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Colore-me, amor _ Trilogia Novos Amores Livro 01

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Copyright © 2021 Rachel Trinxet
COLORE-ME, AMOR
1ª Edição
 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.
 
Capa: Ttenório Design
Revisão: Lilson Silva
Diagramação: April Kroes
 
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com fatos reais é mera coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios
existentes – tangíveis ou intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº
9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.
 
TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA.
 
Sumário
Prólogo
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
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38
39
40
41
Epílogo
Bônus
Agradecimentos
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao meu marido, Caio, que sempre pintará asas para mim.
Apenas com o intuito de me fazer voar.
 
 
“Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
 
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
 
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?”
 
CECÍLIA MEIRELES
 
OREGON, DIAS ATUAIS.
 
Eu costumava ser religiosa.
Lembro-me dos domingos em que meu pai acordava cedo e me levava com ele para o culto
dominical. Desde que me mudei para a Dinamarca, não piso em uma igreja, faz cinco anos desde
então. Mas esse não é o ponto da questão, o que preenche meus pensamentos enquanto dirijo é de um
domingo em especial. Recordo vividamente de um sermão que nunca fez tanto sentindo como agora.
Ele fala sobre…
— Mamãe? — Uma voz doce e sonolenta me chama.
— Oi, filha. — Olho para a menina sentada perto de mim, do outro lado do banco, abraçada a
um urso de pelúcia.
Ela faz um biquinho engraçado e aperta as orelhas do ursinho com força. Conheço minha filha o
suficiente para saber que está criando coragem e buscando palavras para me perguntar algo, ou soltar
algum comentário que, com certeza, sabe que é desconfortável.
— Pode falar, está tudo bem — encorajo-a, sentindo as batidas do meu coração se contraírem.
— Quero meu papai…
Cravo as unhas curtas e por fazer na palma da mão, sentindo a tensão em meus dedos finos.
— Ele vai nos visitar assim que puder, não vai demorar. — Forço um sorriso confiante.
Observo-a suspirar e se agarrar ainda mais ao amiguinho peludo, em seguida fecha os olhos,
encostando a cabeça na janela. Inevitavelmente, uma lágrima escorrega em minha bochecha. Limpo
com pressa, para que ela não veja.
Viro para o outro lado e volto minha atenção para a rodovia pouco movimentada. O lago
extenso e símbolo da minha cidade está aparente no final da estrada, indicando que chegamos ao
nosso destino. Meu antigo lar, o lugar que saí para realizar um sonho e que, agora, volto com ele
escorrendo pelos meus dedos, como grãos de areia.
O sermão, sim, as palavras voltam a ecoar em minha mente enquanto me aproximo ainda mais
da entrada da cidade.
Ele fala sobre a diferença de uma casa edificada na rocha, e outra na areia. Quando é edificada
na rocha, cai a chuva, vem a enchente, o vento sopra contra ela, e a construção não desaba, pois está
firmada em uma rocha. E quando é edificada na areia… cai a chuva, vem a enchente, o vento sopra
contra, e ela desaba, simplesmente porque foi firmada em cima de grãos de areia.
Se há cinco anos eu tivesse me lembrado dessa parábola, ou ao menos acreditado nela, talvez
eu teria tentado arrumar uma saída. Mas eu a esqueci, e fica muito difícil construir uma saída de
emergência em um local sem estrutura, sem planejamento.
Olho para a placa que diz: “Seja bem-vindo à Lake Oswego”, e percebo que minha vida se
tornou um castelo de areia.
Um castelo totalmente destruído.
 
 
 
 
DINAMARCA, TEMPOS ATRÁS.
 
Pego meu celular na bolsa e envio uma mensagem de texto para minha mãe, avisando-a que
cheguei bem na Dinamarca.
Sento-me na cama, com o celular ainda em mãos. Analiso o quarto em que estou. Nunca tinha
ficado hospedada em um hotel tão moderno e descolado como esse. Não sei se todos os quartos são
iguais, mas o meu é decorado em tons predominante de branco e vermelho. Sua estrutura é moderna,
seus móveis são todos com bordas redondas. Me sinto em um lugar futurístico.
Minutos antes, quando o carro parou no centro de Copenhague, em frente ao hotel com
diversas telas artísticas decorando seu exterior, precisei de um tempo para acreditar que era real, que
eu estava mesmo na Dinamarca, contratada por uma agência de modelos renomada. Fiquei tão aérea,
que não consegui prestar atenção em mais nada até chegar aqui, em meu quarto.
Sou modelo desde que eu me entendo por gente. Minha mãe apostou todas as suas fichas em
mim, sim, fichas. Esperança é um pouco demais. Acredito que esperança é para quando existe
sentimento. Não precisa necessariamente ser amor, apenas carinho, talvez.
E, agora estou aqui, com 19 anos, vivendo um sonho, o sonho de um outro alguém.
Suspiro e sinto o celular vibrar em minha mão, viro a tela para mim, o número da minha mãe a
preenche.
— Oi, mãe — digo ao atender.
— Me conta tudo! — ela grita, eufórica. — Já conheceu a equipe que vai trabalhar com você?
Alguém mais foi contratado? Clementine, você precisa fazer o seu nome! Se continuar essa menina
bobinha, vão passar você para trás.
Trinta segundos de conversa, e ela já arrumou um jeito de me diminuir. Essa é Hazel Hill,
minha mãe.
— Acabei de chegar — lembro-a. — Aqui são… — Olho rapidamente para a tela do celular e
o coloco novamente no ouvido. — Dez horas da noite. E vieram duas pessoas comigo, uma mulher e
um homem.
— Bonitos? — pergunta, um tanto tensa.
— Não reparei direito, mãe. Meu voo foi horrível — decido comentar, já que ela não
perguntou. — Passei muito mal. Quando chegamos no aeroporto, uma mulher estava com uma
plaquinha com meu nome. As duas pessoas já estavam com ela, vieram de outros lugares.
— São bonitos, Clementine?
— Pelo pouco que reparei, sim.
— Você é mais. — Ela fica em silêncio por um tempo. — Não se preocupe com isso.
“Eu não estou”, resolvi guardar o comentário para mim.
— Amanhã temos uma reunião aqui no hotel que estou hospedada. Segundo a mulher que nos
recebeu, vamos ser apresentados à equipe.
— Vista sua melhor roupa e não coloca aquele batom claro, Clementine, te deixa com uma
aparência horrível.
Instintivamente toco meu lábio, ainda revestido com o batom em questão, que aparentemente
me deixa feia.
— Sim. Mamãe, eu te ligo amanhã, pode ser?
— Assim que acabar a reunião — decreta.
— Sim, senhora.
Ela fica em silêncio por um tempo e penso que a ligação caiu, até escutar seu suspiro do outro
lado da linha. Espero ansiosamente ela dizer que vai sentir saudades, ou me desejar boa sorte. Estou
sozinha em um país desconhecido, com pessoas desconhecidas e, mesmo não querendo pensar muito
nisso, eu quero minha mãe por perto, alguém em quem me segurar.
— Não estraga tudo, okay? — ela quebra o silêncio. — Essa oportunidade pode ser tudo que
você terá na vida.
Sinto meus olhos arderem em lágrimas.
— Não vou — respondo como um sussurro.
Após ela desligar, limpo os olhos cheios de lágrimas e me deito na cama, exausta demais para
comer alguma coisa, ou tomar um banho. Ficará para amanhã. Tiro as botas, forçando-as com o pé,
agarro um travesseiro extra e me cubro, encolhida como uma criança.
Uma criança que só precisava ouvir palavras de encorajamento.
Até um simples “boa noite” serviria.
 
OREGON, TEMPOS ATUAIS.
 
O táxi para em frente à minha antiga casa, e percebo oquanto tinha esquecido de seus detalhes.
O motorista desce para pegar malas, então encosto a cabeça no encosto do banco, observando a casa
de aparência agradável e pequena, se comparada às outras ao redor, e de toda Lake Oswego. A
cidade está entre as mais caras do estado de Oregon. Queria poder dizer que morei aqui porque tive
uma vida cheia de privilégios, mas não foi bem assim.
Na época que meus pais casaram, moravam no centro de Portland, minha mãe era aspirante a
ser modelo, e ele trabalhava com finanças. Seu trabalho prosperou com o tempo e, antes de eu nascer,
comprou essa casa, que na época não valia tanto como agora. Nos anos seguintes, minha mãe gastava
mais do que podia… Era passagem de avião, ônibus, hotéis, roupas feitas especialmente para mim.
Resumindo, ele perdeu seu precioso emprego, ficando cheio de dívidas, e a primeira coisa que Hazel
fez foi pedir o divórcio, ficando com a casa que ele comprou com seu suor. Desde que se separaram,
anos atrás, que ela vive aqui, esbanjando uma vida que não lhe pertence.
As janelas de vidro estão abertas e percebo o jardim bem-cuidado, embelezando a entrada da
casa. A alvenaria em tons claros contrasta com o telhado cinza e baixo, em uma construção de um só
andar. Queria poder dizer que senti falta desse lugar, mas seria mentira. Não cultivei muitas
lembranças. Minha memória se resume a quarto de hotéis, milhares de quartos espalhados pelo país,
devido a cada concurso que minha mãe me levava. Quase nunca ficava em casa.
A porta de entrada abre, e Hazel sai, como se tivesse sido invocada por meus pensamentos.
Sua expressão de reprovação não esconde o que sente ao cruzar seu olhar com o meu pela janela do
carro. Respiro fundo e saio, tiro o cinto que prende minha filha, aparentemente em um sono
profundo. 
— Não vou falar nada — minha mãe resmunga ao se aproximar, já se contradizendo.
— Também senti saudades — murmuro baixinho. — Filha… chegamos na casa da vovó. —
Passo a mão por seus cabelos loiros claríssimos, platinados.
Asta, minha filha, abre os olhos um pouco confusa e logo desperta ao ouvir a voz da minha
mãe, ainda resmungando que se recusa a falar algo. Quero dizer que então pare de falar, mas prefiro
não a irritar mais.
— Vovó! — a menina grita, saltando do banco. Ela me empurra para passar por mim e agarrar
a avó com força. — Savner dig[1]!
— O que ela disse? — minha mãe pergunta, olhando para mim.
— Que sentiu sua falta — traduzo. — Asta, vamos tentar falar só o inglês, tudo bem?
Ela balança a cabeça concordando e solta minha mãe.
Asta é dinamarquesa. Nasceu em Copenhague e viveu lá por cinco anos, até dois dias atrás.
Seu pai e eu fizemos questão que ela estudasse em um bom colégio bilingue, para que aprendesse o
inglês, que é minha língua de origem. Mas, mesmo praticando o inglês em casa e na escola, ela ainda
confunde as palavras e tem um sotaque carregado, igual ao do pai. Eu não me importo em ouvi-la
falar dinamarquês, já estou acostumada, mas as outras pessoas, não. E fico receosa por ela, no quanto
isso pode interferir em sua criação nos Estados Unidos e em suas futuras amizades.
— Seu quarto está arrumado, vai lá ver. — Minha mãe sorri e faz sinal para que ela entre na
casa.
Ao lado do carro, estão três malas de tamanho médio, duas de Asta e somente uma minha.
— Você deixou suas coisas lá? — Hazel pergunta, inconformada. — Cadê suas malas,
Clementine?
Pego o dinheiro da corrida no bolso da minha calça jeans e entrego ao motorista, que logo
entra no carro e parte.
— Tudo que preciso está aqui — respondo e aponto para a mala mais leve e colorida. — Pode
levar essa?
Com muito custo, ela a pega, passa por mim com passos firmes e resmungos que não consigo
compreender. Seguro a alça da mala, uma em cada mão, e as arrasto pelos três degraus até a entrada.
Coloco as malas no canto da sala e me emociono ao sentir o cheiro que o lugar tem. Minha mãe ainda
usa velas de baunilha para aromatizar o ambiente, é um fetiche dela que eu havia esquecido.
O piso de madeira escura está um pouco gasto, precisando urgentemente de uma cera ou uma
reforma. Os móveis são os mesmo de anos atrás, antigos e também de madeira. A única coisa que
parece ser nova são os lustres modernos, com pequenos cristais e o sofá em um tom bonito de creme.
— Que cara é essa, menina? — ela pergunta, do meio da sala, olhando-me daquela forma
reprovadora novamente.
— Baunilha — respondo, com um leve sorriso. — Esse cheiro me lembra você e… minha
antiga vida.
— Sua antiga vida!? — cospe as palavras, aproximando-se de mim. — A vida que toda mulher
sonha em ter? E que você está jogando no lixo por bobeira?
— Bobeira? — pergunto, em um tom baixo, para que Asta não escute. Minha mãe não sabe
falar baixo. — Você mais que ninguém, sabe tudo que eu passei, como consegue dizer isso, mãe?
Ela balança a cabeça, em negação, e me sinto péssima. Seus olhos escuros, enfeitado com
cílios artificiais, me lança um olhar tão afiado e julgador, que me causa uma decepção comigo
mesma, em talvez estar sendo uma vergonha para ela, trazendo-me um milhão de dúvidas. Dúvidas
que me cercam diariamente.
— Knut… — pronuncia o nome do meu marido. — Ele vai cansar dessa sua palhaçada. E
quando isso acontecer, Clementine. Você não terá mais nada!
Asta entra correndo na sala, pulando de felicidade com seu quarto que ainda não vi. Minha mãe
se afasta e a leva para a cozinha, em outro cômodo.
Encosto-me de costas na parede e tapo a boca com uma mão, sufocando um choro que não pode
vir agora.
 
 
 
DINAMARCA, TEMPOS ATRÁS.
 
O despertador do celular toca marcando seis horas da manhã, uma hora antes da reunião.
Abro os olhos preguiçosamente, levando um tempo para reconhecer onde estou. Me espreguiço
e, assim que levanto, sinto uma fraqueza no corpo e minha cabeça latejar, por fome e cansaço
acumulado. Passei tão mal no avião, que não consegui comer nada que foi oferecido.
Vou até o banheiro, tiro a roupa sem ao menos analisar meu estado no espelho, entro no box que
fica literalmente no meio do quarto, permitindo ver tudo que há nele. Assim que a água quente toca
minha pele clara e encharca meu cabelo revolto, sinto alívio. Toda indisposição se esvai junto com a
água que desce pelo ralo, revigorando-me.
Assim que saio, me enrolo em uma toalha felpuda, seco meu cabelo com o secador disponível
— é o que leva mais tempo em todo meu ritual diurno. Os fios castanho-escuros se mesclam com
alguns reflexos mais claros, em um tom bonito de mel. Ou, como dizem, morena iluminada. Quando
era pequena, minha mãe me obrigava a ter o cabelo na altura da cintura e franjinha, na adolescência,
a convenci que franjas não combinavam comigo, sem contar o trabalho que eu tinha para secar as
madeixas absurdamente longas, o que ajudou amolecer seu coração. Agora os mantenho na altura do
peito, não tão longo, não tão curto. Um meio termo aceitável.
Guardo secador no suporte preso na parede e vou até minha mala, jogada no canto do quarto.
Separo um cropped preto de manga longa e uma calça de couro com um rasgo em uma das pernas.
Reviro a outra mala, onde coloquei meus melhores sapatos e tiro um tênis branco, bruto e
confortável. Pelo que me foi dito, a reunião é para nos informar como será nossa vida daqui para
frente e não nada muito formal. E, por ser modelo, tenho o privilégio de andar de camisola sem
parecer louca.
Me visto e volto ao banheiro com uma maleta de maquiagem pequena nas mãos. Passo uma
camada de corretivo, um pouco de iluminador nas maçãs do rosto. Para os olhos, decido usar
somente bastante rímel, que realça o tom de verde frio e acinzentado da minha íris. Olho para o
batom nude, que descobri me deixar feia, e hesito, opto por um lip balm de pigmento avermelhado.
Verifico a hora no relógio em meu pulso e, após pegar minha bolsa de couro, vou seguindo as
orientações espalhadas pelos corredores — que estão em inglês — até a sala de reuniões. No
começo do corredor, já a encontro, toda cercada por vidraças, compersianas pretas abertas,
mostrando o lado de dentro. Conto oito cadeiras, arrumadas ao redor da mesa, antes de chegar à
porta. Assim que entro, sou recepcionada pela mesma mulher que me recebeu no aeroporto.
— Bom dia, Clementine! — ela me cumprimenta, com um sorriso, segurando um tablet nas
mãos. — Pode sentar-se onde quiser.
— Bom dia — digo baixinho, observando a sala vazia. — Acho que cheguei cedo.
— Logo todos estarão aqui, o presidente não aceita atrasos. É um ponto bom para você.
Entro um pouco tímida e me sento na cadeira da ponta oposta à tela do projetor, para não ficar
tão exposta quando todos chegarem, e longe de quem quer que seja o presidente. As cadeiras são
confortáveis e coloridas, cada uma de cor em tons alegres. Em cima da mesa, estão dispostas
garrafas de água, alguns pacotes de amendoins e, pelo desenho que observo, mix de castanhas. As
luminárias são pendentes em um tom amarelado. Observo pelas janelas à minha frente a cidade
coberta por um céu cinzento.
Aos poucos, as pessoas vão chegando, ocupando seus lugares. O casal de modelos que veio
comigo para o hotel ontem senta-se perto de mim. Aceno com a cabeça em uma espécie de
cumprimento. A mulher parece ter minha idade e é linda. Sua pele é negra, seus cabelos são
encaracolados naturalmente. Os olhos são de um tom de âmbar. Ela realmente parece ter saído de
uma revista. O homem parece ser mais velho que nós duas, mas ainda assim, novo. Ele é da minha
cor, com cabelos castanhos cumpridos presos em um coque no topo da cabeça.
— Você é de onde? — ele me pergunta, de repente.
— Oregon, Estados Unidos. E você?
— Texas.
— Um cowboy? — a mulher de olhos âmbar pergunta, com um risinho.
— O que você quiser que eu seja, linda — ele responde, e nós duas sorrimos. — Me chamo
Taylor.
— Clementine — me apresento.
— Aziza — ela se apresenta também. — E sou nigeriana.
— Eu sou Alba, caso já tenham esquecido — a mulher que me recepcionou diz, com uma
risada sonora. — Já iremos começar. Se quiserem beber uma água, ou comer algo, sintam-se à
vontade. Após a reunião, poderão ir tomar café da manhã. — Ela joga os cabelos longos e loiros
para o lado e desliza com habilidade os dedos pela tela do tablet.
Meu estômago ronca, lembrando-me o quanto estou com fome. Pego uma garrafa de água e
tomo longos goles para aliviar.
Alba se posiciona atrás da única cadeira diferente, que deve ser do presidente, na outra ponta
da mesa. Todas as outras cadeiras estão ocupadas por pessoas que nunca vi na minha vida. A parte
tímida e insegura que habita em mim grita.
— Godmorgen allesammen[2]! — Uma voz bonita e firme soa atrás de mim. — Bom-dia a
todos! — traduz em inglês, com um sotaque carregado.
— Bom-dia — respondo, junto com o coro de vozes.
Desvio os olhos para a mesma direção que todos e perco a linha de raciocínio com a figura
máscula e imponente posicionada de pé, de frente para nós. Eu achava que presidentes de empresas
eram homens velhos, e o homem parado a alguns metros de mim deve ter no máximo 30 anos.
— Quero começar essa reunião dizendo que é um prazer recebê-los em minha agência. Sou
Knut Laursen, o dono da Laursen Model. — Ele abre o botão do seu blazer azul-marinho e se senta
em sua cadeira. — Alba.
Imediatamente, Alba entrega o tablet a ele. O presidente analisa o que está na tela a sua frente
sem uma expressão decifrável. 
— Vamos começar com você. — Ele olha diretamente para mim, e eu sinto minhas mãos
formigarem. — Seu nome e cidade de origem. — Seus olhos são de um tom intenso de azul e algo
neles me faz querer sair correndo ao mesmo tempo que me convida para mais perto.
— Seu nome — Alba repete, atrás dele. — Ele quer saber seu nome. Não estava prestando
atenção?
— Sim, desculpa… Me chamo Clementine Hill, e sou de Oregon, Estados Unidos.
Ele estreita os olhos, inclina a cabeça para o lado, me analisando.
— Você é a garota de Oregon — afirma o que eu acabei de dizer.
— Sim…
— Fez um excelente desfile em Nova York, Clementine. Fiquei impressionado.
Percebo todos virarem a cabeça para me encarar. Ser elogiada pelo presidente na primeira
reunião, para a modelo, é incrível, para os outros… é um sinal claro de competição. Nesse ramo, não
existem amigos. Eu fui treinada para situações como essa, contudo, sou uma mulher totalmente
insegura e, como diria minha mãe, “bobinha” demais para saber revidar.
— Obrigada. — Abaixo a cabeça, constrangida.
O restante das pessoas diz seus nomes. De modelos contratados, somos apenas eu, Taylor e
Azuza. Os demais são a equipe que trabalhará conosco. O presidente explicou o cargo de cada um
deles.
— Agora vamos falar de negócios. — O homem sorri minimamente. — Como estão cientes,
nesse ramo, quando se é contratado por uma agência, principalmente em outro país, são vocês por
vocês. Aqui na Laursen, não funciona dessa forma. Por isso, somos a agência mais renomada da
Dinamarca.
— Nosso diferencial está em como tratamos nossos modelos. Temos ciência do quão
importantes vocês são para a agência — Alba se pronuncia. — Vocês irão ficar hospedados nesse
hotel, então terão o café da manhã gratuito. As outras refeições são por conta de vocês. Todos
receberão o cachê de acordo com os trabalhos realizados, mas ainda assim, terão um valor mensal,
para cobrir outros gastos que possam ter.
— Não é muito — o presidente volta a falar. — E a sua estadia aqui dependerá unicamente do
seu sucesso nas passarelas, campanhas, sessões de fotos. Temos contrato e parceria com várias
marcas, todos serão recomendados igualmente, mas nem todos serão contratados para a mesma coisa.
Então, no que forem escolhidos, façam com excelência. 
— A agência não aprova e acoberta comportamentos ruins. Brigas, uso de drogas, prostituição,
problemas com alimentação, entre outros. Creio que leram isso antes de assinarem o contrato —
Alba nos alerta. — Qualquer suspeita e confirmação desses comportamentos, serão enviados de
volta, sem direito a nada. Prezamos a saúde, bem-estar físico e emocional de todos, acima de
qualquer coisa.
— Alguma dúvida? — o presidente pergunta, olhando demoradamente para cada um de nós. —
Aziza?
— Não, senhor.
— Taylor?
— Nenhuma.
— Clementine? — praticamente recita meu nome, e um reboliço se forma em meu estômago.
— Não, senhor… — respondo, tentando desesperadamente não desviar os olhos dos seus.
— Ótimo. — Ele levanta e abotoa o terno. Reparo um anel bruto, de ouro, em seu dedo
indicador. — Agora vão tomar um bom café da manhã, que a noite reserva uma surpresa para vocês.
— Ele alisa seu cabelo loiro e sorri educadamente para Alba, que retribui da mesma forma.
Alba pega alguns cartões pretos com dourado em cima de um aparador perto do projetor e os
repassa para ele, que logo entrega para nós três, com um brilho no olhar.
— Esses são os convites para a festa de lançamento do novo sérum da maior empresa de
cosméticos da Dinamarca — Alba explica. — A Naturlige Skønhed[3], que significa beleza natural.
Eles estão lançando uma linha de cosméticos veganos, e o sérum está no primeiro lugar dos mais
vendidos, em pré-venda.
— Não será só diversão — o presidente complemente em seguida. — Lá estarão os
presidentes da Naturlige Skønhed, e de diversas outras marcas. Eles estão em busca de um rosto
para estampar a linha vegana. Quem sabe, um de vocês tenham essa sorte.
— Vistam sua melhor roupa — Alba volta a falar, sorrindo com verdadeira animação. — A
nossa equipe estará disponível para cabelo e maquiagem. Nosso carro passará aqui às sete, então
precisam estar impecáveis na frente do hotel, cinco minutos antes.
— Vejo vocês à noite e… — Ele me encara novamente. — Boa sorte a todos.
Vejo o corpo bem estruturado sair da sala, em um caminhar imponente, como se seu chão fosse
uma passarela sem fim, sem ao menos ele se esforçar para isso.
— Se acostuma com esse rostinho, bonecas — Taylor diz para mim e Azuza. — Porque é ele
que estará estampado nessa cidade depois de hoje à noite.
Azuza solta uma risada, debochada.
E quaseescuto o som dos tributos e aquela conhecida voz gritando:
“Que comecem os jogos.”
 
 
OREGON, TEMPOS ATUAIS.
 
Termino de beber o café que fiz, recolho as louças sujas e coloco todas na máquina de lavar-
louça. Escuto o som da TV e vou até a sala, minha mãe está sentada no sofá, lixando as unhas
compridas, enquanto o apresentador do jornal matutino informa as últimas notícias de Oregon.
— Bom-dia — digo, encostando o quadril na mesa de jantar, de frente para ela.
Ela resmunga algo de volta, sem tirar os olhos do que está fazendo.
— Você poderia ficar com Asta essa manhã? Vou tentar conseguir uma escola para ela e…
Finalmente ela para os movimentos e ergue a cabeça para me encarar com uma expressão
curiosa, ou furiosa. Nunca sei distinguir.
— E…?
— Vou procurar um emprego — concluo a frase.
Ela solta uma risada sem emoção e volta a lixar as unhas, com mais força com o necessário.
— Vai trabalhar de que, Clementine? Faxineira? O que não falta aqui em Lake Oswego são
casas.
— Mãe…
Se existia uma forma de contar a ela, sem me sentir tão envergonhada, tinha evaporado.
— Quer saber? — Ela joga a lixa no sofá e se levanta, parando perto de mim. — A vida é sua,
mas esteja ciente que eu não apoio isso. Você está jogando uma carreira no lixo por nada!
— Minha carreira acabou quatro anos atrás! — respondo, com a mesma intensidade dela,
sentindo meus olhos se encherem de lágrimas. — Minha carreira acabou quando me casei com Knut.
— Você — ela aponta o dedo na direção do meu rosto — é uma ingrata! Seu marido te deu de
tudo, Clementine. Cuidou de você e todos esses seus problemas de cabeça insuportáveis, assumiu
você quando engravidou da Asta, porque foi burra e não se cuidou! Igual ao Knut, você não encontra
nunca mais.
Nisso ela está certa, eu nunca irei encontrar alguém como ele… e queria dizer que isso é algo
bom, mas não é.
— Vá arrumar seu emprego. — Ela relaxa os braços ao lado do corpo esbelto, com a
respiração ofegante. — Rubia me deve alguns favores, vou cobrar um deles pedindo que arrume uma
vaga para Asta aqui em Lake Oswego.
— Obrigada. — Limpo meu rosto úmido com a palma da mão. — Não vou demorar.
Sem me olhar novamente, ela sai batendo o pé pelo piso de madeira em direção aos
corredores, e o que mais me dói em tudo que ela me disse foi a forma que desdenhou ao falar dos
meus “problemas de cabeça insuportáveis”.
Não são um problema de cabeça.
São problemas profundos, com gatilhos infinitos, são problemas emocionais, físicos, tão
difíceis de lidar.
Jogo para um canto escuro da minha mente todas as suas palavras e vou até meu quarto para me
arrumar. Ontem, antes de dormir, arrumei as poucas roupas, acessórios, sapatos e objetos pessoais
que trouxe no closet do meu antigo quarto. Observo as roupas e tento montar mentalmente algum look
que impressione, eu preciso muito de um emprego.
Os anos que passei na Dinamarca conseguiram me dar uma estabilidade financeira. Guardei um
bom dinheiro, que ainda estava na minha conta aqui nos EUA e será totalmente voltado para o futuro
de Asta. Mesmo que Knut seja milionário e dê a ela a oportunidade de estudar na melhor faculdade
do país, eu quero ter meu papel de mãe na vida da minha filha.
Depois que eu casei, conforme a barriga foi crescendo, fui perdendo os contratos de passarela,
ficando somente com os das empresas de cosméticos, tanto de produtos de pele, como de maquiagem.
Quando Asta nasceu, ainda fiz mais alguns trabalhos, mas… Knut queria que eu fosse uma mãe
presente e abandonei minha carreira. De vez em quando, aceitava alguns trabalhos, que fossem
rápidos e não dependesse que fosse para fora do país. Ser esposa do presidente da Laursen Model
me fez ter outros tipos de responsabilidades. Atender todos os compromissos ao lado do meu marido
consumia todas as minhas noites e datas comemorativas. Meu dinheiro próprio foi se esgotando,
então deixei o restante na conta e usei tudo que Knut me proporcionava. Ele gostava de me ver
bonita, bem-vestida e nunca se importou em quanto gastava, portanto que eu estivesse feliz e, claro,
digna de um presidente.
Voltei sem nada dele.
Por fim decido. Pego um corselet preto rendado, em uma versão de blusa. É transparente nas
laterais do corpo, com alças finas e bem justo. Mesmo sendo um corselet, não fica indecente, por eu
ter pouco busto e estar mais magra que o normal. Mais um pouco, eu caberia nas roupas da Asta.
Visto uma calça jeans clara de cintura alta e passo um cinto preto de couro para deixá-la mais
despojada. Entre os meus poucos sapatos, pego uma bota de cano curto e couro, com bico
arredondado. Solto o cabelo, que continua igual, só um pouco mais claro nas pontas, escolho uma
bolsa também preta, simples, e atravesso a alça fina pelo corpo.
Saio de casa sem fazer barulho e, quando entro no carro da minha mãe, fecho os olhos e faço
uma oração ao Deus que não converso há cinco anos. Para que, por favor, me ajude a conseguir um
emprego.
 
Chego em uma das muitas ruas íngremes de Lake Oswego e estaciono o carro perto do meio-
fio, com vista para o lago, referência da minha cidade. A água está esverdeada, cercada por árvores
e casas luxuosas, uma mais bonita que a outra. Milhões de dólares em uma arquitetura e vista de tirar
o fôlego. Amo minha cidade e, mesmo morando na Dinamarca por longos anos, um país seguro e de
primeiro mundo, sempre me imaginei envelhecendo aqui. Em uma casa melhor, admito.
Respiro fundo e pego o celular, discando o número que quase não ligo. Não por falta de
vontade, mas por fraqueza, saudade.
— Clementine? — A voz surpresa surge do outro lado da linha.
— Oi, pai — digo, com um leve sorriso. — Sou eu.
— Que bom ouvir sua voz, filha. Como está? E Asta?
— Estamos bem… Eu estou em Oregon, com a mamãe.
Ele fica em silêncio por um tempo.
— Veio passar férias? — pergunta, um pouco cético. Todo mundo sabe o quanto minha mãe
consegue ser intensa. Passar férias com ela é algo incabível. — Ou aconteceu alguma coisa?
— Knut e eu estamos dando um tempo, nada demais. — Amo meu pai, mas, assim como minha
mãe, ele também consegue me sufocar quando quer. — O motivo de eu estar ligando é porque queria
saber se ainda é contador daquele pub no centro de Portland.
— Sou sim, desse e mais alguns. Abriu um em Nob Hill essa semana. Por quê? Knut quer
comprar um pub? — desdenha.
Knut e meu pai não tem uma relação muito afetuosa. Acredito que meu pai vê em meu marido o
que enxerga na minha mãe; alguém ambicioso, que acha que pode ter tudo que quer, inclusive a mim.
Não concordo totalmente. Knut tem incontáveis defeitos, mas também possui qualidades que nenhum
deles viu.
— Estou procurando um emprego. Tentei todos os estabelecimentos aqui de Lake Oswego e
não consegui nenhum, e minha mãe disse que eu acabaria tendo que limpar casas. Eu não me importo,
mas…
— Sua mãe não tem medida naquela língua! — ele esbraveja. — Vou falar com o dono. Você
está disponível agora? Podemos ir juntos. 
— Sim, te encontro em frente ao pub. Deve dar uns vinte minutos daqui até lá.
— Não garanto nada, Clementine. Mas não custa tentar e, se não conseguir nesse, tentamos o de
Nob Hill.
— Não está com vergonha de mim? Digo, em ter que me arrumar emprego? Um emprego…
comum?
— Não sou sua mãe. E fico feliz que saiu debaixo das garras de Knut.
— Obrigada, pai.
Ele suspira e desliga em seguida.
 
 
— Prometo aprender tudo com rapidez — garanto ao dono do pub, que acabou de me contratar.
— Com esse rosto, difícil ter reclamações.
Sorrio. Não me sinto ofendida, o homem de quase sessenta anos diz como uma admiração nos
olhos e nem um pouco de malícia ou preconceito. Aprendi a lidar até mesmo com isso. Eu não nunca
fui esnobe como as outras modelos que conheci na vida, mas sei que sou uma mulher chamativa, não
por meu corpo magro, mas pela minha beleza. Puxei os olhos de meu pai e todos os traços delicados
e exóticos de minha mãe. Hazel ainda é tão bonita quanto na juventude. Somos muito parecidas
fisicamente. Mesma altura,mesmo rosto. O nariz que parece ter sido feito a mão por algum cirurgião,
a boca carnuda, que sempre perguntam se é resultado de botox. Os olhos expressivos. A única coisa
que nos diferencia é o cabelo, o meu é em um estilo morena iluminada, e os dela, negros. E as
sobrancelhas, as dela são arqueadas e perfeitas, as minhas mais grossas, no estilo que todas as
modelos usam. Sempre compararam minha mãe com a atriz Penélope Cruz, e acho que ela encarnou a
própria até os dias de hoje.
Nos despedimos do senhor simpático, e sigo com meu pai até uma cafeteria do outro lado da
rua. Nos sentamos um de frente para o outro. Ainda estou constrangida e envergonhada, mesmo ele
repetindo que não tenho do que me envergonhar.
— Vai comer o quê? — pergunta, olhando o cardápio.
— Não quero nada, não.
Ele abaixa o cardápio e me encara, estreitando os olhos claros. Pela primeira vez, ele repara
meu corpo, focando em minhas clavículas fundas.
— Voltou a vomitar? — pergunta, sério.
— Eu tomei café em casa, pai.
— Voltou a vomitar, Clementine?
Viro o rosto para o lado, observando as poucas mesas ocupadas.
— Foi por isso que voltou?
— Não…
Percebo ele acenando para uma garçonete, que logo vem em nossa direção.
— Um café forte, por favor — pede.
— E uma fatia de red velvet — complemento o pedido. Não porque estou com fome, mas para
tirar de seu olhar o julgamento, tristeza, por meu estado. Para talvez provar a mim mesma que eu
estou bem.
— Sua mãe sabe?
— Pai! — Viro o rosto para ele novamente. — Podemos não falar disso? Tenho tantas coisas
na cabeça.
— Como está Asta? — Ele muda de assunto. — Quero vê-la. Aquela menina parece filha de
vampiro, cada dia fica maior.
Solto uma risada.
— Anda assistindo crepúsculo em seu tempo livre?
— Não é como se eu tivesse muito o que fazer ultimamente, e tem reprise na TV a cabo toda
semana.
— Ela está bem. Mamãe vai conseguir uma vaga para ela na escola perto de casa. Espero que
ela se encaixe aqui.
— Por quanto tempo vai ficar?
— E sua namorada? Sarah, não?
— Não deu certo. — Ele se remexe na cadeira, desconfortável.
Balanço a cabeça e amasso um guardanapo que está em cima da mesa.
— Você nunca vai esquecer a mamãe — reflito.
— Difícil esquecer quem destruiu minha vida — diz em um tom defensivo.
Meu pai ainda é apaixonado por minha mãe. E todos sabem disso. Seus incontáveis
relacionamentos nunca duraram mais que um mês. Eles se evitam o máximo que podem. Hazel abriu
uma ferida quando deixou claro que amava o dinheiro dele, não o marido que fazia de tudo para
agradá-la.
— Sim, claro — concordo, só para ter o que dizer.
Não sei se todas as famílias são iguais, mas a minha pode ganhar um prêmio sobre ser
altamente complexa, cheia de problemas, traumas, cobranças e escolhas erradas.
Espero com todo meu coração que Asta seja diferente de todos nós, de mim, principalmente.
 
 
DINAMARCA, TEMPOS ATRÁS.
 
Tento não demonstrar o quanto estou deslumbrada com a decoração impecável e com os
diversos rostos, um mais bonito que o outro. Estou em um salão cercada por dinheiro, fama, beleza, e
não faço ideia de como agir.
Observo Aziza distribuindo sorrisos para um grupo de dinamarqueses, um mais loiro que o
outro. Seus olhares para a negra vestida em um elegante vestido prata não deixam dúvida sobre quem
será o escolhido para a campanha.
Taylor está parado ao lado de uma mesa que tem uma cascata de taças coupe, transbordando
Champagne em cada uma delas. Ele observa cada convidado como se estivesse conhecendo seus
oponentes. O que deve ser verdade. Como disse antes, isso aqui é uma competição, onde só tem um
vencedor.
O último andar da empresa de cosméticos se tornou um salão de festas para o lançamento do
sérum. A paleta de cores está mesclada em tons terrosos frios e verde água, sendo a última cor
predominante da logo deles. Mesas bistrô estão espalhadas pelo amplo espaço central, com lugares
somente para duas pessoas, assim como puffs de veludo em um tom lindo de verde. O bar espelhado
à minha direita tem luzes coloridas e diversos tipos de taças e bebidas espalhadas pelo balcão.
Dentro dele, uma estrutura branca, iluminada, simula um tronco de árvore, com galhos até o teto.
Alba nos explicou durante o trajeto todos os detalhes da nova linha vegana. E a maioria de seus
componentes são naturais.
Um garçom passa perto de mim e o chamo, fazendo um aceno com a mão. Pego uma taça que
parece ser champagne e beberico. Preciso aliviar minha insegurança e timidez se quero conseguir
algum contrato essa noite.
Me junto a Taylor, que ainda analisa seja o que for, para não me sentir tão deslocada. Percebo
no tempo que perambulei que muitos aqui não falam inglês, e eu não entendo uma sílaba de
dinamarquês.
— O que tanto observa? — pergunto ao parar ao lado dele e apoio a taça na mesa atrás de nós.
Ele abre um sorriso e não responde, confirmando minhas suspeitas de que analisa seus
adversários, ou seja, eu, Aziza e os diversos modelos que estão ali, de outras agências.
— O que achou do presidente? — ele pergunta, olhando para um ponto específico.
— Parece ser um bom presidente — respondo e sigo seu olhar no exato momento em que o
homem em questão vira o rosto para a nossa direção.
Alba está atrás dele, com um tablet nas mãos, como sempre. A loira é visivelmente cheia de
intervenções cirúrgicas, e, pelo generoso par de seios e por suas curvas, tenho quase certeza de que
não é e nunca foi modelo. A mulher é bonita e tem um uma nuvem sedutora envolta de si.
Ele vira o rosto para trás e diz algo para ela, que concorda com a cabeça e olha em nossa
direção.
— Será que estão falando da gente? — pergunto baixinho para Taylor, mesmo que eles estejam
a metros de distância.
— De mim, eu não sei. Mas de você… — Ele vira o rosto para mim. — Com certeza.
Sem dar mais explicações, Taylor sai de perto de mim, deixando-me sozinha com aquele monte
de taças, morrendo de medo de ter feito algo errado e ser mandada embora para casa. Minha mãe me
mataria antes que eu saísse do avião.
— Como vai, Clementine? — Escuto o som da voz sedutora, com sotaque carregado, recitar
meu nome.
Desvio o olhar da direção que Taylor seguiu e me deparo com um par de olhos azuis, frios e
atraentes.
Knut Laursen é um homem muito, muito atraente.
— Clementine? — recita meu nome novamente, com um sorriso charmoso.
— Boa noite, senhor. Eu estou bem… — Coço as pontas dos dedos com o dedão, uma mania
que tenho quando fico nervosa e que já me deixou com a pele ferida diversas vezes.
— E deslumbrante nesse vestido — ele complementa.
Abaixo a cabeça, quebrando o contato visual, pois tem tanta intensidade em seus olhos, que não
consigo suportar. Observo o tecido brilhoso do meu vestido vermelho, de alças que parecem linhas,
contornando meus ombros e trançando minhas costas. A fenda na perna esquerda não faz eu me sentir
tão poderosa agora, apenas desnuda. Desnuda por ele.
— Foi só um elogio — incrementa, como se entendesse o que se passa na minha cabeça. —
Precisa se acostumar a ser elogiada de forma direta, Clementine. Portanto que não te ofendam,
elogios não vão faltar para nenhum dos modelos presentes aqui essa noite.
— Claro. Eu sei disso e agradeço. — Forço-me a encará-lo. — Mesmo crescendo nesse ramo,
ainda carrego um pouco de timidez.
— E insegurança.
— E insegurança — concordo.
— Então deixa eu te falar uma coisa… — Ele aproxima o rosto do meu, nossa altura quase
igual firmando o contato visual. — Mesmo trabalhando nesse ramo há anos, conheci poucas mulheres
como você.
Sorrio, achando um tanto clichê.
— Não falo de beleza, Clementine — ele responde meus pensamentos.
— Então não sei do que possa estar se referindo...
Então ele escrutina seus olhos cor de safira nos meus, na curva do meu pescoço, voltando a me
encarar sem pudor algum.
Fecho os olhos por um momento, uma fração de segundos, e percebo que quero muito que ele
se aproxime mais um pouco, só mais um pouquinho.
— Eu não… — Arranho a garganta. “Meu Deus, o que estáacontecendo comigo?”, penso. —
Ainda não compreendi — confesso, abrindo os olhos para encarar os seus.
— Estou falando de pureza. — Ele muda o peso do corpo para a outra perna. — Acreditaria
em mim se eu dissesse que nunca me envolvi com nenhuma modelo da minha agência? — pergunta.
Observo bem a forma dura e suave ao mesmo tempo da sua fala, existe a mesma seriedade que
usou na reunião, então não tenho dúvidas de que diz a verdade.
— Acredito.
— Há algo diferente em você, algo além do que tudo que estou acostumado. Percebi no
segundo em te vi desfilar em Nova York. Tinha um brilho sereno no meio de toda ambição — afirma.
— Não sou um homem de jogos, Clementine. Se eu me envolvesse com você, não a esconderia de
ninguém.
Pisco algumas vezes, tentando compreender o que ele acabou de insinuar. Toda essa química
pairando em cima de nossas cabeças pode ter confundido meus sentidos.
— Tenha uma excelente noite — deseja e toca em meu ombro, arrastando seus dedos
delicadamente até a direção do cotovelo.
Sinto todos os meus pelos se arrepiarem, meu coração errar dezenas de batidas e, quando ele
se afasta, quase desaprendo a respirar. Observo-o caminhar para longe de mim, em um terno escuro
modelando seu corpo e, pela primeira vez na vida, desejo algo.
Desejo ele.
 
 
OREGON, TEMPOS ATUAIS.
 
 
“De vez em quando, eu vejo seu rosto…”
Tamborilo os dedos pelo volante, escutando Guns N' Roses cantar tudo o que sinto. Observo o
cenário agradável do lado de fora enquanto divago em pensamentos. Quando a corretora que
encontrei no Google me disse que Lake Oswego era uma cidade bonita e perfeita para recomeçar,
tive minhas dúvidas.
“Ela me leva para aquele lugar especial…”
Anos morando em Chicago, meses perambulando por cidades, dormindo em motéis de quinta
categoria na beira de estrada, finalmente entendi que precisava de um lugar que encontrasse paz, que
pudesse ter um recomeço. Estava começando a aceitar que nunca conseguiria mudar o que aconteceu
e passou.
“E se eu olhasse por muito tempo…”
Subo a terceira rua íngreme, sem saída. Olho o GPS no painel do carro informando que cheguei
ao meu destino. Observo as duas casas no final da rua. Uma tem um jardim bem cuidado na frente, e a
outra, percebe-se que está abandonada. Concluo que ali é a minha.
“Provavelmente perderia o controle e choraria…”
Passo uma mensagem rápida para a corretora, avisando que cheguei. Travo um conflito interno,
entre sair do carro, esperar do lado de fora, onde o ar está puro, ou ficar aqui, no ar condicionado,
escondido de tudo e todos. Como decidi recomeçar, começo pelo começo.
Desligo o som e saio do carro. Dou uma volta no mesmo lugar, admirando tudo que vejo. A
maioria das ruas são cercadas por pinheiros e outras espécies de árvores. Em alguns pontos
estratégicos, consigo ver o enorme lago. Parece mesmo ser um bom lugar, assim como a corretora
frisou centenas de vezes.
“Um perfeito lugar para uma família”, minha mente me diz e afasto os pensamentos não
desejados.
Meu celular vibra no bolso da frente da calça jeans, pego e leio a mensagem que a corretora
me enviou de volta, dizendo que se atrasará dez minutos. Respiro fundo e encosto as costas na porta
do carro, cruzo os braços e espero.
A porta da casa à frente, do outro lado da rua, se abre, e uma menina branca, com os cabelos
loiros claríssimos, desce os degraus saltitante. Ela carrega um regador nas mãos. A criança para em
frente ao um canteiro de flores e vira o regador, molhando as plantas com delicadeza. Um sorriso
contido se abre em meu rosto ao ver a cena.
— Smukke blomster [4]— diz para as flores, em um idioma que não faço ideia qual seja. —
Desculpa… — Ela faz um bico, frustrado. — Vocês não sabem falar minha língua, né? Não conta pra
mamãe… Eu disse lindas flores, vocês são liiiiindas!
Solto uma risada abafada.
Ela vira o rosto em minha direção, inclina a cabeça para o lado, me analisando com seus
enormes olhos azuis. Por alguns segundos, me sinto desconfortável, crianças são sempre sinceras e
impulsivas. E, pelo jeito que me olha, é como se estivesse prestes a vir até…
— Oi — cumprimenta, caminhando em minha direção.
Levanto a mão, acenando, desconfortável. Ela se aproxima mais um pouco, parando quase com
os pés em cima dos meus sapatos. A menina ergue o rosto, pela nossa considerável diferença de
tamanho.
— Quem é você? — pergunta.
— Liam.
— Sou Asta.
— É um nome diferente, e muito bonito, Asta — elogio.
— Por que está aqui?
— Você tem muitas perguntas, Asta. — Sorrio.
— Minha mãe diz que sou uma criança nysgerrig[5].
— O quê?
Ela coça a cabeça, como se estivesse pensando.
— Não sei como fala em inglês… É uma pessoa que gosta de saber de tudo. Qual o nome
disso?
— Fofoqueira? — brinco.
Ela franze os lábios, abrindo um sorriso e negando com a cabeça.
— Acredito que deva ser uma criança curiosa — respondo.
— Isso! — grita. — Curisossa.
— Osa — a corrijo, ensinando.
— Curiosa — diz certo, carregada de sotaque. — Criança curiosa. Sou isso.
— É visível.
— Você conhece minha mãe? — Asta me olha de cima a baixo. A pequena é um poço de
curiosidade e não tem senso de discrição.
— Acho que não…
— Ela é linda — elogia, voltando a me encarar, com os olhos brilhando. — Perfeita!
Solto outra risada abafada, lembrando que não rio espontaneamente tem meses, anos.
Um carro entra na rua, chamando nossa atenção. Ele para atrás do meu. A corretora sai de
dentro dele, caminhando apressada em minha direção, com uma pasta nas mãos e o celular na outra.
— Liam Ford? — pergunta, ajustando os óculos no rosto.
— Sou eu. — Desencosto do carro e paro de frente para ela, estendendo minha mão.
— Podemos ver a casa? — Ela a aperta rapidamente. — Sinto muito pelo atraso. 
— Sem problemas, tive companhia. — Pisco para a menina que está parada ao meu lado, muito
perto por sinal.
— Oh! — A mulher sorri. — Não sabia que tinha uma filha.
Olho para a menina que está sorrindo para a corretora e perco as palavras, sentidos, sendo
jogado em um mar de lembranças que ainda doem como o inferno.
— Bom, podemos ver a casa? — ela pergunta, agitada.
— Sim, claro. — Recupero meu controle.
A mulher vai andando em direção à porta de entrada, afobada.
— Posso ir também? — Asta pergunta.
— Não acho que seja adequado… — Me curvo para nivelar nossos rostos. — Sua mãe vai
ficar preocupada se não te encontrar. Por que não volta a regar as flores?
— Minha mãe não tá em casa, só a vovó.
— Mesmo assim…
— Ela não liga.
— Tenho certeza que ela se importa, Asta.
— Senhor Ford? — a corretora me chama. Ergo meu corpo e digo a ela que já estou indo, volto
minha atenção para a menina em seguida. — Eu preciso ir.
Asta faz uma expressão desolada que quase consegue me abalar, por um momento penso que
vai chorar.
— Minha mãe gosta dessa casa, ela fica olhando para ela da janela da sala o tempo todo —
comenta. — Se você gostar, tio Liam, convida minha mãe para sua casa?
“De onde saiu essa criança?”
— Hum… Claro — concordo por não saber o que dizer, contendo uma risada. — Agora
preciso ir, Asta.
— Tudo bem. — Com o rosto ainda desolado, ela se afasta, arrastando os pés pelo asfalto até
entrar em casa, com o regador ainda nas mãos, pingando água por todo o caminho.
— Senhor Ford? — a corretora me chama mais uma vez, sem muita paciência.
Olho uma última vez para a casa à minha frente, que talvez será minha, e sorrio.
 
DINAMARCA, TEMPOS ATRÁS.
 
 
Mordo as unhas de quase todos os dedos enquanto escuto o presidente dizer se algum de nós
foi escolhido para a campanha do sérum. Voltas e voltas, e ele ainda não revelou o bendito nome.
Minha bile sobe diversas vezes, me lembrando de que não tomei café e preciso beber pelo menos
uma água. 
— Aziza… — ele diz e sorri, como se já soubesse. Acho que todos sabiam. Aziza foi o
sucesso entre todos aquelas pessoas na festa. — Não conseguiu o sérum, mas recebi uma proposta
para uma outra linha que lançarão no próximo mês e, pelo que me foi dito, será algo grande.Ela solta um gritinho histérico e abre um sorriso enorme e brilhante. Seus cabelos cacheados
caem por seus ombros, enquanto ela se sacode na cadeira.
— E o sérum? — Taylor pergunta ao meu lado.
— Parece que o Texas tem seus encantos — o presidente responde com um tom estranho,
dando a entender que…
— Taylor conseguiu? Taylor? — Aziza pergunta, impressionada.
O ramo de cosméticos é muito mais disputado por mulheres que por homens, e isso é um fato.
Taylor seria uma exceção.
— Parece que Vera Mikkelsen, a caçula dos irmãos que estão à frente da empresa fez questão
de sua participação — o presidente explica, olhando diretamente para Taylor, que deu de ombros.
Um silêncio se faz na sala quando todos entendem o que aconteceu.
— Você é muito inteligente — Aziza o elogia, realmente o elogia.
— Você dormiu com ela? — pergunto baixinho, inclinando a cabeça para perto de seu ouvido.
Ele me encara e sorri sem vergonha nenhuma no rosto bonito, de traços brutos.
— Jamais — mente.
— Não preciso lembrar as regras do contrato para vocês, preciso? — Alba pergunta, um pouco
irritada.
— Não — respondo.
— Está insinuando algo? — Taylor pergunta para ela, cruzando os braços.
— Não trabalhamos com suposições, Taylor — o presidente responde. — Trabalhamos com
provas e, como não temos nenhuma, o que Alba disse foi só um lembrete. O último.
Abaixo a cabeça, o tom que ele usa não é agradável, mas frio e cortante. Deixando claro que
não tolera esse tipo de coisa. Lembro do que me disse na noite anterior, sobre nunca ter se envolvido
com uma modelo de sua agência e pela sua atitude e claro desconforto, tenho certeza que disse a
verdade. O que me faz admirá-lo, além de ainda o desejar.
A reunião acaba algum tempo depois, com Taylor e Aziza esbanjando alegria e superioridade.
Minha mãe vai acabar comigo quando contar a ela sobre não ter conseguido um contrato.
— Clementine?
Meu coração pula, os pelos arrepiam. Levanto da cadeira e encaro o presidente, que é tão alto
quanto eu. Reparo que a sala está vazia.
— Sinto muito por não conseguir um contrato, Sr. Laursen. Prometo tentar me destacar no
próximo evento.
Ele sorri. Um sorriso lindo e charmoso.
— O que foi? — pergunto, sem graça, com seus olhos de safira brilhando.
— O que acha de tomarmos um bom café da manhã?
Olho ao redor da sala mais uma vez, para saber se tem alguém escondido em algum lugar. A
situação me pega desprevenida e sinto que não é correto desejar meu “patrão” e querer
desesperadamente dizer sim.
— Isso é, assim, apropriado? — O encaro.
— Depende. — Ele da um passo para frente. — Eu não te disse que não conseguiu nenhum
contrato, disse?
Arregalo os olhos, confusa e esperançosa.
— E-eu consegui alguma coisa?
— Sim. Mas é assunto para ser tratado com calma. Um café da manhã, talvez?
Sorrio, envergonhada, desviando meu olhar do seu.
— Esse sorriso é um sim?
— Sim. — Assinto, tentando contê-lo.
Ele estica o braço para frente, me dando passagem.
— Você primeiro, senhorita Hill.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
OREGON, TEMPOS ATUAIS.
 
— Clementine, se anima!
Olho para minha colega de trabalho, que agita alguns drinks, e me pergunto se ela se animaria
se soubesse o tanto de frustração que senti naquele dia.
Sorrio para ela.
— Está cheio — comento, observando o centro do bar. — Quase todas as mesas estão cheias.
— Fins de semana, fechamos quase de manhã.
— Nosso patrão esqueceu de me dizer essa parte — murmuro, pensando em Asta.
Hoje faz quase uma semana que estou em Oregon, e meu primeiro dia de trabalho. Cheguei na
segunda-feira de manhã e, em um piscar de olhos, já era sábado. A pior parte de ter que trabalhar não
é o serviço braçal em si, mas ter que convencer minha mãe a olhar Asta. O pub abre às cinco da
tarde e, segundo Harold, o senhor idoso e meu patrão, fecha meia noite. Seriam muitas horas, toda
sexta, sábado e domingo, para uma mulher como minha mãe, que está acostumada a viver na rua, ficar
presa em casa com uma criança. É claro que ela se recusou a olhar a única neta, e não me importei.
Ela tem uma vida, tinha uma vida enquanto estávamos na Dinamarca, jamais tiraria isso dela. Enfim,
chegamos em um acordo de que ela olharia Asta somente hoje e, amanhã, eu teria que achar uma babá
para meus fins de semana. Os únicos dias que trabalharei aqui.
— Ei! — A mulher mais nova que eu, de longos cabelos em tons azuis, para o que está fazendo
e vira-se para mim, com o olhar sereno e um pouco piedoso. — Sua filha vai ficar bem, e você
precisa trabalhar direito, se não, já sabe.
Quando cheguei, algumas horas atrás, nós conversamos e comentei que tinha uma filha de cinco
anos. Pelo pouco que conversamos, percebi que Kylie é muita divertida, o que me lembra o tempo
em que passava na estrada com minha mãe, em busca de concursos, foi um tempo em que conheci
diversas meninas que sofriam o mesmo que eu, a pressão de ter que ser perfeita. Kylie é como
aquelas meninas que eu brincava nos camarins, antes de sermos obrigada a nos odiar quando o
concurso começava.
— Eu sei. — Luto contra a ardência em meus olhos. — Obrigada, Kylie.
Ela dá uma piscadela e volta sua atenção para os drinks. Alguns clientes a chamam, pedindo
uma de suas combinações que não sei se me atreveria a tomar.
Pego a bandeja e coloco meu melhor sorriso no rosto, deixando minhas preocupações e
frustações do lado de fora. Preciso me concentrar no agora, ou quebrarei louças que não posso pagar.
— Mesa sete, Clementine — um dos garçons que trabalha comigo avisa, passando apressado
por mim.
Assinto e vou até a mesa que precisa de atendimento, tiro o tablet moderno do bolso do avental
amarrado na cintura.
— Boa noite. Deseja ver nosso cardápio ou já sabe o que pedir?
O homem sentado analisa detalhadamente o cardápio de bebidas. Fico longos minutos parada
em sua frente, ainda exibindo um meio sorriso hesitante e simpático. Espero o homem de aparência
cansada olhar para mim.
— Senhor? — o chamo.
— Pode trazer qualquer coisa — responde, quase como um resmungo desanimado, não rude.
— Poderia ser mais específico? — pergunto, educada. — Alguma preferência? Quer algo para
comer ou beber?
Ele respira fundo, soltando o cardápio com calma na mesa, fecha os olhos e massageia as
têmporas com precisão. Ele parece cansado.
— Se sente mal? — pergunto, solícita. Ele não responde, como se não ouvisse nenhum som. —
Senhor?
O homem abre os olhos e vira a cabeça lentamente em minha direção. Me encara como se
examinasse meu rosto.
— Pode ser uma água — finalmente faz o pedido.
Fico o encarando de volta, tentando entender se ele quer mesmo uma água em um bar que
ninguém pede água, ou se está zombando de mim.
— Uma água — repete.
Nossa, ele está mesmo péssimo. Seus olhos estão com olheiras em um leve tom de marrom. E
ele parece que está dias sem dormir.
— Sim. — Concluo seu pedido no tablet e me retiro.
Quando estou distante, olho para trás, em sua direção. Ele está de olhos fechados, massageando
as têmporas mais uma vez.
Pego sua água no expositor que fica na lateral do bar e coloco em cima da bandeja prateada,
junto com um copo de vidro. Antes de levar até ele, abro minha bolsa que está em um compartimento
no longo balcão de madeira, pego uma aspirina, torcendo que ele não reclame do atendimento por
minha atitude atrevida.
Paro em frente sua mesa, encho seu copo com a água, de um lado coloco a garrafa e do outro, a
cartela de remédio.
— O que é isso? — pergunta, olhando para o comprimido.
— Aspirina.
Ele me olha com o cenho franzido, deduzo que queira mais explicações. Claro que quer, mas
não faço a mínima ideia do que dizer.
— Está massageando as têmporas desde que chegou, imaginei ser por dor de cabeça. Também
faço isso quando tenho enxaqueca e… — Hesito, sua expressão não me deixa imaginar o que pensa.
— Só queria ajudar, se me excedi, por favor, desconsidere. Hoje é meu primeiro dia, por favor,
desconsidere.
Ele pega a cartela, passa o dedo levemente pelas saliências que o comprimido deixa, descartaum e me devolve.
— Obrigado. — Desvia seu olhar para a identificação que uso no bolso da blusa social branca.
— Clementine.
Clementine
Meu nome nunca pareceu tão… meu.
— Se for pedir mais alguma coisa, é só me chamar. Estarei atendendo sua mesa hoje à noite.
Ele assente e lhe dou as costas, agradecendo internamente aos céus por não ter sido alvo de
xingamentos e desaforos.
Atendo diversas mesas no tempo que passa. Por algumas vezes, olhei para o homem de rosto
cansado e olhos meio claros, uma mistura escura de verde com azul. Seu olhar se mantinha perdido
em algum canto do bar ou preso na TV, ainda com o copo de água praticamente cheio.
— Querida — um dos fregueses sentado em frente ao balcão me chama e, pela voz, percebo
que está um pouco alterado de bebida.
Me aproximo com uma distância segura.
— Boa noite, já sabe o que pedir, ou precisa de alguma ajuda? — pergunto, mesmo ele não
estando nas mesas que devo atender.
— Sei exatamente o que pedir. — Ele solta uma risada feia e maliciosa.
— Vou trazer o cardápio e poderá escolher algo que tenha nele.
Quando me viro, ele segura em meu pulso e me puxa para si, nos deixando muito perto um do
outro.
— Me solta — peço, cheia de medo. Penso imediatamente em Knut e o quanto ele sempre me
protegia de pessoas assim. Meu marido sempre odiou atitudes assim, tanto comigo quanto com outras
mulheres. — Ou todos aqui vão me ouvir gritar o quanto você é repugnante — blefo, tremendo.
Talvez por medo, ele afrouxa o aperto e me desvencilho de seu toque. Depressa, me afasto e
peço para um dos garçons me cobrir por cinco minutos. Praticamente corro até o lado de fora do bar,
solto o ar preso no peito, em um canto vazio perto de uma árvore. Toco meu pulso, analisando-o, está
um pouco vermelho com seu aperto bruto. Meus olhos ardem e uma lágrima desce.
— Não chora, não chora, não chora — repito para mim, como um mantra. — É pela Asta...
“Você precisa de mim… Eu posso ser tudo que você quiser que eu seja, Clementine.” A voz
de Knut soa em minha mente.
Outras lágrimas caem livremente, sem pedir passagem. Meu coração se aperta. É tão difícil ter
que suportar atitudes como desse homem no dia a dia. Não é novo para mim, e, mesmo assim, toda
vez, eu sinto o mesmo medo. É tão difícil assumir que preciso desse emprego para viver.
Simplesmente porque me pagará o bastante para dar o que Asta precisa e, dar a mim, uma
oportunidade de recomeçar, já que minha carreira acabou.
Meus problemas emocionais e físicos gritam meu nome, me alertando de como sou fraca,
pequena e totalmente dependente.
— É tudo pela Asta — mais calma, afirmo mais uma vez.
Volto para meu posto, e o homem da dor de cabeça me chama. Vou até a ele com um sorriso
ensaiado.
— Sim? Deseja algo para comer?
— Isso acontece muito? — pergunta.
— Como? — Olho ao redor brevemente, tentando entender ao que ele se refere. — O quê?
Ele meneia a cabeça para algo atrás de mim. Acompanho seu olhar, que está fixado no bêbado
que me tocou.
— Ah… — Perco o sorriso por alguns segundos. — Não é nada demais. Deseja algo para
comer?
A resposta é que sim, deve ser sim. Hoje é só o primeiro dia.
Ele coloca o valor da água em cima da mesa, levanta e para de frente para mim. O homem é
alto, bem mais alto que eu, e eu tenho 1,73 m de altura.
— Seus olhos ainda estão vermelhos — visa, me olhando de uma forma crua e intensa, quase
como com compaixão. — E seu pulso também. — O homem se vira, indo em direção à saída.
— Ei! — Corro até ele e toco seu braço malhado, desnudo pela camisa de mangas curtas. —
Qual seu nome?
— Liam — responde, pego de surpresa. Ele observa minha mão tocando sua pele bronzeada e
a recolho, sem graça.
— Obrigada por… perceber, Liam.
Por simplesmente se importar.
Nos encaramos por um tempo silencioso, até ele abrir um pequeno sorriso sincero, se virar e ir
embora, sem dizer mais nada.
Perceber; uma palavra simples, que nunca fez tanto sentido.
 
 
 
— Mãe, sabe se alguém comprou a casa dos Rivera? — pergunto, observando a movimentação
pela janela da casa em frente à minha, do outro lado da rua.
— Por que eu saberia? — indaga, assistindo a um programa de beleza na Discovery Home &
Health.
— Porque você sabe de tudo — murmuro baixinho. Hazel não suporta ser confrontada.
Alguns homens tiram de dentro do caminhão de porte médio móveis e caixas. Um deles pega
com cuidado um cavalete grande de pintura, seu material é de madeira escura, embalado de forma
meticulosa nesses plásticos filme, parecido com o que uso em minhas malas quando viajo.
— Não sei o que você tanto admira nessa casa, Clementine, sinceramente, não é de hoje essa
maluquice.
Afasto mais ou pouco as cortinas brancas, para ver melhor. Além dos homens que descarregam
o caminhão, uma mulher vestida com um terninho feminino fala ao celular, em frente à porta de
entrada.
— Uau! — Asta exclama, impressionada. — Olha como ficou o cabelo dela!
Solto uma risada e viro para a direção do sofá, onde minha filha e mãe assistem a um desses
programas que deixam a pessoa dez anos mais jovem.
Nessa semana que passou, Asta se comportou muito bem. Achei que teria problemas em se
adaptar ao fuso horário, nova rotina e à minha mãe, mas minha filha tirou de letra. A única hora que
ela fica mais enjoada é antes de dormir. Knut sempre lê uma história dessas de princesa em
dinamarquês, é algo comum na rotina dos dois. Tentei ler algumas desde que chegamos, mas meu
dinamarquês é péssimo, e Asta parece não gostar das histórias em inglês, pois, segundo ela: não tem
graça. Só que eu sei que não são as histórias, ou o idioma, é o pai. Knut faz falta, e não digo só por
ela, por mim também. Sinto falta do meu marido, apesar de tudo.
— Não é maluquice — respondo minha mãe, lembrando de seu comentário. — Não sei
explicar.
— Por isso mesmo. Maluquice.
Ignoro seu comentário e volto a espiar a casa vizinha.
Desde que me mudei para Dinamarca, ela está vazia, esperando por um dono. E, dentro de
mim, cultivava uma ilusão secreta de que um dia ela seria minha.
Aos outros olhos, é só uma casa. Não tem nada demais nela. Existem apenas muros baixos nas
laterais, e a frente é aberta como toda casa americana, como toda casa de Lake Oswego. A porta de
entrada é pintada de um tom de cobre, um cobre desgastado pelo tempo. Talvez fosse a arquitetura…
Não, é simples. Posso arrumar diversas opções e nenhuma delas será a verdadeira. A verdade é que
essa casa foi meu abrigo quando mais precisei.
Os Rivera era uma família de duas pessoas. Lembro-me de que moraram nessa casa por alguns
anos, uma mulher idosa e seu filho, não muito novo. Quando tinha sete anos, eles se mudaram, e a
casa ficou vazia. Pelo tempo em que fiquei em Oregon, não foi à venda e nunca a disponibilizaram
para aluguel.
Hazel sabe ser insistente, persistente e sufocante, e, quando não estávamos em alguma
competição, desfile, sessão de fotos, audições para comerciais, ficávamos em casa. E era nesses
momentos que eu queria respirar e desaparecer. Meu pai e ela brigavam o tempo todo,
principalmente por causa das vezes que eu queria ficar de pijama, dormir até tarde, ou me
empanturrar de sorvete como qualquer criança, e ela me obrigava a comer legumes e verduras,
equilibrar coroa na cabeça, testar vários tipos de maquiagem, me exercitar. Então, à noite, quando
todos estavam dormindo e o dia terminava para mim, eu pulava a janela do meu quarto, que tem vista
para o outro lado da rua, entrava na casa abandonada e ficava ali, usufruindo do silêncio. De vez em
quando, levava doces, ou um aparelho antigo de CD portátil, colocava os fones de ouvido e me
deixava levar pelas sensações que a música trazia.
Era mais que uma casa.
É mais que uma simples casa.
Foi sobrevivência.
A forma que encontrei de escapar dela, da minha própria mãe.
— Vá até lá, menina! — A voz de Hazel me tira do transe. — Melhor que ficar aí igual um
stalker.
— O que é stalker? — Asta pergunta.
— Uma pessoa maluca. Vou te mostrar na Netflix uma série que tem…— Mãe! — a corto. — Ela tem cinco anos!
— Vai logo, Clementine. Essa sua obsessão está me irritando e tirando minha concentração.
— Não vou até lá, tenho vergonha.
— Conta uma novidade. Não sei como conseguiu casar com Knut.
“E lá vamos nós…”
— Eu vou — decido, melhor que escutar sua enorme lista de tudo que sou ruim e não capaz.
Ela resmunga alguma coisa e aumenta o volume da TV. Percebo Asta esticar o pescoço e olhar
em minha direção de forma estranha, posso jurar que a menina está sorrindo. Um arrepio percorre
meu corpo em imaginar minha filha como minha mãe, quase sinto náusea.
Reparo rapidamente em meu short jeans e o cropped branco rendado, presumo que não estou
tão malvestida assim, e calço os chinelos, pensando no que dizer ao novo vizinho ou vizinha, sem ter
que contar minha triste história de infância.
Enquanto cruzo a rua, sinto uma ansiedade encher meu peito por poder chegar perto daquela
casa de novo. Balanço a cabeça, com um sorriso melancólico no rosto, quando escuto Wonderwall do
Oasis tocando baixinho, provavelmente ecoando do mais profundo lugar de minhas lembranças. Era
uma das músicas que tocava em meu aparelho de CD portátil, repetida e repetidas vezes.
Quanto mais me aproximo da porta de entrada, mais nítido o som fica. Paro por um momento,
olho ao redor, procurando a fonte do som. Tento não acreditar que minha mãe está certa sobre eu ter
ficado maluca. Não é possível, o som está nítido como nos fones de ouvido daquela época.
— Olá… — Uma voz masculina soa atrás de mim, arrastada, talvez desconfiada.
O som literalmente preenche meus ouvidos e me viro na direção do homem que falou comigo.
Atraída pela melodia, olho na direção que ele vem… De um bolso, bolso?
— Não estou maluca! — afirmo, com um sorriso, percebendo que está tocando em um celular.
O homem arranha a garganta e finalmente o encaro. Seu rosto estampa um sorriso divertido,
como se ele segurasse uma risada.
— Conheço você — digo, tentando me lembrar. Eu o conhecia de algum lugar.
— É mesmo? — pergunta, ainda com aquele sorriso, exibindo dentes alinhados, com um
espaço charmoso pequeno no meio dos da frente.
Ele segura uma caixa grande, onde está escrito “tintas” com uma caligrafia enorme. Seus
braços largos e malhados estão à vista, por causa da camisa branca de mangas curtas. Flexionados,
exibindo os músculos, a pele bronzeada em dourada.
— Você é… — Me aproximo e agora concordo que pareço uma stalker. Os olhos claros se
estreitam, como se me incentivassem a lembrar. Ele também me conhece. Quando reparo as olheiras
amarronzadas embaixo de seus olhos, o reconheço de imediato. — Você é o homem do pub.
— Prazer, Clementine.
 
 
 
 
DINAMARCA, TEMPOS ATRÁS.
 
— No desfile anual? — pergunto com um tom de voz um pouco elevado, totalmente pega de
surpresa.
— Sim. — O presidente sorri. — Enviei seu portfólio para um velho amigo meu que está à
frente da escolha das modelos, e ele se interessou por você.
Encaro-o ainda em descrença, com a boca semiaberta.
— Terá que participar da audição — continua. — Não vai ser como foi para trabalhar
conosco. Será mais acirrada, são modelos de agências renomadas por todo o mundo disputando uma
vaga. Todo ano, o casting fica mais competitivo.
— E acha que eu tenho chance?
— Não tenho dúvidas.
Solto o ar preso no pulmão e relaxo a coluna na cadeira acolchoada do restaurante em que
estamos tomando café da manhã. Quando o presidente me disse que tinha uma proposta, imaginei
diversas oportunidades, menos a de desfilar no desfile anual da Spark’s, uma marca de roupa íntima e
produtos de beleza mais conhecida no mundo. Todo ano, há um desfile em Londres, onde fica a sede
da empresa. Nele, participam um grupo seleto de modelos escolhidas a dedo por eles, presidentes de
diversas agências, empresários, estilistas, famosos. É o evento mais conhecido e almejado por nós,
mulheres, no mundo da moda.
Um que minha mãe daria a vida para participar.
— Digo, são… mulheres lindas, e provavelmente com um portfólio muito melhor que o meu.
Ele afasta seu prato já vazio e apoia as mãos entrelaçadas uma na outra em cima da mesa.
— Clementine, eu trabalho nesse ramo desde que nasci, digamos assim. A Laursen Model é um
legado que foi passado de primogênito para primogênito. Posso garantir que meus anos de
experiencia me fizeram ter um faro para o sucesso. E você, minha querida… — Ele descruza as mãos
e segura a minha, que ainda aperta a colher de sobremesa. — É uma estrela.
Ambição. Seus olhos brilham de ambição, poder.
Knut Laursen exala sucesso. Como se pudesse segurar a lua com uma mão e o sol com a outra,
e ainda ter todas as estrelas do céu aos seus pés.
— Sempre de cabeça erguida, Clementine. — Ele solta minha mão, se inclina em minha
direção e segura meu queixo, erguendo-o. — Agora repita essas duas palavras mágicas que vou te
ensinar: eu consigo.
Ainda estou de olhos bem abertos, assimilando a onda de poder e eletricidade que queima
minhas veias. Algo diferente emana dele para mim, minha mãe sempre me fez ser a melhor impondo
suas vontades. Ela precisa constantemente me diminuir para que eu me supere em algo. Knut não. O
presidente só me olha como se realmente acreditasse em mim.
Ele repete mais uma vez, mesmo escutando, leio a frase em seus lábios desenhados e tão
atrativos. Não sei o que esse homem tem, mas ele me chama sem nem mesmo dizer meu nome.
— Eu consigo — repito, um pouco desnorteada, fora de órbita. Eu acho até que quero beijá-lo.
— O que significa esse olhar? — pergunta.
— Eu… Eu acho que…
Knut abre um sorriso pequeno de lado e se afasta, em seguida, maneia a cabeça para o senhor
que nos recebeu na entrada do restaurante sofisticado e, após uma troca de olhares, levanta com
elegância, abotoa o terno, se aproxima da minha cadeira e estende a mão para mim, num convite para
que eu o acompanhe. Com as pernas bambas, aceito sua gentileza e, quando estamos um de frente
para outro, ele aproxima a boca do meu ouvido, encostando seus lábios em minha pele e sussurra:
— Eu também quero beijar você.
 
 
 
 
 
 
OREGON, TEMPOS ATUAIS.
 
 
— Prazer, Clementine.
A mulher belíssima, que acabo de descobrir ser atendente do pub em que fui noutro dia, em
meu pior estado, sorri um pouco sem graça quando percebe que está em frente à porta de entrada,
impedindo os homens da mudança de entrar com minhas telas. Ela chega para o lado uns bons passos,
e a sigo. A caixa das tintas que seguro está pesada, mas tento não transparecer o quanto.
— Que coincidência… — murmura. Seu rosto está adquirindo um tom rosado, e eu me seguro
para não rir.
— Você não pareceu tão tímida quando me entregou aquela aspirina. Foi bastante ousada.
Ela solta uma risada breve, o que me faz sorrir também.
— Desculpa aparecer assim, sei que foi estranho, mas queria cumprimentar o novo morador e
acabei escutando a música. Tenho boas lembranças dela.
Só então me dou conta de que meu celular ainda está com o aplicativo aberto, tocando minha
playlist das antigas. Para um artista como eu, guiado por sentimentos e fases, depois dos meus
pincéis, a música é minha melhor aliada. Tanto para criar, como para recriar o que se destruiu, e me
refiro a mim mesmo.
Atropelado pelo trem da vida.
Recomeçar, trago na memória o motivo de estar aqui e ter comprado uma casa em um Estado
em que não conheço ninguém.
— É você mesmo, não? O novo morador? — pergunta.
— Sim, sim… — Flexiono mais os músculos, a caixa pesando e minha expressão de “está tudo
numa boa” vacilando. — Comprei alguns dias atrás. Você é minha vizinha de qual casa?
— Aquela ali — aponta.
Viro somente o rosto e vejo que é a casa de frente para a minha.
— A casa da menina curiosa — comento, lembrando-me da garota conversando com as plantas.
— Quem?
— Uma menina loira, olhos azuis… — Tento me lembrar de seu nome.
Clementine desvia o olhar do meu, e então escuto passos rápidos se aproximarem atrás de mim.
— Oi, tio Liam! — a menina diz, ofegante.
“Por falar na criança...”— Tio? Vocês se conhecem? — Clementine pergunta, olhando da filha para mim, e, por Deus,
espero que não esteja pensando besteira.
A caixa pesa cada vez mais, sinto minhas veias saltando.
— Quando vim ver a casa, ela estava regando as plantas e me cumprimentou — esclareço. —
É uma menina muito…
— Você disse fofoqueira — Asta me dedura, sorrindo de forma marota.
— Como? — Clementine parece cada vez mais confusa.
— Cristo! — Suspiro com os dois pesos; o da caixa e o do climão de constrangimento. —
Preciso me livrar dessa caixa, pode me dar um minuto?
Ela olha para meus braços e arregala os olhos.
— Oh, meu Deus, deve estar pesada, sinto muito!
— Um minuto — digo e passo pelas duas, entrando em minha nova casa.
— Eu já falei que não quero você falando com estranhos, Asta! — escuto Clementine a
repreender.
— Ele não é estranho, é o tio Liam.
Tio. Agora sou tio.
Apoio a caixa ao lado da lareira de pedra empoeirada e estico os braços, amaldiçoando
internamente a pessoa que colocou todas as tintas em uma caixa só. Aproveito para pegar o celular e
fechar o aplicativo de música.
— Que tio, menina? Para de me envergonhar! — a mãe lá fora sussurra alto o suficiente, e não
consigo conter o sorriso.
— Somos amigos — aviso Clementine quando volto, piscando para a menina.
— Viu, mamãe?
— É sua filha? — pergunto, impressionado. Clementine tem um rosto tão jovem, que parece
irmã da menina e, não que faça alguma diferença, mas as duas não se parecem em nada fisicamente.
— Sim, mesmo não compartilhando nenhum traço em comum. — Ela olha a menina e aperta
suas bochechas. — Asta é dinamarquesa.
— Igual meu papai.
Clementine pigarreia, claramente desconfortável e coça a cabeça, desalinhando alguns fios de
cabelo.
— Mas ele não mora aqui com a gente — a criança continua a explanar a vida da mãe.
— Stop det[6], Asta! — exclama em uma língua que imagino ser dinamarquês. Só imagino.
— Undskyld[7]… — a menina resmunga e abaixa a cabeça, com as mãozinhas cruzadas na frente
do corpo.
Olho de uma para a outra, fingindo entender o que estão dizendo.
— Sinto muito por isso, ela gosta bastante de falar e fazer perguntas sem cabimento.
Com pena da menina e uma leve sensação de que segura o choro, me curvo, apoio um joelho no
chão e olho direto nos olhos dela.
— Não me importo em responder suas perguntas, nem que me chame de tio.
— Liam, não precisa fazer isso — Clementine diz, constrangida.
— Somos amigos agora, não? — pergunto a menina. — É claro, se você quiser.
— Eu quero! — Ela abre um sorriso cheio de expectativa, e me sinto péssimo por saber que
não tenho nada de bom em mim para que ela se sinta feliz ou grata por ser minha amiga.
Levanto, e Clementine sorri com sinceridade para mim, parecendo enxergar o mesmo que a
filha.
— É… — Tento dizer algo, desconfortável com o olhar das duas.
— É melhor nós irmos — Clementine percebe meu desconserto. — Se precisar de alguma
coisa, é só bater na minha porta. E seja bem-vindo, Liam.
Consigo estupidamente forçar um sorriso antes de vê-las atravessar a rua.
Constrangido.
Desconfortável.
A forma que as duas me olharam, parecendo ver algumas cores em mim.
O problema é que, há algum tempo, eu não passo de uma tela em branco.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quase choro quando escuto o despertador tocar. Minhas pálpebras pesadas, ainda com
resquício de rímel, abrem-se com dificuldade. Rolo para o lado, a fim de pegar o celular barulhento,
e esbarro em um corpo pequeno agarrado à um urso de pelúcia.
Resmungo baixinho e me afasto com cuidado, para não assustar minha filha, que solta sons
engraçados enquanto ressona. Deito de barriga para cima, encarando o teto branco, criando coragem
para me levantar. Ontem tive mais um turno que durou mais que as horas acordadas pelo senhor
Harold, e, sendo meu segundo dia, não poderia sequer reclamar. Eu não faço corpo mole, mas esse
tipo de trabalho é para gente jovem. Se eu tivesse mais disposição, até riria de meus pensamentos,
nunca imaginei que, com 24 anos, me tiraria da posição de “jovem”. Na verdade, era um trabalho
para pessoas sem filhos. Ainda não encontrei uma pessoa para olhar Asta e suportei pacientemente as
reclamações da minha mãe em ter que olhar a menina por mais uma noite seguida. Não faço ideia do
que fazer hoje.
Suspiro e me levanto, deixando de lado as preocupações de mais tarde. Meu quarto não é muito
grande, mas tem um banheiro, diferente do qual Asta está dormindo. Abro um pouco as longas
cortinas brancas, deixando a luz do dia que se inicia entrar. Na Dinamarca, costumava meditar pela
manhã e aprendi que os primeiros raios de sol têm uma energia purificadora.
Observo a casa da frente. As janelas frontais estão todas abertas e não possuem cortinas. Uma
delas fica de frente para a minha e, mesmo com a distância da rua larga separando nossas casas,
minha visão é boa o suficiente para enxergar um pouco o lado de dentro. Parece ser algum tipo de
depósito de caixas, deduzo pelo tanto delas espalhadas pelo chão. Me afasto, sigo para o banheiro e
me repreendo por tanta curiosidade naquele homem. É que… não sei se é possível dois cacos
quebrados se reconhecerem, só sei que, quando olhei para ele naquele dia no pub, foi como se eu
pudesse ver tantos estilhaços nele, como vejo em mim. Se bem que é muito difícil existir alguém tão
defeituoso quanto eu. Na mente, principalmente.
Tomo um banho, lavo a cabeça e deixo a água forte tentar expelir pensamentos e afastar as
fraquezas que eu sei que estão se estranhando em mim novamente, batendo na porta. Sinto como se
estivesse por um fio de cair. Por isso decidi ir à igreja hoje, depois de cinco anos. Ajuda religiosa
sempre me ajudou mais que a médica. Na Dinamarca, não ia à igreja e não faço ideia se existe
alguma por lá, mas Knut insistia em meditação e todas as outras coisas que envolvem essa prática.
Me ajudou por um tempo. Contudo, procurarei em breve um terapeuta, antes que os sintomas fiquem
mais aflorados.
Visto um vestido na altura dos joelhos, verde-escuro, de alças finas e tecido macio. Calço um
par de rasteirinhas enfeitadas por algumas pedras coloridas. Atravesso a alça da bolsa de sempre
pelo corpo. Com cabelos por secar e sem qualquer maquiagem, deixo Asta dormindo e sigo para o
carro na ponta dos pés. Minha mãe acorda tarde, e Asta também, o tempo que levarei na igreja que
fica no centro de Lake Oswego, perto de casa, não daria o tanto de tempo que as duas irão dormir.
Quando abro a porta do carro, vejo Liam sair de casa com alguns sacos de lixo cheios, coloca-
os no lugar devido para coleta e resmunga alguma coisa.
Ainda seguro a porta do carro entreaberta, observando-o, e penso se seria estranho lhe desejar
bom dia, ou não desejar.
Maldita timidez.
— Bom dia, Liam! — digo, abrindo um sorriso hesitante. Ele não parece estar de bom humor.
— Clementine — diz, olhando para mim. Ele atravessa a rua e para do outro lado do carro, em
frente à porta do carona. — Acordou cedo. — Sorri.
— Vou à igreja — conto e logo sinto vontade de rir, de tão cômica que está minha vida.
Ele parece segurar um sorriso largo.
— Pode rir, até eu estou com vontade — incito.
— Não vou rir de você, muito menos do que acredita.
Meu meio sorriso se fecha e surpreendo-me com sua declaração tão sincera e respeitosa.
— Obrigada — agradeço, sem saber bem o que responder. — Você… acredita em alguma
coisa?
— Costumava, faz tempo. — Desvia o olhar por um momento rápido.
— Faz cinco anos que não vou a igreja — comento, envergonhada. — Hoje é a primeira vez e
não sei, sinto como se fosse uma ovelha perdida.
— Costumava escutar que Ele deixa as noventa e nove para buscar uma que se perdeu.
Sorrio um pouco triste.
— Será que Ele faria o mesmo por uma que muitas vezes não quis ser encontrada?
Liam hesita, encarando-me de forma profunda, com um reboliço de sentimentos compartilhados
que não tem nada a ver com atração, e sim com o tanto de passado, de culpa, dor, arrependimento e
tristeza que são os mesmos que

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