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O apatrida_ a saga de um degred - Julio Moredo

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Apresentação
Estêvão Azevedo, vencedor do
Prêmio São Paulo de Literatura 2014 com o livro Tempo de espalhar pedras
Salvo terraplanistas, ninguém duvida de que chegar até a Lua foi das mais
admiráveis façanhas da humanidade. Havia o risco de morte, se algum dos
cálculos ou dos equipamentos falhasse. Porém, em meados do século XX,
dotados de tecnologia avançada, os corajosos desbravadores já eram capazes de
antecipar o que poderiam encontrar nos áridos terrenos de nosso satélite
natural. Certamente nenhum alienígena de pistola laser em punho, como os do
cinema ou da literatura.
Coisa bem distinta é avançar rumo ao completo desconhecido, a locais
jamais vislumbrados e nos quais de fato podem habitar feras ou canibais,
míticos ou reais. É por isso que poucas aventuras humanas fascinam tanto
quanto a dos grandes descobrimentos, capitaneados por portugueses e
espanhóis nos séculos XV e XVI. É ao coração desse período que o jornalista
Júlio Moredo nos transporta em seu romance de estreia.
Narrado pelo degredado trasmontano Cosme Pessoa Fernandes, de apelido
O bacharel, O apátrida nos convida a conhecer na intimidade desde os nobres
salões lisboetas onde a façanha ultramarina foi gestada até as distantes
ocupações pioneiras no território em que seria constituído o Brasil, então
dominado por carijós, tupiniquins, guaranis e outros povos indígenas.
A mistura engenhosa de excelente pesquisa e fértil imaginação resulta
numa prosa ao mesmo tempo elaborada e fluida, de ritmo vertiginoso, na qual
convivem, para deleite do leitor, intriga palaciana, desventura amorosa e a
inigualável aventura que era atravessar o Atlântico, passando pela costa da
África, rumo à povoação do continente recém-descoberto.
Coordenação geral
Mary Lou Paris
Prearação de texto
Adriane Piscitelli
Revisão
Lila Zanetti
Projeto gráfico e capa
Antonio Kehl
 
 
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M835a
Moredo, Júlio, 1991-
 
O apátrida [recurso eletrônico] : a saga de um degredado no Novo Mundo / Júlio Moredo ;
[coordenação Mary Lou Paris]. - 1. ed. - São Paulo : Terceiro Nome, 2020.
recurso digital ; 1 MB
 
Formato: ebook
Requisitos do sistema: conteúdo autoexecutável
Modo de acesso: world wide web
Textos de orelha e contracapa assinados
ISBN 978-65-87618-04-3 (recurso eletrônico)
 
1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Paris, Mary Lou. II. Título.
 
20-65661
 
CDD: 869.3
CDU: 82-31(81)
 
Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135
 
Copyright © Júlio Moredo 2020
 
 
Todos os direitos desta edição reservados a
EDITORA TERCEIRO NOME
Rua Professor Laerte Ramos de Carvalho, 159
01325-030 – São Paulo, SP (Brasil)
www.terceironome.com.br
fone: (11) 32938150
http://www.terceironome.com.br/
Eu não sei prá onde a gente vai
Andando pelo mundo
Eu não sei prá onde o mundo vai
Nesse breu vou sem rumo (...)
Vanessa da Mata
in “Onde ir”, Álbum Vanessa
da Mata,Sony-Brasil, 2002
Sumário
I. Meu regaço trasmontano
II. Erudição no claustro
III. De Coimbra a Lisboa
IV. A capital da ganância
V. Labuta e masmorra
VI. Encontrar e perder
VII. Julgado ao mar
VIII. A aparição de Madonna
IX. A travessia
X. São Tomé
XI. Mare clausum
XII. Pioneiro apagado
XIII. Chegança
XIV. Mutu-pá-pá-bá, Cari acaba
XV. Maratayama
XVI. Adentrando ao prenúncio
XVII. Um encontro inesperado
XVIII. O porto do desgarrar
XIX. Trovões de fado
XX. Entrincheirar-me em Icapara
XXI. Armageddon Tupã
Epílogo: A partida de Caniné
N
I. Meu regaço trasmontano
asci numa noite primaveril do ano de Nosso Senhor de 1474 na vila
raiana de Miranda. Chamo-me Cosme Pessoa Fernandes, mas entre as
autoridades penais de meu país e companheiros de prisão duma isolada ilha
etíope na Guiné fui cognominado como “O Bacharel”, talvez por ter estudado
em Castela e por ter atuado como ouvidor em Lisboa, nunca o saberei.
Cá vivo agora em outras terras, outros oceanos, com outras gentes e
pássaros. Isso, porém, é outra história, me escusem os leitores destas confusas
memórias de um velho que viveu em sua vida muito mais do que lhe aprazia.
Varão do orgulhoso clã dos Fernandes, tinha eu meus catorze anos, já à
caça de linces e raposas no vale do Douro, quando soube novas por meu pai
que o tal genovês dispensado, segundo ele, anos antes por nosso rei d. João II,
havia chegado às Índias antes de nossos paisanos. Pelo oeste! Papá dizia ser
lorota dos reis de Castela.
Eu tendia a crer nele, homem patriota que apoiou, com nossa modesta
força viscondal, o sereníssimo Príncipe Perfeito d. João contra aqueles bastardos
dos Bragança. Esta família era nossa vizinha feudal há séculos e usurpadora da
gloriosa casa de Avis desde que meu bisavô Sancho Fernandes ajudou d. Nuno
Álvares e nosso futuro rei d. João I a pelejar contra os castelhanos em
Aljubarrota, com eles apoiando os inimigos da independência da pátria.
Eram tempos estranhos, diziam-me por todo o lado. Mudanças repentinas
a norte, sul e leste desta Europa operavam galopantemente. Rumores delas
chegavam à nossa herdade dos Fernandes, com mãmã sempre reportando o que
ouvia de papá à mesa, na ceia, quando pela manhã ele saía para encontros com
o padre mirandês.
Turcos em Constantinopla, avançando por Balcãs e Cárpatos. Veneza e
Gênova guerreando pelo comércio otomano com o apoio de ducados
germânicos. Limitado ao norte pela céltica Escócia, o reino dos saxões, o qual
chamamos de Inglaterra, estava, na sua ilha, em ascensão absolutista similar à
ocorrida cá em Portugal, séculos atrás. Em França, conflitos por cada pedaço de
chão daquele vasto país, com todo fragmento de terreno ainda cobiçado por
francos e ingleses, numa guerra que meu avô dizia ter durado cem anos.
Por aqui, Castela e Aragão estavam unidos e batiam-se de frente com nossa
Coroa pela hegemonia do mar Atlântico, o Tenebroso, e pelo monopólio dos
escravos etíopes e suas ilhas de África, havendo eles expulsado de uma vez por
todas a moirama da península que nos alberga a todos. Eram tempos estranhos.
Estranhos não, velozes nas rodas da História, em que Miranda se quedava tão
longe e tão perto de tudo.
A mim, porém, essas questões pouco me importavam. Estando apenas
obrigado a honrar minha linhagem pela primogenitura e inconfundível barba
ruiva de meus antepassados.
Haveria de estudar direito, física médica ou rumar à cura episcopal que,
por razões incompatíveis que recaíam sob meu perfil, era tarefa impossível, e
minha família o sabia. Teria de ir a Coimbra ou a Salamanca para os estudos.
Optei pela mais próxima de ambas, já em terras da rainha Isabel. Estava eu
com dezessete anos e respirando a pureza libidinosa da juventude.
Raríssimas vezes saíra de minha Miranda, onde vivi feliz os anos
irresponsáveis e escassos de minha garotice. Minha existência, de Salamanca
para diante, foi acelerada quase em paralelo com a ladina roda histórica, em
frenesi tão forte que duro foi a um trasmontano por acidente do destino a
acompanhar.
Uma vez havia ido com meu pai à cidade do Porto negociar nosso
excedente de vinho roxo e cortiça. Lá percorri um real burgo, sem fazendas ou
arados. E soube que nossos produtos iam longe, a algures como Frísia e
Dinamarca, onde os povos nortenhos parecem apreciá-los junto a suas boas
cervejas e hidromel.
Aterrorizei-me um pouco ao ouvir, em português quase galaico do
barqueiro, um normando, a largueza da viagem. Dias imensos até o destino,
terríveis como a descrição do traslado pelo Tenebroso: duas semanas de navio
por tormentas, sobretudo no canal inglês.
Noutra ocasião fomos a Zamora, em Castela, para sua feira anual.
Acompanhei o velho Fernandes fronteira adentro por pura precaução. Dois
dias em coche de mulas eram suficientes para ladrões naquelas plagas
montanhosas e agrestes.
Por lá experimentei o amor de Manola e percebi de vez, aos quinze, que
minha sina era me dotar de motivação aventureira contanto que estivesse sob a
bula protetorade braços silenciosos e ternos de uma mulher. Quanto prazer,
euforia e serenidade simultâneos desbravei naquele corpo espanhol, quanta
satisfação deu-me saber que a possuía com os louvores do orgasmo.
Meu velho mal viu minhas escapadelas com Nola naquelas duas noites
mágicas, em que o mundo tinha razão pela sua desimportância. Era tudo uma
aventura – namorávamos ao luar, sob as margens do nosso Douro, aos uivos
dos lobos no frio vociferado de dezembro, a sinfonia musical daquela adoração.
Prometi à rapariga voltar pronto, ainda que escapasse a pé de Miranda para
resgatar aquela morena campesina com olhos de águia. Salvando-a de seu pai
violento, crápula hortaliço. Iríamos pela escuridão da madrugada até as
Astúrias e de lá para França, quem sabe mais para donde? As terras sobre o
firmamento pertenceriam ao nosso afeto.
“Tu vens mesmo, meu lusitano de fogo? Quero-te comigo, longe dessa
nossa península esquecida. Fujamos para Itália, onde a arte e o amor são
cultivados sem a barbárie daqui.”
Jurei que iria. Não seria a primeira promessa que quebraria na vida. Papá
era mais maroto que havia previsto. Sabia do meu caso e, com duas irmãs e um
irmãozinho a caminho, fui proibido sob ameaças de abandonar o brasão de
minha Casa.
Era Salamanca, sem escalas em Zamora, que me aguardava. Um sítio só de
homens! Lástima, ódio de toda essa falsa pompa que deveria honrar. Um
brasão de uma família dona de porcos e parreiras! Lá teria eu de ficar num
claustro, sem damas, até terminar o curso de ouvidoria e direito. Jurei que
correria para a costa assim que saísse. Meu mano bebê que cuidasse da tal
“Casa nobre”.
Quanto a mim, nada faria sentido sem a chama ardente de uma anja me
acolhendo. Soube por meu tio Miguel, comerciante da fronteira, que Nola fora
obrigada a se casar com um taverneiro de Segóvia e foi às bodas quase amarrada
pelo seu chauvinista genitor. Meses depois ouvi que um sócio seu esteve de
viagem à capital de Castela e havia fornecido vinhos do sul de França a um
taverneiro que tinha uma linda esposa de cabelos escuros e um filho de pelos
vermelhos. Não deixei de misturar sarcasmo com a dor de relembrar das
escassas noites em que concebi um feto de puro amor que nunca encontrará
meus olhos nem eu os dele.
Como sofri nessa visita de meu tio, quando da leitura da carta de seu
comparsa. Restou-me Salamanca e seus muros universitários cheios de clérigos
e de alfacinhas. Conheci o vinho, que me ajudou a aturar a coisa toda. Lisboa,
a capital de meu reino, cheia de possibilidades femininas, era agora minha
meta depois de três anos de graduação naquela fria região.
No futuro o leitor (de modo piedoso, espero) verá que acabei por conhecer
as intimidades, os encantos e os charmes de fêmeas de Lisboa àquilo que, não
sabia o porquê, chamaram de “Novo Mundo”. E só com uma delas, já nas
margens do litoral poente, cheguei à explosão do prazer conjugal sem
mencionar instintivamente o nome Nola…
Curioso, caros amigos atemporais: escrevo-lhes esta missiva memorial em
gravetos, pela areia batida e dura da longa praia que me alojou por décadas. Sei
que a maré levará embora minhas palavras de viveres, mas quem sabe as
apagando na terra este mesmo Atlântico não se encarregue de entregá-las à
eternidade? Guiado pelas constelações até o meu antigo Portugal, a São Tomé
donde também vivi, enfim, à posteridade? Com minha vida já feita e fatigado
por uma batalha de morte contra meus antigos patrícios, creio serem dignas de
nota todas as minhas agruras neste redondo plano de Deus e de deuses. Mas
essa também é outra história. Voltemos a Salamanca.
N
II. Erudição no claustro
ão posso dizer que no triênio em que estive na capital estudantil
espanhola a conheci por inteiro, muito menos que tenha sido feliz e
prazenteira minha passagem por lá, muito por fatos já conhecidos de vossa
mercê, meu amigo (não importe se o chamar assim, é a carência de quem vê
várias facetas de um só globo, a solidão de quem muito conheceu).
Já dormia a pensar no sufocante pátio interno, cheio de regras e sermões de
monges e padres, nossos tutores. O tédio era nosso companheiro de
primeiríssima hora e os castigos a quem o demonstrava de feição eram físicos e
brutais até para quem conheceu invernos e infernos.
Minha família, desde o fundador dos Fernandes, um intrépido visigodo
chamado Ferdinando de bodas com a filha de uma condessa sueva, sempre
jurou fidelidade e credo à Santa Madre Igreja. Meus questionamentos sobre
essa fé quase cega foram crescendo de modo proporcional ao avanço de meus
estudos em filosofia, teologia e dialética greco-romana.
Os vigários não podiam esconder as patranhas lucrativas que impunham à
Cristandade, as ameaças vis e covardes de um inferno post mortem para os que
não pagassem o dízimo. O álcool me auxiliava a escarnecer de tudo isso com
Alonso, um aragonês dos poucos ali que considerava meu amigo.
“O frade Cabrera é o pior. Acha que vai extorquir minha família além das
quotas absurdas da Universidade. Ele finge que não sabemos dos seus desvios
com cabritas, humanas e animais, nos barrancos desta cidade. Ah se as
muralhas daqui falassem ao cair da tarde! De mim ele não terá mais um tostão.
Tampouco aceitarei que meu pai aloje qualquer pároco dele em Alcañiz, minha
Puebla. E tenho dito!”
“Não demorará muito para que vejas teus pais novamente? Não será veloz a
chegada da carta dele agora que teu rei Fernando se casou com Isabel deste
daqui?”, respondia eu sem querer desanimá-lo (a raiva que sentia por Cabrera e
por todos aqueles decrépitos tarados era a mesma que ele sentia).
“Não creio, Hernandes, caso não saibas, meu padre é mui bem conhecido
cá no coração castelhano. Sempre tivemos comércio pelas estradas daqui aos
Pirineus. Já me antecipei aos vivaldinos e, numa das raras folgas daqui,
entreguei ao estalajadeiro no início da estrada o alerta em letras ao meu senhor
e à senhora minha mãe, que haverão de dar ouvido a quem não mente, mesmo
indo contra a Igreja”, cravou o que disse com a confiança dos justos.
“Ah, pois então era isso que fazias naquela noite enquanto eu visitava o
celeiro junto daquela messalina que abandonou o convento?”, indaguei-lhe,
tentando dissipar a seriedade do diálogo.
“Pois sim, homem, não misturo meu sangue com a leviandade de um
português! Minha prometida me espera em Saragoça. E a porta na cara de
Cabrera o espera em Alcañiz, perro dos sete infernos e do paraíso. Ui, não
ofendamos Roma e seu Jefe Borgia, não é, Hernandes?”
As risadas eram uníssonas e inevitáveis. Havia encontrado outro com o
mesmo desprezo pela soberba e pela hipocrisia humana. Ajudávamo-nos
mutuamente nos estudos, no convívio, nos alertas para falsos colegas e mesmo
nas saídas noturnas do prisional pátio colegial.
Alonso haveria de ser meu melhor amigo nessa complicada fase de minha
vida, uma pessoa a mais, a somar a Manola, que a mim faria companhia nos
devaneios de minha mente durante as longas vigílias oceânicas, cruzando os
mares com os melhores de Sagres, a olhar para constelações.
Os tempos, segundo sempre ouvi dos mais velhos nas ruelas mirandesas, de
fato estavam passando mais rápido. As novas nunca chegaram de tão longe e
tão rápido. E naquela ligeireza o triênio em Salamanca passou-se num
momento entre bebedeiras e escaladas ridiculamente perigosas dos muros da
escola de direito, os sexos miseráveis com as putas das bordas citadinas e as
torturas físicas e psicológicas daqueles curas de almas sem colhões ou virilidade,
moral e física.
A formatura veio em abril de 1497, quando habilmente convidei meu tio
não para as cerimônias, que eram intimistas e fechadas a externos, mas, sim, à
cidade, onde haveria de lhe perguntar se conhecia alguém na papelocracia do
reino que pudesse me levar à capital.
Soube por ele, sempre muito bem informado das coisas portuguesas, que
nosso el-rei d. João havia morrido de forma precoce e abrupta. Ao contar os
poucos detalhes, nada tirava da cabeça do velho a tese de venenocolocado
pelos Bragança, em conluio de interesses com os Reis Católicos da nova
Espanha.
“Foi uma lástima, garoto. Nosso Príncipe Perfeito merecia vida mais
longeva, com mais glórias terrenas. Ele conseguiu um acordo maravilhoso
arrancado a ferro do casal poderoso de Espanha em Tordesilhas. Metade do
mar Tenebroso é nossa para leste das tais ilhas de Cabo Verde, já com gente
portuguesa. A África, a par das Canárias, também ficou conosco. Nossas
feitorias e o tráfico de etíopes estão assegurados. E agora, com essa dobra do
Cabo sul-africano… Bartolomeu Dias começou e um fidalgo do Alentejo,
Vasco da Gama, estimado almirante, há de terminar esse périplo. Chegaremos
às Índias, Cosme, e pelo leste, como teu pai sempre alertou.”
Sempre me fascinava o modo empolgado com que o tio Migué contava
tudo o que considerava importante: “Sei disso, tio, nunca duvidei de papá, que
é um homem rígido como um marinheiro sem suas crenças, mesmo nunca
tendo remado um bote sequer no Douro”, ri-me com um misto de mágoa e
saudade daquele velho turrão, meu pai Viriato Fernandes, de nome mais
lusitano impossível.
“O problema, meu tio”, prossegui, “é que, pelo que me diz o senhor, senta-
se agora no trono de Sintra um rei dos Bragança, pelo menos do lado materno.
Ele era primo em primeiro grau d’el-rei d. João, que mandou matar seu pai,
que era seu primo e cunhado. Que gran confusão! Não que eu me atenha
muito a isso de casas, mas será mais difícil para um Fernandes conseguir
emprego na corte de um Bragança?” Era isso que mais me inquietava no
momento.
“Nunca nada é difícil para Miguel Fernandes, Cosminho, queda-te
tranquilo, chavalo! Hei de falar com um Bragança amigo meu e companheiro
de justas cavaleiras em Chaves. Ele é do ramo ‘pobre’, por assim dizer, do clã
deles, mas por isso mesmo é mais refratário a essas inimizades medievais. O
mundo está mudando e essas coisas têm de mudar com ele. Vou recomendar
sua ida a Coimbra. Ficarás na sua pequena quinta enquanto ele enviará a
Lisboa uma petição ao próprio duque da Beja, el-rei
d. Manuel I, para que tu trabalhes junto ao Terreiro do Paço como ouvidor e
conselheiro jurídico dos ministérios reais.”
Senti como poucas vezes meu coração inflar de alegria: “Tu te escondes
facilmente atrás dessas roupas de viageiro, não, tio Migué? Muito obrigado de
todo. Devo partir em uma semana destas serras castelo-leonesas.”
“Ótimo, avisarei a ele com antecedência. Daqui sigo para Miranda, depois
a Coimbra. Devo chegar lá em quatro dias. Tempo suficiente para despachar
alguém a Lisboa em nome de Proêncio Bragança, o dito-cujo que irá te
hospedar. Deve-me favores equinos o homem.”
“Não sei o que te dizer, tio. Só me arrependo de não conseguir ir mais um
pouco a leste antes de voltar a Portugal. Ainda gostaria de raptar Manola de
Segóvia, nem que fosse por brevíssimos minutos.”
Meu bom parente arrepiou o largo bigode branco-carmesim: “Deixa disso,
homem! Tens agora carreira e solteirice pela frente. Lisboa nunca esteve tão
cheia de estrangeiros, de diplomatas a prostitutas. Nossa maior cidade é um
dos maiores entrepostos do continente. Fará tu esqueceres dessa chavala em
pouquíssimo tempo. Uma aldeota não pode com mulheres de todas as
proveniências, qualidades e sabores, hás de ver”.
Meu íntimo palpitava com a ajuda paternal daquele irmão de meu pai. Tão
mais parecido comigo. Quando e onde poderia retribuir-lhe? Nunca mais, e
pensar que também nunca jamais o veria de novo. Tio Migué: outra face
inolvidável de minhas desolações tropicais.
Dei afetuoso adeus a Alonso, caríssimo moço do vale do Ebro. “Vás a
Barcelona um dia, Hernandes, hemos de nos divertir naquela cidade condal à
beira-mar. Depois irás querer um peixe assado de minha Puebla, riquíssimo em
sabor.” Agradeci e abracei-o imenso. Minha humanidade começava a aflorar
mais do que pequenezes de morais e bons costumes. Era mais um que jamais
veria.
S
III. De Coimbra a Lisboa
aí de Salamanca em plena primavera, em maio de 1497. Mal celebrei a
quadra pascoal com os “estimados” párocos da faculdade, se bem me
recordo. Preferi ir em comboio de coches com um sacerdote navarro que iria a
Braga, cidade bispal. Aproveitei a boleia para viajar escoltado pelos perigosos e
visados desfiladeiros do Douro. Soldados do pequeno reino entre Aragão e o
sul de França eram agora minha guarda particular.
O preço disso foi aturar por mais três dias e duas noites as ladainhas
religiosas de outro homem corrupto, amigo do instrutor chefe de Salamanca
Saul de La Mancha, antissemita contumaz e colega de seminário de ninguém
menos que o infame Torquemada, o inquisidor da flor pútrida que era a beata
rainha Isabel. O homem realmente não podia ser boa coisa tampouco boa
companhia.
Ao cruzar o vale de Bemposta entramos em território português pela minha
inevitável praça de Miranda. Despedi com júbilo da terrível comitiva do
religioso. Tive que segurar minha resiliência de partir sem visitar a casa
ancestral de meus pais.
Nosso Senhor, se de fato existe e andou encarnado pelo mar Morto e da
Galileia, fez por bem me mandar lá para ao menos poder rever minha mãe e
irmãs e dar uma única olhada naquele menininho que seria o futuro dos
Fernandes. Plácido Galba Pessoa Fernandes era seu nome. Costume visigodo
dos meus era dar nomes romanos. Meus antepassados nórdicos usavam desse
recurso para serem aceitos pela população celta-romana que aqui habitava.
Galbinha sorriu ao me ver. Estava junto dos braços de minha já idosa mãe,
velha demais para ter de arcar com um rebento. Ainda, todavia, uma luz de
esperança para minha família! Espero que tenha tido aptidão para a governança
feudal, pois, felizmente (e não penseis vós que não me conscientizo do
egoísmo), pude ter a liberdade da escolha de abandonar a miúda atividade de
zelar escudos e de casar com gordas nobres para ter fedelhos mais feios do que
elas próprias. Realmente leguei isso ao pequeno Galba. Que minha mãe não
me condene por deixá-lo com essa responsabilidade, e que ele tenha pena do
que veio a me ocorrer depois.
Dela também me despedi com um “até breve”, que voltaria com novas de
Lisboa, das fofocas da corte e das últimas desse amálgama de cultura que
passava pelo Tejo. Dona Jacinta Seixos Pessoa, prima em terceiro grau de meu
pai, abraçou seu varão como se nunca mais o viesse a vê-lo, naquele instinto
maternal que todas as espécies peludas têm.
Deus, Alá, Javé, Júpiter ou Odin bem sabem o quanto queria eu haver
retribuído com a mesma emoção aquele toque que de pronto tornei protocolar
por minha parte.
Tinha por irmãs duas criaturas vivazes a quem muito bem queria:
Berengária, mulher já feita em regras, e Custódia, já a caminho da maturidade
física e sapiente. Ambas fizeram o mesmo ao seu parceiro de ensinos de caça e
corridas. “Adeus a todos. Amo vocês” é o que digo agora, orando a Ele para que
valha por suas almas.
Aceitei ainda passar o final daquela primavera junto dos meus, tratando
dos pormenores da transferência de herança para Galbinha. Éramos pequenos
nobres, viscondes, e mesmo assim tínhamos um belo palacete campestre, muito
melhor do que os pobres reféns da papelocracia mirandesa, que controlávamos
inteira em nome da Coroa. Algo me dizia que aquelas mudanças além-
fronteiras fariam de alguns novos ricos, de velhos ricos mais ricos e da massa
empobrecida uma maior porção de si mesma para se estatelarem na lama da
miséria.
Com o raiar do verão, em princípios de junho, essas questões documentais
foram finalmente superadas e minha ansiedade já não me segurava por lá.
Estava seguro em viajar pela Estrada d’el-Rei, obra de nosso sereno Príncipe
Perfeito d. João, que ligava Trás-os-Montes à capital passando pelas Beiras
Altas, chegando a Coimbra. Era um trajeto de umas vinte milhas até as várzeas
do Mondego. Nunca havia pisado tão ao sul de meu país.
As gramíneas, carvalhos isolados e figueiras seculares se assomavam na bela
vereda. Meu Portugal era mais fértil do que a seca e poeirentaCastela e seus
morros cor de chumbo eram repletos de ruínas imemoriais de torres de
menagem dos tempos da finda Reconquista Cristã.
Não que cá não tivéssemos tudo isso também. A paisagem, porém, se
desmantelava de milha em milha em novas descobertas de charnecas virgens e
pequenos vaus dos afluentes do Mondego, vindos dos lendários Montes
Hermínios, cordilheira de que sempre ouvi falar e divisei ao longe, com seus
picos já sem a neve invernal.
Ao cair da noite cheguei à cidade estudantil. Uma segunda quinzena
daquele quente mês. Cavalgava sem pressa, com suprimentos e cumprimentos
contrariados do visconde Viriato, a quem muito desagradou meu plano com
seu irmão Miguel. Desgostoso, meu pai havia sido o mais frígido, quase
indiferente, na despedida de véspera.
Seguindo as indicações de tio Migué, fui ultrapassando o centro velho da
antiga cidade romana, de nome Conímbriga, berço de filósofos ibéricos nos
tempos de Roma que iam discorrer latim e tomar banhos termais. Pude notar
grande mossa na urbe e muito mais mulheres à rua do que em Salamanca.
Portugal ainda não havia conhecido seu Torquemada para levar adiante o Santo
Ofício.
A casa de Proêncio foi encontrada na traseira do Mosteiro de Santa Cruz,
onde está enterrado o pai de nossa pátria, d. Afonso Henriques. Era uma
morada no mesclar entre o nobre e o aristocrático com a pressa desordeira do
covil de um mascate. Certamente alguém que não ficava muito tempo em seus
cômodos a habitava.
À minha batida de palmas recepcionou-me um jovem muito negro,
provável oriundo daqueles trópicos infernais do sul do Bojador. Falava bem
nosso idioma e era polido, com certeza um escravo treinado para o servir
doméstico. Nijumbo era sua graça. Identifiquei-me como sobrinho de Miguel
Fernandes e ele pareceu já saber do que necessitava.
“Meu amo não está. Mas tudo o farei para aliviar essa ausência até sua
volta. Sente-se. Deseja vinho, conhaque ou cerveja escura da Bavária?”
Aceitei de bom grado o vinho e agradeci-o por sua educação, que deve ter
sido afiada nos mercados dos Algarves, muito provavelmente em Lagos, onde
tio Migué diz haver um grande mercado escravista.
Não quis aprofundar o assunto com Nijumbo pois este parecia mais um ser
de automatismos do que alguém de leve prosa. Aguardei seu mestre sozinho, à
sala daquela residência tão desordeira quanto o quintal. Dois quartos de hora
se passaram até avistar o dito Proêncio, de chapéu ainda em riste.
“Quem és tu, rapaz? Nunca o vi em Coimbra. Novo no comércio ou na
papelocracia?”
Levantei-me em decoro ao anfitrião: “Nenhum dos dois, senhor. Sou
Cosme, sobrinho de Miguel Fernandes. Ele havia me dito que do senhor
receberia instruções de onde poderia trabalhar na capital, para el-rei d.
Manuel”.
“O homem chegou há quase uma hora, senhor. Entregou-me uma missiva
fechada para vós”, completou o africano.
Passou a pestana depressa pelo papel e abriu a boca em sinal de surpresa
esquecida: “Ah, pois sim. Miguel, Miguel, aquele velho tratante, enquanto não
reaver suas reses e seus cavalos o pilantra não há de me deixar em paz por
favores, mais ainda agora que o rei é um dos nossos, filho de minha prima em
segundo grau, Beatriz de Bragança. Devia haver te reconhecido por essa
pelagem vermelha dos Fernandes”.
“Foi mais ou menos o que ele disse, senhor, mas com um largo sorriso de
saudades de sua pessoa”, respondi falsamente. “Aliás, ele comentou que cá
encontraria um Bragança com tanta ojeriza dessas coisas de sobrenome quanto
ele e eu.”
Enchido de si mesmo pela forçosa homenagem, o dono da casa se
aproximou de mim e tocou meu ombro: “De fato, chavalo, e tu tens sorte
dupla, pois fui com a tua cara. Vamos aos negócios. O velhaco do teu tio me
incumbiu há mais ou menos quatro dias da tarefa que vens me lembrar. De
imediato enviei meu outro servente a galope para Lisboa, a essa altura deve
estar chegando com as expressas recomendações de sua competência e erudição
ímpar para trabalhos na corte. Sou mui bem acercado no Ministério de Além-
Mar. Nada temas! Pernoita e janta comigo e com minha esposa, uma
Coimbrões daqui das Beiras. Amanhã cedo te instruo detalhes antes de
partires. Por hoje adoraremos falar de coisas castelhanas e trasmontanas”.
Fiquei para a ceia e me diverti com o homem. Apesar de um tanto bruto,
era bom contador de anedotas da zona e mui informado dos rumores da vida
alheia local. Sua dama era mais reservada. Filha de barões do azeite de Figueira
da Foz, a moça tinha pouca prosa, cabelos negros, olhar penetrante e um rosto
plácido como a plenitude solar. Vez por outra pousava sua forte auréola em
minhas faces púrpuras. De Marialva a chamavam. Nome escolhido de
antevéspera àquela que do aramaico tem-se por mulher e do latim se fez branca
como a pura geada de manhãs invernais. Estavam casados havia pouco e
buscavam o primeiro filho.
Dormi pela primeira vez um sono revigorante desde que deixei Castela.
Despertei pouco depois da alvorada com Nijumbo a servir-me o desjejum:
fiambre curado, queijo da Serra, sumo de amora e castanhas. Nunca um
Fernandes foi tão bem alojado no covil de um Bragança!
As mulas de carga e um alazão me foram preparados para a viagem de um
dia e meio até Lisboa. “Siga pela estrada d’el-rei até Leiria, umas quinze milhas
daqui, abasteça-se nos pastos de lá e recupere a montaria. De lá é só seguir até
Óbidos, donde se encontram os melhores estalajadeiros. Chegarás a Lisboa pela
manhã de amanhã”, aconselhou-me Proêncio.
Dona Marialva Coimbrões acenava para mim por detrás dele, desejando
boa viagem, um sorriso tíbio pendia de seu lábio curto e bem desenhado, um
semblante que me remetia a só uma indagação: “Voltarás a me ver, Cosme?”.
“Voltarei a te ver, Marialva!”, e como assim o desejava. Naquele diálogo mental
com a bela senhora percebi em seu estar a feição de júbilo e socorro
condensados em cada músculo de sua face, toda recrudescida como o fruto que
perdura aplastado ao outono sem utopias de viver a primavera.
Deixei o burgo com o sol a se dirigir para pino, vagaroso, levando ao braço
a mula com meus pertences. Ao longe, ouvi o homem dizer: “Dívida quase
paga. Tu me levaste um cavalo e eu pus outro para trabalhar para a Coroa, avisa
o teu tio por carta. Chegando a Lisboa procura saber do comandante Lourenço
Frazão. Recomendei teu nome a ele, chefe do Ministério de Além-Mar. Poderás
exercer a ouvidoria pelas coisas do Direito Marítimo, matéria instituída pelo
novo rei. Adeus, rapaz!”.
Os vultos do casal ficaram diminutos enquanto me afastava das casas. Segui
ladeando as várias colinas e entrei na Estremadura pouco depois de um frugal
desjejum de frutas secas, cortesias de Marialva. Cavalgava então por entre a
Mata Real, cheia de pinheiros, à hora da Glória cristã das três da tarde. O calor
era mais brando e pude abastecer de água e feno o bom cavalo numa das
muitas quintas que lá havia.
Pago o serviço, sem delongas parti e passei por Leiria, chegando a Óbidos,
como previu Proêncio, no crepúsculo. A cidade era um povoamento
apertadíssimo entre muralhas onde pessoas jogavam suas necessidades à rua. A
estalagem em que pernoitei pertencia a um rude produtor de trigo que de má
vontade reservou-me o pior quarto que tinha, segundo ele: “Está tudo lotado,
tudo, a feira de verão é esta semana. Dê-se por feliz de ter leito, nortenho, dê-se
por feliz”.
Depois de lavar a cara fui cear no salão comunal da pensão, onde ouvi
notícias vindas do Terreiro do Paço, como o casamento de d. Manuel I com a
antiga esposa do finado príncipe Afonso, filho d’el-rei d. João. Ah, como papá
amaria odiar essa novidade intrigante que só confirmaria suas suspeitas – a
aliança desses “cornos Bragança” com os Trastâmara de Castela para destruir a
nobre casa de Avis. O sono dominou-me pouco a pouco e, ajudado pela jarra
de bagaceira, deixei o ouvido repousar após ter escutado coisas sobre corrupção
de juízes e subornos nos ministérios.
Não esperei o dia alvorecer e pedi para um criado me acordaràs seis da
matina, em pleno vendaval matutino e penumbra. Saí sem me despedir
daquele homem grosseiro, senhor Carriço, a quem o espírito só era pior que o
bafo alcoólico. Paguei a dívida diretamente ao funcionário e segui para a capital
de meu país, onde nunca havia estado sequer em sonhos.
Pouco antes do meio-dia divisei, acima das colinas de Odivelas, todo o
larguíssimo estuário do Tejo. Acima dele estava a praça a que os romanos
batizaram de Olisipo e os mouros de Al-Usbuna, vigiada de perto pelo antigo
castelo dos muçulmanos. Os portugueses apenas chamavam-na Lisboa. Uma
gloriosa visão de vários navios era o que mais chamava minha atenção. Tinha
chegado ao limiar da civilização europeia, àquele porto antiquíssimo e que
serviria como albergue de minha riqueza e prazer. Ledo engano do rapazola de
vinte e três anos!
O
IV. A capital da ganância
ito de julho de 1497. Apertei esporas do garanhão numa empolgante
descida em direção aos morros centrais que esparramavam aquela
gigantesca massa de telhas, gaivotas, pombos e gentes, de mercadores árabes a
astrônomos judeus, de alfandegários turcos a pilotos italianos, cada ruela da
urbe pulsava em uma cacofonia cativante, deixando-me perdido com tanta
opulência e caos simultâneos. Eis um local que se podia chamar de entreposto
civilizatório!
Acorri ao Terreiro do Paço, sede dos ministérios da Coroa e, como me foi
orientado, busquei pela repartição edificada especialmente para os assuntos de
além-mar, mencionando a quem quer que topasse comigo a minha meta de
encontrar, em nome de Proêncio Bragança, o comandante Frazão, seja lá quem
ele fosse.
Uma singela freira, de passagem para receber instruções para um novo
convento nos Açores, percebeu minha pressa e propósito, indicando a um
secretário que me incumbisse de aguardar audiência com seu superior.
“Acabei de sair há bocado com firmas do senhor Lourenço Frazão. Ele está
em sua mesa de trabalho e certamente o receberá, pois Deus não marca
horários para encontros já predefinidos.”
Fiquei medindo tanto as palavras como aquela bonachona face em véus de
religiosa, esperando ler alguma entrelinha de motivo para tão enigmática ênfase
com que me ajudou e precedeu-me.
Guiado pelo secretário fui à antessala do comandante da Marinha e de
Além-Mar, onde poltronas de Flandres acomodaram minhas hirtas nádegas de
trinta milhas cavalgando. Um suntuoso mapa-múndi feito a vários pares de
mãos austríacas adornava a parede oposta. Nele constavam as rotas e trajetos de
Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, heróis que por terra viajaram até Egito,
Arábia, Etiópia e Índias, dando-nos a conhecer o que por águas haveríamos de
desbravar e conquistar.
O curioso da obra era o seu acabamento: donde Colombo alegava ser a
borda oriental das Índias e do Cipango estava um promontório oceânico
apenas contornado de ilhas, a linha de Tordesilhas lá estava, e do lado lusitano
da empresa via-se, em pleno titã Atlântico, muitas aves de mar e peixes
monstruosos, dando a impressão a olhos nus de que ocultavam algo preparado
para ser aberto. Um regalo para a civilização? Uma nova porção de terras?
Durante minha longa espera pela audiência, peguei-me a refletir essas
considerações de garoto interiorano. Mal saberia o quanto minha intuição não
falhava nesse período em turbilhão pelo qual a humanidade atravessava,
literalmente, as barreiras do espaço.
Ao ser chamado por dois assessores rumo à mesa do tão solene Lourenço
Frazão, dei-me conta do quanto a papelocracia de meu país havia engordado
durante o período de bonança, do dinheiro de África e dos investimentos a
prazo na Carreira da Índia. O ostentar de uma nova nobreza só era menor do
que o poder absoluto de nosso monarca, presente de nosso saudoso el-rei d.
João e à custa de cabeças de conspiradores.
Ao chegar à face do dito-cujo, avistei um homem baixíssimo e semicalvo,
de bochechas rosadas e ressequidas. Nada sugeria a importância de seu cargo e
de sua pasta com aquela barriga global a qual apertava uma mesa comprida
porém estreita para audiências privadas. Pedi vênias e fiz reverências à
autoridade, que me invitou a tomar assento.
O homem de meia-idade (já penetrando a velhice) dispensava um
funcionário diretamente das docas de Belém, ponto no qual as naus partiam
para as expedições várias.
“Leve minhas melhores recomendações ao almirante Vasco da Gama,
Inácio. Ele compreenderá minha ausência. O assunto que tenho em mãos sobre
as divisas de nossas praças marroquinas é prioritário. Aproveite e passe no
edifício contíguo exigindo posição de nossa chancelaria. Necessitamos de apoio
dos castelhanos para impressionar aqueles malditos mouros infiéis!”
O imediato ficou todo ele ereto: “Sim, senhor, para já. O almirante Da
Gama, como bem sabe, será nomeado vice-rei das Índias por el-rei d. Manuel,
caso sua incursão tenha sucesso”.
O patrão pareceu contrariado com a recapitulação daquele fato: “Bem sei, e
o que tenho com isto?”.
Percebendo o incômodo, o funcionário detalhou o impasse: “Seu genro,
senhor, Afonso de Albuquerque. Se não me laboro em erro, de sua filha do
meio, bem… se perdoar minha indiscrição, não ficará desapontado com esta
escolha? Então ele não estudou a fundo mapas, rios, reinos e culturas daquelas
partes da Ásia?”.
Com um sinal de mão aberta o gordito encerrou a entrevista: “Tudo a seu
tempo, Inácio, e só perdoo sua indiscrição pelos anos de lealdade e trabalho
que a mim dedicou. Mas aprenda, se língua intrépida vale conselhos – o
homem que pioneiro queda a desbravar um sítio tem maior legitimidade que
aquele que se fecha em estudos internos. A coragem vale mais que a erudição,
meu caro, mesmo entre familiares. Se quisermos a grandeza de Portugal e da
Cristandade, nosso povo terá de compreender que interesses pessoais não
subjugam águas”.
O subalterno fez uma larga continência de alguém dobrado por uma lição
de vida e partiu apressado. Sentado e presenciando a tudo, apenas permaneci a
mirar fixamente o homenzito largo que havia levantado de leve de sua cabine
de banhas para pregar ao outro. De fato as aparências enganam à primeira
vista. Tomaria melhor cautela dali por diante. Ele se voltou para mim.
“Peço escusas, meu jovem. Hoje é um dia importante, pois não sabes?”
Fingi sabê-lo pelo que havia ouvido segundos atrás.
“Pois, nosso almirante enfim vai partir rumo às Índias. Espero que com o
que nosso país tenha de melhor para lograr a empreitada. Nosso rei d. João
ficaria feliz em ver tudo pronto, sendo ele o maior obreiro do Périplo
Africano…” BAM! Fui interrompido com um leve murro na mesa. O soar oco
da madeira fez-me calar e esfriar ânimos de modo a quase colocar minha língua
numa masmorra.
“Veja, menino, sei bem quem tu és. Cosme Fernandes, dos Fernandes de
Miranda. Recomendação de Proêncio, homem fiável das Beiras. E um
Bragança! Veja, agora nosso rei é d. Manuel I, antigo duque de Beja. O
Príncipe Perfeito ficará apenas nos anais com este apodo. Tenha a cautela de
não mais mencionar saudades à sua figura pela capital. As vielas daqui têm
ouvidos e d. Manuel, a despeito de Avis por pai, é Bragança por mãe e
presenciou seus familiares serem assassinados pelo finado d. João II. Cautela,
moço, cautela.”
Vi que além de suposto patriota o gordinho também era safo. “Peço mil
perdões se me precipitei ao citar nosso antigo governante. São os costumes de
minha terra e família emprestados a um rapazinho sem traquejo político nem
destreza com grandes salões.”
O barbicha empertigou-se, vaidoso de sua aula bem apreendida por um
pupilo ousado. “Já iniciou teu aprendizado. Muito terás de pôr esses dentes
cerrados se quiseres subir, enricar e gozar prestígio nesta cidade de abutres.
Novamente cuidado! Colocar-te-ei como ouvidor-mor da Marinha. Cuidarás
de todos os assuntos relacionados a pensões, queixas, dívidas e hipotecas de
marinheiros e comandantes que se lançarão ao Tenebroso. Apenas cautela,
muita cautela.”
Enrijeci mais ainda o cenho: “Agradeço de toda minhaalma. Era a
oportunidade que um pequeno nobre como eu almejava desde minha
formatura. Espero que meu curriculum tenha contribuído para tal escolha e…”
e nada, apenas nova interrupção do velho, dessa vez a apontar o indicador para
mim.
Mais uma vez obstruído, ele soltou um guincho similar a um sarro: “Sim,
sim, d. Fernandes, teu curriculum de sobrenome e recomendação falou muito
bem por ti!”.
Chegando perto de meu rosto, continuou: “Agora cala-te e observa que
méritos não são a lei em nosso estamento! Nossa nobreza, sem me referir
diretamente à sua família, está mais dependente do erário público do que
jamais esteve. Nosso rei recolocou famílias expropriadas de novo à ribalta. A
conta uma hora irá chegar. Por isso é imperioso atingirmos a Índia, fincarmos
pés nos dois braços de África e tomar de vez o que nos cabe daquela outra
massa de terra para engordar as finanças e…” calou-se num supetão.
Desconcertado por haver ido longe em devaneios, escusou-se: “Creio que
estou me estendendo e falando mesmo de coisas absolutamente sigilosas com
um rapazote dos buracos trasmontanos”. Disse em tom que conjurava desprezo
e deboche. Simulei sorriso mas guardei as palavras. Sobretudo aquelas últimas
sobre a outra massa de terra.
“Bom, chavalo, sei que tens renda para te arranjares em umas pensões por
aqui. São fáceis de encontrar. Se quiseres economia, fiques aqui próximo ao rio,
se quiseres conforto, é melhor que subas ao bairro Augusto. E tenho dito!
Começas amanhã, às duas primeiras horas do sol da estação. Até lá!”
Dispensou minha continência pois iria receber um mercador de escravos
colérico, vindo diretamente da foz de um rio africano chamado Níger, pelo que
ouvi ao sair da sala.
Teria a tarde inteira para me arranjar numa cidade estranha e imensa aos
meus olhos e, para piorar, estava em festas e rituais religiosos para bendizer a
partida de Vasco da Gama no rumo do Oriente.
Proêncio contou-me que pensões de italianos e gregos abundavam por todo
o bairro de Alfama e Mouraria, no coração lisboeta. Cama não faltaria a quem
torrava ou investia sua quota-parte de herança numa empresa pessoal.
Alcancei tal alcova convencido de que teria, a despeito de algumas
adaptações às intriguinhas palacianas, a vida que sempre desejei naquele
formigueiro em transe. Minha pousada foi numa simples hospedaria pouco
acima do chamado Alfama, entre a Judiaria e a Mouraria. Sem ostentar, estava
empenhado em conhecer o gentio e me estabilizar na labuta diária antes de
exibir expensas.
No dia seguinte, logo após a aurora, apresentava-me ao ministro Lourenço
Frazão. “Vamos à presença de Vossa Majestade, em Sintra, para ele conhecer-te
e aos demais novos contratados das outras pastas.”
Um frio gelou minha espinha de modo inusual. Sabe-se lá se o nome
Fernandes não ecoaria mal nos reais ouvidos de d. Manuel I.
Uma série de coches nos aguardava no Terreiro com rumo às serras do
Palácio Nacional, sede de veraneio dos reis portugueses. O trajeto era belo mas
mal me ative a seus encantos. Passávamos entre imensos salgueiros pela boca do
Tejo e o mar ao fundo. A preocupação tirava do sério meu coração: como me
portar, como agir, como explicar minha origem?
Ao que parece, isso tudo já estava bem do conhecimento d’el-rei. Mais uma
vez minha ingenuidade juvenil traía-me. Ao subirmos rampa acima, lá estavam
os guardas. O local era de uma formosura digna dos mais belos contos de
cavalaria. Um castelo digno de nosso rei. Minha comitiva, com mais ou menos
cinco novos funcionários, chegou às portas da sala de audiências escoltada e
juntos prestamos um breve juramento e reverência ao nosso chefe de Estado.
O sujeito tinha os olhos de um brilhante turquesa, a barba castanha, tão
polida quanto esbelta, lhe dava às faces uma tonalidade de aquarela em suas
maçãs rosadas. De estatura mediana para um português, estava eu à frente do
rei mais Bragança que a casa de Avis produziu. Ah se meu pai e avô pudessem
me ver ali, curvado sabujo perante um brigantino disfarçado.
Em separado os conselheiros reais ordenaram que entrássemos e tivéssemos
uma rápida parlamentação com Sua Graça. Ao chegar minha vez, o arauto, por
óbvio, anunciou todo o meu passado familiar, errando apenas nas escapadelas
pela noite de Salamanca ou meu amor não concretizado com Manola. Deu-me
vontade de zombar de toda aquela pomba exacerbada, e haja vontade de não
fazê-lo ali mesmo!
Depois das formalidades indicativas, o arauto deixou-nos por brevíssimos
três minutos. Estava a sós com o rei do país de meus ancestrais. Talvez o último
Fernandes a ter tido essa honra tenha sido meu ancestral Sancho, ao jurar
nossas forças antes de Aljubarrota ao futuro d. João I, mestre e fundador de
Avis. Eis o privilégio misturado a exageros daquela cerimônia.
Muito tempo depois, em outras margens do destino, viria a saber por
mensageiros estranhos que el-rei d. Manuel era chamado “O Venturoso” por
sua destreza em governar e fortuna nas empresas externas, tanto marítimas
quanto diplomáticas. Seria ele a fazer de nosso diminuto povo uma
superpotência das marolas oceânicas.
“Bons ares o tragam, filho de Viriato. Advindo da mui nobre e fiel casa dos
Miranda de nossa raia nordeste. Sua família é das mais antigas com o sangue
luso. Honre-o sempre agasalhando seu rei e sua bandeira. A seção papelocrática
em que desempenhará função necessitará disso!”
Fiquei pálido ao ouvir a firmeza de timbre e seguridade que aquelas cordas
vocais produziam. E menti uma vez mais em minha vida. A mim pouco
importava a grandeza de emblemas e heráldicas para a posteridade. A el-rei há
que perjurar calado e foi o que fiz, com votos de gratidão e de boa saúde ao
mesmo.
“Muito obrigado, meu sereníssimo rei, cá há um leal servo que tudo irá
fazer para com que nosso Portugal galgue patamares ainda inimagináveis. Com
minha modesta presteza espero servir bem ao escudo de Avis e à fé verdadeira
em Cristo Nosso Senhor.”
Quedei estupefato com a desfaçatez com que fiz aquela vã promessa. Mas,
afinal, quem mentiu a um amor puro e verdadeiro como eu, tendo esse amor
me esperado com um filho nosso no ventre, não teria motivos para não repetir
a proeza diante de seu rei e ao supremo Deus dos homens. Buscava somente
conforto e platitude suficientes até reviver aquela viagem que é o amar e ser
amado. Mentiras eram escadas para esse escalar.
Satisfeito e sem mal me dar conta de minhas expressões confusas, d.
Manuel, o Venturoso, enfatizou: “Folgo em saber, meu filho. Que assim seja
pela grandeza de Portugal e da Cristandade. Agora vá, e inicie bem os seus
encargos, mestre Cosme Fernandes, ouvidor da Marinha Real”.
C
V. Labuta e masmorra
omo ouvidor de direito eu fazia um pouco de tudo. Desde escutar queixas
dos mercadores da Mina e do Congo aos impropérios de revendedores
sarracenos de nossas cidades no Marrocos. Além, claro, de redigir, reparar e
ordenar contratos
de marinheiros, tripulantes e ordens religiosas de nossos postos de
África e os futuros na Ásia, rumo à Índia e às Ilhas Molucas.
Um pouco custoso para qualquer ser humano, mais ainda àquele infeliz
que estudou três anos de sua vida num claustro cheio de monges pútridos e
devassos. Agora estava eu a desempenhar a missão de legitimar suas
libertinagens com fêmeas de outros mares. E numa masmorra sem paredes!
A recompensa vinha a galope de mula, por assim dizer. Prestígio entre os
bairros medianos de Lisboa, especialmente entre as filhas de pequenos
burgueses impressionadas com o “doutor ruivo”. A elas meu soldo se ia quase
todo, em promessas tolas de compromissos e recomendações dos pais das
pobres flores em botão.
Em alguns casos, com a destreza dos contos e trovas espanhóis, eu lograva
os favores de uma ou outra dessas mocinhas, sempre na prudência de não ousar
fazê-lo com alguma de pais mais poderosos do que eu tanto em nome como
em contatos com a Coroa.
Não penses tu, estimado amigo, que me orgulho disso. Por Deus! Amo
tanto as valquírias que as trato coma devida cortesia até nos momentos
derradeiros de alcova. Para mim, o homem, inescrupuloso e avarento, é o
responsável pela degeneração das guerras e das pobrezas mundanas. Vós
mulheres sois, isso sim, musas inspiradoras que mesmo a Ulisses e Catelo
foram guias. As mais puras das invenções do oculto Criador que do Cosmos
habita. Muito ao contrário, então, é o que move minha conduta erótica.
Posso jurar por todas as constelações que unem sul e norte que foram mais
fortes do que eu as ganas de reaver a sensação de poder absoluto que nos instila
o berço de ninar dos amantes. Experimentei tal fortuna com Manola em
lonjuras temporais que agora soam a toda uma vida. E, para te ser sincero, a
“desonra” cristã das meninas foi mais prazerosa a elas do que a mim mesmo.
Àqueles a quem meu mea culpa possa não ser suficiente, antecipo-vos que
Deus Todo-Poderoso, ou aquele a quem Roma nos indica para tratar como tal,
ainda haveria de me punir com golpes muito piores, estejam certos disso.
Talvez eu devesse ter dado ouvidos aos conselhos do careca Lourenço Frazão,
meu atual chefe. Para minha infelicidade, apliquei-os apenas aos deveres de
ofício.
O tempo passou entre semanas e meses em que conheci cada viela, seus
becos, tavernas, ruídos, colóquios e falas, cada bairro possuía percepções de
classe maior do que o outro. Perto do rio, onde as pessoas humildes viviam da
pesca e da travessia à Outra Banda, a margem sul, a comida era farta e barata,
porém de qualidade duvidosa. Seu vinho era aprazível mais pela simpatia das
companhias do que propriamente por seu sabor.
Eu era quase que um limiar social, permeando entre luxuosas quintas a
miseráveis barracões, de um alcoviteiro sujo a um barão ou esnobe médio
burguês. Pude, então, tornar-me figura de destaque em todos os rincões
daquela capital imunda, povoada e sufocante por entre animais e pessoas que
disputavam suas latrinas e eiras em pleno céu desnudo, diuturnamente. Os
vadios tomavam os muitos largos para fazê-los de habitação à noite.
Essa rotina de visualização do mundo real (e no que ele se tornava de
maneira específica) foi apossando minha alma de um sentimento ínfimo de
revolta. Ínfimo pela pequena força com que me acometia. Pequeno mas
persistente, constante durante meus dias presos a uma diminuta repartição a
olhar à janela do Paço crianças sem rumo, pais em bebedeiras ou dormitando à
calçada, mães prostituindo-se. Era a degeneração que a ansiada metrópole
mostrava a olhos vistos.
Sem perceber, a depressão e o desalento passavam a tomar conta de mim.
Festividades sociais não eram mais louvadas e aguardadas. Tantas vezes deixei
de comparecer a elas para jogar gamão com Samuel, o judeu que me alojou na
Mouraria.
“Estás de novo com raiva das festanças cristãs, Cosme? Há que dobrar
forças para não magoar em desfeitas quem quer que seja o anfitrião. Teu salário
e estima podem não durar. Olha que deveria cobrar por esse conselho!”, dizia o
divertido e bonachão barbudo.
Tracei junto àquela boa companhia um panorama do que me atormentava:
“Ao que parece, a cada dia que passo aqui fico menos interessado nessa cidade.
As coisas que vi nos claustros de Salamanca mal se comparam a isso. Por cá,
para além de padres polpudos, há servidores aldrabões, comerciantes que mais
se parecem ladrões e uma burguesia que abolorece tanto quanto os réis que eles
engordam os cofres dos banqueiros de Florença. Estou desgastado, não
cansado. Prefiro estar recluso, jogando contigo”.
Ele limitava-se a virar o pescoço, curioso: “Nenhuma rapariga à vista, pois
não? Para declarares paixão à companhia fétida de um velho estalajadeiro como
eu é só o que pode haver. Cansei de te ver trazer damas para excursões mui
breves aos teus aposentos. A coisa deve ser grave contigo, d. Fernandes”. Ele
apoiava as mãos na volumosa barriga e gozava comigo.
Acabava por recuperar o humor com aquelas amistosas troças: “Cuidado
com o que dizes, tratante de Sião, ou mando denunciar-te ao Santo Ofício
castelhano. Não te olvides que nosso ‘alfacíssimo’ rei é genro dos Católicos de
Espanha”. Ali nós ambos ríamos das pequenezas dessa vida regrada que nada
regulam e deixam-nos mais longe da compreensão de fraternidade que, a meu
ver, é e sempre será a única forma de almejarmos felicidade, aquela mesma que
os novos filósofos de Itália estudam.
Samuel havia se tornado meu melhor amigo na cidade. Eu apenas tomava
o cuidado de não ser visto nos bairros centrais ou nos ministérios junto a ele,
um judeu. A má vontade para com esse povo, os que não serviam ao reino
como cartógrafos ou como astrônomos, era grande, para não dizer odienta. A
Inquisição não tardaria em Portugal. Avisei-o, mas o velho já bem o sabia.
“Sou nascido em Cartago, meu caro. Depois fui despojado de bens com
meu pai e irmãos por causa de um califa fanático. Migramos para Málaga. Os
árabes e berberes de lá não eram tão cruéis, mas os castelhanos sim. E quando
conquistaram a cidade só tivemos tempo de nos ajoelhar para tentar a sorte
com a corte de Segóvia. Tudo inútil. Fomos mais uma vez apartados do que era
nosso. Em Portugal não será diferente. Mas agora estou a solo. Tomei o
cuidado de não gerar filhos nestes tempos cruéis. Daqui talvez siga para a
Prússia, donde estão meus irmãos e sobrinhos, ou até a Índia. Sempre haverá
quem hospedar, até no inferno.”
Deveras que havia algo a se fazer? Estando dentro do aparelho estatal,
seguia como podia os passos asquerosos do bispo. Sempre que este visitava
nossa repartição para bendizer algum capitão escolhido, era a deixa para ouvir
conversas nada humanistas com Lourenço Frazão sobre ideias d’el-rei para os
não cristãos a se pôr em prática.
Em fins de setembro daquele ano de 1497, num monótono outono recém-
parido, soube novas de que Proêncio Bragança e sua esposa viriam à capital
para o batismo da primeira neta de Lourenço Frazão. Obviamente estava entre
os convivas da lista de solenidades para aquele pesadíssimo domingo de orações
a monstros e bajulações para ratos.
Dei adeus a meu amigo com as minhas melhores roupas naquela manhã.
Desta vez seria muita petulância ficar nos jogos de azar com meu parceiro
infiel. Iria ter com os nobres diretamente na Alameda d’Ajuda, a principal
avenida dos ricos de Lisboa, logo arriba do populoso centro, em direção às
serras de Sintra e de Queluz. O sol estava turvo e fosco como meu coração
naquele martírio de falsidades que se chamava opulência.
Já havia ido à casa de meu patrão em ocasiões menos importantes. Ele
tratou-me como sempre o fez: frio como uma rocha, astuto e sabido à mesma
medida que severo com a realidade que nos circundava. Lá estava o seu
palacete ajardinado e muitas personalidades da pequena nobreza. Homens de
negócios se faziam presentes à cerimônia feita pelo pároco de Almada, amigo
de infância do orgulhoso avô. O batismo ocorreu em sua capela privada, algo
que demonstrava tanto uma dissimulada devoção quanto a verdadeira riqueza
da família Frazão.
De boas-vindas excessivas ao trato gentio de uma festa comportada, fui
embrenhando-me pela casa arejada e bonita, com vistas à via cheia de coches.
Avistei Proêncio Bragança numa dessas penosas andanças sem rumo.
“Então, como é que vais? Como é que está essa vida de vivaldino sortudo
dentro da máquina do reino?”, perguntou-me ele com tapinhas desagradáveis
em meu ombro.
Não me agradava ver seu aspecto carregado de uma atitude que ocultava
maldade ou uma leve superioridade em relação a mim: “Prosperando à medida
que despendo meu tempo em ousadias para me libertar da tristeza e da solidão
de estar junto a tantos e ao mesmo tempo tão a sós, senhor Proêncio! Agradeço
os cumprimentos calorosos e continuo a te dever favor por tudo isso, homem”.
Contestei seco mas tentando demonstrar respeito.
“Pois me parece bem de saúde e mal de alma, não? Tens de te casar, Cosme,
estabelecer posto e progredir junto à estrutura política daqui. Não te deixes
pegar pela praga da vadiagem destes dias tumultuados.Nunca vi Lisboa tão
apinhada de gente. Marialva também cá não vinha há muito e notou, não é
mesmo, luz vital minha?”
O hipócrita falou em vadiagem com certo brilho de conhecimento. Sua
esposa, clara criatura, acercou-se de nós e pareceu rejubilar-se ao me ver: “Pois
sim. De fato vim à capital nos dias de minha inocência, com meus pais. Ela já
me era grande e, agora, parece se agigantar por sobre este Tejo, que faz o nosso
Mondego parecer um pequenino riacho de vaus”, respondia com doçura essa
dama de encantos maduros e que me dava a sanha de um animal enjaulado.
Ela mirava minha reação.
Mal disfarçava o contentamento de rever sua áurea: “Creio que a estimada
senhora Coimbrões está correta na acurada observação. Se levarmos em conta
que vós chegais há pouco pelas colinas de Odivelas. Os grandes carvalhos e as
nogueiras se acabam mui abruptos, dando lugar a esse apinhado de moradas
suntuosas, não? Parece que até mesmo os cavalos e cães perdigueiros de Alfama
são melhores que muitos meninos lá de baixo, minha dama”. Ponderei com um
sorriso amargo, buscando dissimular minhas impressões desse teatro macabro.
Ela, contudo, adivinhava minhas intenções e não deixava de demonstrar:
“Não poderia haver melhor resumo do que vejo por aqui e do pouco que
observei por entre as calhes sujas de todos os dejetos e imundice de onde
instalamo-nos, bem próximo ao Rocio. Um Bragança pequeno e uma
Coimbrões pouco têm para se quedar próximo a estas quintas, senhor
Fernandes”.
Pelos poderosos de cima! Aquela menina detrás da máscara de
experimentada mulher me olhava como um pássaro solitário quando encontra
um espécime equivalente e que canta ou deseja cantar com ele pelo simples
prazer da complacência mútua no compreender das escaras mundanas.
Como se lesse minha ardente vontade de a sós ficar com Marialva,
Proêncio licenciou-se da conversa ao ir de encontro a outros convidados.
Estaria livre para ter minutos, quiçá só segundos que fossem, com aquela
criatura que me enfeitiçou com sua olhada em Coimbra e, agora, confirmava o
que via nela: complemento anímico para qualquer ser digno de enxergar nela o
seu todo. Desilusão recíproca para com tudo aquilo que víamos.
E não era só isto. Havia uma bela de madeixas e curvas somente menos
interessantes que sua voz, suas opiniões e sua vontade de encontrar trovador
digno de suas interpretações. Juro-vos, era a primeira vez que desejei estar à
conversa ou junto a essa Maria tão alva de espírito quanto de nome. Nunca
antes dessa ocasião! Poderia ela oferecer àquele furibundo homem algum
conforto?
Ainda que jamais mudássemos nada – não aliviássemos os choros de
crianças órfãs, não consolássemos os detentos injustiçados, seríamos, e somente
nós, confidentes de um mesmo hino à estupidez do estar vivo.
“Proêncio é mui raso, mestre Cosme. Agora deverá tratar de homenagear
cada Frazão, Alves, Machado, Pantaleão ou quantos mais nomes emprestados
de vegetais houver para ele afagar tristemente nesta tarde. O pobre do neto do
sr. Frazão mal sabe o que lhe aguarda das pretensões de uma nobre casa.
Conheço os Frazão de tempos idos. O sr. Lourenço sempre almejou aceder à
alta sociedade com todas as forças.”
“Creio que agora está menos realizado do que antes, minha senhora. Ele
parece dirigir nosso departamento como um marinheiro conduz sua nau junto
a angras e costões bravios. Sempre alerta a qualquer deslize no tratar seja com
quem for da corte ou a quem a represente em missão de ofício. Confesso que
isso me desgasta mais do que os próprios encargos diários, que são apenas
maçantes”, ripostei cada vez mais entusiasmando em partilhar uma jarra de
vinho com Marialva.
Ela pareceu apagar de maneira suave sua luz, baixando a tez em lamento
interno: “Imagino não ser tão penoso quanto ter em si a pressão de ser filha
única de uma casa simples da Beira Baixa, e que teu pai a tenha oferecido a um
estável marido logo aos treze anos. E com esse homem tenho passado a última
década em tormentos físicos além-conta por não lhe dar herdeiros. Muitas
vezes meu refúgio é o silêncio para não ser machucada, interna e
externamente”.
Aquilo me deixou atordoado, em verdade que vi certa angústia no seu
crispar facial à primeira vez que pus os olhos nela. A luta silenciosa de Marialva
só reforçou meu entendimento por aquele ser que, além de tudo, estava
encapado na forma divinal das herdeiras de Eva.
“Peço escusas, cara minha. Realmente jamais homem nenhum saberá o que
é ter de se juntar à força a quem quer que seja. E se esse alguém ainda a
violenta, tanto pior e agourento! Mesmo nobres como eu tivemos uma mínima
escolha. Pus minha herança em favor de meu irmão. Não penso como um
regalo mas sim como uma penitência. E se ele não gostar daquela vida de
protocolos feudais, sem existir de fato? Não o dei a escolha, mas ele poderá tê-
la se assim quiser. Mesmo também ficando aquém do querer e do poder, não
somos cativos como vós mulheres. Por mim, se rei deste mundo o fosse, abriria
todos os mares e países para o governo das moças. Sabereis conduzir melhor os
humanos!”
Ela sorriu e, pela primeira vez, vislumbrei o vagaroso calmar de sua alma.
Seus dentes eram como belos bastões de marfim. Lábios purpúreos como uma
cereja davam um enquadro colorido de alquimista naquele rosto-esfinge, os
olhos claros sempre moldáveis a cada sentimento, a cada anseio.
“Tu deves mesmo ter deixado teus pais mui consternados com essa decisão
de partir. Mas diga lá: não haverá sido melhor tu teres ficado por Miranda
depois de tudo o que viste aqui por estes meses? Pareceu-te a ti algo digno de
alegria esta nossa capital?”
Suspirei do mais fundo pesar. Era a primeira pessoa com quem podia ser
inteiramente honesto desde que cheguei: “Houveste lido minha mente,
estimada dama. Busquei um átimo de liberdade por cá. Infelizmente as coisas
nas cidades ditas ‘civilizadas’ são só tristezas e prantos. Elas fazem-no pensar
que a masmorra da ignorância campestre possa ser mais aprazível. Mas não
queria ficar em minha aldeia de qualquer forma. Meus ímpetos e a herança de
meu pai me teriam feito um crápula pior, já que possuiria maior sanha de
poder. Uma sanha e um poder mesquinho e vazio, mesmo assim uma sanha, a
chave para a crueldade. Por cá, essa sanha está apagada, porém deteriora o
espírito de quem sente cada grito oculto de dor e desespero de nossa gente. Em
verdade, busco algo que não mais alcanço em toda parte”. O vinho estava
reposto por criados à mesa próxima donde quedávamos e já estava fazendo com
que eu falasse demais àquela Atena penitente.
“Então esse teu ‘buscar’ é o que almejam todos os chavalos quando não se
enamoram do poder, pois não? Imagino assim que tenhas te apaixonado por
outrem que não de ‘nobre’ casta lusitana, não? Pelas bandas de Castela,
adivinho. Penso que, em seus estudos, encontrou alguém a quem não convinha
união ante os pactos sociais. Por isso essa tua eterna desilusão ante a
perversidade dos homens.”
Talvez fosse de minha intenção que ela o adivinhasse, mas da mesma forma
pegou meu ego de surpresa e quase desmanchei em tinta rubra a mesa forrada
em grossa tapeçaria búlgara. “Tem mesmo o poder de visão larga a sra.
Marialva. Não sei bem o que falar-te, mas estás quase à perfeição junto à
verdade.”
Ela mais uma vez sorriu de leve, esparramada nas covas de sua bochecha,
um sorrir que derreteria bigorna rija: “Os homens, como dizias tu há pouco,
não são tão difíceis de prever. Seja nas naus, na guerra ou na cama. Não
superestime minhas habilidades, d. Cosme. Está disposto em tua face a agrura
de uma apartação traumática”.
Qual mais palavra haveria de dizer a ela? Meus instintos, tão acesos como
as cores de minha capa capilar, só instigavam meu coração a invitá-la a subir
numa sela, irmos a toda velocidade longe daqueles olhares indignos de
confiança e conversa. Fôssemos até os confins do sul desta borda de terra, até os
Algarves. Disfarcemo-nos de pescadores e tu, ó Marialva, que de Hera bebeste
saberes,fazes-me olvidar daquela a quem meu velho Viriato tão cruelmente me
quitou das benesses do bem querer!
Tentei ser mais diplomático, e me era difícil. Como aguentar o
chamamento dos instintos e impulsos daquele momento?: “Tens toda a razão,
senhora. Infelizmente ela me foi tirada. Não falemos mais disso. Tu assim o
mereces. Incluso porque teu caso, assim concordamos, é mais delicado e de
menores perspectivas”.
Naquele momento Proêncio, que a mim agora aparentava ser mais velho
do que quando o mirei em sua esquálida residência, regressou de suas
diplomacias para junto do braço de seu tesouro em forma de esposa.
“Perdoem minha ausência. Creio que se deram bem como em minha casa,
pois não, Cosme? Minha Marialva é boa em entreter amigos enquanto tenho
por dever me ausentar.”
O modo possessivo com que a envolvia agora me causava revolta,
finalmente havia conhecido o verdadeiro Proêncio, um sádico ególatra
apaixonado em manter cativo o que anseia por voar: “De certeza que sim, sr.
Bragança. Estávamos mesmo a chegar quase a falar de si”, repliquei de modo
tão irônico quanto (quase) colérico. Como podes ser tão estúpido, homem? Ao
teres esta joia que ao Graal faria fronte e simplesmente tratá-la como uma
cadela parideira?
Estava a fazer reverências de despedidas ao casal quando, de súbito, sinto a
mão leve DELA em meus braços. “Estamos na rua dos Ourives, hospedagem
única, quarta casa. Venha nos visitar esta noite. Com muito gosto poderíamos
celebrar esta Lisboa de modo mais legítimo e nítido a nossos paladares e
corações, não achas?”
Balbuciei algumas notas dissonantes antes de formular resposta a tão
desejada quanto surpreendente invitação. “Pois sim, senhora, estimei muito
revê-la e a seu marido. Se a ele for conveniente, posso prover-nos de vinho e
algo…”, interrompi a prosa ao enfim lograr desviar minha face da dela e
reparar que Proêncio estava em nova conversação. Talvez as formalidades do
convidar estivessem tão só na vontade DELA em ter comigo.
Arriscaria a incógnita. Na pior das hipóteses estaria à frente dela, junto a
seu esposo, para uma última vista com este ser esculpido aos cuidados dos mais
esmerados fabricos dos Olimpos, Valhallas e Nilos que algures os sacerdotes
idealizaram. “Lá estarei, Marialva.” Seco e veloz assim o disse. Sem mais títulos
prévios, só a chamei pelo seu nome, já suficientemente precioso em quilates
nobiliárquicos.
N
VI. Encontrar e perder
ão sei se elas brilhavam à minha empolgação de vê-la uma última vez
antes do nunca mais. E sabe o Criador e até vós, espectadores, que por
essa altura o inevitável acaso ou a sanha do fado trágico galgavam meus
calcanhares.
Mas era mesmo uma bela noite para abrir as cortinas fortes de uma morada
tão preciosa quanto a vida de minha admirada. Ao menos os desígnios físicos
da Terra me fizeram afortunado de amar a carne com Nola e o espírito vivaz
com Alva, e de nenhuma obteria união. Talvez uma aliança ecumênica entre
Dionísio, deidade grega das tentações, Loki, o deus germânico da trapaça, e são
Valentim, santo dos amantes, explane tamanha contradição de ventura.
Acenei um “até breve” a Samuel, que enxergava naquelas pupilas globais e
lestas a gênese de meu momentâneo contentamento. “Vais voltar ainda por
hoje, Cosme?”, indagou.
“Na pior ou na melhor das hipóteses, regresso antes de o sol nascer. Tenho
um ritual de intimidade para encerrar. Outro alguém que talvez posso jamais
olhar. E desta vez é uma Eva. Creio que terei de olhar para tua barba de Judá
ainda daqui a algumas horas, portanto até breve. Amanhã é o teu pagamento,
não me esqueço, judeu!”, ambos caímos em graçolas fraternas. Saí em vagar
paralelo à linha do rio até a altura do bairro do Rocio.
Lá estava eu a subir a rua dos Ourives, bem próxima a comércios diversos.
Algumas quadras por ela acima se encontrava a pensão Venezia, de nome em
homenagem condizente à origem de seu proprietário, um caixeiro frustrado
pela forte concorrência do ofício por cá: “Queres pousada, cavalheiro?”,
indagou com um português mais macarrônico do que o de meu amigo hebreu.
“Vim de visitas a um casal de amigos hospedado aqui. Proêncio e Marialva.
Creio ser do conhecimento da esposa a minha vinda.”
O velho fitou-me de modo malicioso com o anúncio, já a pensar lascívias
em sua mente. E por que raios citei a invitação e a dona dela? Provavelmente
pela primeira vez estivesse tão em ânsias que não medi as informações que
transmiti ao ítalo.
“Então subas. Creio que esteja à tua espera. É o maior quarto, no terceiro
andar, ragazzo.” Agradeci desconfiado dos câmbios labiais do ancião, e só
depois, às escadas, dei-me conta de que ele conjugou o verbo “estar” no
singular. Ou o conhecimento dele de nosso idioma era ainda mais raso do que
eu supunha ou a malícia era da largura do Tejo. A segunda opção parecia a
mais plausível.
Habitação única no terceiro andar. Nada mal para um casal de média
nobreza. A pensão em si já era simples, o mínimo a fazer seria pagar pelos
melhores préstimos. Foi o que fez o Bragança.
Creio haver sido a única vez em que tremi daquele lado do Atlântico. Não
sabia bem as razões de tanta insistência para a minha visita, apesar de imaginá-
la. A atmosfera no batismo interligava nossos corpos, o meu e o de Marialva.
Bati à porta e sentia meus ossos se alquebrarem ainda mais em tremor. O
tosco do Vêneto estava correto. Lá estava Marialva, e apenas ela, a me receber
belíssima em simples vestido decotado de renda. “Então vieste mesmo, e na
hora aproximada que firmamos!”, congratulou-me toda contente de mim e de
si.
“Passei por despedidas tristes demais na minha ainda curta vida para
desperdiçar a chance de terminarmos os assuntos que iniciamos naquele
primeiro sacramento do não menos belo neto de meu patrão”, referi em uma
mescla de cinismo e sinceridade a ela, com a arcada dentaria minimamente à
mostra a transparecer isso mesmo.
“Seu patrão não é um benfeitor nem tampouco, muito provavelmente, essa
indefesa criança também o será. E os sacramentos de beneditinos há muito
corrompidos pouco ou de nada valerão para cambiar este cenário, meu senhor
Fernandes”, ela retribuiu o sorriso crepuscular naqueles lábios à mão
desenhados, de uma coloração feito a das framboesas de Castro Laboreiro, as
altas montanhas do Minho.
“Estás mais uma vez com a razão, senhora Marialva. Tua sabedoria me
espanta e, confesso, esta tarde só conseguia me lembrar da Atena em auxílio ao
desamparado Perseu enquanto fluía como água corrente nossa prosa”, disse-lhe
agora de rosto sério e de coração mais aberto.
A brancura do seu rosto pareceu levemente corar: “Da mesma maneira que
eu o sentia não um Perseu ou um desamparado, mas sim um imperador de
Roma ou de Constantinopla, no ápice de sua majestade, para não mais querer
seguir padrões tão rasos dessas injustas convenções sociais. Não vais me
perguntar onde está Proêncio? Voltaremos a Coimbra à terceira hora da manhã
de amanhã”.
Estava cada vez mais desconcertado, encurralado como se estivesse diante
de um inimigo terrível: “Fico honrado por teus pensamentos serem tão altos
como os que nutro por ti, Alva Maria de meu coração. É pena não termos
falado adequadamente quando nos conhecemos em tua morada. E sim, onde
está teu esposo, aquele que falou mais de colheitas e políticas das Beiras no
batizado do que eu ou tu gostaríamos?”.
A pergunta tinha uma expectativa algo medonha, pois imaginava a resposta
e amaria ouvi-la, mas também a temia. Sua ausência para mim era muito
tentadora com aquele ser celeste na pelugem de mulher à minha frente. O que
seria de mim junto, por breves instantes, dessa dona de brasões que não se
escudam em tolices terrenais?
Marialva mal se apercebeu de minha agonia, ria agora como um peixe
n’água por estarmos juntos: “De fato ele está a fazer o que sempre faz quando
vem à capital. Sai à noite para uma literal Carreira das Índias de taverna em
taverna. O Atlântico são todas as ruas e calhes, e a nave é o vermelho álcooldo
vinho e o branco do bagaço. Ele, teu mestre Frazão e mais uns sete ou oito
repugnantes convidados do beato batismo, Cosme. Desta vez, entretanto,
conheci alguém que valia a pena ter em conta para preencher minha solitude
noturna”.
A resposta era mais complexa do que imaginava. Não ousava ter o ímpeto
que costumei ter com meia Salamanca e Lisboa junto a essa digna mademoiselle
que valia o cruzar de todo o Mediterrâneo por Jasão.
“Entendo, minha dama. E, mais uma vez, lamento imenso por isso. Acho
que irei dizer a coisa mais óbvia que falei hoje para si – Teu esposo é um tolo, e
dos grandes. Já me apercebi disto em vossa casa e agora simplesmente me
choco na inconformidade de tamanho obtuso para te abandonar nesta cidade
cruel e estripada de pobreza. Ao menos a noite está estrelada como há muito
não se via. E a lua está em crescente. Talvez em tua honra.”
Os olhos cinzentos dela, mui similares a um mar recém-apaziguado por um
céu pós-tormenta, brilhou e inflou em algo que lembrava um princípio de
pranto. Não a deixei prosseguir.
“Em Trás-os-Montes costumamos medir os céus como presságios de
grandiosidades. Mesmo os céus vedados são bons para algo no porvir. Mas uma
noite apinhada de guias brilhosos como esta só pode condizer, segundo essa
crença, com algo mui especial. Acredito ser nosso encontro. Creio muito mais
nas estrelas do que em qualquer entidade divina.”
Ela se aproximava de mim quase com magnetismo: “Eu também, Cosme.
Por isso mesmo já desisti de rezar pela mudança virtuosa de Proêncio. Quanto
mais o tempo passa e eu não o provejo de herdeiros, mais ele me usa como
troféu de alcova puro e simples. A troca, não de afeto, mas de carícias, se
existiu alguma vez, se esvaiu em agressões. Não nascemos para nos unirmos.
Mas nada mudará isso. Quis ver-te uma última vez para mirar o que poderia
ter sido se nossos sendeiros se tivessem cruzado dantes. Esta é a razão, por
favor, não me tomes como uma pequena nobre à procura de frivolidades”.
Nada mais poderia dizer. Nem mesmo minha mãe e genitora ou todos os
meus mestres acadêmicos e religiosos poderiam ter me dado tamanha
ensinança do viver e, para engrandecer mais a lição, do viver de maneira triste.
“Marialva, tu me ensinaste muito mais do que em duas vidas poderia obter.
Ó estimada estrela deste céu puro, também não me tomes por instintivo e
libidinoso. Vim aqui em busca do leite e do mel de tuas palavras e de teus
câmbios no modo como me olhas. Tal e qual Moisés prometeu a Zípora, tu
sem o saber me prometeste o jorro desses bens de tua face. Minha terra
prometida não fica em outrem ou algures senão a teu lado. Eis a vil crueza do
viver, já que és de um outro indigno.”
Estava ela quase que achegada a mim. Visualizava como um todo a minha
emoção. Por isso talvez tenha baixado a cabeça de repente: “Folgo em saber que
também estamos em sintonia sobre isso. Não me compares a esses divinos
seres. Se o eram mesmo celestiais estou longe deles. Sou apenas uma mulher a
existir numa existência que se escasseia como água estragada em tonéis
esquecidos”.
Suavemente toquei em seu formoso queixo, subindo sua face para junto da
minha: “Tu jamais serás poluída por qualquer que seja o passo temporal. Se o
Criador é aquele a quem é proibido blasfemar, tu és digna das maiores
realizações. E não desejo que te compares mais a ninguém. Sejas apenas
Marialva para mortal. E por tão pouco tempo!”.
Tomei-a em meu peito. Ela agora chorava sem subterfúgios. Beijei-a como
se minha vida dependesse daquele toque. Estava mais preocupado em salvá-la
do luto do que propriamente em me santificar naquela boca de textura como a
de um trigal a raspar as mãos de uma criança.
O eterno confiou a nós aqueles pequenos minutos de enlace anímico em
estado bruto. Mas a conjuração ecumênica mencionada veio à tona. Dionísio
soprou aos ouvidos do ébrio Bragança, o dissimulado Loki esteve junto ao
bronco proprietário local. E agora são Valentim finalizava o serviço. Estava
irremediavelmente apaixonado quando a dupla de maltrapilhos desprezíveis
arrombou os aposentos e nos flagrou como dois cisnes a nadar num lago
boreal.
“Cosme? És tu o cão ruivo de quem este Genaro descreveu? Infeliz maldito!
Ingrato! Bem o sabia que em um Fernandes não se fia nem uma palha de um
prado. Desgraçado, afasta-te desta puta que primeiro ela terá o que merece as
rameiras de todas as plagas que enganam seus maridos à punhalada!”
O ridículo, visivelmente bêbado, e eu reconheço um quando este assim se
encontra, berrava descontrolado. Meu coração batia de ódio por Marialva.
Insultar de puta aquela flor do mar Egeu era demasiado para mim. Como há
minutos antes, não pensava no porvir, éramos apenas nós, pranteando a
felicidade do complemento fugaz e momentâneo.
Agora, todavia, era a crueza do combate, do cruzado ofendido pela
blasfêmia de um herege que vinha a nublar meu futuro próximo.
A covardia daquele dejeto em forma humana chegou a seu cume quando
sacou uma adaga. Covarde, pois, já que me encontrava desarmado por
completo. Mas não, leitor, não! Ele sobreveio diretamente à Marialva, indefesa,
e não a mim, o que seria mais justo. Duas vezes covarde era o suíno! Mesmo a
um embriagado era velhacaria em demasia.
Tudo não passou de segundos. Consegui segurar seu ímpeto com meus
dois braços a proteger a menina de meu despertar. Ela apenas chorava e
desesperava a cada palavra escarrada que ele proferia e, daquele instante em
diante, pelo gesto que tomaria. Talvez a branca pétala quisesse que aquilo
terminasse de vez, que o destruidor de seus sonhos também desse cabo dela
própria.
Nunca, jamais em minha presença! Suspendi sua mão destra e, num golpe
ligeiro com o cotovelo de minha mão livre, o derrubei ao chão e de seguida
girei a lâmina contra o seu dono. Mais jovem, forte e sóbrio, não me foi difícil
enterrá-la, cheia de rancor, no lado esquerdo do peito daquela besta que talvez
tivesse um caroço de azeitona a bater no lugar do coração.
Tudo nublou. Ele havia caído no amadeirado quando desferi a facada,
inteiramente ensanguentado. Ainda não pensava no que haveria de vir a meu
encontro. Fui despertado pelos gritos de Marialva. O tal Genaro se fora e, em
minha cólera, não me dei conta.
“Cosme, por todos os arcanjos e santos da Santa Sé. Permitisses minha
passagem, minha morte. O que será de mim agora, e, pior, o que será de ti?
Aos olhos da Justiça cometeste adultério.
E contra um membro da família da rainha-mãe de Portugal!”
“Não me importo com a merda da rainha-mãe de Portugal, de Judá, Sabá
ou do Preste João. Queria e quero proteger-te, meu anjo. Aquele maldito inseto
chamou-a de termos inomináveis. Faria tudo outra vez, à mesma maneira!”,
disse-lhe ainda ofegante e a recuperar a razão do estado em que nos
encontrávamos.
Ela voltou a meu peito num abraçar de doçura apocalíptica: “Não
compreendes. Serás exilado em um couto perdido ou mesmo morto pelo que
fizeste. Meu Fernandes, meu menino Cosme, irmão de são Damião que me
libertou e aprisionou-me em sua morada interna. Agora nossas vidas estarão
destroçadas e apartadas no carnal apenas para estarmos unidos em
pensamentos! Era preferível termos morrido”.
Ela soluçava sobremaneira, debatia-se junto a meus ombros, mais bambos
do que quando adentrei naquele recinto, naquela antessala de meu destino.
Lágrimas indecifráveis me caíam também. Só consegui abraçá-la mui forte de
volta. Logrei dizer a ela: “Fujamos, e imediatamente. Chega de desesperança,
minha querida! Cavalguemos ao sul. Atravessemos para Castela pelo Guadiana,
não estaríamos longe de Sevilha. Sejamos pedintes mas sejamos felizes, meu
bem querer. Tu assim mereces, Marialva minha”.
Passei as mãos sobre sua face e sentia que ela havia consentido com o
insano plano. Não tínhamos mais escolhas do que sermos a felicidade que nos
habitava ou morrer intentando-a. Tarde demais. O maldito e pequenino
d’alma Genaro já havia acorrido à Guarda Real, dado todos os nomes, o do
finado incluído. A porta

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