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Da_Utopia_a_Exclusao_vivendo_nas_ruas_em

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Mareei Bursztyn
(o rios Henrique Araújo
DA UTOPIA,
'"
A [XC lUSA O
Vivendo nos ruos em Brosílio
Garamond / codep/an
@ 1997, Mareei Bursztyn e Carlos Henrique Ferreira de Araújo
Direitos cedidos para esta edição à
Editora Garamond Ltda.
Rio de Janeiro
Telefax (021) 552-3527
E-mail: garamond@ism.com.br
Em co-edição com a Codeplan
Revisão: Alberto Almeida
Editoração eletrônica: Manuela Roitman e Ronaldo Naiff
Capa: Tira-Linhas Studio,
sobre fotos de Renato de Araújo
Fotolitos: Fotohaus Fotografia e Artes Gráficas Ltda
Bursztyn. Mareei
Da utopia à exclusão: vivendo nas ruas em Brasília / Mareei Bursztyn,
Carlos Ilenrique Ferrcira de Araújo - Rio de Janeiro: Garamond; Brasília:
Codeplan, 1997
I. Sociologia 2. Brasilia - aspectos socio-econômicos 3. Migrantes
I. Araúio, Carlos Henrique Ferreira de 11.Titulo
CDD-306
rodo.\' (1,"'"direitos reservados. A reprm/uçÔo J1(IOoUlori::ada desta puhhcuçÔo, por qualquer
//leIO, .H~la ela 10/01 ou {Jorcial, COJ1Slilui \'lOlaç'Ôo da lei 5.988.
" (..) apesar de todos os nossos
surpreendentes sucessos no campo
do progresso econômico, de nossa
indústria pesada, de nossa
indústria de automóveis, de
Brasília e de outras metas
surpreendentes alcançadas, ainda
somos um país de fome, somos uma
das grandes áreas da geografia
universal da fome. "
Josué de Castro
" (..) o único ponto de tangência
entre eles e o mundo dos incluídos
está no lixo. A sobra de empregos
temporários e a sobra das casas,
dos restaurantes, dos
supermercados.. e a sobra
monetária, nas esmolas aos
pedintes e nas gorjetas aos que
cuidam dos carros (..)"
Cristovam Buarque
Agradecimentos
Várias pessoas colaboraram na materialização
desse trabalho. Alguns leram partes do texto
e apresentaram valiosas sugestões. Outros,
prestaram depoimentos ou deram infor-
mações relevantes. A eles agradecemos a
colaboração e com eles compartimos os
créditos pelos acertos. Mas as eventuais
falhas são de inteira responsabilidade dos
autores.
Cabe também um agradecimento ao CNPq,
que apóia o projeto de pesquisa sobre
Desmantelamento do Estado no Brasil,
coordenado por Mareei Bursztyn. A
sensibilidade dos responsáveis por aquela
instituição de fomento, que aceitaram a
justificativa para inserir o presente estudo -
não previsto inicialmente - no escopo do
projeto original, foi decisiva.
Os bolsistas de iniciação científica Dijaci
David de Oliveira e Ernandes B. Be1chior
tiveram importante papel na condução da
pesquisa de campo. A qualidade dos dados
levantados se deve a seu esforço e dedicação.
Paulo Roberto Tavares colaborou no uso
do software de tratamento estatístico dos
dados.
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Prefácio
A DIASPORA DA MODERNIDADE
Cristovam Buarque.
a final do século está apresentando diversos sustos pa-
ra quem conhece os sonhos previstos para o ano 2.000.
Entre estes, poucos surpreendem tanto quanto a existência
de centenas de milhões de nômades perambulando por
estradas, entre ruas, cidades e mesmo continentes. São os
modernômades.
a sedentarismo foi a primeira das opções modernizado-
ras da civilização. No ano 2.000, símbolo da realização
civilizatória, temos um número muito maior de nômades do
que há cem séculos, quando o homem começou sua marcha
para a civilização.
Entre o Zaire e Ruanda, entre a África e a Europa, entre o
México e os EUA, do campo para a cidade ou dentro de
qualquer grande cidade do mundo, famílias se locomovem
sem um lugar onde ficar.
a final do milênio é um tempo de pessoas sem endereço.
Com a diferença de que agora a migração é provocada
pela riqueza que atrai os pobres esquecidos no mundo e pela
própria criação da riqueza que ao chegar expulsa, em vez
de conter os habitantes das regiões esquecidas. Na maior
parte dos casos, a migração não é provocada pela atração do
.
Autor entre outros, do livro A Revolução nas Prioridades - da modernidade-técnica à
nJodernidade-ética c A Cortina de (Juro - os sustos do final do século e um sonho para
()
prÓximo, ambos publicados pela Editora Paz e TeITa.
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Brasília capital
desenvolvimento em regiões distantes, como entre os EUA
e o México, mas sim pela expulsão que o desenvolvimento
provoca nas regiões em que ocorre.
No final do século, o desenvolvimento é excludente, restrito
a apenas uma parte da população; e é, portanto, um elemento
gerador de migração forçada. Dez mil anos depois de come-
çar pela revolução sedentária, o desenvolvimento atual cria
nômades: pelas grandes obras que desalojam, pela automação
que desemprega, pela agricultura modernizada.
Brasília é um símbolo deste século que se termina e também
um exemplo dos problemas da migração moderna, um caso
típico da convivência do moderno com o nomadismo. Por
isso, Da utopia à exclusão - Vivendo nas ruas em Brasília,
de Carlos Henrique Araújo e MareeI Bursztyn, é um livro
exemplar dos tempos atuais.
A obra mostra a realidade dessa cidade-símbolo do
progresso brasileiro, como um local em que os modernômades
vivem, perambulando, como há milhares de anos outros
seres humanos faziam para sobreviverem. Mas, diferentemente
dos nômades antigos, os modernômades são produzidos pela
modernidade e vivem da modernidade. Vieram para
Brasília expulsos pela modernização em suas localidades de
origem, atraídos pela modernização que fez a nova capital
- mas nela não se integram socialmente, passando a viver
do lixo que a modernidade produz.
Um recente livro de Flávio Paiva, A odisséia dos cabeça-
chatas já antecipava isso, ao mostrar a viagem de um grupo de
retirantes que vão do Ceará para São Paulo nos novos
anos 90. Mas, diferentemente dos anos 50, 60 e 70, já não
encontram emprego e regressam, num ônibus que vai se
deteriorando pelo lixo interno que os viajantes pobres vão
produzindo com as cascas de frutas, as feles de crianças
e de doentes. No desenvolvimento globalizante e excludente
dos tempos atuais, o velho "pau-de-arara" é substituído pelo
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Da utopia à exclusão
ônibus moderno, mas o ônibus não é mais um meio de
transporte para um mundo melhor: ele é o próprio mundo
dos excluídos, circulando à margem do progresso que serve
apenas a uns poucos.
Da utopia à exclusão é um livro básico para se entender
de que maneira a modernização ocorre nesta cidade-símbolo
da modernidade brasileira, mas é um livro que nos toca
pelo realismo como a realidade é descrita. Diferentemente
da frieza com que outros cientistas tentam mostrar a reali-
dade, aqui os dois autores mostram o real como ele ocorre. E
mostram uma nova realidade do desenvolvimento, da
modernização.
Até recentemente, os migrantes buscavam não apenas
a chance, mas o conseqüente emprego e renda que os
novos centros de desenvolvimento naturalmente ofereciam.
Agora, em Brasília, nossos migrantes já não vêm em busca
de emprego e renda que eles sabem que não vão conseguir.
Vêm em busca do lixo da modernidade.
Estamos diante da primeira geração de migrantes claramente
excluídos: os modernômades, que migram sabendo que
continuarão nômades mesmo depois de chegarem aos seus
destinos. Migrantes permanentes que viverão do que sobra
na modernidade: conscientes de que serão sempre excluídos,
só que excluídos sem fome, graças à comida que encontram
no lixo, graças à venda de resíduos que os modernos jogam
fora.
São modernômades - nômades criados pela modernidade
- e lixíveros - porque vivem do lixo dos sendentários da
modernidade.
Mas, Da utopia à exclusão não fala somente da exclusão,
fala também da esperança ainda viva da utopia.
Como raramente se vê hoje em dia, o livro propõe
alternativas. Entre estas, surge a idéia simples de que a
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Brasília capital
Bolsa Escola, já adotada dentro de Brasília, seja também
adotada nas cidades em que se origina o fluxo dos mo-
dernômades.
Como é hoje adotada em Brasília, a Bolsa Escola serve
como elemento incorporado r dos excluídos ao desenvovi-
mento local, mas não resolve o principal problema da
exclusão criada pela expulsão na origem. A aplicação da
Bolsa Escola não apenas nas cidades em que a moder-
nização e seu lixo atraem os pobres, mastambém nas cidades
desses pobres, pode ser o caminho para um programa de
desmigração, como define MareeI Bursztyn, em todo o Brasil.
Esta obra pode vir a ser um clássico da nova realidade
do desenvolvimento globalizante excludente do Brasil e do
mundo de hoje, e pode ser também um clássico do desen-
volvimento das ciências sociais no mundo, com autores sensíveis,
comprometidos e que apresentam soluções, não apenas análises.
Por tudo isso, é um Iivro que deve ser lido por todos: os que
analisam a realidade da exclusão e aqueles que, descontentes
com ela, ainda não perderam a esperança na utopia.
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Apresentação
Quem circula por Brasília não consegue deixar de ver que nem
todos na capital são funcionários e, muito menos, mara-
jás. Além de prédios públicos e servidores, a cidade exibe
também cenas típicas das grandes cidades brasileiras, que não
aparecem nos telejornais, quando estes apresentam diariamente
notíciários políticos exibindo ao fundo a arquitetura monumen-
tal da Praça dos Três Poderes. São pobres, muito pobres, que
migraram em busca de melhores condições de vida. Convivem
com a cidade moderna mas vivem num mundo bem diferente.
O presente estudo surgiu por acaso. Seus autores, como
qualquer cidadão atento do Distrito Federal, convivem
diariamente com a dualidade social que também se manifesta
na capital do País: por um lado, o grupo com (com casa, com
emprego, com comida, com transporte...); por outro, os sem
(sem teto, sem comida, sem documento, sem cidadania).
Numa conversa sobre o desmantelamento do aparelho
institucional do Estado brasileiro, surgiu a seguinte inda-
gação: será que o fato de Brasília ser a capital serve de atrativo
às famílias que deixam o campo e o interior do país? Em
outras palavras, até que ponto existe uma identidade entre a
condição de sede do poder e a perspectiva de se conseguir
amparo governamental, seja ele sob a forma de emprego, seja
via auxílio de algum político, coisa tão comum na cultura
cIientelista rural?
A idéia-chave era, portanto, entender a possível atrati-
vidade que o Estado exerce no imaginário das populações
migrantes de baixa renda. Conforme a idéia inicial foi evo-
luíndo, chegou-se à dúvida quanto ao poder de atração que
estariam exercendo as boas condições de infra-estrutura de
Brasília. Afinal, mais de um terço dos atendimentos hospita-
lares na rede pública são de não-residentes no Distrito Federal.
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Brasília capital
Pesou, também, na montagem da pesquisa, a busca de
entendimento das condições de vida na origem dos migrantes
que vivem nas ruas de Brasília. Em que medida a situação
materialmente tão frágil no Distrito Federal estaria sendo
melhor do que antes? Haveria um arrependimento quanto à
decisão de migrar?
Conforme as idéias foram se delineando e as informações
sendo levantadas, novas questões se apresentaram. Em última
instância, era preciso entender o ambiente e a lógica da recriação
do Brasil real (com todas as suas contradições) justamente
num contexto de construção de uma realidade ideal
pré-concebida. Ou seja: como o fenômeno da exclusão social
encontrava terreno fértil para desabrochar no seio de uma utopia
construída?
O estudo está organizado em duas partes. A primeira aborda
a Brasília capital, caracterizando sua concepção, dinâmica
populacional, lógica econômica e a convivência de tal realidade
com o circuito da "economia política do lixo". A segunda
parte - Osperambulantes na capital- apresenta os resultados
da pesquisa de campo realizadajunto a famílias de migrantes
que vivem nas ruas de Brasília.
Embora não houvesse uma pretensão maior do que entender
a realidade objeto do estudo, há conclusões evidentes. A mais
importante é, sem dúvida, a constatação de que a população
em questão se contitui de "refugiados" da ausência de uma
reforma agrária. E fica claro que não há solução em nível local,
nas cidades de destino, que consiga ser mais do que palia-
tivo ao problema: é preciso uma política de âmbito nacional.
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Parte I
~~~~íll~ ~~~I1H
De capital da esperança...
Brasília já nasceu sob uma aura de sonho. O país vivia um
singular período de expansão econômica, que se expres-
sava em crescimento do parque industrial e dos níveis
salariais. Capitais de risco internacionais aqui aportavam,
conduzindo o Brasil ao seleto clube das nações produtoras
de automóveis. Expandia-se a rede de infra-estrutura viária
e energética.
Um otimismo enorme contagiava a população, que vivia
intensa fase de aumento da auto-estima e confiança no futuro.
Um futuro tão grandioso quanto o próprio país.
Nada simbolizaria tão bem o momento quanto a cons-
trução de uma nova capital, no interior, capaz de tornar
realidade a integração das diferentes e isoladas regiões.
E era preciso algo bem monumental, que chamasse a atenção
do mundo para o nosso progresso. Ali seria erguida a
Capital da E\perança, berço de um Brasil moderno e
próspero. Era a materialização do sonho do desenvolvi-
mentismo.
O projeto vencedor do concurso para o desenho da cidade
não poderia ter sido mais expressivo do momento e do
contexto. O urbanismo racional de LÚcio Costa e o ousado
desenho arquitetônico de Oscar Niemeyer traduziam uma
resposta radical frente à realidade cultural e à estrutura social
brasileiras. Coerentes com práticas de desenho urbano que se
delinearam ao longo da primeira metade do século XX, a pro-
posta de Brasília configurava uma nova concepção de cidade,
mais humana, igualitária, previsível: uma utopia social urbana.
Nela, a população seria de funcionários pÚblicos,
bem alojados em locais próximos às repartições. O
motorista residiria em apartamento funcional, a pou-
ca distância do ministro ou deputado a quem serviria.
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Brasília capital
AerofÓtogrametria da Construção do Plano Piloto (Geofoto) - 1957-1958"
Acervo ArPDF
A prosperidade do momento não inspirava preocupações
com desajustes do tipo falta de empregos, empobrecimento,
inexistência de um sistema econômico que servisse para
produzir os bens necessários ao consumo local. A mão invisível
do Estado parecia poder garantir o ajuste de qualquer
deficiência do mercado.
Mas a realidade de Brasília não poderia estar isenta de refletir
a própria realidade do Brasil: um país com graves impasses
agrários, que já geravam forte fluxo migratório para as grandes
cidades.
A história de Brasília está diretamente associada à história
de seus imigrantes. E estes, desde a epopéia da construção,
não são apenas funcionários.
Desde o princípio, um grande fluxo de trabalhadores
desempregados vem desembarcando diariamente no Distrito
Federal, à procura de melhores condições de trabalho e renda.
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Da utopia à exclusão
No início da construção da Capital da Esperança, os
trabalhadores podiam encontrar emprego na construção civil,
fomentada pelo desenvolvimentismo da era de JK. Era preciso
construir a nova capital em menos de cinco anos. Havia trabalho
para todos os que chegassem. Dados históricos indicam,
inclusive, que o salário médio pago ao candango era o mais
alto de todo o país.' Brasília, efetivamente, constituiu sua
história como um pólo de atração: de trabalhadores, que
buscavam empregos na construção civil, e de funcionários,
que eram compensados pela "dobradinha" (salários em dobro),
independentemente de serem pragmáticos ou idealistas?
Uma boa parte dos candangos que participaram da
construção permaneceu em Brasília. E foram protago-
nistas da ocupação de áreas não previstas no plano ori-
ginal. A vila Paranoá é uma delas. O mercado de trabalho
sempre foi bom: um amplo conjunto de operários da cons-
trução foi absorvido pela Novacap, empresa constituída
para a construção da cidade; outros, encontraram opor-
tunidades na construção civil, atividade sempre florescente.
Cmu/aflgo e famélia Constnrifldo Moradia - /95ó-/957. Acer\'o ArPOf
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Brasilia capital
A nova cidade, depois de construída e inaugurada,
concretizou, pelo menos até aquele momento, a marcha para
o oeste, simbol izando a modernização das antigasestruturas
econômicas e políticas do Brasil. Brasília passou a ser símbolo
de oportunidades. A Capital representou para os trabalhadores
e suas famílias, vindos de diversas partes do país, a chance
efetiva de melhoria de suas condições gerais de vida.
O candango dos tempos pioneiros da construção foi
ficando na nova capital. Brasília dava sinais que não seria a
capital de 500 mil habitantes, como havia sido idealizada
pelos planejadores urbanos. E foi, aos poucos, tornando-se
uma síntese do país, reproduzindo as mazelas e contradições
do mau desenvolvimento nacional e comprovando que as
utopias não se constroem a partir apenas de estruturas físicas
e desenhos ideais.
A solução das Cidades Satélites foi se impondo aos poucos.
Já emjunho de 1958, antes mesmo da inauguração, o Governo
de Israel Pinheiro providenciou a retirada da invasão Sarah
Kubitschek, ao lado da Cidade Livre, e construiu Taguatinga.
Segundo dados da época, a invasão era uma cidade operária
com mais de 15 mil habitantes. Ceilândia foi construída no
Governo de Hélio Prates da Silveira, em março de 1971. Os
seus habitantes vieram de invasões que proliferavam no
Plano Piloto, como a invasão do IAPI, vilas Tenório,
Esperança, Bernardo Sayão e Colombo e os morros do Urubu
e do Querosene.
Isto teria sido apenas o começo. Com o surgimento de
novas invasões, novas satélites foram construídas. NÚc!co
Bandeirante, Sobradinho, Gama, Planaltina, Brazlândia, Guará
e Cruzeiro são o retrato da expansão do Distrito Federal, do
fluxo migratório e do crescimento natural da Capital Federal.
Porém, o problema de invasões nunca cessou. Mesmo após
a criação das cidades ao redor do Plano Piloto, o nÚmero de
imigrantes pobres aumentava a eada dia, constituindo grandes
20
Da utopia à exclusão
lnvasÜo do lAPl, no NÚcleo Bandeirantes - 1966. Acervo ArPDF
agrupamentos populacionais, como a favela do CEUB, na
década de 80. Novas soluções precisavam ser encontradas.
Era preciso estabelecer programas mais eficazes, capazes de
dar solução definitiva e planejada ao eterno problema das
migrações. Nada foi feito de criativo e responsável. Mais
cidades foram construídas, agora não mais satélites, mas os
precários aglomerados habitacionais, intitulados assentamentos.
Feitos de maneira aleatória e sem planejamento urbano de longo
prazo, neles milhares de pessoas foram assentadas em terrenos
cedidos pelo Governo de Joaquim Roriz, nos anos de 1988 a
1994. Sem critérios rígidos e com claro interesse eleitoreiro
foram distribuídos lotes e constituídos assentamentos no
Distrito Federal, podendo-se citar Samambaia, Santa Maria,
Riacho Fundo e São Sebastião.
Independentemente da forma como essas soluções foram
sendo implantadas, o fato é que muitos, na esperança de
encontrar melhores condições de renda e, até mesmo,
simplesmente, de sobreviverem, foram migrando para o
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~--
Brasília capital
Operação Retorno de Migrantes em Brasília - 1964. Acervo ArPDF
Distrito Federal. A capital do país ainda está no imaginário
popular como a cidade da esperança. A distribuição de lotes
só veio a reforçar este mito, aumentando ainda mais o fluxo
migratório para Brasília.
Surge, então, um novo candango, que não mais constrói a
cidade e nem encontra emprego na máquina administrativa do
Estado. Seu papel reflete a dura realidade cotidiana da sobrevi-
vência num centro urbano onde as oportunidades no mercado de
trabalho formal se estreitam cada vez mais. Expulsos de suas teITas
pela fome, procuram Brasília em busca de uma situação melhor.
Mas encontram um mundo que lhes oferece um modo duro de
vida: vivem de pequenos biscates, do lixo e da l:xmdadeda população.
De agricultores, passam a ser catadores de lixo, sustentam seus
filhos com os despojos da população de consumidores. Sua dignidade
e amor próprio se vêem ameaçados. Moram debaixo de pontes,
quando conseguem lugar; senão, instalam-se onde podem.
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... a capital da Belíndia
No início dos anos 1970 o economista Edmar Bacha escreveu uma
célebre parábola sobre a situação brasileira. O reinado da Belíndia
representava, então, a fusão de uma Bélgica com várias Índias,
triste paradoxo do "milagre econômico" brasileiro, que gerava riqueza
para uma pequena parcela da população, mas que excluía dos trutos
do crescimento econômico a grande maioría.
Duas décadas e meia depois, o país ainda é credor de uma
brutal dívida social, que mantém boa parte dos brasileiros bem abaixo
dos patamares mínimos de pobreza. São os excluídos, miseráveis
que não têm acesso a bens e serviços básicos e nem ao mercado
de trabalho.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) utilizado pela
Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada (IPEA) indica o Distrito Federal
como a unidade da Federação com a maior renda per capita e o
melhor índice de escolaridade do Brasil. A capital da República
aparece em segundo lugar, perdendo apenas para o Rio Grande do
Sul e seguida por São Paulo, em termos de desenvolvimento humano.
Quem vive no Distrito Federal poderia gabar-se, de acordo
com os dados gerais, de viver em uma Unidade da Federação
comparável a países de primeiro mundo. No mundo da estatística,
o brasiliense (nato ou morador) desfruta de um alto grau, em
média, de qualidade de vida.
Contudo, qualquer quadro geral precisa ser visto com cuidado,
principalmente quando se trata de um quadro estatístico.
Nem todos os detalhes e nuanças da realidade podem ser
retratados por estatísticas gerais. A realidade é sempre mais
complexa do que os números. No caso brasileiro,
isso se torna mais que evidente. O Brasil é, definitivamente,
o país dos contrastes. Sua capital não foge a essa norma.
23
Brasília capital
Que os habitantes do Distrito Federal gozam de um bom
nível médio de qualidade de vida, não há dúvida. Contudo,
também, não há dúvida de que Brasília convive com bolsões
de miséria.
O Índice de Desenvolvimento Humano mostra graves
disparidades entre as diferentes Unidades da Federação.
Numa ponta, encontra-se o Distrito Federal, campeão em alfa-
betização de adultos e em renda per capita. Na outra, estados
como Alagoas, Piauí e Paraíba. O primeiro grupo tem nível de
desenvolvimento humano comparável ao da Bélgica. O outro,
pode ser classificado como uma Índia ou uma Suazilândia.
Convém, no entanto, chamar a atenção para a realidade
que se esconde por trás de tais dados. Uma anedota costuma
definir o economista como uma pessoa que tem os pés
no forno e a cabeça na geladeira mas acha que a tempe-
ratura média é boa. Ora, o uso de médias é, num país como o
Brasil, de relevância limitada. São tamanhas as discrepâncias
que corre-se o risco de cair no ilusionismo de falsas constata-
ções. A Belíndia está em toda parte, ainda que em algumas delas
a Bélgica seja mais notável que em outras e vice-versa.
A mobilidade espacial (leia-se migrações), aliada à circula-
ção de notícias sobre oportunidades em certos lugares e a
insustentabilidade da sobrevivência em outros locais, faz com que
haja, atualmente, uma simultaneidade, no tempo e no espaço, entre
'aBélgica e a Índia, em nossas cidades.
Brasília não foge à regra. É, sem dúvida, um paraíso para um
grande conjunto de famílias que habitam suas áreas mais nobres
(Plano Piloto e Lagos Sul e Norte). Mas nesse mesmo território
convivem com a pobreza extrema de outros brasileiros que
sobrevivem em condições piores que a média da Suazilândia.
São a população do lixo.
Nunca a metáfora da Belíndia foi tão real. E, sem dúvida,
não somos a Bélgica!
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Da utopia à exclusão
Em maio de 1996,realizamosuma pesquisacom 150famílias
de migrantes recém-chegados ao Distrito Federal (após 10 de
janeiro de 1995) e que vivem nas ruas, em tendas de plástico,
sob as pontes ou em abrigo público. Os resultados são
esclarecedores. Por exemplo, cai o mito de que a migração se dá
porque a cidade oferece forte atração, independentemente do
fato de que no campo não se morre de fome. O estudo revela
que o que leva esses excluídos a migrar é justamente a busca do
que comer noimediato. Ao chegarem a Brasília, sua maior
expectativa se limita ao que comer na próxima refeição.
Vivem da cata do lixo e, por isso mesmo, consideram que
Brasília é melhor do que o local de onde vêm. A pesquisa ajuda a
entender a lógica da migração, o imaginário sobre o Estado e seu
papel e a estratégia de sobrevivência dessa população mise-
rável. Seus resultados são analisados mais adiante.
Sem dúvida alguma, Brasília além de capital é uma boa
amostra do país e de seus contrastes. Um país onde convivem
uma Bélgica e uma Índia. A situação dos migrantes que
moram nas ruas do Distrito Federal é um exemplo de nossa
Índia brasiliense.
Ainda que políticas públicas de natureza social busquem
a reversão do quadro de exclusão social que se expressa
na dinâmica populacional da capital do País, os resultados
não podem ser atingidos no curto prazo. Na verdade, a própria
esfera de atuação dos governos locais se mostra limita-
da, na medida em que o problema tem sua lógica e origem em
nível nacional. A existência de fatores de "expulsão" demográ-
fica em certas regiões, paralelamente à inexistência de meca-
nismos efetivos que viabilizem a subsistência das populações
em seus locais de origem, constituem um vetor de migrações
permanentemente alimentado. E, o que é mais grave, a situação
é de tal forma complexa que, quando uma cidade-foco des-
sas migrações mostra soluções concretas e satisfatórias, a
tendência é o aumento do fluxo migratório em sua direção.
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Brasília: foco de migrações
o ritmo de crescimento da cidade sempre foi acelerado.
Em sua primeira década de vida, a população de Brasília cres-
ceu 285%, ou seja, uma média de 14,4% ao ano. Nos anos
1970 o crescimento médio anual foi de 8,1%, o que corres-
ponde a um incremento total, na década, da ordem
de 115,52%. Entre 1980 a 1991 a cidade teve sua população
aumentada em 36,06%. A população ideal estimada no
plano original de Brasília, que não deveria ultrapassar
os 500 mil habitantes, foi atingida já ao final da década
de 1960.
A redução no ritmo de crescimento verificada na última
década se explica, por um lado, pelo natural atingimen-
to de um porte estável, em termos de atividades estatais
que foram transferidas para a nova capital. Por outro lado,
deve-se também a uma certa mudança na orientação dos
fluxos migratórios, já ao final da década anterior, no rumo do
Mato Grosso e de Rondônia.
Mas há que se assinalar que a taxa global de crescimento
populacional do Distrito Federal deve ser entendida de forma
desagregada, segundo cada Região Adminsitrativa. Assim, o
Plano Piloto, que na época da inauguração concentrava 48%
da população, vai perdendo sua importância relativa, chegando
em 1991 com apenas 13,26%. Por outro lado, Ceilândia, que
nem existia na década de 1960,já reunia 22,75% da população
total do Distrito Federal em 1991 (Fonte: FIBGE).
E não foram só as cidades satélites, não previstas no plano
original, que tiveram crescimento acelerado. Também nas
franjas da Capital, na região do Entorno, o aumento da
população, que depende quase integralmente da dinâmica do
Distrito Federal, foi enorme. Luziânia, em Goiás, cresceu 159%
entre 1980 e 1991. As taxas dos municípios de Planaltina de
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Brasília 68.665 149.982 252963 265.264
<?ara 72.405 139.016 153687
Taguatinga 26.111 107.347 192.938 228.249
Brazlândia 9.592 22504 41.119
Sobradinho 8.478 39.458 69.094 81.521
Planaltina 2917 18.508 47.364 90.185
Paranoá 13.137 56.465
Núdeo Bandeirante 21.033 11.268 32285 47.688
Ceilândia 84.205 286.955 364.289
Guará 24.864 85.116 97.374
Cruzeiro 6.685 35.563 51.230
TOTAL 141.742 546.015 1.176.935 1.601.094 1.868.181
Fonte: Censos Demográjicos 1960, 1970, 1980, 1991 - F1BGE
* Estimativa Codeplan
27
Da utopia à exclusão
Goiás (Brazilinha) e Santo Antônio do Descoberto foram,
respectivamente, de 149% e 170% (Fonte: SICICodeplan; 1996).
A ocupação do Entorno se deu segundo um padrão intenso
e desordenado. Tal tendência refletia, por um lado, um processo
espontâneo de fuga às limitações do planejamento urbano da
capital e do elevado custo da terra; e, por outro lado, manifestava
o poder de atração representado pela infra-estrutura de serviços
públicos, muito melhor que a dos estados vizinhos, cujas lideran-
ças políticas tiraram proveito da cômoda situação de proximidade
de serviços públicos, sem ônus para seus respectivos governos.
A conclusão a que se chega é de que nos anos recentes o
foco das migrações foi se diluindo no rumo da periferia do
Plano Piloto, refletindo o próprio caráter dessas migrações:
cada vez menos pessoas engajadas no mercado de trabalho (e
no imobiliário) da capital; e cada vez mais uma população que
foi ficando à margem da dinâmica de "atração". Os novos
migrantes são, principalmente, os "expulsos" de outras regiões.
Figura 1: População do Distrito Federal, por Regiões Adminsitrativas
Brasília capital
o final da década de 1980 vai testemunhar uma profunda
mudança no padrão de migrações para o Distrito Federal. Se,
antes, havia uma certa lógica no crescimento da cidade, que se
dava ao mesmo tempo em que crescia (embora nem sempre
na mesma proporção) a oferta de empregos direta ou
indiretamente atrelada à dinâmica do aparelho de Estado,
inclusive na construção civil, agora isso não mais se verifica.
Desde o final dos anos 1970, no governo Figueiredo,já havia
começado um processo de restrição à contratação de novos
servidores públicos. E a construção da capital chegava,
finalmente, a um ponto tal, que seu crescimento passaria a se
dar num ritmo bem menos acelerado. Portanto, a perspectiva
era de que houvesse uma desaceleração no crescimento
populacional.
Mas isso não ocorreu no ritmo necessário. Mesmo com a
população nacional crescendo a taxas decrescentes e com a
redução das pressões demo gráficas sobre as grandes capitais'
do País, Brasília mostrou-se ainda como alvo de intenso fluxo
migratório.
A reiterada política de evitar uma reforma agrária no Brasil
que fosse capaz de manter o homem do campo no meio rural
foi parcialmente compensada, na década de 1970, pelos
mecanismos de canalização do êxodo rural para a ocupação
da Amazônia. Ainda que tal fluxo tenha, pouco tempo depois,
se convertido em fator de crescimento da taxa de urbanização
naquela região, ele serviu, de certa maneira, para inibir tanto a
luta pela reforma agrária quanto a pressão demográfica sobre
os grandes centros urbanos, que já vinham sofrendo com o
crescimento do desemprego e todas as suas conseqüências
negativas.
Mas o esvaziamento de áreas rurais tradicionais represen-
tava, como efeito colateral, uma perda de importância dos
mecanismos também tradicionais da política local. Currais
eleitorais se diluíam, numa migração difusa, que se perdia em
28
--
Da utopia à exclusão
grandes cidades - nas quais, aliás, crescia o voto contrário ao
regime militar.
Já na década de 1970, algumas pequenas cidades do interior
do Nordeste passaram a adotar práticas, respaldadas em
políticas públicas federais, que buscavam reter a população
nos próprios municípios de origem (ainda que não mais no
meio rural), evitando o esvaziamento de currais eleitorais e a
pressão sobre as grandes cidades. O instrumento para isso era
a distribuição de terras públicas nas pequenas cidades do
interior, paralelamente à adoção de práticas de ajuda à
construção, em processo que, inevitavelmente, serviria para
resgatar velhas práticas coronelistas, agora travesti das com
roupagem urbana. Evidentemente, só disporiam de fundos para
tal tipo de ação os prefeitos fiéis ao esquema dominante na
região. E seu fortalecimento no nível local deveria ser retribuí-
do com a garantia de votos para a situação, assegurando o
continuÍsmo.3
Brasília inovou, com a adoção de práticas típicas do
coronelismo rural, em nível de grande cidade. Diante de um
quadro de persistência da falta de uma política efetiva de reforma
agrária e com a válvula de escape amazônica saturada pelo
colapso da ocupação dos eixos da Transamazônica e da
BR-364, o êxodo rural buscava uma nova direção,capaz de
substituir a restrita oferta de empregos em São Paulo e no Rio
de Janeiro. Foi então que se adotou, no Distrito Federal, a
prática de atrair população, com o aceno irrecusável da oferta
de lote urbano. A perspectiva de se resolver o mito do chão
para morar representou um apelo que logo se espalhou pelo
país.
A situação de Brasíl ia é bem particular, no tocante às
terras. O poder público é proprietário de uma boa parte delas,
adquiridas para a construção da cidade. Isso coloca nas
mãos dos governos locais um poderoso instrumento de
controle do uso do solo e de indução a um desenvolvimento
29
Brasílía capital
setetivo. Mas pode servir também de mecanismo de barganha
eleitoral, se usado como prebenda para apoios políticos.
A constituição de verdadeiros currais eleitorais na capital
do país coincide com a conquista da autonomia política do
Distrito Federal, após a Constituição de 1988. Enormes
aglomerações urbanas foram se formando sob o protetorado
de autoridades públicas, que ali buscavam formar seus redutos
po Iíticos.
Da mesma forma que no coronelismo tradicional, em que o
eleitor recebia um pé de alpercata antes das eleições e o outro
só após os resultados, nos novos currais urbanos a lógica
seria similar: um lote, inicialmente, sem o título definitivo de
propriedade, que ficaria para barganhas futuras, juntamente
com a construção de cada item da infra-estrutura necessária.
Mas algo não deu certo nesse mecanismo. Apesar do acesso
à posse de um lote, o novo migrante não encontrou condições
satisfatórias de emprego e, portanto, de subsistência no Distrito
Federal. Além disso, a própria prática social urbana coloca o
indivíduo numa situação de perceber o universo de suas
carências e de demandar uma situação melhor. Assim, logo
começa a surgir uma pressão para o provimento de condições
mínimas de infra-estrutura (água, esgoto, asfalto, educação,
saúde, transportes), reivindicações tão latentes que não
poderiam ficar sujeitas a um atendimento em doses
correspondentes aos sucessivos períodos pré-eleitorais.
Paralelamente, a notícia da facilidade de obtenção do lote
ampliava-se e espalhava-se pelo país, trazendo para a capital
um fluxo desmesurado de migrantes. E, diante de tal pressão,
a prática clientelista de distribuição de lotes logo chegaria a
uma saturação.
A estratégia de formação de redutos políticos onde se
arrebanharia clientelas eleitorais só deu certo parcialmente.
Serviu para eleger parlamentarese, num primeiro momento,
30
Da utopia à exclusão
viabilizar a recondução ao governo, pelo voto popular, do seu
grande mentor: o próprio governador Roriz. Entretanto, como no
meio urbano o coronelismo tradicional não pode reproduzir os
mesmos mecanismos de sujeição e fidelidade que no meio rural,4
Roriz não conseguiu fazer seu sucessor.
a fracasso da estratégia de formação de currais eleitorais
urbanos por meio da distribuição de lotes se reflete, inclusive, no
artifício adotado ao final do segundo mandato de Roriz, quando
foram distribuídos os chamados "cheques-lotes", documento
precário que serviria como promessa a ser cumprida pelo seu su-
cessor. a referido documento, distribuído durante a campanha
eleitoral e mesmo após os resultados das eleições que deram vitória
à oposição, materializava de forma insofismável a política do
coronelismo urbano.
A inelasticidade do mercado de trabalho local frente à pressão
demográfica se mantém, independentemente do fim de tais práticas.
a aparelho de Estado não constitui mais a grande mola propulsora
da economia local. E a construção civil não oferece empregos
nas proporções em que o fazia nos tempos pioneiros. Em 1995,
75% da PEA do Distrito Federal estava empregada no setor
seryiços. Destes, apenas metade estava vinculada ao setor públi-
co.) au seja, as atividades ligadas aos serviços públicos,
contrariamente ao que se imagina numa capital federal, não são,
atualmente, a maior fonte de empregos.
As taxas de desemprego atingem níveis recorde dentre as
grandes metrópoles do País (mais de 17% da PEA, no segundo
semestre de 1996)6. a poder aquisitivo do funcionalismo público
vai caindo, como resultado da crise das finanças públicas e das
políticas de saneamento adotadas. As condições para a geração
de empregos direta ou indiretamente vão, inevitavelmente, se
estreitando.
É nesse contexto que o Distrito Federal passa a reconhe-
cer, de forma direta e evidente, o fenômeno nacional da
exclusão social traduzida em população de e na rua.
31
Geografia da exclusão
Concebida segundo um plano original, Brasília tem como
característica a existência de amplos espaços e uma baixa
densidade demográfica. Além disso, contrariando o planejado,
desenvolveu-se no território do Distrito Federal um conjunto
de cidades satélites e assentamentos, onde se concentra a popu-
lação de baixa renda. Nesse sentido, diferentemente de outras
cidades de seu porte, a capital brasileira expressa, de forma
irrefutável, a segregação espacial de sua população, segundo
estratos de renda.
A constituição de novos assentamentos seguiu, historica-
mente, uma mesma trajetória: a ocupação irregular de terras,
geralmente públicas, seguida de algum tipo de organização co-
munitária voltada para reivindicações, era objeto de políticas
públicas de regularização ou, pelo menos, de legitimação.
O caso mais notável é, sem dúvida, Ceilândia, criada como
corolário da Campanha de Erradicação de Invasões. Em outros
casos, como Samambaia, o papel do poder público foi decisivo
desde o princípio, fomentando o assentamento de novos
migrantes e de famílias sem lotes, que residiam em outras
localidades. Samambaia, aliás, é um caso típico de estratégia
de constituição de reduto político visando fins eleitorais.
Pela sua geografia interna, o Distrito Federal apresenta
enormes espaços vazios. São áreas de proteção ambiental
(cerca de 50% do seu território), espaços previstos para
ocupações futuras diversas e áreas públicas. O Plano Piloto é
separado das cidades satélites, em geral, por vastas áreas com
baixíssima densidade de uso. Isso configura a existência de
espaços vulneráveis às pressões demográficas e, quase
inevitavelmente, a invasões.
Brasília, contrariamente a outras grandes cidades, possui
32
---- --------------
Da utopia à exclusão
"entranhas" em seu tecido urbano. E são tão amplas, que
dificilmente podem ser monitoradas no dia-a-dia. Esses espaços
vêm se constituíndo em loeus de um processo bem recente de
ocupação desordenada e desorganizada de novos migrantes,
que não encontram um modo de se inserir nos circuitos
institucionalizados de habitação, emprego e renda da cidade.
Mas mesmo para chegar ao ponto de se instalar nessas
entranhas da malha urbana, o migrante recém-chegado ainda
passa por um ritual de entrada, que pode ser lento e é, sempre,
seletivo. A chegada pode ser percebida pelo sistema oficial de
acolhida a migrantes, que conta com um serviço de albergue
temporário (CAS - Centro de Atendimento Social, em
Taguatinga), que serve de casa transitória, para uma eventual
inserção, ou para o custeio da volta ao local de origem. Mas
pode ser tam bém notada pela rede de recrutamento de
trabalhadores informais de materiais recicláveis do lixo. Em
ambos os casos, entretanto, as famílias logo percebem que a
perspectiva de obtenção de um mínimo de renda e auxílio se
dá nas ruas: mendicância, guarda de carros, pequenos serviços
e cata de lixo reciclável.
A cidade e seus muros
À medida em que o migrante excluído vai se tornando
população de rua, ele começa a perceber que a cidade possui
entranhas, cuja penetração os coloca bem mais próximos de
seu "mercado de trabalho", ou seja, do Iixo, das esmolas e
dos carros. Nesse sentido, para ele, a cidade é como que envolta
em diferentes camadas de obstáculos, muros invisíveis que
impedem a sua entrada imediata. Só após um certo período
probatório, de reconhecimento, é que ele descobre a existência
de poros, de caminhos que levam às áreas centrais dacidade.
33
Brasília capital
Uma vez ingressado no mundo da Brasília capital,o migrante
vai ser protagonista de um curioso e perverso fenômeno: o da
convivência, no mesmo espaço e tempo, com uma outra
população, aquela que pertence ao universo formal,
institucionalizado, da cidade. São dois mundos bem diferentes,
que possuem interfaces, que se percebem reciprocamente de
forma muito particular: uns, como objeto de geração de
sustento; outros, como almas penadas, que perambulam pelas
ruas, confundindo-se com o lixo ou com diversas formas de
ameaça à segurança.
o habitat possível
Chegando ao Distrito Federal, os migrantes de baixa renda
que não dispõem de laços de referência com a nova realidade
tendem a se instalar, inicialmente, nas periferias das cidades
satélites, próximos às estradas que dão acesso ao centro da
cidade. Sua precária situação financeira, aliada à falta de
informações, os tornam tímidos diante da grandiosidade e do
desconhecimento desse novo e aparentemente impenetrável
mundo. A longa e difícil viagem de acesso à capital acaba se
tornando mais curta e menos difícil, diante da inibidora
imponência da entrada no cotidiano de Brasília.
Assim, permanecem por dias ou semanas nas beiras das
estradas, alojando-se como podem sob pontes, viadutos ou
simplemente embaixo de uma árvore, em barracas de plástico
ou de papelão.
Aos poucos, e movidos pelo próprio desespero da fome,
acabam quebrando a inércia e rompendo a perplexidade, e
saem em busca de comida. Percebem, logo, que além do ar
desértico das amplas avenidas por onde circulam apressados
34
-~~ -
Da utopia à exclusão
carros, há vida na cidade. E, mais, há alguma bondade, capaz
de prover algo que permita matar a fome: esmola ou alimentos.
Perambulando pelas ruas, descobrem que são capazes de
circular nesse mundo, embora a ele não pertençam. Even-
tualmente, podem até sonhar em um dia conseguir ingressar.
Descobrem que o que não serve mais aos habitantes desse
mundo pode lhes ser de grande valia. O lixo da cidade consti-
tui o primeiro elo estrutural que une esses migrantes à vida
do Distrito Federal.
Passam, então, da condição de meros pedintes à de
catadores: inicialmente, buscando alimentos e objetos que
lhes sirvam de utensílios; depois, percebem que podem tam-
bém extrair renda. Processa-se então uma profunda
metamorfose: passam do simples extrativismo de subsistên-
cia imediata à condição de extra tivistas para o mercado.
E é justamente nesse ponto que se integram, ainda que
indiretamente, na economia de Brasília. Ao coletarem vidros,
plásticos, latas e papel, estão acumulando matéria-prima para
So/l (/ follte (/0 B(/I/(/I/(/!, {lr(Íxifllo (/0 SlI{lerfllf(m(/o C(/rre/állr Norre
35
Srasília capital
as indústrias que lidam com reciclagem de materiais. E
estabelecem relações econômicas com os compradores de
tais produtos. Recebem, em troca, uma renda que está
associada à escala do que conseguem estocar.
Logo, buscam deslocar-se rumo ao coração de Brasília.
A perambulação no tecido urbano é relativamente mais lenta
do que nas viagens interestaduais. Agora, a marcha se dá a pé,
e na bagagem já pesam alguns objetos obtidos pelo caminho.
O destino final, o eldorado, é a fonte de Iixo farto e rico e
centro da "generosidade": as áreas residenciais de classes média
e alta e a zona administrativa. Alcançam, enfim, a Brasília
planejada pelos arquitetos idealistas.
Durante o período da pesquisa de campo, foi possível
seguir a trajetória de uma família, inicialmente identificada à
beira da estrada de acesso a Brasília, no Núcleo Bandeirante.
Um mês depois,já estava às portas do Plano Piloto, vivendo
embaixo da Ponte do Bragueto, a oito quilômetros do ponto
central de Brasília. Naquele momento,já haviam permanecido
algum tempo ao lado da ponte, a céu aberto, esperando um
lugar sob cobertura. Ejá haviam sentido que, mesmo no mundo
dos excluídos, há uma hierarquia social, na qual os abrigados
sob a ponte vêem os que vivem em tendas de lona plástica a
poucos metros dali como ainda mais miseráveis. O destino
ideal da referida família era instalar-se mais próximo ao centro
da cidade.
Instalados a uma pequena distância de áreas residenciais,
começam a efetuar pequenos serviços: lavagem de carros,
alguns meninos passam a atuar como flanelinhas, outros se
posicionam junto a cruzamentos para mendigar. Alguns se
organizam para a cata do lixo. Em geral, os membros das
famílias se dividem entre diferentes atividades que lhes dê
renda e subsistência. E, como fonte complementar, contam
com a caridade de parte da população, que além de esmolas
também doa víveres.
36
Economia política do lixo
Não é por acaso que a burocracia estatal é estigmatizada como
manancial de papéis. É enorme o volume despejado, ao final
de cada dia, nas lixeiras dos ministérios e outros órgãos da
administração pública. A entrada dos papéis nos prédios públi-
cos não é muito notada pela população da cidade, mas a saída
todos percebem: montanhas de sacos plásticos, que são
recolhidas por toscas carroças a tração animal, e levadas para
áreas próximas, onde é feita a separação segundo categorias
estabelecidas pelo mercado comprador.
Desde o início, a capital contou com um importante parque
gráfico, responsável pela impressão de uma infinidade de
publicações e formulários para o aparelho de Estado. Hoje,
são 187 empresas, que empregam 2.638 trabalhadores. O peso
do setor industrial na economia do Distrito Federal é
relativamente pequeno (lI % do PIB, em 1995), mas o setor
gráfico constitui um segmento forte, no âmbito geral, em termos
de empregos gerados: é o terceiro em importância, superado
apenas pela construção civil e produção de alimentos.? A tal
ponto, que nove empresas papeleiras se instalaram na cidade,
constituindo uma demanda por matéria-prima para a produção
de papel reciclado. Para tanto, uma rede de coleta opera em
pontos-chaves, visando assegurar um fluxo constante de
material. É importante ressaltar que apenas a preparação do
processo de reciclagem ("classificação" e "prensagem") se dá
em Brasília; a reciclagem propriamente dita se dá em São
Paulo.
O volume de papel recolhido em Brasília para reciclagem
é grande. Apenas uma empresa, a Novo Rio, adquire mensal-
mente 60 mil toneladas. O papel branco é o mais procurado e,
nesse aspecto, Brasília se destaca de outros centros urba-
nos: seu lixo é intensivamente rico nesse tipo de material.
37
Brasília capital
Independentemente da instalação de alguns containers
coletadores em locais determinados, o mercado do papel
usado constitui um importante elo de ligação entre o mundo
da Brasí/ia capital e o da Brasí/ia dos excluídos de rua.
As empresas que lidam com a reciclagem do papel conhe-
cem bem os locais onde vivem os catadores. Seus caminhões
percorrem rotineiramente rotas já consolidadas.
Boa parte das compras não é feita diretamente pelas
empresas. Também nesse setor a terceirização chegou,
de forma que há intermediários entre os catadores e a in-
dústria: são os "atravessadores" do papel. Procurou-se
saber se não sairia mais em conta as empresas recolherem
sua matéria-prima diretamente nas fontes, ou seja, nos órgãos
públicos. A resposta a que se chegou é de que custa menos
usar o trabalho dos catadores, pois estes já "batem" o
papel, isto é, efetuam uma triagem na qual eliminam os
"contaminantes" que prejudicam processo de reciclagem
(papel carbono, metalizados, materiais plásticos, papéis
plastificados). Na coleta direta através de containers,
as empresas têm de arcar com os custos da separação
de tais materiais que vêm misturados com o papel.
Mas não é só de papel que vivem os catadores. Outros
materiais também encontram lugar no mercado. É o caso
dos metais (incluindo-se latas e cobre), dos vidros e do
plástico.
Como o transporte do volume mais importante de maté-
ria-prima - o papel coletado dos prédios da administração
pública - só pode ser efetuado após o fim do expediente
dos órgãos públicos, há um certa ociosidade das carroças
durante o dia. Alguns catadores conseguem coletar papel,
neste período, em alguns prédios comerciais. Mesmo em
volume menor do que nosetor público, o papel da iniciativa
privada ajuda na renda familiar.
Nos momentos de ociosidade da cata do papel, uma outra
38
Da utopia à exclusão
atividade passou a constituir parte da rotina de trabalho da
população de catadores: o transporte de entulho de peque-
nas obras de reforma. A origem desse entulho, aliás, é
também reflexo da busca de adaptação do habitat das
famílias de classe média a seus padrões de gosto e neces-
sidade, fugindo ao modelo padronizado e impessoal
ditado pelo projeto original de utopia urbana. Nesse sentido,
os carroceiros não apenas sobrevivem do lixo da cida-
de, também acabam auferindo alguma renda de seu
processo espontâneo de adaptação. A utopia planejada
se desfigura, assim, pelos dois lados: o dos excluídos e o
dos incluídos.
A pauta de atividades das famílias de catadores é bem
diversificada. São vários os produtos que extraem do lixo:
papel (diferenciado em branco, "misto" - de cor e jornal -
e papelão), garrafas, plásticos, latas (de alumínio e latão)
e cobre. Cada um desses produtos é objeto de uma ope-
ração diferente de comercialização. O que dá maior volume
e renda é o papel. O branco é o mais valorizado, sendo
vendido a R$ 0,08 o quilo. O "misto", vale bem menos:
R$ 0,02. O alumínio e o plástico rendem R$ 0,30 o quilo.
Pelo papelão pode-se obter R$ 0,05 por quilo.
O processamento industrial do papel coletado pelos
catadores de Brasília é um bom negócio. Estima-se que para
cada tonelada adquirida a empresa gasta igual valor no
processamento, para depois vender a matéria-prima por
2,5 vezes mais do que os custos.
Além da cata do lixo, as famílias que já conseguiram
se "assentar" junto à área central da cidade também recor-
rem a outras fontes de renda. Os meninos menores, que ainda
não conseguem conduzir carroças, geralmente se ocupam de
guarda e lavagem de carros nos estacionamentos da cidade:
são os flanelinhas. Também cabe aos meninos o trato dos
cavalos, principalmente vigiá-Ios enquanto pastam fora
39
Brasília capital
de qualquer cerca e próximo a vias de alta velocidade.
A separação do lixo, feita junto aos barracos onde moram,
é efetuada por todos os membros da família.
Os materiais são dispostos em locais determinados,
facilitando a comercialização. Assim, cada família possui
um "chiqueirinho" (pequeno cercado de mais ou menos
20 m2) para o papel branco e outro para o de cor. Os jor-
nais e o papelão ficam dispostos em qualquer lugar. Dispor
o papel nesses chiqueirinhos é importante para facilitar
a absorção do orvalho ou mesmo da chuva, fazendo com
que o peso aumente. Só que isso não quer dizer muito, pois
a carga vendida só é pesada na fábrica, sendo paga na pró-
xima viagem do comprador. Além disso, a umidade pode
causar mofo, que reduz a qualidade do papel e, por conseguinte,
seu preço.
O cavalo constitui elemento de fundamental importân-
cia na economia política do lixo. Garante o transporte, gera
alguma renda, quando reproduz, e serve de reserva de
valor, espécie de caderneta de poupança dos catadores,
que não têm conta bancária nem se sentem seguros para
guardar dinheiro em seus barracos. Talvez por sua rele-
vância nessa sociedade de catadores, o animal de tração é
objeto de cobiça e diferenciação social. Possuir um cavalo
significa ingressar num seleto grupo em melhor situação,
dentre os migrantes de rua. Aliás, o animal não apenas viabi-
liza um fluxo de renda melhor, como também serve de fator de
sedentarização, já que seu trato exige certas condições e o
produto que transporta implica ter um local fixo para ar-
mazenar e vender os materiais.
Numa sociedade com padrão de vida tão rudimentar,
o cavalo goza de um status elevado: sua ração ali-
mentar, complemento do que pasta, custa 30 reais por mês,
valor comparável ao da alimentação de seu proprietário.
40
r"'\_ ..
Possuir animal está diretamente associado ac
mento, mesmo que precário, desses imigrantes.
Brasília ser uma cidade bem dispersa espacialm
enormes áreas verdes e vazios permeando seu teci(
constitui um fator que favorece a adoção do ca\
instrumento de trabalho. Em outras cidades mais a
não haveria pasto que justificasse o uso desse
transporte.
Comprar um cavalo pode ser uma operação de ri~
tem pouco capital, pode comprar um anin
procedência", ou seja, roubado ou de dono desc
Por conta disso, o comprador não tem garantia de q
guardá-Io por muito tempo. O preço, nesse caso
varia entre 50 e 100 reais. Já o cavalo "de procedên
bem mais caro, podendo chegar até 500 reais. Nessl
dono pode até marcá-Io a ferro.
A rede de comercialização de animais é ampla. À
negócios são feitos entre os próprios catadores. I
casos, são chacareiros estabelecidos no Distrito FI
oferecem os cavalos "de procedência". E há també
. ..
que negociam os animais.
As carroças, toscas estruturas de madeira arm~
um eixo com duas rodas e pneus, podem ser constru
próprios carroceiros. Sua principal característica I
área de carga. Por isso, possuem laterais de até dois
altura.
Já há famílias de catadores que conseguiran
,
~
representa um forte fator de aumento de sua n
a mesma depende de dois elementos: a capacidadl
porte e o número de membros da família trabal
"f'n::lr::lr:1O no" m::ltf'ri::li"
Novos pioneiros
Os catadores-carroceiros da área central de Brasília não
são organizados em associações. Entretanto, em seus
locais de moradia vigora uma estrutura bem formal de
organização. São comunidades relativamente fechadas,
em geral circunscritas a relações de parentesco ou, pelo
menos, de afinidade (conterrâneos).
Em geral, cada grupo, que pode variar de quatro ou
cinco a até mais de vinte famílias, tem uma liderança.
Pode ser o mais velho, sobretudo nos casos de relações
familiares, mas também pode ser o mais antigo em
Brasília. Este último tem a importância de ter sido o
desbravador, aquele que primeiro migrou e abriu
caminho para os demais. Em alguns casos, as famílias
não precisaram passar pela difícil experiência de con-
quistar o caminho para o centro da cidade. Elas já
chegaram diretamente com a referência de seus
predecessores. A posição dos pioneiros é hierarquica-
mente superior na comunidade local.
Não chega a haver barreira à entrada de estranhos
nas áreas ocupadas por cada grupo. Mas há uma certa
rejeição, de tal modo que, havendo vastas áreas ocu-
páveis nas imediações, um novo grupo pode fundar
outro núcleo de povoamento.
Junto à cidade satélite de Riacho Fundo, à beira da
estrada e próximo a um depósito de lixo, encontra-
vam-se umas 20 famílias, todas vindas de Jacobina,
na Bahia. Viviam da cata do lixo e foram chegando,
pouco a pouco, seguindo seus próprios pioneiros. De
forma caricatural, reproduziam a epopéia da constru-
ção da capital, da imigração em busca de um futuro,
42
Da utopia à exclusão
que logo é referência para a vinda de parentes e amigos.
São aproximadamente 350 as famílias de catadores que
residem em barracos precários, nas áreas verdes da cidade,
próximas aos pontos centrais de maior facilidade para a
coleta do lixo reciclável.8 Numa extensão de uns oito quilô-
metros de comprimento por não mais de um de largura,
entre o Palácio da Alvorada e o clube AABB, podem ser
identificados mais de 20aldeamentos de catadores. O mai-
or deles localizava-se junto ao Supremo Tribunal de Justiça
(talvez um dos maiores mananciais de papel da cidade!),
já tendo reunido mais de 45 famílias. Nesse caso, houve
um processo de remoção, mas a metade dos transferidos
deixou o local onde foram instalados, regressando para as
proximidades das fontes de cata.
É impossível o Presidente da República não notá-Ios em
sua rota diária de casa par~ o trabalho. Não apenas seus
barracos são visíveis, como também o são as carroças que
trafegam nas mesmas pistas. A cena, aliás, é um expressivo
retrato do Brasil.
Muito perto do Presidente da RepÚhlica... (Foto: Renato de Araújo)
43
Políticas Públicas
Em relação à população de imigrantes excluídos que vi-
vem nas ruas, as políticas públicas se mostram pouco
eficazes. Resultado de um problema nacional, seu
enfrentamentosó vem se dando no nível local. E, é claro,
o grau de complexidade do problema e a mobilidade
espacial dessa população acabam por neutralizar as ações que
se limitem a tratar apenas das manifestações evidenciadas
em cada lugar.
Na prática, tem ocorrido uma formidável negligência em
termos de uma política pública em plano nacional com re-
lação à questão das migrações. Passada mais de uma década
do fim das malfadadas políticas de ocupação da fron-
teira amazônica, não houve uma diretriz que servisse para
evitar ou, pelo menos, para orientar ao fluxo de êxodo rural.
Por conta da situação agrária do país, grandes contingentes
de agricultores são condenados a buscar as cidades; primeiro
um centro de pequeno porte e depois uma grande metrópole.
Os habitantes urbanos assistem, perplexos e cada vez
mais atemorizados, à "invasão" dos miseráveis.
Muitas prefeituras do interior induzem seus pobres ao
caminho da emigração. Chegam, inclusive, a pagar suas
passagens de ida para outro lugar. Ao chegarem a seu
destino, em diferentes pontos do Brasil, esses migrantes
por vezes são acolhidos pelos esquemas oficiais, que pre-
vêm a compra de passagens de regresso. Ora, essa prática
facilita o ciclo de perambulação, que pode não ter fim.
A inexistência de uma política de abrangência nacional
mostra a fragilidade desse mecanismo. Um prefeito paga
a passagem para se livrar do "problema" e o outro repete
a mesma operação. No fim, chega-se ao ponto de partida
e só quem ganha são as empresas de transportes. Trata-se
44
Da utopia à exclusão
de um jogo de soma zero. E essejogo coloca em evidência o
imperativo de se atuar sobre as causas e não apenas sobre
as manifestações perceptíveis em cada cidade.
Algumas cidades vêm buscando, recentemente, implantar
políticas de renda mínima que sirvam para assegurar
condições básicas de subsistência às populações de baixa
renda. De uma forma ou de outra, a inspiração é a experiência
francesa adotada durante o governo Mitterand, a RMI - Renda
Mínima de Inserção.
Mas a adoção de tal tipo de benefício pode se constituir
em fator adicional de atração demográfica cuja intensidade
pode, no limite, comprometer a própria capacidade do
governo local em seguir concedendo esse auxílio.
Em localidades de pouca dinâmica populacional, para
onde normalmente não afluem grandes contingentes de
migrantes oriundos de outras regiões, é possível a adoção
de mecanismos de inserção social dos mais pobres. Mas
nos grandes centros urbanos que estão no foco das grandes
rotas de migração nacional, é cada vez mais difícil a adoção
de políticas públicas voltadas à inserção dos migrantes
recém-chegados. Isso se dá por duas razões básicas, além,
é claro, da crise financeira dos governos locais: primei-
ramente, porque uma parcela grande dessa população é
apenas transitória e não permanece muito tempo em cada
local; em segundo lugar, porque, paradoxalmente, quanto
mais eficiente for uma política de inserção, maior será a
atração demográfica.
Brasília está inovado em matéria de garantia de renda
mínima. Sem se eximir de sua responsabilidade em relação
aos excluídos que vivem na cidade, mas evitando criar
mais um fator de atração de novos migrantes, o governo local
instituiu a Bolsa Escola. Esse instrumento, ao mesmo tempo
em que serve para assegurar um mínimo de subsistência
às famílias de baixa renda, serve também para induzir os
45
Brasilia capital
pais a manterem seus filhos nas escolas, abrindo-lhes me-
lhores oportunidades de futuro e reduzindo os riscos presen-
tes da vida nas ruas. Ao final de 1996, são 22 mil famílias
recebendo um salário mínimo mensalmente, desde que todas
as suas crianças de 7 a 14 anos estejam freqüentando
assiduamente a escola. São elegíveis para tal benefício as
famílias cuja renda média por membro seja inferior a meio
salário mínimo.
Mas há um critério para a concessão da Bolsa Escola que
busca evitar o aumento da atratividade demográfica de
Brasília: apenas famílias já estabelecidas no Distrito Federal
há mais de cinco anos podem gozar desse auxílio. Os dados
da pesquisa de campo, realizada mais de um ano após o
início do programa da Bolsa Escola, não revelou nenhum
caso de migrante que tenha chegado ao DF em busca de tal
benefício.
Custo social
Além do visível mal-estar social que representa a convivên-
cia da capital do Brasil com uma população de rua que se
sustenta com o lixo, há também um custo social que precisa
ser considerado.
É muito difícil mensurar o ônus que representa a impotên-
cia do poder público local ou mesmo a sua ação no sentido
de lidar com este problema social. A impotência se traduz em
tolerância, no sentido de admitir a existência de famílias em
tais condições, e na falta de uma política efetiva de inserção
das mesmas no circuito econômico e social formal da cidade.
A açelo deve ser avaliada pelas medidas de enfrentamento do
problema, tais como praticadas pelos organismos de assistência
46
Da utopia à exclusão
BOX 1
A TRAGÉDIA DASÁREAS COMUNAIS
Uma parábola anti-neoliberal
Em dezembro de 1968 Garrett Hardin publicou um artigo que se tornou
clássico: "The Tragedy of the Commons"'. O momento era de alerta em
relação aos riscos de um crescimento econômico e demográfico desmesurado,
que se chocava com as limitaçôes da auto-regeneração da natureza. A parábola
sobre as áreas de uso comunalmostra-se oportuna, hoje.
" A tragédia das áreas de uso comunal (commons) se desenvolve da
seguinte maneira. Imagine um pasto aberto a todos. É de se esperar que cada
pastor buscará manter o maior nÚmero de rezes possível na área. Tal arranjo
pode fimcionar de forma razoavelmente satísfatória por séculos, porque guerras
tribais, pilhagem e epidemias mantêm o nÚmero de pessoas e animais bem
abaixo da capacidade de suporte da terra. Entretanto, acaba chegando o dia
em que o objetivo tão desejado da estabilidade social se torna uma realidade.
Nesse ponto, a lógica inerente ao uso de áreas comunais se reverte, sem
piedade, em tragédia.
Como seres racionais, cada pastor busca maximizar seu ganho.
f);plicita ou implicitamente, mais ou menos conscientemente, ele pergunta:
'
Qual a utilidade, para mim, de agregar mais um animal ao meu rebanho?'
Tal utilidade tem um aspecto negativo e outro positivo.
1. O positivo resulta do incremento de um animal. Desde que o
pastor receba a renda da venda da rez adicional, a utilidade positiva é de
aproximadamente + 1.
2. O negativo resulta do aumenlo do sobre-pastejo de um animal a
mais. Entretanto, como os efeilos do sobre-pastejo são divididos por todos os
pastores, a utilidade negativa de cada decisão tomada por um pastor é de
apenas uma fração de -1.
Computando as utilidades parciais, o pastor racional conclui que a
decisão mais sensata é agregar mais um animal a seu rebanho. E mais um,
e outro mais... lv/as essa mesma decisão é tomada por todos os pastores
racionais que dividem o uso das áreas comunais. Essa é a tragédia. Cada
homem está trancado num sistema que o compele a aumentar seu rebanho
sem limites - num mundo que é limitado. (..) A liberdade, no uso de áreas
comunais, traz a ruína para todos. "
Analogamente. a gestão "liberal" do problema da perambulação
de migrantes de baixa renda, com cada município buscando uma fórmula
que seja a melhor para si, leva a uma "tragédia" que, no caso, se expressa no
iogo de soma zero, onde todos saem perdendo. A parábola apresentada por
Hardin aponta a necessidade de um sistema de decisões que se sobreponha
ao somatório das decisões individuais, de forma a assegurar o bem comum.
No caso, fica evidente o papel decisivo do poder pÚblico federal.
,
in Daly e Townsend (1993). A parábola de Hardin está baseada no trabalho
do matemático amador William Forster Lloyd, publicado em 1833.
47
Brasília capital
social e de limpeza urbana, pelas administrações regionais e
pelas forças policiais.
No primeiro semestre de 1996 foi empreendida uma
operação de remoção de 45 famílias de catadores que esta-
vam numa área adjacente ao Supremo Tribunal de Justiça, a
poucos passos do Paláciodo Planalto.
O Governo do Distrito Federal montou um programa
de transferência dessa população para outra área, aonde
seria transportado diariamente o lixo, para ser catado, libe-
rando-se a área ocupada. Depois de negociações e acertos,
a mudança se efetivou. Foram necessários 18 caminhões
da limpeza urbana para a limpeza das 2.120 toneladas de
entulho e lixo acumulados. A um custo médio de R$ 50 por
viagem, e considerando uma carga média de cinco toneladas,
o custo total da limpeza pode ser estimado em algo em
torno de R$ 470 por família.
Mas não são apenas estes os custos. É preciso contar,
também, o custo da limpeza do rastro de sujeira esparramada
diariamente pela carroças, nas vias por onde circulam. Outros
custos devem ser igualmente computados, como é o caso da
manutenção de toda uma estrutura governamental montada
para lidar com esse problema, envolvendo polícia, serviço
social, obras e limpeza urbana.
E outros custos, nem sempre mensuráveis, têm de ser
contados também. Os acidentes, freqüentes, causados pelo
tráfego noturno de carroças sem sinalização adequada,
causando danos humanos e materiais são apenas parte des-
ses custos. A deterioração das condições de saúde das
populações catadoras de lixo representa outro custo não
mensurável monetariamente.
Sem dúvida, o saldo entre a renda auferida pelas famí-
lias no curto prazo e o custo real de tais práticas é negati-
vo. Seria mais em conta, sem dúvida, evitar o pro-
blema, enfrentando-o sobretudo em suas origens rurais.
48
Parte 11
~~ ~m~M~m~~n~
~~ ~~~n~l
1. SOBRE A PESQUISA
A pesquisa de campo foi realizada nos meses de maio
e junho de 1996, quando ainda não se sentia o ímpeto
da estação da seca, que normalmente conduz a Brasília
um contingente de migrantes temporários. Ficou estabele-
cido que seriam entrevistadas apenas famílias que
tivessem chegado ao Distrito Federal após o início
de 1995, ou seja, no mandato do governador Cristovam
Buarque. Este havia deixado claro, desde os tempos da
campanha eleitoral, que em seu governo não daria
continuidade à política de distribuição de lotes com fins
eleitoreiros. Buscava-se, portanto, aferir até que ponto o
término formal da "farra dos lotes" implicaria dimi-
nuição do fluxo migratório de famílias que tivessem
esta expectativa.
Foi feito, inicialmente, um estudo exploratório, bus-
cando entender a lógica da subsistência de tais famílias,
suas expectativas, onde se localizam na cidade, meca-
nismos de informação e interação com a vida da Brasília
capital. Logo, desenhou-se um instrumento de coleta de
dados, contendo informações sobre condições de vida
na origem e situação atual. Uma primeira versão do
questionário foi testada, num local onde se aglomeravam
algumas famílias, doze das quais se enquadravam no
critério estabelecido pela pesquisa: terem chegado a Brasília
após 10 de janeiro de 1995. O resultado foi intrigante:
as doze famílias eram oriundas da Bahia.
Além disso, foi possível corrigir algumas formulações
de questões que não estavam apropriadas. Ao final,
chegou-se a um total de 58 questões. Depois de identifi-
cados os pontos em que esses migrantes se localizam,
foram aplicados 150 questionários. Os resultados foram
51
Os perambulantes na capital
tabulados e alguns cruzamentos de informações se fize-
ram necessários para o aprofundamento das análises.
Para checar a consistência das informações recolhidas
e para melhor traçar o perfil das famílias-tipo, foram
realizadas entrevistas abertas em alguns locais. Buscou-se,
também, levantar informações com algumas pessoas
que conhecem e têm experiência prática com essa
problemática.
A análise preliminar dos dados já revelou uma situação
muito particular: o conceito tradicional de migração não se
adequa convenientemente ao caso de boa parte das famílias
estudadas. Suas trajetórias de deslocamentos pelo país, o
modo como se locomovem (a pé, de carona), o tipo de
moradia (em vários casos, inexistentes; em outros, apenas
uma lona plástica), a perda de referência em relação a um
endereço onde possam ser localizados; tudo isso os colo-
ca numa situação bem particular. Não são, definitivamen-
te, apenas migrantes: são perambulantes.
Esse novo conceito reflete bem a nossa era: a era da
saturação absoluta das condições de subsistência em
áreas rurais, da existência de meios e vias de transporte
relativamente rápidos e acessíveis, ligando as localida-
des interioranas aos grandes centros urbanos (embora
vários viagem a pé e de carona), da fácil circulação de
notícias, da incapacidade das cidades acolherem e inse-
rirem em sua dinâmica os que chegam. E expressa, também,
o fabuloso fascínio que exerce a cidade grande, enquanto
ideal de melhoria das condições de vida.
Perambulam pelo Brasil, como perambulam pelas
cidades por onde vão ficando. Não são contados nas
estatísticas oficiais, pois não permanecem em local fixo.
Ou podem fazer parte de estimativas de contagem
em mais de um local. Em todo caso, não figuram nos
censos da FIBGE.
52
Metodologia e objetivos
o estudo se concentrou na população de rua, que sobrevive
em Brasília pedindo esmolas, praticando pequenos serviços
e catando papel e outros materiais nas ruas e nos lixos da
cidade.
Este contigente é formado por migrantes que chegam ao
Distrito Federal e não conseguem domicílio fixo e nem emprego,
seja no mercado formal, seja no informal. Alguns vivem em
invasões (ocupações urbanas irregulares) próximas a depó-
sitos de lixo; outros, sob pontes e nas ruas do Plano Piloto
(centro de Brasília) e nos centros das Regiões Administra-
tivas (periferia de Brasília).
Esta população é caracterizada por um alto grau de pobreza
e por ser composta de migrantes recentes. Muitos desses
voltam para suas cidades de origem ou migram para outros
centros urbanos. Entretanto, alguns procuram permanecer
no Distrito Federal, mas não conseguem se engajar no mer-
cado de trabalho e nem se estabelecer em endereços fixos.
Sendo assim, passam a procurar alguma fonte de renda e
sobrevivência, formando grupos coesos e altamente
característicos.
Ao serem pesquisadas 150 famílias de migrantes que vivem
nas ruas e que chegaram há menos de um ano e meio ao Distrito
Federal, foi possível demarcar indícios e, minimamente,
caracterizar esse tipo de população excluída.
A pesquisa mostrou como os migrantes pobres, ao
chegarem a Brasília, tornam-se catadores e moradores de
rua. Além disso, evidenciou como esta população vivia em
sua última procedência ou cidade de origem, seus
relacionamentos sociais básicos e sua visão do Estado
como provedor.
53
Os perambulantes na capital
Percebe-se, de modo global, que há laços sociais caracterís-
ticos e que a população de rua pode ser definida a partir
de suas relações com a esfera do trabalho excluído.
Além das características gerais da população que migrou
recentemente e que vive nas ruas do Distrito Federal, o quadro
pesquisado aponta para algumas evidências teóricas que
poderão ser usadas em estudos posteriores.
A primeira pode ser assim enunciada: os migrantes que
vivem nas ruas sofrem um processo de transformação em seu
valores societais originários, principalmente em suas
percepções sobre a cidade, as relações de trabalho e o Estado.
A segunda mostra que os migrantes participam
quotidianamente de "complexas" redes econômicas de
sobrevivência ("economia política do lixo"), caracterizando
relações de trocas específicas.
A terceira evidência demonstra que o imbricamento da esfera
de sobrevivência - o reino da necessidade - com a esfera
valorativa é o objeto privilegiado para a caracterização das
transformações simbólicas nesses grupos.
Por fim, a quarta evidência aponta que há, a partir deste
processo de transformação de valores, uma tendência de
rompimento social desses grupos com as expectativas sociais
médias da sociedade brasileira. Nesse sentido, trata-se de um
processo que os caracterizaria não só como excluídos da esfera
econômica produtiva e do mercado, mas também como
excluídos sociais e culturais.
o excluído moderno é assim um gruposocial que se
torna economicamente desnecessário, politicamente
incômodo e socialmente ameaçador, podendo, portanto,
ser fisicamente eliminado. Nesta tendência, a expulsão
do mundo econômico antecede as do mundo político e
social para, finalmente, chegar à esfera da vida.
(Nascimento,1994)
54
Pressupostos
o convívio quotidiano e árduo com um tipo específico de
trabalho, com suas regras e estratégias próprias, cria pessoas
típicas, com imagens e consciência específicas. Para entender
como este grupo se relaciona com a cidade, com as redes
sociais familiares, com a própria esfera do trabalho e com o
Estado, fez-se necessário compreender o sistema de valores
que rege suas imagens e sua consciência.
Não se quer dizer com isso que a esfera do trabalho seja
universalmente a única responsável pela formação social e
cultural de todos os grupos societais. Admite-se a plura-
lidade de sociabilidades, o que, por sinal, é marca caracte-
rística das sociedades complexas e mais característica ainda
das sociedades modernas, onde o grau de diferenciação e
individualização, associado ao alto grau de diversificação
institucional, de papéis e esferas estruturantes, é enorme.
A constatação é de que a esfera do trabalho, que não se
reduz a trocas materiais, mas inclui, nesta conceituação, os
substratos valorativos em relação à produção, é nesse grupo
o elemento estruturante. Isso é razoável ao se constatar que
as condições quotidianas e o tempo gasto por este com a
sobrevivência é o que parece mais significativo.
Deste modo pôde-se não só circunscrever o grau de exclu-
são econômica a que este grupo está submetido,
mas, sobretudo, investigar o grau de exclusão social e cul-
tural com relação às expectativas médias da sociedade
brasileira.
Com isso, foi possível perceber que a noção de exclusão
social não pode ser reduzida a uma mera exclusão econômica,
do trabalho e do consumo. Esta noção ou categoria pode
ser utilizada do ponto de vista sociológico. A exclusão
55
Os perambulantes na capital
social seria, portanto, mais que uma exclusão econômica,
seria uma exclusão moral e cultural. Estaria ligada direta-
mente a uma exclusão dos valores médios societais
e de uma sociabilidade excluída.
Os níveis mais profundos que garantem a coesão social
estariam sendo rompidos. Os catadores seriam mais que
miseráveis econômicos, seriam miseráveis sociais e cultu-
rais. Nesse sentido, importa desvendar que tipo de socia-
bilidade é desenvolvida quotidianamente entre as
famílias e seus membros, suas redes de relacionamento
econômico e a forma de estruturação familiar dessas
pessoas. Em outros termos, trata-se de entender a desuma-
nização destes migrantes recentes.
Bases da coleta de dados
Dois patamares da realidade do migrante recente e mo-
rador de rua foram fundamentais para o entendimento
das transformações de relacionamento com o trabalho e o per-
fil deste contingente: o mundo sócio-econômico e o mundo
valorativo em relação à sua própria imagem e ao Estado.
Foi possível, por meio da mensuração básica dos aspectos
sócio-econômicos desses migrante e, sobretudo, da análise
compreensiva das estratégias de ação desenvolvidas por
esses grupos, chegar ao sistema de valores que constroem
suas representações e imagens da realidade circundante e
do Distrito Federal.
Foi tal conteúdo social que serviu como o ponto de partida
para a análise da transformação de valores e estratégias de
ação que configuram a formação social deste tipo de
trabalhador.
56
Da utopia à exclusão
Foi possível configurar e mostrar como as forças materiais
e morais estruturam os valores grupais do migrante recente.
A estrutura pesquisada compôs um quadro básico que
possibilitou descrever e explicar a ação desses grupos na
vida urbana. A base consensual que nutre a consciência
grupal e os laços de solidariedade social entre os catadores,
entendidos a partir das dimensões do trabalho, da cidade e
das relações com o Estado, caracterizou o estudo socioló-
gico desse grupo.
O pressuposto de que esses grupos instalam unidades
não-formais e redes de produção na esfera econômica e
de representações foi fundamental. São redes e unidades
específicas, tanto do ponto de vista mais convencional
(trabalhadores excluídos), quanto do ponto de vista menos
convencional (não-cidadão).
Essas dimensões do problema - exclusão do trabalho for-
mal e exclusão da cidadania -, que configuram uma situação
específica, produziram um grupo apto a ser estudado em
suas relações interativas, em condições concretas. Estas
condições reúnem os elementos fundamentais que caracte-
rizam um sistema de valores e imagens definidas por uma
estrutura de símbolos culturais estabelecidos e ao mesmo
tempo em transformação.
57
2. OS RESULTADOS
Quem são?
A população de rua que chegou no Distrito Federal a partir
de janeiro de 1995 é formada principalmente por jovens
casais com filhos (dois terços dos chefes de família ou seus
cônjuges têm até 35 anos de idade), que deixaram seus lugares
de origem não tanto em busca de um eldorado, mas
principalmente fugindo às dificuldades em que se encontra-
vam. A expectativa do que encontrariam na cidade era muito
baixa: na verdade, suas principais ambições, logo quando
chegaram ao Distrito Federal, não iam além de necessi-
dades imediatas, como a próxima refeição.
A Figura 2 mostra que há um predomínio dos mais jovens.
Na faixa etária de 15 a 25 anos concentram-se 31 % dos
Figura 2 - Faixa Etâria dos Chefes de Família ou Cônjuges
5%
35%
30%
25%
20%
15%
10%
0%
16-25 26-35 36-45 46-55 56-70
58
Da utopia à exclusão
migrantes recentes pesquisados. Os percentuais das outras
faixas são os seguintes: 35% de 26 a 35 anos, 22% de 36
a 45 anos, 8% de 46 a 55 anos e, finalmente, 4% de 56 a
70 anos.
A maior parte é formada por negros e pardos (72%),
como mostra a Figura 3. Isto confirma que ainda há no
Brasil correspondência entre exclusão social e a questão
racial. Confirma-se que o maior contigente de excluídos
ainda é o dos que estão historicamente alijados do processo
de modernização do país.
Figura 3 - Distribuição dos Entrevistados por Cor
Pardo
42%
Branco
27%
Figura 4 - Escolaridade dos Chefes ou CÔnjuges Entrevistados
60%
50%
55%
40%
!li!Sem Escolaridade
. 1° grau incompleto
O 1° grau completo
I!!!J2° grau incompleto
- - . 2°graucompleto30%
20%
10%
1% 3%
0%
59
Os perambulantes na capital
Oitenta e oito por cento possuem até o primeiro grau in-
completo, sendo que um terço da amostra não possui qualquer
escolaridade. A escolaridade é outro representativo quadro do
grau de exclusão social dos pesquisados. Conforme a Figura 4
percebe-se que apenas 11% podem ser considerados
alfabetizados ou semi-alfabetizados.
Os migrantes pesquisados tinham uma variada gama de
profissões em suas últimas procedências, conforme se verifica
na figura 5. Um alto percentual declarou não ter nenhuma
Figura 5 - Profissões ou Atividades de Chefes ou Cônjuges (última procedência)
30%
27%
5%
25%
20%
15%
10%
0%
. Agricultores . Trabalhadores da indústria
. Trabalhadores domésticos D Mecânicos
D Construção civil . Pintores de parede
D Sem profissão . Freteiros
. Autônomos III!IIFuncionários públicos
III!II Trabalhadores do comércio . Outras profissões
60
Da utopia à exclusão
profissão ou atividade. Ressalta-se o fato de 27% do universo
pesquisado serem agricultores. Este índice mostra os mi-
grantes que vieram diretamente do meio rural. Entretanto, em
entrevistas abertas, foi possível verificar que muitos dos que
declararam ter alguma outra profissão em sua última
procedência haviam sido agricultores originalmente.
Figura 6 - Renda das Famílias nas localidades de origem
5%
50%
45%
40%
35%
30%
25%
20%
15%
10%
0%
Tinham uma renda muito baixa, com 50% ganhando
até um salário mínimo; 21 % ganhavam entre 1 e 2 salários e
7% declararam que não tinham nenhuma renda. Do restan-
te, 10% conseguiam uma renda entre 2 e 4 salários,
6% afirmaram que ganhavam mais de 4 salários e, por fim,
6% não souberam dizer quanto

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