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INTRODUÇÃO Vivemos em um mundo globalizado, marcado por uma revolução tecnológica que expande as fronteiras do conhecimento, altera as formas de comunicação e impõe a criação de soluções inovadoras para problemas complexos e inéditos. Ao mesmo tempo, vivemos em um país extremamente plural com elevado nível de desigualdades socioculturais e econômicas, o que significa que uma parcela significativa da população não terá acesso a essas novas tecnologias e informações, portanto, não terá oportunidade de aprender a lidar com tais exigências, ficando excluída dessa nova realidade. Nesse contexto, alguns questionamentos se colocam: quais são os impactos desse cenário para a educação das crianças e dos jovens que vivem no Brasil? Como conciliar as demandas por um novo modelo de cidadão e cidadã com a estrutura escolar e as limitações das grades curriculares? Para iniciarmos essa reflexão, propomos o seguinte exercício. Imaginem que estamos no início do ano letivo em 2023. Uma professora do ensino fundamental entra em uma sala de aula com 25 crianças diferentes em aparência física, tamanho, postura, vestimenta, corpulência, forma de se mover; em sexo, origem social, identidade religiosa, nacional ou étnica; em capacidades de atenção e de trabalho; em capacidade perceptiva, manual e gestual; em gostos e capacidades criativas; em personalidade, caráter, atitudes, opiniões, interesses, confiança em si; em desenvolvimento intelectual; em modos e capacidades de relação e comunicação; em linguagem e cultura; em saberes e experiências; em hábitos e modo de vida fora da escola; em experiências e aquisições escolares anteriores; em sentimentos, projetos, vontades, energias do momento.1 1 Situação inspirada na imagem descrita por Philippe Perrenoud, no seu livro A pedagogia na escola das diferenças: fragmentos de uma sociologia do fracasso (2001, p. 69). Uma turma com esse perfil pode ser encontrada tanto em escolas públicas como particulares, em certa medida. O espaço escolar costuma ser permeado pelas mesmas características socioculturais e econômicas da sociedade em geral. Essa é, portanto, uma realidade inevitável. Mas como ensinar os conteúdos, conhecimentos e valores tidos como universais para uma turma de estudantes com tamanha multiplicidade de perfis? Como eles podem ser apreendidos e percebidos por todas e todos de forma que possam contribuir para a sua formação enquanto cidadãs e cidadãos responsáveis e capazes de transformar o mundo à sua volta? Afinal, como lidar com as diversidades presentes no ambiente escolar? Aprender a viver em um ambiente diverso e multifacetado é um dos principais desafios do mundo contemporâneo, portanto, da educação. Alguns diriam que a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva requer que a escola seja um espaço de construção e valorização das individualidades, do respeito para com as diferenças e que eduque para a pluralidade cultural, ensinando a perceber o outro como ser legítimo, reconhecendo que possui uma história, uma cultura, uma etnia (GADOTTI, 2000, p. 56). Outros, amparados por um paradigma liberal, diriam que o conhecimento é universal, neutro e imparcial, e que, portanto, ele poderia ser transmitido sempre da mesma forma, não importando as peculiaridades, origens e características de quem recebe esse conhecimento, no caso, os estudantes.2 Para enfrentar esse dilema, é preciso conhecer as diversidades existentes no mundo de hoje, especialmente no contexto nacional. Entender a natureza e as origens das diferenças entre grupos e procurar compreender as suas relações é o que buscamos abordar neste curso. A tarefa não é trivial, pois lidar com o diferente requer um esforço de respeito e tolerância, o que nem sempre sabemos como exercitar e, em alguns casos, tampouco estamos dispostos a fazê-lo. Por isso, falar em diversidade requer um debate amplo, transparente, sincero e pautado nos estudos acadêmicos mais difundidos atualmente. Assim, convido-lhes a refletir com profundidade sobre as diferenças e desigualdades existentes na nossa sociedade, a partir de um arcabouço teórico capaz de fornecer subsídios para se compreender os conceitos fundamentais dessa discussão, as origens e a natureza da diversidade e a sua aplicação no ambiente escolar. É importante lembrar que um curso como este requer escolhas e recortes metodológicos, pois não há como abordar todas as teorias existentes, tampouco todos os marcadores da diferença, nem mesmo todos os casos possíveis envolvendo diversidade. Não porque eles não sejam importantes, ao contrário, mas as limitações de tempo e espaço exigem que algumas teorias e modos de pensar o 2 Segundo Marlise Matos e Breno Cypriano (2008, p. 2), essa visão aproxima-se do sistema cartesiano de racionalidade, vertente intelectual hegemônica que vigorou até o século XVIII. Para os autores, uma das características desse modelo epistemológico é a insistência “no fato das faculdades da razão e da sensação serem, potencialmente, as mesmas em todos os seres humanos, independente da cultura, classe, raça ou sexo/gênero; donde resulta entender que diferenças nas situações dos seres humanos, ao invés de reconhecidas como fontes de visões alternativas sobre a realidade, são consideradas impedimentos que devem ser ultrapassados por uma visão ‘neutra’ e ‘objetiva’”. mundo sejam incluídas e outras não. Por essa razão, optamos por enfatizar aqui um substrato teórico fundamental capaz de subsidiar a construção de um ferramental metodológico próprio para fundamentar as decisões que venham a ser tomadas em contextos específicos. Por isso, esperamos que aceitem abraçar o desafio de abrirmos um canal de reflexão sobre as diversidades no espaço escolar pautado no estudo das principais abordagens teóricas contemporâneas sobre o assunto, a fim de estimular a criação de um espaço de diálogo para pensarmos soluções viáveis ao contexto de cada um e ao mesmo tempo adequadas para os desafios que o mundo atual impõe. Com esse arcabouço teórico e algumas reflexões práticas, será menos desafiador lidar com as situações cotidianas e os conflitos envolvendo a diversidade de pensamento, de origem social, de raça, cor, etnia, de idade, de origem família, identidade religiosa. Para alcançar os objetivos propostos, a apostila está estruturada em duas partes: uma mais geral e conceitual, ao passo que a outra mais específica e focada nos variados tipos de diversidade. A primeira parte está representada pelo módulo 1, que visa a fornecer um arcabouço teórico e conceitual sobre as diversas noções de diversidade, a sua relação com os termos “diferença”, “desigualdade”, “universalismo”, e com os referenciais teóricos do reconhecimento de direitos e redistribuição de recursos, interseccionalidades para então passarmos à análise do que significa falar em diversidade no contexto escolar. A segunda parte do curso, por sua vez, destina-se ao estudo detalhado de alguns importantes marcadores da diferença, e se estrutura em três módulos. No primeiro deles, módulo 2, enfatizaremos a diversidade de gênero e identidade sexual, bem como as implicações decorrentes desse modo de compreender a realidade social no âmbito educacional. Já o módulo 3 concerne às diversidades étnico-raciais existentes no País, o seu arcabouço teórico e os consequentes desafios que essa dinâmica social impõe ao contexto escolar. Por fim, o módulo 4 aborda diversidades bastante evidenciadas no contexto educacional, como a diversidade de classe social, origem religiosa, deficiência e diversidade cultural e linguística, que ganha ainda mais importância com a nova onda de imigrações no País. Antes de começar, fazemos uma última observação. Ao longo da apostila, você vai notar o uso de uma linguagem inclusiva para se referiràs pessoas. Isto é, mencionaremos “alunas e alunos”, “professoras e professores” e, quando possível, utilizaremos termos neutros como a turma ou estudantes. A intenção é que ao citarmos um grupo não utilizaremos a forma masculina como sinônimo do que é “neutro” ou “universal”. A linguagem é um importante instrumento de poder e dominação e, a depender do modo como escrevemos podemos reproduzir, por exemplo, assimetrias de gênero. São justamente essas assimetrias que queremos evitar, especialmente em um curso que pensa diversidade, inclusão e igualdade. SUMÁRIO MÓDULO I – NOÇÕES DE DIVERSIDADE: UMA INTRODUÇÃO CONCEITUAL ................................... 9 O QUE É DIVERSIDADE? ..................................................................................................................... 9 Diversidade versus diferença .................................................................................................. 11 Diferença e desigualdade: o debate sobre reconhecimento e redistribuição ................ 12 MARCADORES DA DIFERENÇA E INTERSECCIONALIDADES ........................................................ 15 O QUE É DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR? ...................................................................... 18 Diversidade na política educacional brasileira .................................................................... 20 MÓDULO II – DIVERSIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADES ............................................................. 23 CONCEITOS DE GÊNERO ................................................................................................................. 24 GÊNERO E SEXUALIDADES .............................................................................................................. 33 GÊNERO E IDENTIDADE SEXUAL NO AMBIENTE ESCOLAR ......................................................... 34 REPERCUSSÕES DA DIVERSIDADE DE GÊNERO NO CONCEITO DE FAMÍLIA ............................ 36 MÓDULO III – DIVERSIDADES ÉTNICO-RACIAIS................................................................................ 39 RACISMO NO BRASIL ....................................................................................................................... 42 MITO DA DEMOCRACIA RACIAL...................................................................................................... 44 DIVERSIDADES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO ......................................................................... 44 MÓDULO IV – DIVERSIDADES CULTURAIS, LINGUÍSTICAS, RELIGIOSAS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA ......................................................................................................................................... 47 DIVERSIDADE DE CRENÇA RELIGIOSA ........................................................................................... 47 DIVERSIDADE CULTURAL E LINGUÍSTICA DOS IMIGRANTES ...................................................... 51 Educação dos imigrantes no Brasil ....................................................................................... 53 PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS E ENSINO INCLUSIVO .............................................. 55 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 58 PROFESSOR-AUTOR ............................................................................................................................. 65 Para falar em diversidade no contexto escolar, é preciso, antes de tudo, entender o que significa diversidade na sua acepção mais ampla. Por isso, o primeiro módulo do curso tem por objetivo apresentar as diferentes noções de diversidade, com vistas a introduzir um arcabouço teórico e conceitual que servirá de base para as reflexões e os debates dos módulos posteriores. Não é possível tratar de diversidade sem abordar as distinções entre este e outros termos correlatos, como diferenças, desigualdades, multiculturalismo e universalismo. Assim, mais do que explicar o que significa diversidade, é fundamental dissociar o seu conceito de outros igualmente relevantes. Depois de abordar a discussão sobre marcadores da diferença e a relação entre eles, enfatizando a abordagem teórico-metodológica chamada de interseccionalidade, chegaremos ao tema da disciplina propriamente dito: a diversidade no contexto escolar. Além de apresentar como a diversidade é tratada na política educacional brasileira, enfatizamos os desafios de se lidar com a diversidade em diferentes momentos da vida escolar de uma criança/adolescente, quando são moldadas a personalidade, a maneira de ser e de se relacionar com os outros. Nesta parte, abordaremos o problema conhecido como bullying, que permeia o ambiente escolar e está relacionado à não aceitação das pessoas com características próprias. A partir deste debate, o propósito é refletir sobre como podemos ajudar a construir uma sociedade mais justa e inclusiva. O que é diversidade? Em um mundo globalizado, marcado pela revolução tecnológica, economia global, padronização dos mercados de consumo, velocidade na disseminação de informações, há uma tendência à universalização de certos valores, costumes e soluções para problemas comuns. A MÓDULO I – NOÇÕES DE DIVERSIDADE: UMA INTRODUÇÃO CONCEITUAL 10 globalização impõe uma redefinição de símbolos e significados culturais, que ganham uma feição desconectada das origens, raízes e identidades de grupos, povos e nações. Esse movimento de relativização das identidades culturais tem gerado certo desconforto na última década. Nesse momento, reaparece o debate acerca do relativismo, ideia associada ao multiculturalismo, às reivindicações identitárias e à valorização da diversidade cultural. Assim, por mais paradoxal que possa parecer, o relativismo ressurge no contexto da globalização, desafiando o universal em prol da retomada das particularidades socioculturais. Ao analisar esse movimento, o sociólogo Renato Ortiz (2017) considera que a tensão entre o universal e o particular; entre o comum e as diferenças, caracteriza o “espírito de nosso tempo”, que é marcado pelo “mal-estar do universalismo”.3 Segundo o autor, “vivemos uma mudança do humor dos tempos. As qualidades positivas, antes atribuídas ao universal, deslocam-se para o ‘pluralismo’ da diversidade”. A menção ao mito de Babel serve para ilustrar esse processo. Para Ortiz (2017), Babel era visto na tradição europeia como uma situação desagradável, de incompreensão e desentendimentos, uma vez que para superar a incomunicabilidade em face da multiplicidade de idiomas, as pessoas tiveram de buscar uma língua universal capaz de estabelecer a paz entre os povos. Por outro lado, quando se fala que a internet é uma Babel, essa é uma imagem positiva, que valoriza as peculiaridades de cada pessoa, opinião, interesse. Esse movimento de crescente afirmação das identidades aconteceu em diversas localidades, mas “especialmente em sociedades geradas pelo colonialismo europeu, em que grupos e indivíduos reafirmam seus particularismos locais e suas identidades étnicas, raciais, culturais ou religiosas” (RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 17). Fruto da crescente afirmação das pautas identitárias, a ideia de diversidade passou a ocupar posição central no debate internacional e nacional, em especial nas discussões sobre o desenvolvimento e na formulação de políticas públicas. Diversidade não é um conceito unívoco, muito menos livre de disputas. Em geral, o termo diversidade é construído em conjunto com outros termos, como o de diferença, desigualdade, inclusão e exclusão, por vezes, confundindo-os. Quando introduzida no debate sobre mercado de trabalho, a diversidade é entendida como o reconhecimento das diferenças e a valorização da tolerância e respeito para que todas as pessoas comdiferentes características físicas, psicológicas, origem, gênero possam conviver. Esse tem sido o uso mais disseminado do debate público. Há autoras que acabam por conceituar diversidade a partir da sua relação com inclusão (GREENE, 1993). Um dos conceitos mais difundidos, especialmente entre os estudos no campo da educação, é aquele que alia o termo diversidade à heterogeneidade de culturas que marcam a sociedade 3 As recentes divergências entre os países da Europa Ocidental sobre as políticas de imigração e o Brexit são alguns exemplos bastante recentes que podem ilustrar esse mal-estar do universalismo. 11 contemporânea (GADDOTI, 1992; ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011), e ao multiculturalismo (SILVA; MOREIRA, 1995). Em outras palavras, falar em diversidade seria o mesmo que falar em diversidade de culturas. A evidente variedade de perspectivas que se expressam nas teorias e propostas relativas à diversidade tornam esse campo de debate próspero tendo em vista a sua complexidade. A polissemia terminológica produz uma série de disputas de sentidos, o que torna a proposta deste curso ainda mais interessante e não menos desafiadora. O primeiro desafio que se coloca é entender as relações entre diversidade de diferença. Diversidade versus diferença Como vimos, um dos usos mais corriqueiros da palavra diversidade geralmente remete à ideia de respeito às diferenças. Acontece que diversidade e diferença são noções distintas, embora seja comum ver esses termos sendo utilizados indistintamente. Há, portanto, diferentes noções e concepções de diversidade e diferença. Essas noções podem ser organizadas em três vertentes: a primeira trata as diferenças ou diversidades como contradições que podem ser apaziguadas. Uma das formas de apaziguamento seria a tolerância, que seria capaz de conter os conflitos e dilemas impostos pelo multiculturalismo. A segunda vertente, denominada liberal ou neoliberal, usa a palavra diferença ou diversidade como estratégia de ampliação das fronteiras do capital, pela maneira com que comercializa territórios de existência, formas de vida, a partir de uma maquinaria de produção de subjetividades. Por fim, a terceira perspectiva enfatiza as diferenças como produtoras de diferenças, as quais não se podem apaziguar, já que não se trata de contradições. Em geral, a indistinção conceitual entre diferença e diversidade esconde as desigualdades e, fundamentalmente, as diferenças. Nesse sentido, Tatiane Rodrigues e Anete Abramowicz (2013) fazem o seguinte alerta: Sob o manto da diversidade, o reconhecimento das várias identidades e/ou culturas é atravessado pela questão da tolerância, tão em voga, já que pedir tolerância ainda significa manter intactas as hierarquias do que é considerado hegemônico. [...] a diversidade foi entendida como uma forma de governamento exercido pela política pública no campo da cultura, como uma estratégia de apaziguamento das desigualdades e de esvaziamento do campo da diferença, tendo como função borrar as identidades e quebrar as hegemonias (RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 18). 12 Para essa matriz teórica, a utilização indiscriminada das palavras diferença e diversidade tem produzido o esvaziamento político e social do que significa a diferença e a diversidade, utilizadas como sinônimos. Falar de diversidade quase como o mesmo que falar da diferença resulta no apagamento da diferença, pois tem por objetivo retirar a diferença da diversidade. Nesse contexto, a diversidade tem-se caracterizado como uma política universalista de maneira a contemplar o todo, todas as formas culturais, todas as culturas, como se estas pudessem interagir sem grandes conflitos. Para Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2011, p. 94), a diversidade seria então o “campo esvaziado da diferença”. Consequentemente, defendem os autores, este campo da diversidade também de alguma maneira é esvaziado, não pela diferença, mas pela desigualdade, uma vez que há desigualdades irreconciliáveis, seja de poder, seja das classes sociais, mas isso é obscurecido. Essa mesma preocupação com o apagamento das diferenças foi levantada pela filósofa educacional norte-americana Maxine Greene (1993). Ao procurar identificar o significado de diversidade no contexto democrático, a autora se pergunta como é possível promover inclusão sem o tipo de normalização que apaga as diferenças, forçando-as a serem reprimidas, mas ela não responde diretamente a essa pergunta. Diferença e desigualdade: o debate sobre reconhecimento e redistribuição “Temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Com essa frase, Boaventura de Souza Santos (2006, p. 316), um dos mais influentes sociólogos da atualidade, apresenta um paradoxo entre os sistemas da igualdade e da diferença. Termos que parecem inconciliáveis, à primeira vista, podem combinar-se de forma a oferecer soluções à seguinte pergunta: como conciliar o exercício do direito à igualdade com os anseios e as demandas dos mais variados grupos sociais? Santos (2006) apresenta uma solução que contempla a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. Essa afirmação evoca um dilema próprio da sociedade atual: como o processo da diversidade deve levar em conta as diferenças sem fomentar ainda mais desigualdades? Para enfrentar esse desafio, é preciso compreender as noções de diversidade e desigualdade e como elas se relacionam. Devido às pressões sociais, o entendimento da diversidade como construção social constituinte dos processos históricos, culturais, políticos, econômicos e educacionais começa a ter mais espaço na sociedade, nos fóruns políticos, nas teorias sociais e educacionais. São também os movimentos sociais, principalmente os de caráter identitário – indígenas, negros, quilombolas, feministas, LGBT, povos do campo, pessoas com deficiência, povos e comunidades tradicionais, entre outros –, que, a partir dos anos de 1980, no Brasil, contribuem para a entrada do olhar afirmativo da diversidade na cena social. Eles reivindicam que a educação 13 considere, nos seus níveis, etapas e modalidades, a relação entre desigualdades e diversidade. Questionam o caráter perverso do capitalismo de acirrar não só as desigualdades no plano econômico, mas também de tratar de forma desigual e inferiorizante os coletivos sociais considerados diversos no decorrer da história. A imbricação entre desigualdades e diversidade tem sofrido interpretações as mais diversas no contexto das relações de poder, nas quais se inserem as lutas sociais. São interpretações advindas tanto das políticas neoliberais que se acirraram no Brasil, nos países latino-americanos e em outros contextos do mundo a partir dos anos de 1990, quanto das lutas por identidade e reconhecimento desenvolvidas pelos próprios movimentos sociais, ações coletivas, organizações de caráter emancipatório e novos sujeitos sociais no mesmo período. No terceiro milênio é possível dizer que estamos diante de uma mudança política e epistemológica, no que diz respeito ao entendimento sobre a imbricação entre desigualdades e diversidade que vai além do campo educacional. Trata-se de uma inflexão em nível nacional e internacional provocada por vários fatores, tais como: os questionamentos à globalização capitalista; a construção de uma rede internacional contra-hegemônica; os conflitos étnicos e religiosos na América Latina, na Europa e na Ásia; a formação e o fortalecimento das redes sociais e das novas mídias com foco na emancipação social; as lutas nacionais e transnacionais pelo direito à terra e ao território. Esses fatores se tornam mais incisivos quanto mais se intensificam, nacionale internacionalmente, fenômenos como: neocolonialismo, racismo, xenofobia, sexismo, homofobia, transfobia e violência religiosa. A pressão histórica dos movimentos sociais, somada a um perfil mais progressista de setores do Estado brasileiro nos últimos 10 anos, trouxe mudanças no trato da diversidade no contexto das políticas públicas de caráter universal, desencadeando, inclusive, a implementação de políticas de ações afirmativas. Contudo, um dos limites que ainda persiste está no fato de que a maioria dessas ações ainda se limita às políticas de governo. Falta o seu enraizamento como políticas de Estado. Mesmo assim, é possível afirmar que, nos últimos anos, no Brasil e na América Latina, com avanços e limites, algumas dimensões da diversidade pleiteadas historicamente pelos movimentos sociais e demais setores organizados da sociedade começam a fazer parte da pauta da agenda das políticas públicas. Transformam-se em temas de debate e de disputa na arena política e na própria produção intelectual. É nesse contexto que a discussão sobre a justiça social passa a ocupar mais espaço na produção teórica, na análise e na implementação das políticas públicas, entre elas, as educacionais. A interação entre as noções de diferença e desigualdade ganharam um novo capítulo a partir da década de 1990, resultante do debate desenvolvido pela teoria crítica social sobre reconhecimento e redistribuição. Desde 1995, o recente debate sobre reconhecimento, desencadeado alguns anos antes pelos trabalhos de Charles Taylor e de Axel Honneth, ganhou novos contornos, com a introdução do tema da redistribuição, por Nancy Fraser (1995). Com isso, muitos autores que antes se limitavam a discutir problemas de reconhecimento tiveram de considerar nas suas formulações também 14 problemas de redistribuição. Enquanto os debates sobre reconhecimento decorriam de preocupações com problemas de identidade e diferença, a introdução no debate do tema da redistribuição remetia, sobretudo, ao problema da igualdade social. Na verdade, a entrada de Fraser no debate, em 1995, teve justamente a intenção de alertar para os limites das políticas de identidade e para o abandono por setores dos movimentos sociais da luta por igualdade social. Assim, o problema da relação entre reconhecimento de diretos e redistribuição de recursos acabou por protagonizar um dos debates mais importantes em teoria social crítica na última década do século XX e na primeira do século XXI, resultando com isso em uma extensa bibliografia, cuja principal referência ainda é o livro Recognition or redistribution? A political-philosophical exchange (FRASER; HONNETH, 2003), no qual Fraser e Honneth dialogam criticamente e apresentam as suas respectivas formulações sobre o tema. Honneth postula o reconhecimento como uma categoria moral abrangente que visa à formação de uma personalidade intacta dos indivíduos no processo de socialização (HONNETH, 2003). Fraser (2002), por sua vez, propõe um conceito de reconhecimento como status, de inspiração weberiana, que procura diferenciar-se do reconhecimento como identidade, que ela atribui a Honneth. No livro escrito em conjunto pelos autores, Nancy Fraser apresenta uma teoria bidimensional, que abrange reconhecimento de direitos e distribuição de recursos, conferindo a ambos os elementos pesos iguais. Em sua perspectiva, os elementos reconhecimento e distribuição podem ser vistos de formas distintas, associando o primeiro ao “cultural” e o segundo, ao “material”. Ambos os elementos, para a autora, refletem uma questão de justiça social. Fraser afirma que a sua base normativa é a noção de paridade de participação, definida como “uma justiça que requer arranjos que permitam todos os membros adultos da sociedade interagirem como pares” (FRASER, 1997, p. 29). Em contrapartida, Honneth propõe uma teoria unidimensional, que enfatiza apenas o reconhecimento. Para ele, a redistribuição seria apenas uma forma de luta pelo reconhecimento. Enquanto Fraser associa a distribuição ao elemento material, Honneth não reconhece a possibilidade de o material expressar-se em si, mas apenas por meio do simbólico, representado na luta pelo reconhecimento. Assim, o autor constrói um elo entre o material e o simbólico, uma vez que, ao se autorreconhecerem como sujeitos do desrespeito, os indivíduos tornam possível a sua luta por reconhecimento. Honneth defende uma “teoria do reconhecimento suficientemente diferenciada”, tratando a distribuição como decorrência do reconhecimento. Para o autor, a formulação conceitual do reconhecimento é de central importância hoje, não porque expressa os objetivos de um novo tipo de movimento social, mas porque ela tem provado ser uma ferramenta apropriada para categorialmente desvendar experiências sociais de injustiça como um todo (HONNETH, 2003, p. 33) 15 Ademais, vale ressaltar que, ao tratar de reconhecimento, Honneth refere-se ao reconhecimento como identidade, atrelado à ideia de que se trata do reconhecimento do outro. Esse aspecto, segundo o autor, é expressão de uma questão filosófica e psicológica, e não uma questão social dada fora dos sujeitos. Fraser, por sua vez, entende reconhecimento não como identidade, mas como mecanismo de superação. Nesta concepção, a redistribuição e o reconhecimento não são paradigmas filosóficos, mas paradigmas de justiça, que informam as lutas atuais da sociedade civil. Ao examinar a polêmica Fraser-Honneth, Céli Pinto afirma que a melhor compreensão da controvérsia entre os dois autores depende do entendimento acerca da noção de reconhecimento. Fraser pode distinguir o reconhecimento da distribuição porque não associa tais noções a atores, mas a princípios de justiça e a remédios, isto é, a políticas públicas. Honneth, de forma diversa, parte de uma ação do ator que se autodefine como objeto do reconhecimento. Esta ação exige a presença do outro; trata-se, pois, de uma relação (PINTO, 2008, p. 43-44). A despeito dessas divergências, os temas do reconhecimento e da redistribuição continuam centrais para o debate teórico e político contemporâneo assim como para qualquer projeto voltado à emancipação humana. Marcadores da diferença e interseccionalidades As discussões sobre os marcadores sociais da diferença são relativamente recentes. Historicamente, essas abordagens têm o seu ponto de referência no “feminismo das diferenças”, nascido nos Estados Unidos ao longo dos anos 1980. Essa vertente teórica surge como uma crítica à miopia do feminismo vigente, voltado, segundo formularam diversas autoras, para as mulheres brancas, anglófonas, heterossexuais, protestantes e de classe média. Essas vozes periféricas se articulam também para propor uma epistemologia crítica capaz de superar as limitações teóricas expressas nos binarismos homem/mulher, masculino/feminino, homo/hétero, tomados como essencializadores e biologizantes. O feminismo da diferença procura salientar que o sujeito é social e culturalmente constituído em tramas discursivas nas quais gênero, raça, religião, nacionalidade, sexualidade e geração não são variáveis independentes, mas se enfeixam de maneira que o eixo de diferenciação constitui o outro ao mesmo tempo em que é constituído pelos demais. Esse debate avança e no final da década de 16 1990 já reúne um escopo considerável de reflexões. Entre as contribuições teórico-conceituais elaboradas naquele período vale reter as propostas pela feminista e socióloga indiana Avtar Brah. Para a autora: Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção nessas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres,mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres da classe trabalhadora”, “mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes” (BRAH, 2006, p. 341). Três dessas propostas serão recortadas para os fins deste texto: a primeira delas é a de se pensar a articulação dos marcadores sociais da diferença como prática, como um movimento transformador de configurações relacionais. Opção metodológica que a autora considera mais produtiva do que as apresentadas pelas grandes teorias, como o marxismo, por exemplo, que deu ênfase à classe em detrimento de outros marcadores; ou alguns feminismos que encontraram no gênero um poder explicativo que minimizava outros eixos de diferenciação constitutivos dos sujeitos. Marcadores sociais da diferença podem ser entendidos como a classificação e diferenciação de determinados indivíduos de forma estigmatizada. A desigualdade entre homens e mulheres foi desafiada pela ideia de que a categoria mulheres não poderia ser vista como um corpo monolítico, em que todas fossem iguais, independentemente da raça, cor, etnia, idade, etc. A primeira mulher a explicitar publicamente uma preocupação com a desigualdade de gênero em uma perspectiva racial foi a escritora, ativista e abolicionista afro-americana Sojourner Truth. Em 1851, ela participou da Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio, nos Estados Unidos, e proferiu um discurso histórico intitulado “E eu não sou uma mulher?”. Nesse discurso, ela questionava a universalização da categoria mulher, dilema próprio do feminismo hegemônico. A sua narrativa era uma forma de apontar para a invisibilidade que atingia as mulheres negras. Portanto, ela destacava a necessidade de se perceberem as várias possibilidades de ser mulher, levando em conta as outras intersecções como raça, orientação sexual, identidade de gênero e classe social. O grupo feminista negro norte-americano Combahee River Collective (1977) entendia que o movimento encabeçado pelas mulheres negras era necessário para que se pudesse “combater as opressões simultâneas e múltiplas que enfrentam todas a mulheres de cor”, além de ser uma saída para a extinção da pressão racial-sexual, pois “não existe uma coisa tal como uma opressão racial- sexual que não seja somente racial ou somente sexual”. 17 Essa preocupação em compreender as múltiplas formas de opressão impostas a algumas mulheres – no caso, as mulheres negras – lançou as bases para uma ferramenta teórico-metodológica que, mais de um século depois, passaria a ser conhecida como interseccionalidade. Para Carla Akotirene (2019, p. 18), esse conceito é uma “sensibilidade analítica, pensada por feministas negras” cujas experiências e reivindicações não eram observadas tanto pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, focado nos homens negros. O uso desse termo foi cunhado e utilizado metodologicamente pela primeira vez em 1989, pela jurista estadunidense, Kimberlé Crenshaw, com a publicação do artigo “Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antirracist politics”. A ideia original de Crenshaw era que mulheres negras sofriam discriminação de gênero e racial, ao mesmo tempo, no âmbito do trabalho. Tratava-se de uma opressão com múltiplas faces, fazendo uma analogia com um cruzamento em uma estrada (intersection). Ou seja, a via da raça não era independente da via do gênero: a mulher negra vivia esse entrecruzamento na sua experiência, que não se resumia à soma de opressões individualmente consideradas. O direito antidiscriminatório nos Estados Unidos à época, argumentava Crenshaw, falhava em apreciar a intersecção, deixando social e juridicamente desassistidas mulheres negras discriminadas nas relações de trabalho. Segundo a autora, a interseccionalidade possibilita enxergar a colisão das estruturas, a interação simultânea das opressões, além do fracasso do feminismo em contemplar mulheres negras, já que ele reproduz o racismo. Ferramenta teórico-analítica pensada por feministas negras, os estudos sobre a interseccionalidade enfatizam o modo como a interação das opressões de gênero e raça impacta a vida de mulheres negras (COLLINS, 2020; AKOTIRENE, 2019; CARNEIRO, 2009 e 2011; HOOKS, 2015; GONZALES, 1984). Nas palavras de Akotirene (2019, p. 19): A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais. Sirma Bilge sintetiza o conceito de interseccionalidade, ao entendê-lo como uma “teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado” (BILGE, 2009, p. 70). Para a autora, o “enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais” (BILGE, 2009, p. 70). 18 Interseccionalidade é, portanto, “abordagem que afirma que os sistemas de raça, classe social, gênero, sexualidade, etnia, nação e idade são características mutuamente construtivas de organização social que moldam as experiências das mulheres negras e, por sua vez, são formadas por elas” (COLLINS, 2019, p. 460). Ela afirma, ainda, esse fenômeno caracteriza-se por um “sistema de opressão interligado”. O que é diversidade no contexto escolar? Após estudar os principais conceitos relacionados à noção de diversidade, tais como diferença, desigualdades, reconhecimento, redistribuição, finalmente chegou a hora de entender o que significa falar em diversidade no contexto educacional. Para começar, observe as imagens a seguir. Você já deve ter-se deparado com representações como essas em algum livro didático, em materiais e informes publicitários e até mesmo em programas de televisão. As imagens de crianças representando diferentes grupos étnico-raciais e crianças com necessidades especiais de mãos dadas 19 revelam a intenção de mostrar que pessoas diferentes podem conviver bem umas com as outras. Isso reforça o valor das diferenças e de sociedades plurais, onde todas as pessoas estariam incluídas e integradas, independentemente da sua origem social, raça, cor, etnia, gênero, identidade e orientação sexual. Com isso, pretende-se mostrar o respeito ao diferente e à valorização do outro. No âmbito educacional, essas imagens exercem também grande influência, pois representam uma ideia de educação inclusiva, capaz de valorizar as diferenças e propor valores como respeito e tolerância. Exercitar o respeito aos traços peculiares do outro é uma tarefa árdua, que precisa ser praticada a todo momento em qualquer ambiente, incluindo as escolas. Quando pensamos em formar pessoas para se tornarem cidadãos, logo lembramos do ambiente escolar. Este é, por excelência, o lugar onde as pessoas aprendem valores sociais e conteúdos curriculares, mas também aprendem a interagir com pessoas e a se relacionar com o mundo. Dentro desse contexto, a educação infantil tem lugar de ainda mais destaque. Segundo Ana Lúcia Goulart de Faria (2006, p. 87), neste espaço da sociedade vivemos as mais distintas relações de poder: gênero, classe, idade, étnicas. Desse modo é necessário estudar as relações no contexto educativo da creche e pré-escolas onde confrontam-se adultos – entre eles, professor/a, diretora, cozinheira, guarda, pai, mãe, secretário/a de educação, prefeito/a, vereador/a, etc. –, confrontam-se crianças, entre elas: menino, menina, mais velha, mais nova, negra, branca, judia, com necessidades especiais, pobre, rica, de classe média, católica, umbandista,ateia, “café com leite”, “quatro olhos”, etc.; e confrontam-se adultos e crianças – a professora e as meninas, a professora e os meninos, o professor (percentual bastante baixo, mas existente e com tendência a lento crescimento) e os meninos, o professor e as meninas, o professor e a mãe da menina. Por isso, esse é um espaço propício para se pensar como lidar com as diferenças entre as pessoas, ensinar valores como o respeito à diversidade e ao diferente. Não é só na educação infantil que isso acontece, mas ao longo de toda a vida escolar, seja no ensino fundamental, médio e, quiçá, no ensino superior, por isso o objetivo deste curso é pensar a diversidade no ambiente escolar. E o que isso significa? Considerando a noção de diversidade entendida como a heterogeneidade de culturas, desse ponto de partida avançamos na construção do que é diversidade no ambiente educacional e como ela pode ser desenvolvida nos bancos escolares. A integração de minorias sociais, étnicas e culturais no contexto escolar pressupõe a construção de uma educação multicultural. A busca de um currículo capaz de assimilar diferentes culturas está associada a um problema mais amplo, objeto deste curso: a capacidade de a educação lidar com a diversidade. 20 Mas o que significa promover uma educação multicultural? O conceito de multiculturalismo em educação refere-se a acepções que podem ter objetivos muito diversos. Segundo Sacristán (1995), a educação multicultural pode ser empregada para reduzir os preconceitos de uma sociedade para com algumas minorias étnicas; pode ser instrumentalizada para que a cultura dominante assimile a cultura minoritária que tem menos oportunidades no sistema educacional; pode ser usada para formular programas de ensino diferenciados para incluir diversos setores culturais de uma sociedade, entre outros. Uma das principais motivações para um ensino multicultural concerne à preocupação em integrar grupos minoritários ou minorizados procedentes de outras culturas no sistema social, por meio da educação, sem eliminar a cultura de procedência. A ideia é que isso seja realizado em um sistema educacional único com um currículo comum para permitir uma real integração, ou ao menos uma tentativa. Uma ressalva, porém, é necessária: a pretensão de se criar um currículo capaz de abordar uma visão multiétnica e multicultural pode ser vista, tanto pela cultura dominante como pelas culturas dominadas, como uma ameaça à própria identidade que creem dever preservar. Essa visão multiétnica e transcultural “afeta a identidade cultura e nacional de grupos e povos inteiros” (SACRISTÁN, 1995, p. 93), por isso a tarefa de pensar a diversidade nesses ambientes não é simples. Diversidade na política educacional brasileira A inclusão em educação é fundamental para minimizar a exclusão no sistema educativo brasileiro, e vai muito além da integração de pessoas com deficiência. Mônica Pereira dos Santos afirma que, no campo da educação, “a inclusão chegou para reafirmar o maior princípio já proposto internacionalmente: o princípio da educação de qualidade como um direito de todos” (SANTOS, 2009). A busca por uma educação voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico foi identificada nos anos 1980 e 1990, quando houve um progressivo reconhecimento das diferentes culturas presentes no tecido social brasileiro e um forte questionamento do mito da democracia racial (CANDAU; ANHORN, 2000, p. 2). Esse movimento decorre da emergência de movimentos sociais protestando contra o regime militar, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980. Os diferentes movimentos identitários – negros, feministas, indígenas, homossexuais e outros –, reivindicavam o acesso aos direitos iguais, apontando para a necessidade de se produzirem imagens e significados novos e próprios, combatendo os preconceitos e estereótipos que justificavam a inferiorização desses grupos (GONÇALVES; SILVA, 2003, p. 113). A década de 1990 também foi marcada por um contexto reivindicatório em que diferentes movimentos sociais denunciaram as práticas discriminatórias presentes na educação e exigiram mudanças. A partir de então, a referência à diversidade passou a ser cada vez mais presente no 21 contexto político brasileiro, motivada pela pressão internacional de cumprimento dos acordos internacionais de combate às desigualdades raciais, de gênero e outras, bem como por um contexto interno de intensas reivindicações A temática da diversidade tornou-se também nesse período um tema transversal do ponto de vista curricular. Uma educação voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem emergido em debates e discussões nacionais e internacionais, buscando questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógicas e curriculares de uma educação voltada à valorização da identidade múltipla no âmbito da educação formal. Segundo Gonçalves e Silva (2003, p. 120), tendo em vista que a cultura e sua transmissão contam, nas sociedades contemporâneas, com poderoso suporte dos sistemas educacionais (sistemas estes que consomem grande parte da vida dos indivíduos) e como a educação, qualquer que ela seja, está integralmente centrada na cultura, pode-se entender porque os multiculturalistas fizeram da instituição escolar seu campo privilegiado de atuação. O documento sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) é apresentado como um currículo mínimo de conteúdos a serem ofertados no sistema educacional. Cabe destacar as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais como uma política educacional dirigida para uma educação na perspectiva da diversidade. Logo de início, o documento afirma que a educação deve ser voltada para a cidadania, os vários termos como ética, meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo e pluralidade cultural são tratados como temas a serem incorporados, seguindo uma conexão entre a realidade social dos estudantes e os saberes teóricos, aos campos gerais do currículo. O termo Pluralismo Cultural analiticamente é relativo às comunidades ou grupos diversos que compartilham um espaço comum. Essas comunidades se diferenciam por religiões, línguas, tradições, entre outros componentes que são interpretados como diversidade de culturas. Como componente da diversidade, o texto ressalta o reconhecimento das diversas etnias e grupos migrantes no País, como diversidade “etnocultural” (BRASIL, 1997, p. 117). Essa pluralidade é composta de características interpretadas como étnicas e culturais, que, eventualmente, em dado contexto causam desigualdades socioeconômicas, destacando que a diversidade implica uma livre expressão das suas culturas. Segundo o documento, o ensino da cultura na sua pluralidade deve atuar em três frentes: conhecimento das culturas, reconhecimento social da diversidade cultural e combate à exclusão social, fundamentados nos princípios da democracia e da igualdade social. Esse documento destaca a postura do Estado brasileiro em reconhecer a existência da diversidade cultural e que esta deve ser tomada no seu sentido pleno, embora seja indicada como um tema pontual a ser inserido no 22 currículo geral. Ou seja, todo o debate sobre as diferenças/diversidade foi realizado pela clave da cultura, como se a cultura fosse a chave que abrisse todas as portas da compreensão e da possibilidade de resolução dos conflitos a partir da aceitação, trocas ou diálogos culturais (BRASIL, 1997, p. 90-91). De modo geral, os desafios da escola no que diz respeito à diversidade podem ser sintetizados no seguinte trecho: O grande desafio da escola é reconhecer a diversidade como parte inseparável da identidade nacional e dar a conhecer a riqueza representada por essa diversidade etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, investindona superação de qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória particular dos grupos que compõem a sociedade. Nesse sentido, a escola deve ser local de aprendizagem de que as regras do espaço público permitem a coexistência, em igualdade, dos diferentes (BRASIL, 1997). Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação destaca, no seu art. 26, que os currículos da educação básica – que compreende o ensino, fundamental e médio – “devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (grifos nossos). Como se viu, desde o lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que elegeram a pluralidade cultural como um dos temas transversais (BRASIL, 1997), o reconhecimento da multiculturalidade e a perspectiva intercultural ganharam grande relevância social e educacional (FLEURI, 2003, p.16). O desenvolvimento do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), as políticas afirmativas raciais e das minorias étnicas, as diversas propostas de inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais na escola regular e a ampliação e reconhecimento dos movimentos de gênero mostram a incorporação da diversidade e do multiculturalismo nas políticas públicas de forma geral e, em especial, nas políticas educacionais brasileiras, por essa razão daremos seguimento ao debate sobre algumas dessas “diversidades” nos módulos seguintes. Ainda hoje, milhares de meninas são impedidas de frequentar escolas e ter acesso à educação em determinadas regiões do globo, por exemplo, no Paquistão e no Afeganistão. Prática corriqueira em diversos países é o casamento infantil, definido como uma união formal ou informal antes dos 18 anos de idade pela Organização das Nações Unidas (ONU), que afeta principalmente as meninas.4 Situações como essas, em geral, decorrem da fragilidade dos direitos das meninas e mulheres a educação, saúde, profissionalização, emprego, mobilidade e segurança, entre outros.5 Casos de mutilação genital feminina, concentrados principalmente em países da África e do Oriente Médio, também fazem parte da realidade de cerca de 200 milhões de meninas e mulheres. Alarmantes são os níveis de violência contra a mulher: cerca de 50% das mulheres assassinadas em todo o mundo são vítimas dos cônjuges ou de homens da família. Mesmo diante desse cenário, ainda há diversos países que não contam com leis que punem a violência contra a mulher no âmbito familiar, concentrados na África Subsaariana, no Oriente Médio e no Norte da África.6 A violência física e psicológica não afeta apenas as mulheres, mas também pessoas LGBT+, isto é, lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. De acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia, em 2018 morreram no Brasil 420 LGBT+ vítimas da homolesbotransfobia: 320 homicídios (76%) e 4 Cf. estudo do Banco Mundial. Casamento na infância e adolescência: a educação das meninas e a legislação brasileira. Disponível em: <http://documents1.worldbank.org/curated/pt/657391558537190232/pdf/Casamento-na-Inf%C3%A2ncia- e-Adolesc%C3%AAncia-A-Educa%C3%A7%C3%A3o-das-Meninas-e-a-Legisla%C3%A7%C3%A3o-Brasileira.pdf>. 5 Segundo dados da pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Situação Mundial da Infância 2016, com dados levantados a partir de pesquisas de indicadores múltiplos e outros indicadores formulados e aplicados pelo organismo em nível mundial. Disponível em: <https://plan.org.br/wp-content/uploads/2019/07/Tirando-o-veu-estudo- casamento-infantil-no-brasil-plan-international.pdf>. 6 Cf. CASTILLO, Elisa. A violência contra as mulheres no mundo em quatro mapas. El País, 24 nov. 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/22/internacional/1511362733_867518.html>. MÓDULO II – DIVERSIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADES 24 100 suicídios (24%), o que coloca o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais, superando a quantidade de homossexuais e transexuais mortos nos 13 países do Oriente e da África, onde há pena de morte contra os LGBT+.7 Ou seja, os dados revelam que pessoas ainda são mortas hoje no Brasil e no mundo pelo simples fato de serem quem são, pelo simples fato de terem um corpo de mulher, por expressarem o seu afeto por pessoas do mesmo sexo ou por terem uma identidade de gênero diferente do que é considerado “normal”. Quando não são mortas, algumas são atacadas de forma violenta por desafiarem o modelo vigente e lutarem por direitos básicos, como é o caso de Malala Yousafzai, ativista laureada com o Prêmio Nobel da Paz, que lutava pelo acesso à educação na sua província no nordeste do Paquistão, onde os talibãs locais impedem as jovens de frequentar a escola. Todas essas formas de violação de direitos humanos retratam situações de violência de gênero e identidade sexual, mas, afinal, o que significa gênero? O que é transgênero, cisgênero e transexual? Como essas denominações são percebidas em uma sociedade e quais as implicações para cada grupo? Conceitos de gênero Como vimos no módulo 1, gênero é um marcador social da diferença. É com base nas variadas concepções de gênero que se estruturam teorias capazes de compreender as relações sociais que se estabelecem entre as pessoas e os papéis sociais atribuídos a cada uma delas, a depender das características do seu gênero. Assim, mais do que uma categoria analítica, o gênero é uma premissa teórica de que as relações sociais de gênero constituem uma variável relevante para a compreensão da realidade e da estrutura social. A noção de gênero tem protagonizado intensos debates na academia, no discurso político, nos movimentos sociais e na mídia, e continua sendo um termo em disputa por diversas correntes teóricas, que apresentam um amplo repertório de conceituações possíveis, cada qual com perspectivas muito diferentes a respeito do que se entende por gênero. De forma geral, porém, é possível afirmar que o conceito de gênero foi desenvolvido por teóricas feministas para se contrapor à noção de sexo biológico. Enquanto o sexo é considerado um atributo natural capaz de explicar a diferença que marca as relações entre homens e mulheres, o gênero, por sua vez, é visto como uma construção social dessa diferença, e é, sobretudo, relacional e historicamente situado (SCOTT, 1989). Como dito acima, o conceito de gênero foi desenvolvido para se opor ao chamado determinismo biológico, teoria usada para justificar as desigualdades entre homens e mulheres em todos os espaços da vida social, incluindo a família, o ambiente de trabalho, a política e as 7 Cf. Relatório População Morta no Brasil, elaborado pelo Grupo Gay da Bahia em 2018 (GGB). Disponível em: <https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2019/01/relat%C3%B3rio-de-crimes-contra-lgbt-brasil-2018-grupo-gay-da- bahia.pdf>. 25 instituições de ensino. Embora ainda não fizesse menção ao termo “gênero”, a escritora inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) é uma das primeiras mulheres a expor as diversas facetas da discriminação de gênero e já desafiava o determinismo biológico. No seu livro Vindicação dos direitos da mulher, publicado originalmente em 1792, afirmou que, se as mulheres eram vistas como fracas, “incapazes de se manterem sozinhas”, passivas e “objetos insignificantes de desejo” (WOLLSTONECRAFT, 1982, p. 81-83), isso se devia não às capacidades naturais das mulheres, mas à falta de oportunidades educacionais para elas e ao confinamento no ambiente doméstico. Reforçando as ideias de Wollstonecraft, o filósofo e economista político John Stuart Mill (1806-1873) defende a igualdade legal e social entre homens e mulheres.Em ensaio publicado em 1869, The Subjection of Women, ele afirma que “a subordinação legal de um sexo ao outro” é “errada em si mesma, e agora um dos principais obstáculos ao aprimoramento humano” (MILL, 1980, p. 1). Quase um século depois, a filósofa feminista Simone de Beauvoir (1908-1986) apresenta uma das mais conhecidas críticas ao determinismo biológico, ao rejeitar a ideia de que os indivíduos “nascem” homens e mulheres. No seu livro O segundo sexo, publicado em 1949, Beauvoir desenvolveu uma teoria que nega a existência de características essenciais à mulher – “ninguém nasce mulher” –, ao considerar que as mulheres se tornam mulheres aos olhos da sociedade mediante a introjeção de atributos considerados femininos ao longo do processo de socialização – “torna-se mulher”. Nas suas palavras: Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo (BEAUVOIR, 1980, p. 9). É somente após a segunda metade do século XX que o termo gênero passa a ser empregado pelas feministas com o sentido de construção social acerca do que é ser homem e mulher. Segundo Haraway, o psicanalista Robert Stoller (1924-1991) foi um dos precursores da sua utilização, ao falar de gênero para se referir aos diferentes papéis que as culturas atribuem a homens e mulheres em oposição ao sexo, que se referiria tanto às características biológicas, quanto às diferenças genéticas, hormonais, anatômicas e fisiológicas entre homens e mulheres (HARAWAY, 2004). 26 Essa distinção permite que um mesmo indivíduo tenha um sexo que não coincide com o respectivo gênero, expresso pelo seu comportamento, pelas suas características pessoais, pela sua forma de se colocar perante o mundo, etc. Além disso, com a emergência dos estudos sobre a sexualidade, essa distinção se mostrou útil por permitir dissociar a prática sexual dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres; gênero coloca a ênfase no sistema de relações que até pode incluir o sexo, mas não é por ele diretamente determinado, nem determina diretamente a sexualidade (SCOTT, 1989, p. 7). Assim, o termo gênero costuma ser usado para denotar as capacidades, habilidades e atitudes diferentes que as culturas associam à masculinidade e à feminilidade, formando estereótipos sociais do masculino e do feminino, bem como o papel que esses estereótipos desempenham na formação da identidade dos homens e das mulheres de uma dada sociedade (ARAUJO, 2012, p. 59). Essas características, atitudes e habilidades são consideradas e reconhecidas como masculinas ou femininas por um “ato de atribuição de valor simbólico” (SEARLE, 1997) engendrado coletivamente. O problema que se coloca é que, ao naturalizarmos certas habilidades ou características e as percebermos como inatas aos seres, passamos a compreendê-las como imutáveis. Na verdade, o que ocorre é que determinados papéis de gênero são atribuídos externamente a pessoas, as quais, dotadas de consciência, interiorizam padrões culturais na sua psique ao longo da socialização. Segundo Haraway (2004, p. 205), a primeira autora que tratou gênero como uma construção cultural criada com liberdade, sem condicionamento biológico, nos termos de Araujo (2012, p. 64), foi a antropóloga Gayle Rubin, no ensaio “O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo”, publicado originalmente em 1985. Pautada em uma perspectiva construtivista, ela analisa as causas da subordinação das mulheres. A partir da análise do ritual da “troca de mulheres” feita por um grupo para realizar alianças com outros – prática comum em algumas tribos – Rubin sustenta que a organização social do sexo repousa em três pilares: o gênero, a heterossexualidade compulsória e a coerção da sexualidade feminina. Para a autora, o gênero não existe naturalmente: ele é produzido por meio da atividade social, por meio do que ela chama de sistema sexo-gênero, que transforma machos e fêmeas (o sexo) em homens e mulheres (gênero) a partir da atribuição de diferenças de gênero que vão além da diferença biológica; e reprime em cada gênero os traços de personalidade característicos do gênero oposto. Já a heterossexualidade compulsória faz com o que o gênero não seja apenas relativo à identidade, como também a quem o desejo sexual de cada um se direciona. Dessa forma, a raiz do sexismo e da homofobia seria a mesma. Por fim, há a coerção da sexualidade feminina, que facilita as trocas fazendo com que esta corresponda aos desejos daqueles que detêm o poder (RUBIN, 1993). A historiadora inglesa Joan Scott inseriu-se com destaque no debate sobre o que é gênero com o seu artigo “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”, publicado em 1989. Nele, Scott propõe que relações de gênero sejam compreendidas levando em conta os seus contextos históricos e sociais próprios. Com base na crítica ao determinismo biológico, ela entende que não é necessário 27 encontrar uma “causalidade geral e universal” (SCOTT, 1989, p. 20) da desigualdade de gênero, mas uma explicação significativa, tanto da formação dos sujeitos “masculinos” e “femininos” quanto das organizações sociais em que se inserem. Além disso, Scott considera importante “substituir a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado por alguma coisa [...] próxima do conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso” (SCOTT, 1989, p. 20). Ou seja, ao invés de se pensar em um poder único responsável pela desigualdade, é mais adequado investigar os diversos “poderes” existentes nas relações interpessoais e entendê-los de acordo com o contexto dessas relações. Scott também critica o binarismo de gênero, presente em várias das teorias sobre a desigualdade de gênero. Esse fenômeno consiste na construção social de uma oposição binária entre masculino e feminino e entre comportamentos, personalidades e inclinações de homens e mulheres, perpetuada como um “aspecto permanente da condição humana” (SCOTT, 1989, p. 17). Joan Scott sustenta que o binarismo de gênero traz consigo uma visão hierárquica que impõe o masculino como superior. Para ela, as análises sobre desigualdades de gênero deveriam questionar essa oposição, pois tomá-la como natural significa endossar a ideia de que o homem seria hierarquicamente superior à mulher. Quando não se aceita o binarismo de gênero como natural, é possível compreender melhor os arranjos de gênero presentes em outros períodos e outras culturas. A antropóloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí mostra que a cultura yorubá, por exemplo, não corresponde ao pressuposto de que as culturas “organizam seu mundo social segundo uma percepção dos corpos humanos [...] como macho e fêmea” (OYĚWÙMÍ, 1998, p. 1053). A base da organização social yorubá é a idade relativa: por exemplo, os seus pronomes não são flexionados por gênero, e, sim, por idade, indicando quem na conversa é mais velho ou mais jovem. Há outras sociedades que possuem três, quatro ou mais gêneros, aos quais são atribuídos significados distintos dos da cultura ocidental. Os mähü do Havaí podem ser homens, mulheres ou pessoas de “gênero indeterminado” (LLOSA, 2010). Os dineh do sudoeste americano possuem quatro gêneros: mulher feminina, homem feminino, mulher masculina e homem masculino (ESTRADA, 2011).Já nas culturas Zapotec, do sul do México, é comum a existência das muxes: vistas como um terceiro gênero (CHIÑAS, 1995), são pessoas que foram consideradas homens no nascimento e que se vestem e se comportam de acordo com padrões tradicionalmente percebidos como femininos. A partir das críticas ao determinismo biológico e ao binarismo de gênero, Scott aponta quatro elementos que devem ser levados em conta em qualquer estudo que se proponha a investigar o papel do gênero nas relações sociais. O primeiro é o conjunto de símbolos disponíveis culturalmente, que evocam múltiplas e contraditórias representações simbólicas sobre gênero. O segundo elemento são os conceitos normativos, que prescrevem determinadas interpretações daqueles símbolos e opõem – de forma binária – a ideia de masculino e feminino. 28 Tais normas costumam ser adotadas pela sociedade como se fossem consensos. É possível tomar como exemplo a representação feminina na Bíblia católica: Eva e Maria são consideradas alegorias – símbolos culturalmente disponíveis – sobre o caráter da mulher mesmo que tenham significados opostos. Enquanto Maria é vista como pura e santificada, Eva é vista como impura e pecadora. Embora os papéis exercidos por cada figura na mitologia católica pudessem ser interpretados de outra forma, foi essa a interpretação que se consolidou historicamente, principalmente pelo papel exercido pela Igreja Católica. Ao fixar uma interpretação como “correta”, cria-se um conceito normativo que, por oposição, nega a possibilidade de interpretações alternativas, vistas como “erradas”. O terceiro elemento listado pela autora é a permanência da representação binária dos gêneros: isto é, a história é interpretada socialmente de forma a sugerir que os papéis de gênero vigentes em um dado momento seriam naturais e imutáveis. Um exemplo é a prescrição da “restauração do papel ‘tradicional’ das mulheres, supostamente mais autêntico, embora haja na realidade poucos antecedentes históricos que testemunhariam a realização inconteste de tal papel” (SCOTT, 1989, p. 22). Ou seja, a história é interpretada de forma a sugerir que as mulheres sempre desempenharam o mesmo papel, mesmo que existam inúmeras evidências que desmintam essa visão. Por exemplo, Williams (2000, p. 21) comenta que, antes do século XIX, era comum que mulheres desempenhassem funções hoje consideradas masculinas: elas trabalhavam como barbeiras, açougueiras, sapateiras, ferreiras e mestres-cervejeiras. Por fim, o quarto e último elemento é a identidade subjetiva das pessoas, as quais são construídas não sempre da mesma forma, mas a partir de relações sociais que se dão historicamente, relacionadas a determinadas “atividades, organizações sociais e determinadas representações culturais” (SCOTT, 1989, p. 1068). Ou seja, “sentir-se”, ou considerar-se, “homem” ou “mulher” não é algo que depende de um desenvolvimento psicológico universal aos seres humanos de cada sexo, mas das relações sociais específicas travadas entre eles. Com base nessas observações, Scott propõe a sua própria definição sobre o que é gênero. Par ela, gênero é “elemento constitutivo de relações sociais” e categoria utilizada para “significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p. 20). Ou seja, de um lado, por meio de interações sociais, são construídas percepções sobre gênero. Estas são então usadas para dar sentido àquelas mesmas interações. De outro lado, o segundo papel desempenhado pelo gênero está ligado aos conceitos normativos criados sobre as percepções acima. Com isso, a associação “masculino-superior, feminino-inferior” é estendida analogicamente a outros contextos, ainda que pouco relacionados a gênero. Em outras palavras, se a diferença sexual entre homens e mulheres é concebida em termos de dominação e de controle, contextos que também envolvem situações de poder são tratados como se envolvessem relações entre feminino e masculino. 29 Na sociedade ocidental, por exemplo, a força e a autoridade foram historicamente identificadas como masculinas, enquanto os inimigos e a fraqueza são associados ao feminino: A articulação do conceito de classe no século XIX baseava-se no gênero. Quando, por exemplo, na França os reformadores burgueses descreviam os operários em termos codificados como femininos (subordinados, fracos, sexualmente explorados como as prostitutas), os dirigentes operários e socialistas respondiam insistindo na posição masculina da classe operária (produtores fortes, protetores das mulheres e das crianças). Os termos desse discurso não diziam respeito explicitamente ao gênero, mas eram reforçados na medida em que faziam referência a ele. A codificação de gênero de certos termos estabelecia e “naturalizava” seus significados” (SCOTT, 1989, p. 26-27) Contudo, a autora mostra que as nossas ideias preconcebidas sobre gênero estão sujeitas a constantes disputas políticas e reformulações na história. Reconhecer interpretações alternativas historicamente negadas e reprimidas desse conceito ajuda a questionar os sensos comuns e estereótipos construídos sobre conceitos normativos. Da mesma forma, o surgimento de novos símbolos culturais pode mudar os significados até então atribuídos às relações de gênero. Para ela, tais questionamentos farão emergir uma história que oferecerá novas perspectivas a velhas questões (por exemplo, como é imposto o poder político, qual é o impacto da guerra sobre a sociedade), redefinirá as antigas questões em termos novos, [...] tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada no passado e nossa própria terminologia (SCOTT, 1989, p. 29). Para Joan Scott, a utilização do gênero como categoria de análise histórica sempre traz consigo um caráter político: [E]ssa nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre as estratégias políticas feministas atuais e o futuro (utópico) porque ela sugere que o gênero tem que ser redefinido e reestruturado em conjunção com a visão de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas também a classe e a raça (SCOTT, 1989, p. 29). 30 Até o momento, as duas autoras mencionadas acima – Gayle Rubin e Joan Scott – trabalharam com a distinção clássica entre sexo (natural) e gênero (socialmente construído). Embora elas não considerem o sexo como um dado biológico universal e irreversível, essa distinção continua sendo bastante utilizada nos seus textos fundamentais. A filósofa Judith Butler, por sua vez, vai além e procura desconstruir a dicotomia sexo-gênero. No seu livro “Problemas de gênero” (1990), ela afirma que o próprio sexo é socialmente construído. Para Butler (2003, p. 25), “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado [...] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Embora tenha sido pioneira ao aprofundar essa discussão em vários aspectos, as ideias de Butler se inserem em uma discussão iniciada anteriormente. Além do tratamento relativamente incipiente dado à natureza da dicotomia sexo-gênero por Gayle Rubin, Joan Scott e outras teóricas feministas, é importante chamar atenção ao filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). No seu livro “História da sexualidade” (1976), Foucault analisou “os modos pelos quais o sexo e a sexualidade são construídos ao longo do tempo e das culturas” (SALIH, 2012, p. 19). Além disso, é importante citar a obra de Eve Sedgwick (1950-2009), “Epistemologia do armário”, lançada em 1990, que levanta discussões similares. De obras como a de Sedgwick e de Butler surgiu o que se chama de teoria queer: uma “aliança (às vezes, incômoda) de teorias feministas, pós-estruturalistas e psicanalíticas que fecundavam e orientavam a investigaçãoque já vinha se fazendo sobre a categoria do sujeito” (SALIH, 2012, p. 19). A palavra queer originalmente significava “estranho” ou “esquisito”, e era usada como ofensa dirigida a pessoas homoafetivas. A teoria e o movimento LGBT retomaram o termo como forma de identificar de pessoas consideradas pela sociedade como “subversivas” devido à sua expressão de gênero distinta daquela socialmente prescrita. Salih (2012, p. 20) distingue a teoria queer de outros campos da seguinte forma: Enquanto os estudos de gênero, os estudos gays e lésbicos e a teoria feminista podem ter tomado a existência de “o sujeito” (isto é, o sujeito gay, o sujeito lésbico, a “fêmea”, o sujeito “feminino”) como um pressuposto, a teoria queer empreende uma investigação e uma desconstrução dessas categorias, afirmando a indeterminação e a instabilidade de todas as identidades sexuadas e generificadas. Portanto, Butler, uma das mais proeminentes teóricas queer, rejeitou o essencialismo – a suposição de que a identidade humana é fixa e possui alguma “essência” primordial – e colocou-se, assim como Rubin e Scott, dentro da tradição construtivista dos estudos sobre gênero. O seu objetivo, contudo, não é encontrar os motivos da opressão da mulher a partir da investigação 31 antropológica, como Rubin, ou a partir do estudo da história, como Scott: a ideia aqui é descrever os processos pelos quais o discurso e a linguagem constroem a identidade dos indivíduos. Para fazer essa descrição, Butler empresta o método de análise “genealógica” de Foucault.8 Analisar o sujeito por meio dessa lente significa considerá-lo não como imutável, mas, sim, como um ser dinâmico, criado a partir de instituições, discursos e práticas em determinados contextos e situações específicos, e mais: partindo da premissa levantada anteriormente por Beauvoir de que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, “ser mulher” (o gênero) não seria algo que “somos”, mas, sim, algo que “fazemos” (BUTLER, 1990, p. 25). O gênero, visto dessa forma, é um processo que não tem origem nem fim: é um ato ou sequência de atos – um “fazer” – que ocorrem necessária e continuamente, como uma performance em um palco teatral. Contudo, isso não significa que essa performance seja realizada segundo a livre escolha do “ator”: pelo contrário, esses atos são repetidos no interior de um quadro com regras bastante rígidas (BUTLER, 1990, p. 33), que determinam quais performances serão aceitas e quais serão rejeitadas socialmente. O gênero, portanto, deixa de ser uma elaboração da cultura sobre algo natural, e passa a ser colocado pela autora como um conjunto de normas relativas à performance de um corpo, necessárias para que uma pessoa seja culturalmente viável e inteligível e legitimada pela afirmação de um sexo biológico anterior à cultura. Para ela, “o gênero aparece como uma pré-condição para produzir e sustentar uma humanidade que se possa decifrar” (BUTLER, 2006, p. 14). Há uma “ordem compulsória”, ou “matriz heterossexual”, que se reproduz socialmente de forma a parecer natural, baseada na imposição da concordância entre sexo, gênero e orientação sexual, com a heterossexualidade prescrita como “padrão” a todos. Segundo essa ordem, quando um bebê nasce, a presença de um pênis, por exemplo, determinaria a sua inclusão em uma categoria, a “masculina”, que determina o pertencimento a um determinado gênero (“homem”) e a aquisição de uma orientação sexual específica (heterossexual). Essa ordem determina um “cenário constritivo” para se fazer gênero: Considerar o gênero como uma forma de fazer, uma atividade incessante performada, em parte, sem o saber e sem a própria vontade, não implica que seja uma atividade automática ou mecânica. Pelo contrário, é uma prática de improvisação em um cenário constritivo. Ademais, o gênero propriamente dito não se faz sozinho. Sempre se está fazendo com ou para outro, ainda que o outro seja só imaginário (BUTLER, 2006, p. 13, tradução nossa). 8 Nas suas palavras: “a genealogia não é a história dos eventos, mas a investigação das condições de emergência [...] daquilo que é considerado como história: um momento de emergência não passa, em última análise, de uma fabricação” (BUTLER apud SALIH, 2012, p. 21). 32 A partir da crítica dos conceitos de sexo e gênero, a autora questiona o “caráter pré-discursivo do sexo”, dizendo que toda a nossa compreensão sobre o que é sexo também é socialmente construída por meio de discursos que afirmam certas coisas como “verdades universais”. Com isso, Butler desenvolve um raciocínio de Joan Scott, apresentado acima, de que “os significados atribuídos às diferenças biológicas são socialmente construídos”. Para Butler, a própria ciência é uma das principais fontes de atribuição de significados aos corpos, construindo discursos para encaixá-los nas categorias binárias de masculino e feminino de forma inadequada: “Uma razoável porcentagem de dez por cento da população tem variações cromossômicas que não se encaixam exatamente nos conjuntos de categorias XX-fêmea e XY-macho” (BUTLER apud SALIH, 2012, p. 88). O sexo, portanto, também é uma construção, feita a partir de discursos que não são questionados também porque são dotados de autoridade científica. Contudo, para Butler, há uma saída política para se demonstrar que o sexo é tão construído por discursos quanto o gênero: ambos podem ser performados não como verdade, mas como paródia. A paródia revela como sexo e gênero reproduzem-se por ações reiteradas socialmente e por meio da imitação, e que não há uma natureza masculina ou feminina para além dos atos de homens e mulheres. O exemplo mais conhecido de paródia do sexo e do gênero é o caso da prática do drag, que revela, implicitamente, a estrutura imitativa do próprio gênero – bem como a sua contingência [...] no lugar da lei da coerência heterossexual, vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma performance que confessa a sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural da sua unidade fabricada (BUTLER apud SALIH, 2012, p. 93). Esse tipo de performance, para Butler, tem o potencial político de subverter a “matriz heterossexual”, trazendo à tona o seu caráter histórica e socialmente variável. Butler conclui “Problemas de gênero” frisando o que ela considera a tarefa primordial do feminismo: descrever performances de gênero consideradas subversivas, ininteligíveis e impossíveis, além de mostrar como, na verdade, elas são prova de que a expressão de gênero tem inúmeras possibilidades: A tarefa aqui não é celebrar toda e qualquer nova possibilidade [...], mas redescrever as possibilidades que já existem, mas que existem dentro de domínios culturais apontados como culturalmente ininteligíveis e impossíveis. Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga. As configurações culturais do sexo e do gênero poderiam 33 então proliferar ou, melhor dizendo, sua proliferação atual poderia então tornar-se articulável nos discursos que criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e denunciando sua não naturalidade fundamental. Que outras estratégias locais para combater o ‘não inatural’ podem levar à desnaturalização de gênero como tal? (BUTLER, 2003, p. 213-214). Gênero e sexualidades Depois de feito esse percurso sobre a evolução do conceito de gênero, vale ressaltar a sua diferenciação com a sexualidade. Muitos consideram que a sexualidade é algo “dado” pela natureza, inerente ao ser humano (LOURO, 2000). Tal concepção usualmente se pauta no corpo e na suposição de
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