a chamavam. Nome escolhido de antevéspera àquela que do aramaico tem-se por mulher e do latim se fez branca como a pura geada de manhãs invernais. Estavam casados havia pouco e buscavam o primeiro filho. Dormi pela primeira vez um sono revigorante desde que deixei Castela. Despertei pouco depois da alvorada com Nijumbo a servir-me o desjejum: fiambre curado, queijo da Serra, sumo de amora e castanhas. Nunca um Fernandes foi tão bem alojado no covil de um Bragança! As mulas de carga e um alazão me foram preparados para a viagem de um dia e meio até Lisboa. “Siga pela estrada d’el-rei até Leiria, umas quinze milhas daqui, abasteça-se nos pastos de lá e recupere a montaria. De lá é só seguir até Óbidos, donde se encontram os melhores estalajadeiros. Chegarás a Lisboa pela manhã de amanhã”, aconselhou-me Proêncio. Dona Marialva Coimbrões acenava para mim por detrás dele, desejando boa viagem, um sorriso tíbio pendia de seu lábio curto e bem desenhado, um semblante que me remetia a só uma indagação: “Voltarás a me ver, Cosme?”. “Voltarei a te ver, Marialva!”, e como assim o desejava. Naquele diálogo mental com a bela senhora percebi em seu estar a feição de júbilo e socorro condensados em cada músculo de sua face, toda recrudescida como o fruto que perdura aplastado ao outono sem utopias de viver a primavera. Deixei o burgo com o sol a se dirigir para pino, vagaroso, levando ao braço a mula com meus pertences. Ao longe, ouvi o homem dizer: “Dívida quase paga. Tu me levaste um cavalo e eu pus outro para trabalhar para a Coroa, avisa o teu tio por carta. Chegando a Lisboa procura saber do comandante Lourenço Frazão. Recomendei teu nome a ele, chefe do Ministério de Além-Mar. Poderás exercer a ouvidoria pelas coisas do Direito Marítimo, matéria instituída pelo novo rei. Adeus, rapaz!”. Os vultos do casal ficaram diminutos enquanto me afastava das casas. Segui ladeando as várias colinas e entrei na Estremadura pouco depois de um frugal desjejum de frutas secas, cortesias de Marialva. Cavalgava então por entre a Mata Real, cheia de pinheiros, à hora da Glória cristã das três da tarde. O calor era mais brando e pude abastecer de água e feno o bom cavalo numa das muitas quintas que lá havia. Pago o serviço, sem delongas parti e passei por Leiria, chegando a Óbidos, como previu Proêncio, no crepúsculo. A cidade era um povoamento apertadíssimo entre muralhas onde pessoas jogavam suas necessidades à rua. A estalagem em que pernoitei pertencia a um rude produtor de trigo que de má vontade reservou-me o pior quarto que tinha, segundo ele: “Está tudo lotado, tudo, a feira de verão é esta semana. Dê-se por feliz de ter leito, nortenho, dê-se por feliz”. Depois de lavar a cara fui cear no salão comunal da pensão, onde ouvi notícias vindas do Terreiro do Paço, como o casamento de d. Manuel I com a antiga esposa do finado príncipe Afonso, filho d’el-rei d. João. Ah, como papá amaria odiar essa novidade intrigante que só confirmaria suas suspeitas – a aliança desses “cornos Bragança” com os Trastâmara de Castela para destruir a nobre casa de Avis. O sono dominou-me pouco a pouco e, ajudado pela jarra de bagaceira, deixei o ouvido repousar após ter escutado coisas sobre corrupção de juízes e subornos nos ministérios. Não esperei o dia alvorecer e pedi para um criado me acordaràs seis da matina, em pleno vendaval matutino e penumbra. Saí sem me despedir daquele homem grosseiro, senhor Carriço, a quem o espírito só era pior que o bafo alcoólico. Paguei a dívida diretamente ao funcionário e segui para a capital de meu país, onde nunca havia estado sequer em sonhos. Pouco antes do meio-dia divisei, acima das colinas de Odivelas, todo o larguíssimo estuário do Tejo. Acima dele estava a praça a que os romanos batizaram de Olisipo e os mouros de Al-Usbuna, vigiada de perto pelo antigo castelo dos muçulmanos. Os portugueses apenas chamavam-na Lisboa. Uma gloriosa visão de vários navios era o que mais chamava minha atenção. Tinha chegado ao limiar da civilização europeia, àquele porto antiquíssimo e que serviria como albergue de minha riqueza e prazer. Ledo engano do rapazola de vinte e três anos! O IV. A capital da ganância ito de julho de 1497. Apertei esporas do garanhão numa empolgante descida em direção aos morros centrais que esparramavam aquela gigantesca massa de telhas, gaivotas, pombos e gentes, de mercadores árabes a astrônomos judeus, de alfandegários turcos a pilotos italianos, cada ruela da urbe pulsava em uma cacofonia cativante, deixando-me perdido com tanta opulência e caos simultâneos. Eis um local que se podia chamar de entreposto civilizatório! Acorri ao Terreiro do Paço, sede dos ministérios da Coroa e, como me foi orientado, busquei pela repartição edificada especialmente para os assuntos de além-mar, mencionando a quem quer que topasse comigo a minha meta de encontrar, em nome de Proêncio Bragança, o comandante Frazão, seja lá quem ele fosse. Uma singela freira, de passagem para receber instruções para um novo convento nos Açores, percebeu minha pressa e propósito, indicando a um secretário que me incumbisse de aguardar audiência com seu superior. “Acabei de sair há bocado com firmas do senhor Lourenço Frazão. Ele está em sua mesa de trabalho e certamente o receberá, pois Deus não marca horários para encontros já predefinidos.” Fiquei medindo tanto as palavras como aquela bonachona face em véus de religiosa, esperando ler alguma entrelinha de motivo para tão enigmática ênfase com que me ajudou e precedeu-me. Guiado pelo secretário fui à antessala do comandante da Marinha e de Além-Mar, onde poltronas de Flandres acomodaram minhas hirtas nádegas de trinta milhas cavalgando. Um suntuoso mapa-múndi feito a vários pares de mãos austríacas adornava a parede oposta. Nele constavam as rotas e trajetos de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, heróis que por terra viajaram até Egito, Arábia, Etiópia e Índias, dando-nos a conhecer o que por águas haveríamos de desbravar e conquistar. O curioso da obra era o seu acabamento: donde Colombo alegava ser a borda oriental das Índias e do Cipango estava um promontório oceânico apenas contornado de ilhas, a linha de Tordesilhas lá estava, e do lado lusitano da empresa via-se, em pleno titã Atlântico, muitas aves de mar e peixes monstruosos, dando a impressão a olhos nus de que ocultavam algo preparado para ser aberto. Um regalo para a civilização? Uma nova porção de terras? Durante minha longa espera pela audiência, peguei-me a refletir essas considerações de garoto interiorano. Mal saberia o quanto minha intuição não falhava nesse período em turbilhão pelo qual a humanidade atravessava, literalmente, as barreiras do espaço. Ao ser chamado por dois assessores rumo à mesa do tão solene Lourenço Frazão, dei-me conta do quanto a papelocracia de meu país havia engordado durante o período de bonança, do dinheiro de África e dos investimentos a prazo na Carreira da Índia. O ostentar de uma nova nobreza só era menor do que o poder absoluto de nosso monarca, presente de nosso saudoso el-rei d. João e à custa de cabeças de conspiradores. Ao chegar à face do dito-cujo, avistei um homem baixíssimo e semicalvo, de bochechas rosadas e ressequidas. Nada sugeria a importância de seu cargo e de sua pasta com aquela barriga global a qual apertava uma mesa comprida porém estreita para audiências privadas. Pedi vênias e fiz reverências à autoridade, que me invitou a tomar assento. O homem de meia-idade (já penetrando a velhice) dispensava um funcionário diretamente das docas de Belém, ponto no qual as naus partiam para as expedições várias. “Leve minhas melhores recomendações ao almirante Vasco da Gama, Inácio. Ele compreenderá minha ausência. O assunto que tenho em mãos sobre as divisas de nossas praças marroquinas é prioritário. Aproveite e passe no edifício contíguo exigindo posição de nossa chancelaria. Necessitamos de apoio dos castelhanos para impressionar aqueles malditos mouros infiéis!” O imediato ficou todo ele ereto: “Sim, senhor, para já. O almirante Da Gama, como bem sabe, será nomeado vice-rei das Índias por el-rei d. Manuel, caso sua incursão tenha sucesso”. O patrão pareceu contrariado com a recapitulação daquele fato: “Bem sei, e o que tenho com isto?”. Percebendo o incômodo, o funcionário detalhou o impasse: “Seu genro, senhor, Afonso de Albuquerque. Se não me laboro em erro, de sua filha do meio, bem… se perdoar minha indiscrição, não ficará desapontado com esta escolha? Então ele não estudou a fundo mapas, rios, reinos e culturas daquelas partes da Ásia?”. Com um sinal de mão aberta o gordito encerrou a entrevista: “Tudo a seu tempo, Inácio, e só perdoo sua indiscrição pelos anos de lealdade e trabalho que a mim dedicou. Mas aprenda, se língua intrépida vale conselhos – o homem que pioneiro queda a desbravar um sítio tem maior legitimidade que aquele que se fecha em estudos internos. A coragem vale mais que a erudição, meu caro, mesmo entre familiares. Se quisermos a grandeza de Portugal e da Cristandade, nosso povo terá de compreender que interesses pessoais não subjugam águas”. O subalterno fez uma larga continência de alguém dobrado por uma lição de vida e partiu apressado. Sentado e presenciando a tudo, apenas permaneci a mirar fixamente o homenzito largo que havia levantado de leve de sua cabine de banhas para pregar ao outro. De fato as aparências enganam à primeira vista. Tomaria melhor cautela dali por diante. Ele se voltou para mim. “Peço escusas, meu jovem. Hoje é um dia importante, pois não sabes?” Fingi sabê-lo pelo que havia ouvido segundos atrás. “Pois, nosso almirante enfim vai partir rumo às Índias. Espero que com o que nosso país tenha de melhor para lograr a empreitada. Nosso rei d. João ficaria feliz em ver tudo pronto, sendo ele o maior obreiro do Périplo Africano…” BAM! Fui interrompido com um leve murro na mesa. O soar oco da madeira fez-me calar e esfriar ânimos de modo a quase colocar minha língua numa masmorra. “Veja, menino, sei bem quem tu és. Cosme Fernandes, dos Fernandes de Miranda. Recomendação de Proêncio, homem fiável das Beiras. E um Bragança! Veja, agora nosso rei é d. Manuel I, antigo duque de Beja. O Príncipe Perfeito ficará apenas nos anais com este apodo. Tenha a cautela de não mais mencionar saudades à sua figura pela capital. As vielas daqui têm ouvidos e d. Manuel, a despeito de Avis por pai, é Bragança por mãe e presenciou seus familiares serem assassinados pelo finado d. João II. Cautela, moço, cautela.” Vi que além de suposto patriota o gordinho também era safo. “Peço mil perdões se me precipitei ao citar nosso antigo governante. São os costumes de minha terra e família emprestados a um rapazinho sem traquejo político nem destreza com grandes salões.” O barbicha empertigou-se, vaidoso de sua aula bem apreendida por um pupilo ousado. “Já iniciou teu aprendizado. Muito terás de pôr esses dentes cerrados se quiseres subir, enricar e gozar prestígio nesta cidade de abutres. Novamente cuidado! Colocar-te-ei como ouvidor-mor da Marinha. Cuidarás de todos os assuntos relacionados a pensões, queixas, dívidas e hipotecas de marinheiros e comandantes que se lançarão ao Tenebroso. Apenas cautela, muita cautela.” Enrijeci mais ainda o cenho: “Agradeço de toda minhaalma. Era a oportunidade que um pequeno nobre como eu almejava desde minha formatura. Espero que meu curriculum tenha contribuído para tal escolha e…” e nada, apenas nova interrupção do velho, dessa vez a apontar o indicador para mim. Mais uma vez obstruído, ele soltou um guincho similar a um sarro: “Sim, sim, d. Fernandes, teu curriculum de sobrenome e recomendação falou muito bem por ti!”. Chegando perto de meu rosto, continuou: “Agora cala-te e observa que méritos não são a lei em nosso estamento! Nossa nobreza, sem me referir diretamente à sua família, está mais dependente do erário público do que jamais esteve. Nosso rei recolocou famílias expropriadas de novo à ribalta. A conta uma hora irá chegar. Por isso é imperioso atingirmos a Índia, fincarmos pés nos dois braços de África e tomar de vez o que nos cabe daquela outra massa de terra para engordar as finanças e…” calou-se num supetão. Desconcertado por haver ido longe em devaneios, escusou-se: “Creio que estou me estendendo e falando mesmo de coisas absolutamente sigilosas com um rapazote dos buracos trasmontanos”. Disse em tom que conjurava desprezo e deboche. Simulei sorriso mas guardei as palavras. Sobretudo aquelas últimas sobre a outra massa de terra. “Bom, chavalo, sei que tens renda para te arranjares em umas pensões por aqui. São fáceis de encontrar. Se quiseres economia, fiques aqui próximo ao rio, se quiseres conforto, é melhor que subas ao bairro Augusto. E tenho dito! Começas amanhã, às duas primeiras horas do sol da estação. Até lá!” Dispensou minha continência pois iria receber um mercador de escravos colérico, vindo diretamente da foz de um rio africano chamado Níger, pelo que ouvi ao sair da sala. Teria a tarde inteira para me arranjar numa cidade estranha e imensa aos meus olhos e, para piorar, estava em festas e rituais religiosos para bendizer a partida de Vasco da Gama no rumo do Oriente. Proêncio contou-me que pensões de italianos e gregos abundavam por todo o bairro de Alfama e Mouraria, no coração lisboeta. Cama não faltaria a quem torrava ou investia sua quota-parte de herança numa empresa pessoal. Alcancei tal alcova convencido de que teria, a despeito de algumas adaptações às intriguinhas palacianas, a vida que sempre desejei naquele formigueiro em transe. Minha pousada foi numa simples hospedaria pouco acima do chamado Alfama, entre a Judiaria e a Mouraria. Sem ostentar, estava empenhado em conhecer o gentio e me estabilizar na labuta diária antes de exibir expensas. No dia seguinte, logo após a aurora, apresentava-me ao ministro Lourenço Frazão. “Vamos à presença de Vossa Majestade, em Sintra, para ele conhecer-te e aos demais novos contratados das outras pastas.” Um frio gelou minha espinha de modo inusual. Sabe-se lá se o nome Fernandes não ecoaria mal nos reais ouvidos de d. Manuel I. Uma série de coches nos aguardava no Terreiro com rumo às serras do Palácio Nacional, sede de veraneio dos reis portugueses. O trajeto era belo mas mal me ative a seus encantos. Passávamos entre imensos salgueiros pela boca do Tejo e o mar ao fundo. A preocupação tirava do sério meu coração: como me portar, como agir, como explicar minha origem? Ao que parece, isso tudo já estava bem do conhecimento d’el-rei. Mais uma vez minha ingenuidade juvenil traía-me. Ao subirmos rampa acima, lá estavam os guardas. O local era de uma formosura digna dos mais belos contos de cavalaria. Um castelo digno de nosso rei. Minha comitiva, com mais ou menos cinco novos funcionários, chegou às portas da sala de audiências escoltada e juntos prestamos um breve juramento e reverência ao nosso chefe de Estado. O sujeito tinha os olhos de um brilhante turquesa, a barba castanha, tão polida quanto esbelta, lhe dava às faces uma tonalidade de aquarela em suas maçãs rosadas. De estatura mediana para um português, estava eu à frente do rei mais Bragança que a casa de Avis produziu. Ah se meu pai e avô pudessem me ver ali, curvado sabujo perante um brigantino disfarçado. Em separado os conselheiros reais ordenaram que entrássemos e tivéssemos uma rápida parlamentação com Sua Graça. Ao chegar minha vez, o arauto, por óbvio, anunciou todo o meu passado familiar, errando apenas nas escapadelas pela noite de Salamanca ou meu amor não concretizado com Manola. Deu-me vontade de zombar de toda aquela pomba exacerbada, e haja vontade de não fazê-lo ali mesmo! Depois das formalidades indicativas, o arauto deixou-nos por brevíssimos três minutos. Estava a sós com o rei do país de meus ancestrais. Talvez o último Fernandes a ter tido essa honra tenha sido meu ancestral Sancho, ao jurar nossas forças antes de Aljubarrota ao futuro d. João I, mestre e fundador de Avis. Eis o privilégio misturado a exageros daquela cerimônia. Muito tempo depois, em outras margens do destino, viria a saber por mensageiros estranhos que el-rei d. Manuel era chamado “O Venturoso” por sua destreza em governar e fortuna nas empresas externas, tanto marítimas quanto diplomáticas. Seria ele a fazer de nosso diminuto povo uma superpotência das marolas oceânicas. “Bons ares o tragam, filho de Viriato. Advindo da mui nobre e fiel casa dos Miranda de nossa raia nordeste. Sua família é das mais antigas com o sangue luso. Honre-o sempre agasalhando seu rei e sua bandeira. A seção papelocrática em que desempenhará função necessitará disso!” Fiquei pálido ao ouvir a firmeza de timbre e seguridade que aquelas cordas vocais produziam. E menti uma vez mais em minha vida. A mim pouco importava a grandeza de emblemas e heráldicas para a posteridade. A el-rei há que perjurar calado e foi o que fiz, com votos de gratidão e de boa saúde ao mesmo. “Muito obrigado, meu sereníssimo rei, cá há um leal servo que tudo irá fazer para com que nosso Portugal galgue patamares ainda inimagináveis. Com minha modesta presteza espero servir bem ao escudo de Avis e à fé verdadeira em Cristo Nosso Senhor.” Quedei estupefato com a desfaçatez com que fiz aquela vã promessa. Mas, afinal, quem mentiu a um amor puro e verdadeiro como eu, tendo esse amor me esperado com um filho nosso no ventre, não teria motivos para não repetir a proeza diante de seu rei e ao supremo Deus dos homens. Buscava somente conforto e platitude suficientes até reviver aquela viagem que é o amar e ser amado. Mentiras eram escadas para esse escalar. Satisfeito e sem mal me dar conta de minhas expressões confusas, d. Manuel, o Venturoso, enfatizou: “Folgo em saber, meu filho. Que assim seja pela grandeza de Portugal e da Cristandade. Agora vá, e inicie bem os seus encargos, mestre Cosme Fernandes, ouvidor da Marinha Real”. C V. Labuta e masmorra omo ouvidor de direito eu fazia um pouco de tudo. Desde escutar queixas dos mercadores da Mina e do Congo aos impropérios de revendedores sarracenos de nossas cidades no Marrocos. Além, claro, de redigir, reparar e ordenar contratos de marinheiros, tripulantes e ordens religiosas de nossos postos de África e os futuros na Ásia, rumo à Índia e às Ilhas Molucas. Um pouco custoso para qualquer ser humano, mais ainda àquele infeliz que estudou três anos de sua vida num claustro cheio de monges pútridos e devassos. Agora estava eu a desempenhar a missão de legitimar suas libertinagens com fêmeas de outros mares. E numa masmorra sem paredes! A recompensa vinha a galope de mula, por assim dizer. Prestígio entre os bairros medianos de Lisboa, especialmente entre as filhas de pequenos burgueses impressionadas com o “doutor ruivo”. A elas meu soldo se ia quase todo, em promessas tolas de compromissos e recomendações dos pais das pobres flores em botão. Em alguns casos, com a destreza dos contos e trovas espanhóis, eu lograva os favores de uma ou outra dessas mocinhas, sempre na prudência de não ousar fazê-lo com alguma de pais mais poderosos do que eu tanto em nome como em contatos com a Coroa. Não penses tu, estimado amigo, que me orgulho disso. Por Deus! Amo tanto as valquírias que as trato coma devida cortesia até nos momentos derradeiros de alcova. Para mim, o homem, inescrupuloso e avarento, é o responsável pela degeneração das guerras e das pobrezas mundanas. Vós mulheres sois, isso sim, musas inspiradoras que mesmo a Ulisses e Catelo foram guias. As mais puras das invenções do oculto Criador que do Cosmos habita. Muito ao contrário, então, é o que move minha conduta erótica. Posso jurar por todas as constelações que unem sul e norte que foram mais fortes do que eu as ganas de reaver a sensação de poder absoluto que nos instila o berço de ninar dos amantes. Experimentei tal fortuna com Manola em lonjuras temporais que agora soam a toda uma vida. E, para te ser sincero, a “desonra” cristã das meninas foi mais prazerosa a elas do que a mim mesmo. Àqueles a quem meu mea culpa possa não ser suficiente, antecipo-vos que Deus Todo-Poderoso, ou aquele a quem Roma nos indica para tratar como tal, ainda haveria de me punir com golpes muito piores, estejam certos disso. Talvez eu devesse ter dado ouvidos aos conselhos do careca Lourenço Frazão, meu atual chefe. Para minha infelicidade, apliquei-os apenas aos deveres de ofício. O tempo passou entre semanas e meses em que conheci cada viela, seus becos, tavernas, ruídos, colóquios e falas, cada bairro possuía percepções de classe maior do que o outro. Perto do rio, onde as pessoas humildes viviam da pesca e da travessia à Outra Banda, a margem sul, a comida era farta e barata, porém de qualidade duvidosa. Seu vinho era aprazível mais pela simpatia das companhias do que propriamente por seu sabor. Eu era quase que um limiar social, permeando entre luxuosas quintas a miseráveis barracões, de um alcoviteiro sujo a um barão ou esnobe médio burguês. Pude, então, tornar-me figura de destaque em todos os rincões daquela capital imunda, povoada e sufocante por entre animais e pessoas que disputavam suas latrinas e eiras em pleno céu desnudo, diuturnamente. Os vadios tomavam os muitos largos para fazê-los de habitação à noite. Essa rotina de visualização do mundo real (e no que ele se tornava de maneira específica) foi apossando minha alma de um sentimento ínfimo de revolta. Ínfimo pela pequena força com que me acometia. Pequeno mas persistente, constante durante meus dias presos a uma diminuta repartição a olhar à janela do Paço crianças sem rumo, pais em bebedeiras ou dormitando à calçada, mães prostituindo-se. Era a degeneração que a ansiada metrópole mostrava a olhos vistos. Sem perceber, a depressão e o desalento passavam a tomar conta de mim. Festividades sociais não eram mais louvadas e aguardadas. Tantas vezes deixei de comparecer a elas para jogar gamão com Samuel, o judeu que me alojou na Mouraria. “Estás de novo com raiva das festanças cristãs, Cosme? Há que dobrar forças para não magoar em desfeitas quem quer que seja o anfitrião. Teu salário e estima podem não durar. Olha que deveria cobrar por esse conselho!”, dizia o divertido e bonachão barbudo. Tracei junto àquela boa companhia um panorama do que me atormentava: “Ao que parece, a cada dia que passo aqui fico menos interessado nessa cidade. As coisas que vi nos claustros de Salamanca mal se comparam a isso. Por cá, para além de padres polpudos, há servidores aldrabões, comerciantes que mais se parecem ladrões e uma burguesia que abolorece tanto quanto os réis que eles engordam os cofres dos banqueiros de Florença. Estou desgastado, não cansado. Prefiro estar recluso, jogando contigo”. Ele limitava-se a virar o pescoço, curioso: “Nenhuma rapariga à vista, pois não? Para declarares paixão à companhia fétida de um velho estalajadeiro como eu é só o que pode haver. Cansei de te ver trazer damas para excursões mui breves aos teus aposentos. A coisa deve ser grave contigo, d. Fernandes”. Ele apoiava as mãos na volumosa barriga e gozava comigo. Acabava por recuperar o humor com aquelas amistosas troças: “Cuidado com o que dizes, tratante de Sião, ou mando denunciar-te ao Santo Ofício castelhano. Não te olvides que nosso ‘alfacíssimo’ rei é genro dos Católicos de Espanha”. Ali nós ambos ríamos das pequenezas dessa vida regrada que nada regulam e deixam-nos mais longe da compreensão de fraternidade que, a meu ver, é e sempre será a única forma de almejarmos felicidade, aquela mesma que os novos filósofos de Itália estudam. Samuel havia se tornado meu melhor amigo na cidade. Eu apenas tomava o cuidado de não ser visto nos bairros centrais ou nos ministérios junto a ele, um judeu. A má vontade para com esse povo, os que não serviam ao reino como cartógrafos ou como astrônomos, era grande, para não dizer odienta. A Inquisição não tardaria em Portugal. Avisei-o, mas o velho já bem o sabia. “Sou nascido em Cartago, meu caro. Depois fui despojado de bens com meu pai e irmãos por causa de um califa fanático. Migramos para Málaga. Os árabes e berberes de lá não eram tão cruéis, mas os castelhanos sim. E quando conquistaram a cidade só tivemos tempo de nos ajoelhar para tentar a sorte com a corte de Segóvia. Tudo inútil. Fomos mais uma vez apartados do que era nosso. Em Portugal não será diferente. Mas agora estou a solo. Tomei o cuidado de não gerar filhos nestes tempos cruéis. Daqui talvez siga para a Prússia, donde estão meus irmãos e sobrinhos, ou até a Índia. Sempre haverá quem hospedar, até no inferno.” Deveras que havia algo a se fazer? Estando dentro do aparelho estatal, seguia como podia os passos asquerosos do bispo. Sempre que este visitava nossa repartição para bendizer algum capitão escolhido, era a deixa para ouvir conversas nada humanistas com Lourenço Frazão sobre ideias d’el-rei para os não cristãos a se pôr em prática. Em fins de setembro daquele ano de 1497, num monótono outono recém- parido, soube novas de que Proêncio Bragança e sua esposa viriam à capital para o batismo da primeira neta de Lourenço Frazão. Obviamente estava entre os convivas da lista de solenidades para aquele pesadíssimo domingo de orações a monstros e bajulações para ratos. Dei adeus a meu amigo com as minhas melhores roupas naquela manhã. Desta vez seria muita petulância ficar nos jogos de azar com meu parceiro infiel. Iria ter com os nobres diretamente na Alameda d’Ajuda, a principal avenida dos ricos de Lisboa, logo arriba do populoso centro, em direção às serras de Sintra e de Queluz. O sol estava turvo e fosco como meu coração naquele martírio de falsidades que se chamava opulência. Já havia ido à casa de meu patrão em ocasiões menos importantes. Ele tratou-me como sempre o fez: frio como uma rocha, astuto e sabido à mesma medida que severo com a realidade que nos circundava. Lá estava o seu palacete ajardinado e muitas personalidades da pequena nobreza. Homens de negócios se faziam presentes à cerimônia feita pelo pároco de Almada, amigo de infância do orgulhoso avô. O batismo ocorreu em sua capela privada, algo que demonstrava tanto uma dissimulada devoção quanto a verdadeira riqueza da família Frazão. De boas-vindas excessivas ao trato gentio de uma festa comportada, fui embrenhando-me pela casa arejada e bonita, com vistas à via cheia de coches. Avistei Proêncio Bragança numa dessas penosas andanças sem rumo. “Então, como é que vais? Como é que está essa vida de vivaldino sortudo dentro da máquina do reino?”, perguntou-me ele com tapinhas desagradáveis em meu ombro. Não me agradava ver seu aspecto carregado de uma atitude que ocultava maldade ou uma leve superioridade em relação a mim: “Prosperando à medida que despendo meu tempo em ousadias para me libertar da tristeza e da solidão de estar junto a tantos e ao mesmo tempo tão a sós, senhor Proêncio! Agradeço os cumprimentos calorosos e continuo a te dever favor por tudo isso, homem”. Contestei seco mas tentando demonstrar respeito. “Pois me parece bem de saúde e mal de alma, não? Tens de te casar, Cosme, estabelecer posto e progredir junto à estrutura política daqui. Não te deixes pegar pela praga da vadiagem destes dias tumultuados.Nunca vi Lisboa tão apinhada de gente. Marialva também cá não vinha há muito e notou, não é mesmo, luz vital minha?” O hipócrita falou em vadiagem com certo brilho de conhecimento. Sua esposa, clara criatura, acercou-se de nós e pareceu rejubilar-se ao me ver: “Pois sim. De fato vim à capital nos dias de minha inocência, com meus pais. Ela já me era grande e, agora, parece se agigantar por sobre este Tejo, que faz o nosso Mondego parecer um pequenino riacho de vaus”, respondia com doçura essa dama de encantos maduros e que me dava a sanha de um animal enjaulado. Ela mirava minha reação. Mal disfarçava o contentamento de rever sua áurea: “Creio que a estimada senhora Coimbrões está correta na acurada observação. Se levarmos em conta que vós chegais há pouco pelas colinas de Odivelas. Os grandes carvalhos e as nogueiras se acabam mui abruptos, dando lugar a esse apinhado de moradas suntuosas, não? Parece que até mesmo os cavalos e cães perdigueiros de Alfama são melhores que muitos meninos lá de baixo, minha dama”. Ponderei com um sorriso amargo, buscando dissimular minhas impressões desse teatro macabro. Ela, contudo, adivinhava minhas intenções e não deixava de demonstrar: “Não poderia haver melhor resumo do que vejo por aqui e do pouco que observei por entre as calhes sujas de todos os dejetos e imundice de onde instalamo-nos, bem próximo ao Rocio. Um Bragança pequeno e uma Coimbrões pouco têm para se quedar próximo a estas quintas, senhor Fernandes”. Pelos poderosos de cima! Aquela menina detrás da máscara de experimentada mulher me olhava como um pássaro solitário quando encontra um espécime equivalente e que canta ou deseja cantar com ele pelo simples prazer da complacência mútua no compreender das escaras mundanas. Como se lesse minha ardente vontade de a sós ficar com Marialva, Proêncio licenciou-se da conversa ao ir de encontro a outros convidados. Estaria livre para ter minutos, quiçá só segundos que fossem, com aquela criatura que me enfeitiçou com sua olhada em Coimbra e, agora, confirmava o que via nela: complemento anímico para qualquer ser digno de enxergar nela o seu todo. Desilusão recíproca para com tudo aquilo que víamos. E não era só isto. Havia uma bela de madeixas e curvas somente menos interessantes que sua voz, suas opiniões e sua vontade de encontrar trovador digno de suas interpretações. Juro-vos, era a primeira vez que desejei estar à conversa ou junto a essa Maria tão alva de espírito quanto de nome. Nunca antes dessa ocasião! Poderia ela oferecer àquele furibundo homem algum conforto? Ainda que jamais mudássemos nada – não aliviássemos os choros de crianças órfãs, não consolássemos os detentos injustiçados, seríamos, e somente nós, confidentes de um mesmo hino à estupidez do estar vivo. “Proêncio é mui raso, mestre Cosme. Agora deverá tratar de homenagear cada Frazão, Alves, Machado, Pantaleão ou quantos mais nomes emprestados de vegetais houver para ele afagar tristemente nesta tarde. O pobre do neto do sr. Frazão mal sabe o que lhe aguarda das pretensões de uma nobre casa. Conheço os Frazão de tempos idos. O sr. Lourenço sempre almejou aceder à alta sociedade com todas as forças.” “Creio que agora está menos realizado do que antes, minha senhora. Ele parece dirigir nosso departamento como um marinheiro conduz sua nau junto a angras e costões bravios. Sempre alerta a qualquer deslize no tratar seja com quem for da corte ou a quem a represente em missão de ofício. Confesso que isso me desgasta mais do que os próprios encargos diários, que são apenas maçantes”, ripostei cada vez mais entusiasmando em partilhar uma jarra de vinho com Marialva. Ela pareceu apagar de maneira suave sua luz, baixando a tez em lamento interno: “Imagino não ser tão penoso quanto ter em si a pressão de ser filha única de uma casa simples da Beira Baixa, e que teu pai a tenha oferecido a um estável marido logo aos treze anos. E com esse homem tenho passado a última década em tormentos físicos além-conta por não lhe dar herdeiros. Muitas vezes meu refúgio é o silêncio para não ser machucada, interna e externamente”. Aquilo me deixou atordoado, em verdade que vi certa angústia no seu crispar facial à primeira vez que pus os olhos nela. A luta silenciosa de Marialva só reforçou meu entendimento por aquele ser que, além de tudo, estava encapado na forma divinal das herdeiras de Eva. “Peço escusas, cara minha. Realmente jamais homem nenhum saberá o que é ter de se juntar à força a quem quer que seja. E se esse alguém ainda a violenta, tanto pior e agourento! Mesmo nobres como eu tivemos uma mínima escolha. Pus minha herança em favor de meu irmão. Não penso como um regalo mas sim como uma penitência. E se ele não gostar daquela vida de protocolos feudais, sem existir de fato? Não o dei a escolha, mas ele poderá tê- la se assim quiser. Mesmo também ficando aquém do querer e do poder, não somos cativos como vós mulheres. Por mim, se rei deste mundo o fosse, abriria todos os mares e países para o governo das moças. Sabereis conduzir melhor os humanos!” Ela sorriu e, pela primeira vez, vislumbrei o vagaroso calmar de sua alma. Seus dentes eram como belos bastões de marfim. Lábios purpúreos como uma cereja davam um enquadro colorido de alquimista naquele rosto-esfinge, os olhos claros sempre moldáveis a cada sentimento, a cada anseio. “Tu deves mesmo ter deixado teus pais mui consternados com essa decisão de partir. Mas diga lá: não haverá sido melhor tu teres ficado por Miranda depois de tudo o que viste aqui por estes meses? Pareceu-te a ti algo digno de alegria esta nossa capital?” Suspirei do mais fundo pesar. Era a primeira pessoa com quem podia ser inteiramente honesto desde que cheguei: “Houveste lido minha mente, estimada dama. Busquei um átimo de liberdade por cá. Infelizmente as coisas nas cidades ditas ‘civilizadas’ são só tristezas e prantos. Elas fazem-no pensar que a masmorra da ignorância campestre possa ser mais aprazível. Mas não queria ficar em minha aldeia de qualquer forma. Meus ímpetos e a herança de meu pai me teriam feito um crápula pior, já que possuiria maior sanha de poder. Uma sanha e um poder mesquinho e vazio, mesmo assim uma sanha, a chave para a crueldade. Por cá, essa sanha está apagada, porém deteriora o espírito de quem sente cada grito oculto de dor e desespero de nossa gente. Em verdade, busco algo que não mais alcanço em toda parte”. O vinho estava reposto por criados à mesa próxima donde quedávamos e já estava fazendo com que eu falasse demais àquela Atena penitente. “Então esse teu ‘buscar’ é o que almejam todos os chavalos quando não se enamoram do poder, pois não? Imagino assim que tenhas te apaixonado por outrem que não de ‘nobre’ casta lusitana, não? Pelas bandas de Castela, adivinho. Penso que, em seus estudos, encontrou alguém a quem não convinha união ante os pactos sociais. Por isso essa tua eterna desilusão ante a perversidade dos homens.” Talvez fosse de minha intenção que ela o adivinhasse, mas da mesma forma pegou meu ego de surpresa e quase desmanchei em tinta rubra a mesa forrada em grossa tapeçaria búlgara. “Tem mesmo o poder de visão larga a sra. Marialva. Não sei bem o que falar-te, mas estás quase à perfeição junto à verdade.” Ela mais uma vez sorriu de leve, esparramada nas covas de sua bochecha, um sorrir que derreteria bigorna rija: “Os homens, como dizias tu há pouco, não são tão difíceis de prever. Seja nas naus, na guerra ou na cama. Não superestime minhas habilidades, d. Cosme. Está disposto em tua face a agrura de uma apartação traumática”. Qual mais palavra haveria de dizer a ela? Meus instintos, tão acesos como as cores de minha capa capilar, só instigavam meu coração a invitá-la a subir numa sela, irmos a toda velocidade longe daqueles olhares indignos de confiança e conversa. Fôssemos até os confins do sul desta borda de terra, até os Algarves. Disfarcemo-nos de pescadores e tu, ó Marialva, que de Hera bebeste saberes,fazes-me olvidar daquela a quem meu velho Viriato tão cruelmente me quitou das benesses do bem querer! Tentei ser mais diplomático, e me era difícil. Como aguentar o chamamento dos instintos e impulsos daquele momento?: “Tens toda a razão, senhora. Infelizmente ela me foi tirada. Não falemos mais disso. Tu assim o mereces. Incluso porque teu caso, assim concordamos, é mais delicado e de menores perspectivas”. Naquele momento Proêncio, que a mim agora aparentava ser mais velho do que quando o mirei em sua esquálida residência, regressou de suas diplomacias para junto do braço de seu tesouro em forma de esposa. “Perdoem minha ausência. Creio que se deram bem como em minha casa, pois não, Cosme? Minha Marialva é boa em entreter amigos enquanto tenho por dever me ausentar.” O modo possessivo com que a envolvia agora me causava revolta, finalmente havia conhecido o verdadeiro Proêncio, um sádico ególatra apaixonado em manter cativo o que anseia por voar: “De certeza que sim, sr. Bragança. Estávamos mesmo a chegar quase a falar de si”, repliquei de modo tão irônico quanto (quase) colérico. Como podes ser tão estúpido, homem? Ao teres esta joia que ao Graal faria fronte e simplesmente tratá-la como uma cadela parideira? Estava a fazer reverências de despedidas ao casal quando, de súbito, sinto a mão leve DELA em meus braços. “Estamos na rua dos Ourives, hospedagem única, quarta casa. Venha nos visitar esta noite. Com muito gosto poderíamos celebrar esta Lisboa de modo mais legítimo e nítido a nossos paladares e corações, não achas?” Balbuciei algumas notas dissonantes antes de formular resposta a tão desejada quanto surpreendente invitação. “Pois sim, senhora, estimei muito revê-la e a seu marido. Se a ele for conveniente, posso prover-nos de vinho e algo…”, interrompi a prosa ao enfim lograr desviar minha face da dela e reparar que Proêncio estava em nova conversação. Talvez as formalidades do convidar estivessem tão só na vontade DELA em ter comigo. Arriscaria a incógnita. Na pior das hipóteses estaria à frente dela, junto a seu esposo, para uma última vista com este ser esculpido aos cuidados dos mais esmerados fabricos dos Olimpos, Valhallas e Nilos que algures os sacerdotes idealizaram. “Lá estarei, Marialva.” Seco e veloz assim o disse. Sem mais títulos prévios, só a chamei pelo seu nome, já suficientemente precioso em quilates nobiliárquicos. N VI. Encontrar e perder ão sei se elas brilhavam à minha empolgação de vê-la uma última vez antes do nunca mais. E sabe o Criador e até vós, espectadores, que por essa altura o inevitável acaso ou a sanha do fado trágico galgavam meus calcanhares. Mas era mesmo uma bela noite para abrir as cortinas fortes de uma morada tão preciosa quanto a vida de minha admirada. Ao menos os desígnios físicos da Terra me fizeram afortunado de amar a carne com Nola e o espírito vivaz com Alva, e de nenhuma obteria união. Talvez uma aliança ecumênica entre Dionísio, deidade grega das tentações, Loki, o deus germânico da trapaça, e são Valentim, santo dos amantes, explane tamanha contradição de ventura. Acenei um “até breve” a Samuel, que enxergava naquelas pupilas globais e lestas a gênese de meu momentâneo contentamento. “Vais voltar ainda por hoje, Cosme?”, indagou. “Na pior ou na melhor das hipóteses, regresso antes de o sol nascer. Tenho um ritual de intimidade para encerrar. Outro alguém que talvez posso jamais olhar. E desta vez é uma Eva. Creio que terei de olhar para tua barba de Judá ainda daqui a algumas horas, portanto até breve. Amanhã é o teu pagamento, não me esqueço, judeu!”, ambos caímos em graçolas fraternas. Saí em vagar paralelo à linha do rio até a altura do bairro do Rocio. Lá estava eu a subir a rua dos Ourives, bem próxima a comércios diversos. Algumas quadras por ela acima se encontrava a pensão Venezia, de nome em homenagem condizente à origem de seu proprietário, um caixeiro frustrado pela forte concorrência do ofício por cá: “Queres pousada, cavalheiro?”, indagou com um português mais macarrônico do que o de meu amigo hebreu. “Vim de visitas a um casal de amigos hospedado aqui. Proêncio e Marialva. Creio ser do conhecimento da esposa a minha vinda.” O velho fitou-me de modo malicioso com o anúncio, já a pensar lascívias em sua mente. E por que raios citei a invitação e a dona dela? Provavelmente pela primeira vez estivesse tão em ânsias que não medi as informações que transmiti ao ítalo. “Então subas. Creio que esteja à tua espera. É o maior quarto, no terceiro andar, ragazzo.” Agradeci desconfiado dos câmbios labiais do ancião, e só depois, às escadas, dei-me conta de que ele conjugou o verbo “estar” no singular. Ou o conhecimento dele de nosso idioma era ainda mais raso do que eu supunha ou a malícia era da largura do Tejo. A segunda opção parecia a mais plausível. Habitação única no terceiro andar. Nada mal para um casal de média nobreza. A pensão em si já era simples, o mínimo a fazer seria pagar pelos melhores préstimos. Foi o que fez o Bragança. Creio haver sido a única vez em que tremi daquele lado do Atlântico. Não sabia bem as razões de tanta insistência para a minha visita, apesar de imaginá- la. A atmosfera no batismo interligava nossos corpos, o meu e o de Marialva. Bati à porta e sentia meus ossos se alquebrarem ainda mais em tremor. O tosco do Vêneto estava correto. Lá estava Marialva, e apenas ela, a me receber belíssima em simples vestido decotado de renda. “Então vieste mesmo, e na hora aproximada que firmamos!”, congratulou-me toda contente de mim e de si. “Passei por despedidas tristes demais na minha ainda curta vida para desperdiçar a chance de terminarmos os assuntos que iniciamos naquele primeiro sacramento do não menos belo neto de meu patrão”, referi em uma mescla de cinismo e sinceridade a ela, com a arcada dentaria minimamente à mostra a transparecer isso mesmo. “Seu patrão não é um benfeitor nem tampouco, muito provavelmente, essa indefesa criança também o será. E os sacramentos de beneditinos há muito corrompidos pouco ou de nada valerão para cambiar este cenário, meu senhor Fernandes”, ela retribuiu o sorriso crepuscular naqueles lábios à mão desenhados, de uma coloração feito a das framboesas de Castro Laboreiro, as altas montanhas do Minho. “Estás mais uma vez com a razão, senhora Marialva. Tua sabedoria me espanta e, confesso, esta tarde só conseguia me lembrar da Atena em auxílio ao desamparado Perseu enquanto fluía como água corrente nossa prosa”, disse-lhe agora de rosto sério e de coração mais aberto. A brancura do seu rosto pareceu levemente corar: “Da mesma maneira que eu o sentia não um Perseu ou um desamparado, mas sim um imperador de Roma ou de Constantinopla, no ápice de sua majestade, para não mais querer seguir padrões tão rasos dessas injustas convenções sociais. Não vais me perguntar onde está Proêncio? Voltaremos a Coimbra à terceira hora da manhã de amanhã”. Estava cada vez mais desconcertado, encurralado como se estivesse diante de um inimigo terrível: “Fico honrado por teus pensamentos serem tão altos como os que nutro por ti, Alva Maria de meu coração. É pena não termos falado adequadamente quando nos conhecemos em tua morada. E sim, onde está teu esposo, aquele que falou mais de colheitas e políticas das Beiras no batizado do que eu ou tu gostaríamos?”. A pergunta tinha uma expectativa algo medonha, pois imaginava a resposta e amaria ouvi-la, mas também a temia. Sua ausência para mim era muito tentadora com aquele ser celeste na pelugem de mulher à minha frente. O que seria de mim junto, por breves instantes, dessa dona de brasões que não se escudam em tolices terrenais? Marialva mal se apercebeu de minha agonia, ria agora como um peixe n’água por estarmos juntos: “De fato ele está a fazer o que sempre faz quando vem à capital. Sai à noite para uma literal Carreira das Índias de taverna em taverna. O Atlântico são todas as ruas e calhes, e a nave é o vermelho álcooldo vinho e o branco do bagaço. Ele, teu mestre Frazão e mais uns sete ou oito repugnantes convidados do beato batismo, Cosme. Desta vez, entretanto, conheci alguém que valia a pena ter em conta para preencher minha solitude noturna”. A resposta era mais complexa do que imaginava. Não ousava ter o ímpeto que costumei ter com meia Salamanca e Lisboa junto a essa digna mademoiselle que valia o cruzar de todo o Mediterrâneo por Jasão. “Entendo, minha dama. E, mais uma vez, lamento imenso por isso. Acho que irei dizer a coisa mais óbvia que falei hoje para si – Teu esposo é um tolo, e dos grandes. Já me apercebi disto em vossa casa e agora simplesmente me choco na inconformidade de tamanho obtuso para te abandonar nesta cidade cruel e estripada de pobreza. Ao menos a noite está estrelada como há muito não se via. E a lua está em crescente. Talvez em tua honra.” Os olhos cinzentos dela, mui similares a um mar recém-apaziguado por um céu pós-tormenta, brilhou e inflou em algo que lembrava um princípio de pranto. Não a deixei prosseguir. “Em Trás-os-Montes costumamos medir os céus como presságios de grandiosidades. Mesmo os céus vedados são bons para algo no porvir. Mas uma noite apinhada de guias brilhosos como esta só pode condizer, segundo essa crença, com algo mui especial. Acredito ser nosso encontro. Creio muito mais nas estrelas do que em qualquer entidade divina.” Ela se aproximava de mim quase com magnetismo: “Eu também, Cosme. Por isso mesmo já desisti de rezar pela mudança virtuosa de Proêncio. Quanto mais o tempo passa e eu não o provejo de herdeiros, mais ele me usa como troféu de alcova puro e simples. A troca, não de afeto, mas de carícias, se existiu alguma vez, se esvaiu em agressões. Não nascemos para nos unirmos. Mas nada mudará isso. Quis ver-te uma última vez para mirar o que poderia ter sido se nossos sendeiros se tivessem cruzado dantes. Esta é a razão, por favor, não me tomes como uma pequena nobre à procura de frivolidades”. Nada mais poderia dizer. Nem mesmo minha mãe e genitora ou todos os meus mestres acadêmicos e religiosos poderiam ter me dado tamanha ensinança do viver e, para engrandecer mais a lição, do viver de maneira triste. “Marialva, tu me ensinaste muito mais do que em duas vidas poderia obter. Ó estimada estrela deste céu puro, também não me tomes por instintivo e libidinoso. Vim aqui em busca do leite e do mel de tuas palavras e de teus câmbios no modo como me olhas. Tal e qual Moisés prometeu a Zípora, tu sem o saber me prometeste o jorro desses bens de tua face. Minha terra prometida não fica em outrem ou algures senão a teu lado. Eis a vil crueza do viver, já que és de um outro indigno.” Estava ela quase que achegada a mim. Visualizava como um todo a minha emoção. Por isso talvez tenha baixado a cabeça de repente: “Folgo em saber que também estamos em sintonia sobre isso. Não me compares a esses divinos seres. Se o eram mesmo celestiais estou longe deles. Sou apenas uma mulher a existir numa existência que se escasseia como água estragada em tonéis esquecidos”. Suavemente toquei em seu formoso queixo, subindo sua face para junto da minha: “Tu jamais serás poluída por qualquer que seja o passo temporal. Se o Criador é aquele a quem é proibido blasfemar, tu és digna das maiores realizações. E não desejo que te compares mais a ninguém. Sejas apenas Marialva para mortal. E por tão pouco tempo!”. Tomei-a em meu peito. Ela agora chorava sem subterfúgios. Beijei-a como se minha vida dependesse daquele toque. Estava mais preocupado em salvá-la do luto do que propriamente em me santificar naquela boca de textura como a de um trigal a raspar as mãos de uma criança. O eterno confiou a nós aqueles pequenos minutos de enlace anímico em estado bruto. Mas a conjuração ecumênica mencionada veio à tona. Dionísio soprou aos ouvidos do ébrio Bragança, o dissimulado Loki esteve junto ao bronco proprietário local. E agora são Valentim finalizava o serviço. Estava irremediavelmente apaixonado quando a dupla de maltrapilhos desprezíveis arrombou os aposentos e nos flagrou como dois cisnes a nadar num lago boreal. “Cosme? És tu o cão ruivo de quem este Genaro descreveu? Infeliz maldito! Ingrato! Bem o sabia que em um Fernandes não se fia nem uma palha de um prado. Desgraçado, afasta-te desta puta que primeiro ela terá o que merece as rameiras de todas as plagas que enganam seus maridos à punhalada!” O ridículo, visivelmente bêbado, e eu reconheço um quando este assim se encontra, berrava descontrolado. Meu coração batia de ódio por Marialva. Insultar de puta aquela flor do mar Egeu era demasiado para mim. Como há minutos antes, não pensava no porvir, éramos apenas nós, pranteando a felicidade do complemento fugaz e momentâneo. Agora, todavia, era a crueza do combate, do cruzado ofendido pela blasfêmia de um herege que vinha a nublar meu futuro próximo. A covardia daquele dejeto em forma humana chegou a seu cume quando sacou uma adaga. Covarde, pois, já que me encontrava desarmado por completo. Mas não, leitor, não! Ele sobreveio diretamente à Marialva, indefesa, e não a mim, o que seria mais justo. Duas vezes covarde era o suíno! Mesmo a um embriagado era velhacaria em demasia. Tudo não passou de segundos. Consegui segurar seu ímpeto com meus dois braços a proteger a menina de meu despertar. Ela apenas chorava e desesperava a cada palavra escarrada que ele proferia e, daquele instante em diante, pelo gesto que tomaria. Talvez a branca pétala quisesse que aquilo terminasse de vez, que o destruidor de seus sonhos também desse cabo dela própria. Nunca, jamais em minha presença! Suspendi sua mão destra e, num golpe ligeiro com o cotovelo de minha mão livre, o derrubei ao chão e de seguida girei a lâmina contra o seu dono. Mais jovem, forte e sóbrio, não me foi difícil enterrá-la, cheia de rancor, no lado esquerdo do peito daquela besta que talvez tivesse um caroço de azeitona a bater no lugar do coração. Tudo nublou. Ele havia caído no amadeirado quando desferi a facada, inteiramente ensanguentado. Ainda não pensava no que haveria de vir a meu encontro. Fui despertado pelos gritos de Marialva. O tal Genaro se fora e, em minha cólera, não me dei conta. “Cosme, por todos os arcanjos e santos da Santa Sé. Permitisses minha passagem, minha morte. O que será de mim agora, e, pior, o que será de ti? Aos olhos da Justiça cometeste adultério. E contra um membro da família da rainha-mãe de Portugal!” “Não me importo com a merda da rainha-mãe de Portugal, de Judá, Sabá ou do Preste João. Queria e quero proteger-te, meu anjo. Aquele maldito inseto chamou-a de termos inomináveis. Faria tudo outra vez, à mesma maneira!”, disse-lhe ainda ofegante e a recuperar a razão do estado em que nos encontrávamos. Ela voltou a meu peito num abraçar de doçura apocalíptica: “Não compreendes. Serás exilado em um couto perdido ou mesmo morto pelo que fizeste. Meu Fernandes, meu menino Cosme, irmão de são Damião que me libertou e aprisionou-me em sua morada interna. Agora nossas vidas estarão destroçadas e apartadas no carnal apenas para estarmos unidos em pensamentos! Era preferível termos morrido”. Ela soluçava sobremaneira, debatia-se junto a meus ombros, mais bambos do que quando adentrei naquele recinto, naquela antessala de meu destino. Lágrimas indecifráveis me caíam também. Só consegui abraçá-la mui forte de volta. Logrei dizer a ela: “Fujamos, e imediatamente. Chega de desesperança, minha querida! Cavalguemos ao sul. Atravessemos para Castela pelo Guadiana, não estaríamos longe de Sevilha. Sejamos pedintes mas sejamos felizes, meu bem querer. Tu assim mereces, Marialva minha”. Passei as mãos sobre sua face e sentia que ela havia consentido com o insano plano. Não tínhamos mais escolhas do que sermos a felicidade que nos habitava ou morrer intentando-a. Tarde demais. O maldito e pequenino d’alma Genaro já havia acorrido à Guarda Real, dado todos os nomes, o do finado incluído. A porta
Compartilhar