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Mareei Bursztyn (o rios Henrique Araújo DA UTOPIA, '" A [XC lUSA O Vivendo nos ruos em Brosílio Garamond / codep/an @ 1997, Mareei Bursztyn e Carlos Henrique Ferreira de Araújo Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda. Rio de Janeiro Telefax (021) 552-3527 E-mail: garamond@ism.com.br Em co-edição com a Codeplan Revisão: Alberto Almeida Editoração eletrônica: Manuela Roitman e Ronaldo Naiff Capa: Tira-Linhas Studio, sobre fotos de Renato de Araújo Fotolitos: Fotohaus Fotografia e Artes Gráficas Ltda Bursztyn. Mareei Da utopia à exclusão: vivendo nas ruas em Brasília / Mareei Bursztyn, Carlos Ilenrique Ferrcira de Araújo - Rio de Janeiro: Garamond; Brasília: Codeplan, 1997 I. Sociologia 2. Brasilia - aspectos socio-econômicos 3. Migrantes I. Araúio, Carlos Henrique Ferreira de 11.Titulo CDD-306 rodo.\' (1,"'"direitos reservados. A reprm/uçÔo J1(IOoUlori::ada desta puhhcuçÔo, por qualquer //leIO, .H~la ela 10/01 ou {Jorcial, COJ1Slilui \'lOlaç'Ôo da lei 5.988. " (..) apesar de todos os nossos surpreendentes sucessos no campo do progresso econômico, de nossa indústria pesada, de nossa indústria de automóveis, de Brasília e de outras metas surpreendentes alcançadas, ainda somos um país de fome, somos uma das grandes áreas da geografia universal da fome. " Josué de Castro " (..) o único ponto de tangência entre eles e o mundo dos incluídos está no lixo. A sobra de empregos temporários e a sobra das casas, dos restaurantes, dos supermercados.. e a sobra monetária, nas esmolas aos pedintes e nas gorjetas aos que cuidam dos carros (..)" Cristovam Buarque Agradecimentos Várias pessoas colaboraram na materialização desse trabalho. Alguns leram partes do texto e apresentaram valiosas sugestões. Outros, prestaram depoimentos ou deram infor- mações relevantes. A eles agradecemos a colaboração e com eles compartimos os créditos pelos acertos. Mas as eventuais falhas são de inteira responsabilidade dos autores. Cabe também um agradecimento ao CNPq, que apóia o projeto de pesquisa sobre Desmantelamento do Estado no Brasil, coordenado por Mareei Bursztyn. A sensibilidade dos responsáveis por aquela instituição de fomento, que aceitaram a justificativa para inserir o presente estudo - não previsto inicialmente - no escopo do projeto original, foi decisiva. Os bolsistas de iniciação científica Dijaci David de Oliveira e Ernandes B. Be1chior tiveram importante papel na condução da pesquisa de campo. A qualidade dos dados levantados se deve a seu esforço e dedicação. Paulo Roberto Tavares colaborou no uso do software de tratamento estatístico dos dados. ----.-- ---- Prefácio A DIASPORA DA MODERNIDADE Cristovam Buarque. a final do século está apresentando diversos sustos pa- ra quem conhece os sonhos previstos para o ano 2.000. Entre estes, poucos surpreendem tanto quanto a existência de centenas de milhões de nômades perambulando por estradas, entre ruas, cidades e mesmo continentes. São os modernômades. a sedentarismo foi a primeira das opções modernizado- ras da civilização. No ano 2.000, símbolo da realização civilizatória, temos um número muito maior de nômades do que há cem séculos, quando o homem começou sua marcha para a civilização. Entre o Zaire e Ruanda, entre a África e a Europa, entre o México e os EUA, do campo para a cidade ou dentro de qualquer grande cidade do mundo, famílias se locomovem sem um lugar onde ficar. a final do milênio é um tempo de pessoas sem endereço. Com a diferença de que agora a migração é provocada pela riqueza que atrai os pobres esquecidos no mundo e pela própria criação da riqueza que ao chegar expulsa, em vez de conter os habitantes das regiões esquecidas. Na maior parte dos casos, a migração não é provocada pela atração do . Autor entre outros, do livro A Revolução nas Prioridades - da modernidade-técnica à nJodernidade-ética c A Cortina de (Juro - os sustos do final do século e um sonho para () prÓximo, ambos publicados pela Editora Paz e TeITa. 9 ----- Brasília capital desenvolvimento em regiões distantes, como entre os EUA e o México, mas sim pela expulsão que o desenvolvimento provoca nas regiões em que ocorre. No final do século, o desenvolvimento é excludente, restrito a apenas uma parte da população; e é, portanto, um elemento gerador de migração forçada. Dez mil anos depois de come- çar pela revolução sedentária, o desenvolvimento atual cria nômades: pelas grandes obras que desalojam, pela automação que desemprega, pela agricultura modernizada. Brasília é um símbolo deste século que se termina e também um exemplo dos problemas da migração moderna, um caso típico da convivência do moderno com o nomadismo. Por isso, Da utopia à exclusão - Vivendo nas ruas em Brasília, de Carlos Henrique Araújo e MareeI Bursztyn, é um livro exemplar dos tempos atuais. A obra mostra a realidade dessa cidade-símbolo do progresso brasileiro, como um local em que os modernômades vivem, perambulando, como há milhares de anos outros seres humanos faziam para sobreviverem. Mas, diferentemente dos nômades antigos, os modernômades são produzidos pela modernidade e vivem da modernidade. Vieram para Brasília expulsos pela modernização em suas localidades de origem, atraídos pela modernização que fez a nova capital - mas nela não se integram socialmente, passando a viver do lixo que a modernidade produz. Um recente livro de Flávio Paiva, A odisséia dos cabeça- chatas já antecipava isso, ao mostrar a viagem de um grupo de retirantes que vão do Ceará para São Paulo nos novos anos 90. Mas, diferentemente dos anos 50, 60 e 70, já não encontram emprego e regressam, num ônibus que vai se deteriorando pelo lixo interno que os viajantes pobres vão produzindo com as cascas de frutas, as feles de crianças e de doentes. No desenvolvimento globalizante e excludente dos tempos atuais, o velho "pau-de-arara" é substituído pelo 10 ----- -------- Da utopia à exclusão ônibus moderno, mas o ônibus não é mais um meio de transporte para um mundo melhor: ele é o próprio mundo dos excluídos, circulando à margem do progresso que serve apenas a uns poucos. Da utopia à exclusão é um livro básico para se entender de que maneira a modernização ocorre nesta cidade-símbolo da modernidade brasileira, mas é um livro que nos toca pelo realismo como a realidade é descrita. Diferentemente da frieza com que outros cientistas tentam mostrar a reali- dade, aqui os dois autores mostram o real como ele ocorre. E mostram uma nova realidade do desenvolvimento, da modernização. Até recentemente, os migrantes buscavam não apenas a chance, mas o conseqüente emprego e renda que os novos centros de desenvolvimento naturalmente ofereciam. Agora, em Brasília, nossos migrantes já não vêm em busca de emprego e renda que eles sabem que não vão conseguir. Vêm em busca do lixo da modernidade. Estamos diante da primeira geração de migrantes claramente excluídos: os modernômades, que migram sabendo que continuarão nômades mesmo depois de chegarem aos seus destinos. Migrantes permanentes que viverão do que sobra na modernidade: conscientes de que serão sempre excluídos, só que excluídos sem fome, graças à comida que encontram no lixo, graças à venda de resíduos que os modernos jogam fora. São modernômades - nômades criados pela modernidade - e lixíveros - porque vivem do lixo dos sendentários da modernidade. Mas, Da utopia à exclusão não fala somente da exclusão, fala também da esperança ainda viva da utopia. Como raramente se vê hoje em dia, o livro propõe alternativas. Entre estas, surge a idéia simples de que a 11 ---- Brasília capital Bolsa Escola, já adotada dentro de Brasília, seja também adotada nas cidades em que se origina o fluxo dos mo- dernômades. Como é hoje adotada em Brasília, a Bolsa Escola serve como elemento incorporado r dos excluídos ao desenvovi- mento local, mas não resolve o principal problema da exclusão criada pela expulsão na origem. A aplicação da Bolsa Escola não apenas nas cidades em que a moder- nização e seu lixo atraem os pobres, mastambém nas cidades desses pobres, pode ser o caminho para um programa de desmigração, como define MareeI Bursztyn, em todo o Brasil. Esta obra pode vir a ser um clássico da nova realidade do desenvolvimento globalizante excludente do Brasil e do mundo de hoje, e pode ser também um clássico do desen- volvimento das ciências sociais no mundo, com autores sensíveis, comprometidos e que apresentam soluções, não apenas análises. Por tudo isso, é um Iivro que deve ser lido por todos: os que analisam a realidade da exclusão e aqueles que, descontentes com ela, ainda não perderam a esperança na utopia. 12 --- ------- Apresentação Quem circula por Brasília não consegue deixar de ver que nem todos na capital são funcionários e, muito menos, mara- jás. Além de prédios públicos e servidores, a cidade exibe também cenas típicas das grandes cidades brasileiras, que não aparecem nos telejornais, quando estes apresentam diariamente notíciários políticos exibindo ao fundo a arquitetura monumen- tal da Praça dos Três Poderes. São pobres, muito pobres, que migraram em busca de melhores condições de vida. Convivem com a cidade moderna mas vivem num mundo bem diferente. O presente estudo surgiu por acaso. Seus autores, como qualquer cidadão atento do Distrito Federal, convivem diariamente com a dualidade social que também se manifesta na capital do País: por um lado, o grupo com (com casa, com emprego, com comida, com transporte...); por outro, os sem (sem teto, sem comida, sem documento, sem cidadania). Numa conversa sobre o desmantelamento do aparelho institucional do Estado brasileiro, surgiu a seguinte inda- gação: será que o fato de Brasília ser a capital serve de atrativo às famílias que deixam o campo e o interior do país? Em outras palavras, até que ponto existe uma identidade entre a condição de sede do poder e a perspectiva de se conseguir amparo governamental, seja ele sob a forma de emprego, seja via auxílio de algum político, coisa tão comum na cultura cIientelista rural? A idéia-chave era, portanto, entender a possível atrati- vidade que o Estado exerce no imaginário das populações migrantes de baixa renda. Conforme a idéia inicial foi evo- luíndo, chegou-se à dúvida quanto ao poder de atração que estariam exercendo as boas condições de infra-estrutura de Brasília. Afinal, mais de um terço dos atendimentos hospita- lares na rede pública são de não-residentes no Distrito Federal. 13 ---------- Brasília capital Pesou, também, na montagem da pesquisa, a busca de entendimento das condições de vida na origem dos migrantes que vivem nas ruas de Brasília. Em que medida a situação materialmente tão frágil no Distrito Federal estaria sendo melhor do que antes? Haveria um arrependimento quanto à decisão de migrar? Conforme as idéias foram se delineando e as informações sendo levantadas, novas questões se apresentaram. Em última instância, era preciso entender o ambiente e a lógica da recriação do Brasil real (com todas as suas contradições) justamente num contexto de construção de uma realidade ideal pré-concebida. Ou seja: como o fenômeno da exclusão social encontrava terreno fértil para desabrochar no seio de uma utopia construída? O estudo está organizado em duas partes. A primeira aborda a Brasília capital, caracterizando sua concepção, dinâmica populacional, lógica econômica e a convivência de tal realidade com o circuito da "economia política do lixo". A segunda parte - Osperambulantes na capital- apresenta os resultados da pesquisa de campo realizadajunto a famílias de migrantes que vivem nas ruas de Brasília. Embora não houvesse uma pretensão maior do que entender a realidade objeto do estudo, há conclusões evidentes. A mais importante é, sem dúvida, a constatação de que a população em questão se contitui de "refugiados" da ausência de uma reforma agrária. E fica claro que não há solução em nível local, nas cidades de destino, que consiga ser mais do que palia- tivo ao problema: é preciso uma política de âmbito nacional. 14 Parte I ~~~~íll~ ~~~I1H De capital da esperança... Brasília já nasceu sob uma aura de sonho. O país vivia um singular período de expansão econômica, que se expres- sava em crescimento do parque industrial e dos níveis salariais. Capitais de risco internacionais aqui aportavam, conduzindo o Brasil ao seleto clube das nações produtoras de automóveis. Expandia-se a rede de infra-estrutura viária e energética. Um otimismo enorme contagiava a população, que vivia intensa fase de aumento da auto-estima e confiança no futuro. Um futuro tão grandioso quanto o próprio país. Nada simbolizaria tão bem o momento quanto a cons- trução de uma nova capital, no interior, capaz de tornar realidade a integração das diferentes e isoladas regiões. E era preciso algo bem monumental, que chamasse a atenção do mundo para o nosso progresso. Ali seria erguida a Capital da E\perança, berço de um Brasil moderno e próspero. Era a materialização do sonho do desenvolvi- mentismo. O projeto vencedor do concurso para o desenho da cidade não poderia ter sido mais expressivo do momento e do contexto. O urbanismo racional de LÚcio Costa e o ousado desenho arquitetônico de Oscar Niemeyer traduziam uma resposta radical frente à realidade cultural e à estrutura social brasileiras. Coerentes com práticas de desenho urbano que se delinearam ao longo da primeira metade do século XX, a pro- posta de Brasília configurava uma nova concepção de cidade, mais humana, igualitária, previsível: uma utopia social urbana. Nela, a população seria de funcionários pÚblicos, bem alojados em locais próximos às repartições. O motorista residiria em apartamento funcional, a pou- ca distância do ministro ou deputado a quem serviria. 17 ----- Brasília capital AerofÓtogrametria da Construção do Plano Piloto (Geofoto) - 1957-1958" Acervo ArPDF A prosperidade do momento não inspirava preocupações com desajustes do tipo falta de empregos, empobrecimento, inexistência de um sistema econômico que servisse para produzir os bens necessários ao consumo local. A mão invisível do Estado parecia poder garantir o ajuste de qualquer deficiência do mercado. Mas a realidade de Brasília não poderia estar isenta de refletir a própria realidade do Brasil: um país com graves impasses agrários, que já geravam forte fluxo migratório para as grandes cidades. A história de Brasília está diretamente associada à história de seus imigrantes. E estes, desde a epopéia da construção, não são apenas funcionários. Desde o princípio, um grande fluxo de trabalhadores desempregados vem desembarcando diariamente no Distrito Federal, à procura de melhores condições de trabalho e renda. 18 ----- ------- Da utopia à exclusão No início da construção da Capital da Esperança, os trabalhadores podiam encontrar emprego na construção civil, fomentada pelo desenvolvimentismo da era de JK. Era preciso construir a nova capital em menos de cinco anos. Havia trabalho para todos os que chegassem. Dados históricos indicam, inclusive, que o salário médio pago ao candango era o mais alto de todo o país.' Brasília, efetivamente, constituiu sua história como um pólo de atração: de trabalhadores, que buscavam empregos na construção civil, e de funcionários, que eram compensados pela "dobradinha" (salários em dobro), independentemente de serem pragmáticos ou idealistas? Uma boa parte dos candangos que participaram da construção permaneceu em Brasília. E foram protago- nistas da ocupação de áreas não previstas no plano ori- ginal. A vila Paranoá é uma delas. O mercado de trabalho sempre foi bom: um amplo conjunto de operários da cons- trução foi absorvido pela Novacap, empresa constituída para a construção da cidade; outros, encontraram opor- tunidades na construção civil, atividade sempre florescente. Cmu/aflgo e famélia Constnrifldo Moradia - /95ó-/957. Acer\'o ArPOf 19 ------ Brasilia capital A nova cidade, depois de construída e inaugurada, concretizou, pelo menos até aquele momento, a marcha para o oeste, simbol izando a modernização das antigasestruturas econômicas e políticas do Brasil. Brasília passou a ser símbolo de oportunidades. A Capital representou para os trabalhadores e suas famílias, vindos de diversas partes do país, a chance efetiva de melhoria de suas condições gerais de vida. O candango dos tempos pioneiros da construção foi ficando na nova capital. Brasília dava sinais que não seria a capital de 500 mil habitantes, como havia sido idealizada pelos planejadores urbanos. E foi, aos poucos, tornando-se uma síntese do país, reproduzindo as mazelas e contradições do mau desenvolvimento nacional e comprovando que as utopias não se constroem a partir apenas de estruturas físicas e desenhos ideais. A solução das Cidades Satélites foi se impondo aos poucos. Já emjunho de 1958, antes mesmo da inauguração, o Governo de Israel Pinheiro providenciou a retirada da invasão Sarah Kubitschek, ao lado da Cidade Livre, e construiu Taguatinga. Segundo dados da época, a invasão era uma cidade operária com mais de 15 mil habitantes. Ceilândia foi construída no Governo de Hélio Prates da Silveira, em março de 1971. Os seus habitantes vieram de invasões que proliferavam no Plano Piloto, como a invasão do IAPI, vilas Tenório, Esperança, Bernardo Sayão e Colombo e os morros do Urubu e do Querosene. Isto teria sido apenas o começo. Com o surgimento de novas invasões, novas satélites foram construídas. NÚc!co Bandeirante, Sobradinho, Gama, Planaltina, Brazlândia, Guará e Cruzeiro são o retrato da expansão do Distrito Federal, do fluxo migratório e do crescimento natural da Capital Federal. Porém, o problema de invasões nunca cessou. Mesmo após a criação das cidades ao redor do Plano Piloto, o nÚmero de imigrantes pobres aumentava a eada dia, constituindo grandes 20 Da utopia à exclusão lnvasÜo do lAPl, no NÚcleo Bandeirantes - 1966. Acervo ArPDF agrupamentos populacionais, como a favela do CEUB, na década de 80. Novas soluções precisavam ser encontradas. Era preciso estabelecer programas mais eficazes, capazes de dar solução definitiva e planejada ao eterno problema das migrações. Nada foi feito de criativo e responsável. Mais cidades foram construídas, agora não mais satélites, mas os precários aglomerados habitacionais, intitulados assentamentos. Feitos de maneira aleatória e sem planejamento urbano de longo prazo, neles milhares de pessoas foram assentadas em terrenos cedidos pelo Governo de Joaquim Roriz, nos anos de 1988 a 1994. Sem critérios rígidos e com claro interesse eleitoreiro foram distribuídos lotes e constituídos assentamentos no Distrito Federal, podendo-se citar Samambaia, Santa Maria, Riacho Fundo e São Sebastião. Independentemente da forma como essas soluções foram sendo implantadas, o fato é que muitos, na esperança de encontrar melhores condições de renda e, até mesmo, simplesmente, de sobreviverem, foram migrando para o 21 ~-- Brasília capital Operação Retorno de Migrantes em Brasília - 1964. Acervo ArPDF Distrito Federal. A capital do país ainda está no imaginário popular como a cidade da esperança. A distribuição de lotes só veio a reforçar este mito, aumentando ainda mais o fluxo migratório para Brasília. Surge, então, um novo candango, que não mais constrói a cidade e nem encontra emprego na máquina administrativa do Estado. Seu papel reflete a dura realidade cotidiana da sobrevi- vência num centro urbano onde as oportunidades no mercado de trabalho formal se estreitam cada vez mais. Expulsos de suas teITas pela fome, procuram Brasília em busca de uma situação melhor. Mas encontram um mundo que lhes oferece um modo duro de vida: vivem de pequenos biscates, do lixo e da l:xmdadeda população. De agricultores, passam a ser catadores de lixo, sustentam seus filhos com os despojos da população de consumidores. Sua dignidade e amor próprio se vêem ameaçados. Moram debaixo de pontes, quando conseguem lugar; senão, instalam-se onde podem. 22 ------ ---- ... a capital da Belíndia No início dos anos 1970 o economista Edmar Bacha escreveu uma célebre parábola sobre a situação brasileira. O reinado da Belíndia representava, então, a fusão de uma Bélgica com várias Índias, triste paradoxo do "milagre econômico" brasileiro, que gerava riqueza para uma pequena parcela da população, mas que excluía dos trutos do crescimento econômico a grande maioría. Duas décadas e meia depois, o país ainda é credor de uma brutal dívida social, que mantém boa parte dos brasileiros bem abaixo dos patamares mínimos de pobreza. São os excluídos, miseráveis que não têm acesso a bens e serviços básicos e nem ao mercado de trabalho. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Instituto de Pes- quisa Econômica Aplicada (IPEA) indica o Distrito Federal como a unidade da Federação com a maior renda per capita e o melhor índice de escolaridade do Brasil. A capital da República aparece em segundo lugar, perdendo apenas para o Rio Grande do Sul e seguida por São Paulo, em termos de desenvolvimento humano. Quem vive no Distrito Federal poderia gabar-se, de acordo com os dados gerais, de viver em uma Unidade da Federação comparável a países de primeiro mundo. No mundo da estatística, o brasiliense (nato ou morador) desfruta de um alto grau, em média, de qualidade de vida. Contudo, qualquer quadro geral precisa ser visto com cuidado, principalmente quando se trata de um quadro estatístico. Nem todos os detalhes e nuanças da realidade podem ser retratados por estatísticas gerais. A realidade é sempre mais complexa do que os números. No caso brasileiro, isso se torna mais que evidente. O Brasil é, definitivamente, o país dos contrastes. Sua capital não foge a essa norma. 23 Brasília capital Que os habitantes do Distrito Federal gozam de um bom nível médio de qualidade de vida, não há dúvida. Contudo, também, não há dúvida de que Brasília convive com bolsões de miséria. O Índice de Desenvolvimento Humano mostra graves disparidades entre as diferentes Unidades da Federação. Numa ponta, encontra-se o Distrito Federal, campeão em alfa- betização de adultos e em renda per capita. Na outra, estados como Alagoas, Piauí e Paraíba. O primeiro grupo tem nível de desenvolvimento humano comparável ao da Bélgica. O outro, pode ser classificado como uma Índia ou uma Suazilândia. Convém, no entanto, chamar a atenção para a realidade que se esconde por trás de tais dados. Uma anedota costuma definir o economista como uma pessoa que tem os pés no forno e a cabeça na geladeira mas acha que a tempe- ratura média é boa. Ora, o uso de médias é, num país como o Brasil, de relevância limitada. São tamanhas as discrepâncias que corre-se o risco de cair no ilusionismo de falsas constata- ções. A Belíndia está em toda parte, ainda que em algumas delas a Bélgica seja mais notável que em outras e vice-versa. A mobilidade espacial (leia-se migrações), aliada à circula- ção de notícias sobre oportunidades em certos lugares e a insustentabilidade da sobrevivência em outros locais, faz com que haja, atualmente, uma simultaneidade, no tempo e no espaço, entre 'aBélgica e a Índia, em nossas cidades. Brasília não foge à regra. É, sem dúvida, um paraíso para um grande conjunto de famílias que habitam suas áreas mais nobres (Plano Piloto e Lagos Sul e Norte). Mas nesse mesmo território convivem com a pobreza extrema de outros brasileiros que sobrevivem em condições piores que a média da Suazilândia. São a população do lixo. Nunca a metáfora da Belíndia foi tão real. E, sem dúvida, não somos a Bélgica! 24 Da utopia à exclusão Em maio de 1996,realizamosuma pesquisacom 150famílias de migrantes recém-chegados ao Distrito Federal (após 10 de janeiro de 1995) e que vivem nas ruas, em tendas de plástico, sob as pontes ou em abrigo público. Os resultados são esclarecedores. Por exemplo, cai o mito de que a migração se dá porque a cidade oferece forte atração, independentemente do fato de que no campo não se morre de fome. O estudo revela que o que leva esses excluídos a migrar é justamente a busca do que comer noimediato. Ao chegarem a Brasília, sua maior expectativa se limita ao que comer na próxima refeição. Vivem da cata do lixo e, por isso mesmo, consideram que Brasília é melhor do que o local de onde vêm. A pesquisa ajuda a entender a lógica da migração, o imaginário sobre o Estado e seu papel e a estratégia de sobrevivência dessa população mise- rável. Seus resultados são analisados mais adiante. Sem dúvida alguma, Brasília além de capital é uma boa amostra do país e de seus contrastes. Um país onde convivem uma Bélgica e uma Índia. A situação dos migrantes que moram nas ruas do Distrito Federal é um exemplo de nossa Índia brasiliense. Ainda que políticas públicas de natureza social busquem a reversão do quadro de exclusão social que se expressa na dinâmica populacional da capital do País, os resultados não podem ser atingidos no curto prazo. Na verdade, a própria esfera de atuação dos governos locais se mostra limita- da, na medida em que o problema tem sua lógica e origem em nível nacional. A existência de fatores de "expulsão" demográ- fica em certas regiões, paralelamente à inexistência de meca- nismos efetivos que viabilizem a subsistência das populações em seus locais de origem, constituem um vetor de migrações permanentemente alimentado. E, o que é mais grave, a situação é de tal forma complexa que, quando uma cidade-foco des- sas migrações mostra soluções concretas e satisfatórias, a tendência é o aumento do fluxo migratório em sua direção. 25 Brasília: foco de migrações o ritmo de crescimento da cidade sempre foi acelerado. Em sua primeira década de vida, a população de Brasília cres- ceu 285%, ou seja, uma média de 14,4% ao ano. Nos anos 1970 o crescimento médio anual foi de 8,1%, o que corres- ponde a um incremento total, na década, da ordem de 115,52%. Entre 1980 a 1991 a cidade teve sua população aumentada em 36,06%. A população ideal estimada no plano original de Brasília, que não deveria ultrapassar os 500 mil habitantes, foi atingida já ao final da década de 1960. A redução no ritmo de crescimento verificada na última década se explica, por um lado, pelo natural atingimen- to de um porte estável, em termos de atividades estatais que foram transferidas para a nova capital. Por outro lado, deve-se também a uma certa mudança na orientação dos fluxos migratórios, já ao final da década anterior, no rumo do Mato Grosso e de Rondônia. Mas há que se assinalar que a taxa global de crescimento populacional do Distrito Federal deve ser entendida de forma desagregada, segundo cada Região Adminsitrativa. Assim, o Plano Piloto, que na época da inauguração concentrava 48% da população, vai perdendo sua importância relativa, chegando em 1991 com apenas 13,26%. Por outro lado, Ceilândia, que nem existia na década de 1960,já reunia 22,75% da população total do Distrito Federal em 1991 (Fonte: FIBGE). E não foram só as cidades satélites, não previstas no plano original, que tiveram crescimento acelerado. Também nas franjas da Capital, na região do Entorno, o aumento da população, que depende quase integralmente da dinâmica do Distrito Federal, foi enorme. Luziânia, em Goiás, cresceu 159% entre 1980 e 1991. As taxas dos municípios de Planaltina de 26 Brasília 68.665 149.982 252963 265.264 <?ara 72.405 139.016 153687 Taguatinga 26.111 107.347 192.938 228.249 Brazlândia 9.592 22504 41.119 Sobradinho 8.478 39.458 69.094 81.521 Planaltina 2917 18.508 47.364 90.185 Paranoá 13.137 56.465 Núdeo Bandeirante 21.033 11.268 32285 47.688 Ceilândia 84.205 286.955 364.289 Guará 24.864 85.116 97.374 Cruzeiro 6.685 35.563 51.230 TOTAL 141.742 546.015 1.176.935 1.601.094 1.868.181 Fonte: Censos Demográjicos 1960, 1970, 1980, 1991 - F1BGE * Estimativa Codeplan 27 Da utopia à exclusão Goiás (Brazilinha) e Santo Antônio do Descoberto foram, respectivamente, de 149% e 170% (Fonte: SICICodeplan; 1996). A ocupação do Entorno se deu segundo um padrão intenso e desordenado. Tal tendência refletia, por um lado, um processo espontâneo de fuga às limitações do planejamento urbano da capital e do elevado custo da terra; e, por outro lado, manifestava o poder de atração representado pela infra-estrutura de serviços públicos, muito melhor que a dos estados vizinhos, cujas lideran- ças políticas tiraram proveito da cômoda situação de proximidade de serviços públicos, sem ônus para seus respectivos governos. A conclusão a que se chega é de que nos anos recentes o foco das migrações foi se diluindo no rumo da periferia do Plano Piloto, refletindo o próprio caráter dessas migrações: cada vez menos pessoas engajadas no mercado de trabalho (e no imobiliário) da capital; e cada vez mais uma população que foi ficando à margem da dinâmica de "atração". Os novos migrantes são, principalmente, os "expulsos" de outras regiões. Figura 1: População do Distrito Federal, por Regiões Adminsitrativas Brasília capital o final da década de 1980 vai testemunhar uma profunda mudança no padrão de migrações para o Distrito Federal. Se, antes, havia uma certa lógica no crescimento da cidade, que se dava ao mesmo tempo em que crescia (embora nem sempre na mesma proporção) a oferta de empregos direta ou indiretamente atrelada à dinâmica do aparelho de Estado, inclusive na construção civil, agora isso não mais se verifica. Desde o final dos anos 1970, no governo Figueiredo,já havia começado um processo de restrição à contratação de novos servidores públicos. E a construção da capital chegava, finalmente, a um ponto tal, que seu crescimento passaria a se dar num ritmo bem menos acelerado. Portanto, a perspectiva era de que houvesse uma desaceleração no crescimento populacional. Mas isso não ocorreu no ritmo necessário. Mesmo com a população nacional crescendo a taxas decrescentes e com a redução das pressões demo gráficas sobre as grandes capitais' do País, Brasília mostrou-se ainda como alvo de intenso fluxo migratório. A reiterada política de evitar uma reforma agrária no Brasil que fosse capaz de manter o homem do campo no meio rural foi parcialmente compensada, na década de 1970, pelos mecanismos de canalização do êxodo rural para a ocupação da Amazônia. Ainda que tal fluxo tenha, pouco tempo depois, se convertido em fator de crescimento da taxa de urbanização naquela região, ele serviu, de certa maneira, para inibir tanto a luta pela reforma agrária quanto a pressão demográfica sobre os grandes centros urbanos, que já vinham sofrendo com o crescimento do desemprego e todas as suas conseqüências negativas. Mas o esvaziamento de áreas rurais tradicionais represen- tava, como efeito colateral, uma perda de importância dos mecanismos também tradicionais da política local. Currais eleitorais se diluíam, numa migração difusa, que se perdia em 28 -- Da utopia à exclusão grandes cidades - nas quais, aliás, crescia o voto contrário ao regime militar. Já na década de 1970, algumas pequenas cidades do interior do Nordeste passaram a adotar práticas, respaldadas em políticas públicas federais, que buscavam reter a população nos próprios municípios de origem (ainda que não mais no meio rural), evitando o esvaziamento de currais eleitorais e a pressão sobre as grandes cidades. O instrumento para isso era a distribuição de terras públicas nas pequenas cidades do interior, paralelamente à adoção de práticas de ajuda à construção, em processo que, inevitavelmente, serviria para resgatar velhas práticas coronelistas, agora travesti das com roupagem urbana. Evidentemente, só disporiam de fundos para tal tipo de ação os prefeitos fiéis ao esquema dominante na região. E seu fortalecimento no nível local deveria ser retribuí- do com a garantia de votos para a situação, assegurando o continuÍsmo.3 Brasília inovou, com a adoção de práticas típicas do coronelismo rural, em nível de grande cidade. Diante de um quadro de persistência da falta de uma política efetiva de reforma agrária e com a válvula de escape amazônica saturada pelo colapso da ocupação dos eixos da Transamazônica e da BR-364, o êxodo rural buscava uma nova direção,capaz de substituir a restrita oferta de empregos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi então que se adotou, no Distrito Federal, a prática de atrair população, com o aceno irrecusável da oferta de lote urbano. A perspectiva de se resolver o mito do chão para morar representou um apelo que logo se espalhou pelo país. A situação de Brasíl ia é bem particular, no tocante às terras. O poder público é proprietário de uma boa parte delas, adquiridas para a construção da cidade. Isso coloca nas mãos dos governos locais um poderoso instrumento de controle do uso do solo e de indução a um desenvolvimento 29 Brasílía capital setetivo. Mas pode servir também de mecanismo de barganha eleitoral, se usado como prebenda para apoios políticos. A constituição de verdadeiros currais eleitorais na capital do país coincide com a conquista da autonomia política do Distrito Federal, após a Constituição de 1988. Enormes aglomerações urbanas foram se formando sob o protetorado de autoridades públicas, que ali buscavam formar seus redutos po Iíticos. Da mesma forma que no coronelismo tradicional, em que o eleitor recebia um pé de alpercata antes das eleições e o outro só após os resultados, nos novos currais urbanos a lógica seria similar: um lote, inicialmente, sem o título definitivo de propriedade, que ficaria para barganhas futuras, juntamente com a construção de cada item da infra-estrutura necessária. Mas algo não deu certo nesse mecanismo. Apesar do acesso à posse de um lote, o novo migrante não encontrou condições satisfatórias de emprego e, portanto, de subsistência no Distrito Federal. Além disso, a própria prática social urbana coloca o indivíduo numa situação de perceber o universo de suas carências e de demandar uma situação melhor. Assim, logo começa a surgir uma pressão para o provimento de condições mínimas de infra-estrutura (água, esgoto, asfalto, educação, saúde, transportes), reivindicações tão latentes que não poderiam ficar sujeitas a um atendimento em doses correspondentes aos sucessivos períodos pré-eleitorais. Paralelamente, a notícia da facilidade de obtenção do lote ampliava-se e espalhava-se pelo país, trazendo para a capital um fluxo desmesurado de migrantes. E, diante de tal pressão, a prática clientelista de distribuição de lotes logo chegaria a uma saturação. A estratégia de formação de redutos políticos onde se arrebanharia clientelas eleitorais só deu certo parcialmente. Serviu para eleger parlamentarese, num primeiro momento, 30 Da utopia à exclusão viabilizar a recondução ao governo, pelo voto popular, do seu grande mentor: o próprio governador Roriz. Entretanto, como no meio urbano o coronelismo tradicional não pode reproduzir os mesmos mecanismos de sujeição e fidelidade que no meio rural,4 Roriz não conseguiu fazer seu sucessor. a fracasso da estratégia de formação de currais eleitorais urbanos por meio da distribuição de lotes se reflete, inclusive, no artifício adotado ao final do segundo mandato de Roriz, quando foram distribuídos os chamados "cheques-lotes", documento precário que serviria como promessa a ser cumprida pelo seu su- cessor. a referido documento, distribuído durante a campanha eleitoral e mesmo após os resultados das eleições que deram vitória à oposição, materializava de forma insofismável a política do coronelismo urbano. A inelasticidade do mercado de trabalho local frente à pressão demográfica se mantém, independentemente do fim de tais práticas. a aparelho de Estado não constitui mais a grande mola propulsora da economia local. E a construção civil não oferece empregos nas proporções em que o fazia nos tempos pioneiros. Em 1995, 75% da PEA do Distrito Federal estava empregada no setor seryiços. Destes, apenas metade estava vinculada ao setor públi- co.) au seja, as atividades ligadas aos serviços públicos, contrariamente ao que se imagina numa capital federal, não são, atualmente, a maior fonte de empregos. As taxas de desemprego atingem níveis recorde dentre as grandes metrópoles do País (mais de 17% da PEA, no segundo semestre de 1996)6. a poder aquisitivo do funcionalismo público vai caindo, como resultado da crise das finanças públicas e das políticas de saneamento adotadas. As condições para a geração de empregos direta ou indiretamente vão, inevitavelmente, se estreitando. É nesse contexto que o Distrito Federal passa a reconhe- cer, de forma direta e evidente, o fenômeno nacional da exclusão social traduzida em população de e na rua. 31 Geografia da exclusão Concebida segundo um plano original, Brasília tem como característica a existência de amplos espaços e uma baixa densidade demográfica. Além disso, contrariando o planejado, desenvolveu-se no território do Distrito Federal um conjunto de cidades satélites e assentamentos, onde se concentra a popu- lação de baixa renda. Nesse sentido, diferentemente de outras cidades de seu porte, a capital brasileira expressa, de forma irrefutável, a segregação espacial de sua população, segundo estratos de renda. A constituição de novos assentamentos seguiu, historica- mente, uma mesma trajetória: a ocupação irregular de terras, geralmente públicas, seguida de algum tipo de organização co- munitária voltada para reivindicações, era objeto de políticas públicas de regularização ou, pelo menos, de legitimação. O caso mais notável é, sem dúvida, Ceilândia, criada como corolário da Campanha de Erradicação de Invasões. Em outros casos, como Samambaia, o papel do poder público foi decisivo desde o princípio, fomentando o assentamento de novos migrantes e de famílias sem lotes, que residiam em outras localidades. Samambaia, aliás, é um caso típico de estratégia de constituição de reduto político visando fins eleitorais. Pela sua geografia interna, o Distrito Federal apresenta enormes espaços vazios. São áreas de proteção ambiental (cerca de 50% do seu território), espaços previstos para ocupações futuras diversas e áreas públicas. O Plano Piloto é separado das cidades satélites, em geral, por vastas áreas com baixíssima densidade de uso. Isso configura a existência de espaços vulneráveis às pressões demográficas e, quase inevitavelmente, a invasões. Brasília, contrariamente a outras grandes cidades, possui 32 ---- -------------- Da utopia à exclusão "entranhas" em seu tecido urbano. E são tão amplas, que dificilmente podem ser monitoradas no dia-a-dia. Esses espaços vêm se constituíndo em loeus de um processo bem recente de ocupação desordenada e desorganizada de novos migrantes, que não encontram um modo de se inserir nos circuitos institucionalizados de habitação, emprego e renda da cidade. Mas mesmo para chegar ao ponto de se instalar nessas entranhas da malha urbana, o migrante recém-chegado ainda passa por um ritual de entrada, que pode ser lento e é, sempre, seletivo. A chegada pode ser percebida pelo sistema oficial de acolhida a migrantes, que conta com um serviço de albergue temporário (CAS - Centro de Atendimento Social, em Taguatinga), que serve de casa transitória, para uma eventual inserção, ou para o custeio da volta ao local de origem. Mas pode ser tam bém notada pela rede de recrutamento de trabalhadores informais de materiais recicláveis do lixo. Em ambos os casos, entretanto, as famílias logo percebem que a perspectiva de obtenção de um mínimo de renda e auxílio se dá nas ruas: mendicância, guarda de carros, pequenos serviços e cata de lixo reciclável. A cidade e seus muros À medida em que o migrante excluído vai se tornando população de rua, ele começa a perceber que a cidade possui entranhas, cuja penetração os coloca bem mais próximos de seu "mercado de trabalho", ou seja, do Iixo, das esmolas e dos carros. Nesse sentido, para ele, a cidade é como que envolta em diferentes camadas de obstáculos, muros invisíveis que impedem a sua entrada imediata. Só após um certo período probatório, de reconhecimento, é que ele descobre a existência de poros, de caminhos que levam às áreas centrais dacidade. 33 Brasília capital Uma vez ingressado no mundo da Brasília capital,o migrante vai ser protagonista de um curioso e perverso fenômeno: o da convivência, no mesmo espaço e tempo, com uma outra população, aquela que pertence ao universo formal, institucionalizado, da cidade. São dois mundos bem diferentes, que possuem interfaces, que se percebem reciprocamente de forma muito particular: uns, como objeto de geração de sustento; outros, como almas penadas, que perambulam pelas ruas, confundindo-se com o lixo ou com diversas formas de ameaça à segurança. o habitat possível Chegando ao Distrito Federal, os migrantes de baixa renda que não dispõem de laços de referência com a nova realidade tendem a se instalar, inicialmente, nas periferias das cidades satélites, próximos às estradas que dão acesso ao centro da cidade. Sua precária situação financeira, aliada à falta de informações, os tornam tímidos diante da grandiosidade e do desconhecimento desse novo e aparentemente impenetrável mundo. A longa e difícil viagem de acesso à capital acaba se tornando mais curta e menos difícil, diante da inibidora imponência da entrada no cotidiano de Brasília. Assim, permanecem por dias ou semanas nas beiras das estradas, alojando-se como podem sob pontes, viadutos ou simplemente embaixo de uma árvore, em barracas de plástico ou de papelão. Aos poucos, e movidos pelo próprio desespero da fome, acabam quebrando a inércia e rompendo a perplexidade, e saem em busca de comida. Percebem, logo, que além do ar desértico das amplas avenidas por onde circulam apressados 34 -~~ - Da utopia à exclusão carros, há vida na cidade. E, mais, há alguma bondade, capaz de prover algo que permita matar a fome: esmola ou alimentos. Perambulando pelas ruas, descobrem que são capazes de circular nesse mundo, embora a ele não pertençam. Even- tualmente, podem até sonhar em um dia conseguir ingressar. Descobrem que o que não serve mais aos habitantes desse mundo pode lhes ser de grande valia. O lixo da cidade consti- tui o primeiro elo estrutural que une esses migrantes à vida do Distrito Federal. Passam, então, da condição de meros pedintes à de catadores: inicialmente, buscando alimentos e objetos que lhes sirvam de utensílios; depois, percebem que podem tam- bém extrair renda. Processa-se então uma profunda metamorfose: passam do simples extrativismo de subsistên- cia imediata à condição de extra tivistas para o mercado. E é justamente nesse ponto que se integram, ainda que indiretamente, na economia de Brasília. Ao coletarem vidros, plásticos, latas e papel, estão acumulando matéria-prima para So/l (/ follte (/0 B(/I/(/I/(/!, {lr(Íxifllo (/0 SlI{lerfllf(m(/o C(/rre/állr Norre 35 Srasília capital as indústrias que lidam com reciclagem de materiais. E estabelecem relações econômicas com os compradores de tais produtos. Recebem, em troca, uma renda que está associada à escala do que conseguem estocar. Logo, buscam deslocar-se rumo ao coração de Brasília. A perambulação no tecido urbano é relativamente mais lenta do que nas viagens interestaduais. Agora, a marcha se dá a pé, e na bagagem já pesam alguns objetos obtidos pelo caminho. O destino final, o eldorado, é a fonte de Iixo farto e rico e centro da "generosidade": as áreas residenciais de classes média e alta e a zona administrativa. Alcançam, enfim, a Brasília planejada pelos arquitetos idealistas. Durante o período da pesquisa de campo, foi possível seguir a trajetória de uma família, inicialmente identificada à beira da estrada de acesso a Brasília, no Núcleo Bandeirante. Um mês depois,já estava às portas do Plano Piloto, vivendo embaixo da Ponte do Bragueto, a oito quilômetros do ponto central de Brasília. Naquele momento,já haviam permanecido algum tempo ao lado da ponte, a céu aberto, esperando um lugar sob cobertura. Ejá haviam sentido que, mesmo no mundo dos excluídos, há uma hierarquia social, na qual os abrigados sob a ponte vêem os que vivem em tendas de lona plástica a poucos metros dali como ainda mais miseráveis. O destino ideal da referida família era instalar-se mais próximo ao centro da cidade. Instalados a uma pequena distância de áreas residenciais, começam a efetuar pequenos serviços: lavagem de carros, alguns meninos passam a atuar como flanelinhas, outros se posicionam junto a cruzamentos para mendigar. Alguns se organizam para a cata do lixo. Em geral, os membros das famílias se dividem entre diferentes atividades que lhes dê renda e subsistência. E, como fonte complementar, contam com a caridade de parte da população, que além de esmolas também doa víveres. 36 Economia política do lixo Não é por acaso que a burocracia estatal é estigmatizada como manancial de papéis. É enorme o volume despejado, ao final de cada dia, nas lixeiras dos ministérios e outros órgãos da administração pública. A entrada dos papéis nos prédios públi- cos não é muito notada pela população da cidade, mas a saída todos percebem: montanhas de sacos plásticos, que são recolhidas por toscas carroças a tração animal, e levadas para áreas próximas, onde é feita a separação segundo categorias estabelecidas pelo mercado comprador. Desde o início, a capital contou com um importante parque gráfico, responsável pela impressão de uma infinidade de publicações e formulários para o aparelho de Estado. Hoje, são 187 empresas, que empregam 2.638 trabalhadores. O peso do setor industrial na economia do Distrito Federal é relativamente pequeno (lI % do PIB, em 1995), mas o setor gráfico constitui um segmento forte, no âmbito geral, em termos de empregos gerados: é o terceiro em importância, superado apenas pela construção civil e produção de alimentos.? A tal ponto, que nove empresas papeleiras se instalaram na cidade, constituindo uma demanda por matéria-prima para a produção de papel reciclado. Para tanto, uma rede de coleta opera em pontos-chaves, visando assegurar um fluxo constante de material. É importante ressaltar que apenas a preparação do processo de reciclagem ("classificação" e "prensagem") se dá em Brasília; a reciclagem propriamente dita se dá em São Paulo. O volume de papel recolhido em Brasília para reciclagem é grande. Apenas uma empresa, a Novo Rio, adquire mensal- mente 60 mil toneladas. O papel branco é o mais procurado e, nesse aspecto, Brasília se destaca de outros centros urba- nos: seu lixo é intensivamente rico nesse tipo de material. 37 Brasília capital Independentemente da instalação de alguns containers coletadores em locais determinados, o mercado do papel usado constitui um importante elo de ligação entre o mundo da Brasí/ia capital e o da Brasí/ia dos excluídos de rua. As empresas que lidam com a reciclagem do papel conhe- cem bem os locais onde vivem os catadores. Seus caminhões percorrem rotineiramente rotas já consolidadas. Boa parte das compras não é feita diretamente pelas empresas. Também nesse setor a terceirização chegou, de forma que há intermediários entre os catadores e a in- dústria: são os "atravessadores" do papel. Procurou-se saber se não sairia mais em conta as empresas recolherem sua matéria-prima diretamente nas fontes, ou seja, nos órgãos públicos. A resposta a que se chegou é de que custa menos usar o trabalho dos catadores, pois estes já "batem" o papel, isto é, efetuam uma triagem na qual eliminam os "contaminantes" que prejudicam processo de reciclagem (papel carbono, metalizados, materiais plásticos, papéis plastificados). Na coleta direta através de containers, as empresas têm de arcar com os custos da separação de tais materiais que vêm misturados com o papel. Mas não é só de papel que vivem os catadores. Outros materiais também encontram lugar no mercado. É o caso dos metais (incluindo-se latas e cobre), dos vidros e do plástico. Como o transporte do volume mais importante de maté- ria-prima - o papel coletado dos prédios da administração pública - só pode ser efetuado após o fim do expediente dos órgãos públicos, há um certa ociosidade das carroças durante o dia. Alguns catadores conseguem coletar papel, neste período, em alguns prédios comerciais. Mesmo em volume menor do que nosetor público, o papel da iniciativa privada ajuda na renda familiar. Nos momentos de ociosidade da cata do papel, uma outra 38 Da utopia à exclusão atividade passou a constituir parte da rotina de trabalho da população de catadores: o transporte de entulho de peque- nas obras de reforma. A origem desse entulho, aliás, é também reflexo da busca de adaptação do habitat das famílias de classe média a seus padrões de gosto e neces- sidade, fugindo ao modelo padronizado e impessoal ditado pelo projeto original de utopia urbana. Nesse sentido, os carroceiros não apenas sobrevivem do lixo da cida- de, também acabam auferindo alguma renda de seu processo espontâneo de adaptação. A utopia planejada se desfigura, assim, pelos dois lados: o dos excluídos e o dos incluídos. A pauta de atividades das famílias de catadores é bem diversificada. São vários os produtos que extraem do lixo: papel (diferenciado em branco, "misto" - de cor e jornal - e papelão), garrafas, plásticos, latas (de alumínio e latão) e cobre. Cada um desses produtos é objeto de uma ope- ração diferente de comercialização. O que dá maior volume e renda é o papel. O branco é o mais valorizado, sendo vendido a R$ 0,08 o quilo. O "misto", vale bem menos: R$ 0,02. O alumínio e o plástico rendem R$ 0,30 o quilo. Pelo papelão pode-se obter R$ 0,05 por quilo. O processamento industrial do papel coletado pelos catadores de Brasília é um bom negócio. Estima-se que para cada tonelada adquirida a empresa gasta igual valor no processamento, para depois vender a matéria-prima por 2,5 vezes mais do que os custos. Além da cata do lixo, as famílias que já conseguiram se "assentar" junto à área central da cidade também recor- rem a outras fontes de renda. Os meninos menores, que ainda não conseguem conduzir carroças, geralmente se ocupam de guarda e lavagem de carros nos estacionamentos da cidade: são os flanelinhas. Também cabe aos meninos o trato dos cavalos, principalmente vigiá-Ios enquanto pastam fora 39 Brasília capital de qualquer cerca e próximo a vias de alta velocidade. A separação do lixo, feita junto aos barracos onde moram, é efetuada por todos os membros da família. Os materiais são dispostos em locais determinados, facilitando a comercialização. Assim, cada família possui um "chiqueirinho" (pequeno cercado de mais ou menos 20 m2) para o papel branco e outro para o de cor. Os jor- nais e o papelão ficam dispostos em qualquer lugar. Dispor o papel nesses chiqueirinhos é importante para facilitar a absorção do orvalho ou mesmo da chuva, fazendo com que o peso aumente. Só que isso não quer dizer muito, pois a carga vendida só é pesada na fábrica, sendo paga na pró- xima viagem do comprador. Além disso, a umidade pode causar mofo, que reduz a qualidade do papel e, por conseguinte, seu preço. O cavalo constitui elemento de fundamental importân- cia na economia política do lixo. Garante o transporte, gera alguma renda, quando reproduz, e serve de reserva de valor, espécie de caderneta de poupança dos catadores, que não têm conta bancária nem se sentem seguros para guardar dinheiro em seus barracos. Talvez por sua rele- vância nessa sociedade de catadores, o animal de tração é objeto de cobiça e diferenciação social. Possuir um cavalo significa ingressar num seleto grupo em melhor situação, dentre os migrantes de rua. Aliás, o animal não apenas viabi- liza um fluxo de renda melhor, como também serve de fator de sedentarização, já que seu trato exige certas condições e o produto que transporta implica ter um local fixo para ar- mazenar e vender os materiais. Numa sociedade com padrão de vida tão rudimentar, o cavalo goza de um status elevado: sua ração ali- mentar, complemento do que pasta, custa 30 reais por mês, valor comparável ao da alimentação de seu proprietário. 40 r"'\_ .. Possuir animal está diretamente associado ac mento, mesmo que precário, desses imigrantes. Brasília ser uma cidade bem dispersa espacialm enormes áreas verdes e vazios permeando seu teci( constitui um fator que favorece a adoção do ca\ instrumento de trabalho. Em outras cidades mais a não haveria pasto que justificasse o uso desse transporte. Comprar um cavalo pode ser uma operação de ri~ tem pouco capital, pode comprar um anin procedência", ou seja, roubado ou de dono desc Por conta disso, o comprador não tem garantia de q guardá-Io por muito tempo. O preço, nesse caso varia entre 50 e 100 reais. Já o cavalo "de procedên bem mais caro, podendo chegar até 500 reais. Nessl dono pode até marcá-Io a ferro. A rede de comercialização de animais é ampla. À negócios são feitos entre os próprios catadores. I casos, são chacareiros estabelecidos no Distrito FI oferecem os cavalos "de procedência". E há també . .. que negociam os animais. As carroças, toscas estruturas de madeira arm~ um eixo com duas rodas e pneus, podem ser constru próprios carroceiros. Sua principal característica I área de carga. Por isso, possuem laterais de até dois altura. Já há famílias de catadores que conseguiran , ~ representa um forte fator de aumento de sua n a mesma depende de dois elementos: a capacidadl porte e o número de membros da família trabal "f'n::lr::lr:1O no" m::ltf'ri::li" Novos pioneiros Os catadores-carroceiros da área central de Brasília não são organizados em associações. Entretanto, em seus locais de moradia vigora uma estrutura bem formal de organização. São comunidades relativamente fechadas, em geral circunscritas a relações de parentesco ou, pelo menos, de afinidade (conterrâneos). Em geral, cada grupo, que pode variar de quatro ou cinco a até mais de vinte famílias, tem uma liderança. Pode ser o mais velho, sobretudo nos casos de relações familiares, mas também pode ser o mais antigo em Brasília. Este último tem a importância de ter sido o desbravador, aquele que primeiro migrou e abriu caminho para os demais. Em alguns casos, as famílias não precisaram passar pela difícil experiência de con- quistar o caminho para o centro da cidade. Elas já chegaram diretamente com a referência de seus predecessores. A posição dos pioneiros é hierarquica- mente superior na comunidade local. Não chega a haver barreira à entrada de estranhos nas áreas ocupadas por cada grupo. Mas há uma certa rejeição, de tal modo que, havendo vastas áreas ocu- páveis nas imediações, um novo grupo pode fundar outro núcleo de povoamento. Junto à cidade satélite de Riacho Fundo, à beira da estrada e próximo a um depósito de lixo, encontra- vam-se umas 20 famílias, todas vindas de Jacobina, na Bahia. Viviam da cata do lixo e foram chegando, pouco a pouco, seguindo seus próprios pioneiros. De forma caricatural, reproduziam a epopéia da constru- ção da capital, da imigração em busca de um futuro, 42 Da utopia à exclusão que logo é referência para a vinda de parentes e amigos. São aproximadamente 350 as famílias de catadores que residem em barracos precários, nas áreas verdes da cidade, próximas aos pontos centrais de maior facilidade para a coleta do lixo reciclável.8 Numa extensão de uns oito quilô- metros de comprimento por não mais de um de largura, entre o Palácio da Alvorada e o clube AABB, podem ser identificados mais de 20aldeamentos de catadores. O mai- or deles localizava-se junto ao Supremo Tribunal de Justiça (talvez um dos maiores mananciais de papel da cidade!), já tendo reunido mais de 45 famílias. Nesse caso, houve um processo de remoção, mas a metade dos transferidos deixou o local onde foram instalados, regressando para as proximidades das fontes de cata. É impossível o Presidente da República não notá-Ios em sua rota diária de casa par~ o trabalho. Não apenas seus barracos são visíveis, como também o são as carroças que trafegam nas mesmas pistas. A cena, aliás, é um expressivo retrato do Brasil. Muito perto do Presidente da RepÚhlica... (Foto: Renato de Araújo) 43 Políticas Públicas Em relação à população de imigrantes excluídos que vi- vem nas ruas, as políticas públicas se mostram pouco eficazes. Resultado de um problema nacional, seu enfrentamentosó vem se dando no nível local. E, é claro, o grau de complexidade do problema e a mobilidade espacial dessa população acabam por neutralizar as ações que se limitem a tratar apenas das manifestações evidenciadas em cada lugar. Na prática, tem ocorrido uma formidável negligência em termos de uma política pública em plano nacional com re- lação à questão das migrações. Passada mais de uma década do fim das malfadadas políticas de ocupação da fron- teira amazônica, não houve uma diretriz que servisse para evitar ou, pelo menos, para orientar ao fluxo de êxodo rural. Por conta da situação agrária do país, grandes contingentes de agricultores são condenados a buscar as cidades; primeiro um centro de pequeno porte e depois uma grande metrópole. Os habitantes urbanos assistem, perplexos e cada vez mais atemorizados, à "invasão" dos miseráveis. Muitas prefeituras do interior induzem seus pobres ao caminho da emigração. Chegam, inclusive, a pagar suas passagens de ida para outro lugar. Ao chegarem a seu destino, em diferentes pontos do Brasil, esses migrantes por vezes são acolhidos pelos esquemas oficiais, que pre- vêm a compra de passagens de regresso. Ora, essa prática facilita o ciclo de perambulação, que pode não ter fim. A inexistência de uma política de abrangência nacional mostra a fragilidade desse mecanismo. Um prefeito paga a passagem para se livrar do "problema" e o outro repete a mesma operação. No fim, chega-se ao ponto de partida e só quem ganha são as empresas de transportes. Trata-se 44 Da utopia à exclusão de um jogo de soma zero. E essejogo coloca em evidência o imperativo de se atuar sobre as causas e não apenas sobre as manifestações perceptíveis em cada cidade. Algumas cidades vêm buscando, recentemente, implantar políticas de renda mínima que sirvam para assegurar condições básicas de subsistência às populações de baixa renda. De uma forma ou de outra, a inspiração é a experiência francesa adotada durante o governo Mitterand, a RMI - Renda Mínima de Inserção. Mas a adoção de tal tipo de benefício pode se constituir em fator adicional de atração demográfica cuja intensidade pode, no limite, comprometer a própria capacidade do governo local em seguir concedendo esse auxílio. Em localidades de pouca dinâmica populacional, para onde normalmente não afluem grandes contingentes de migrantes oriundos de outras regiões, é possível a adoção de mecanismos de inserção social dos mais pobres. Mas nos grandes centros urbanos que estão no foco das grandes rotas de migração nacional, é cada vez mais difícil a adoção de políticas públicas voltadas à inserção dos migrantes recém-chegados. Isso se dá por duas razões básicas, além, é claro, da crise financeira dos governos locais: primei- ramente, porque uma parcela grande dessa população é apenas transitória e não permanece muito tempo em cada local; em segundo lugar, porque, paradoxalmente, quanto mais eficiente for uma política de inserção, maior será a atração demográfica. Brasília está inovado em matéria de garantia de renda mínima. Sem se eximir de sua responsabilidade em relação aos excluídos que vivem na cidade, mas evitando criar mais um fator de atração de novos migrantes, o governo local instituiu a Bolsa Escola. Esse instrumento, ao mesmo tempo em que serve para assegurar um mínimo de subsistência às famílias de baixa renda, serve também para induzir os 45 Brasilia capital pais a manterem seus filhos nas escolas, abrindo-lhes me- lhores oportunidades de futuro e reduzindo os riscos presen- tes da vida nas ruas. Ao final de 1996, são 22 mil famílias recebendo um salário mínimo mensalmente, desde que todas as suas crianças de 7 a 14 anos estejam freqüentando assiduamente a escola. São elegíveis para tal benefício as famílias cuja renda média por membro seja inferior a meio salário mínimo. Mas há um critério para a concessão da Bolsa Escola que busca evitar o aumento da atratividade demográfica de Brasília: apenas famílias já estabelecidas no Distrito Federal há mais de cinco anos podem gozar desse auxílio. Os dados da pesquisa de campo, realizada mais de um ano após o início do programa da Bolsa Escola, não revelou nenhum caso de migrante que tenha chegado ao DF em busca de tal benefício. Custo social Além do visível mal-estar social que representa a convivên- cia da capital do Brasil com uma população de rua que se sustenta com o lixo, há também um custo social que precisa ser considerado. É muito difícil mensurar o ônus que representa a impotên- cia do poder público local ou mesmo a sua ação no sentido de lidar com este problema social. A impotência se traduz em tolerância, no sentido de admitir a existência de famílias em tais condições, e na falta de uma política efetiva de inserção das mesmas no circuito econômico e social formal da cidade. A açelo deve ser avaliada pelas medidas de enfrentamento do problema, tais como praticadas pelos organismos de assistência 46 Da utopia à exclusão BOX 1 A TRAGÉDIA DASÁREAS COMUNAIS Uma parábola anti-neoliberal Em dezembro de 1968 Garrett Hardin publicou um artigo que se tornou clássico: "The Tragedy of the Commons"'. O momento era de alerta em relação aos riscos de um crescimento econômico e demográfico desmesurado, que se chocava com as limitaçôes da auto-regeneração da natureza. A parábola sobre as áreas de uso comunalmostra-se oportuna, hoje. " A tragédia das áreas de uso comunal (commons) se desenvolve da seguinte maneira. Imagine um pasto aberto a todos. É de se esperar que cada pastor buscará manter o maior nÚmero de rezes possível na área. Tal arranjo pode fimcionar de forma razoavelmente satísfatória por séculos, porque guerras tribais, pilhagem e epidemias mantêm o nÚmero de pessoas e animais bem abaixo da capacidade de suporte da terra. Entretanto, acaba chegando o dia em que o objetivo tão desejado da estabilidade social se torna uma realidade. Nesse ponto, a lógica inerente ao uso de áreas comunais se reverte, sem piedade, em tragédia. Como seres racionais, cada pastor busca maximizar seu ganho. f);plicita ou implicitamente, mais ou menos conscientemente, ele pergunta: ' Qual a utilidade, para mim, de agregar mais um animal ao meu rebanho?' Tal utilidade tem um aspecto negativo e outro positivo. 1. O positivo resulta do incremento de um animal. Desde que o pastor receba a renda da venda da rez adicional, a utilidade positiva é de aproximadamente + 1. 2. O negativo resulta do aumenlo do sobre-pastejo de um animal a mais. Entretanto, como os efeilos do sobre-pastejo são divididos por todos os pastores, a utilidade negativa de cada decisão tomada por um pastor é de apenas uma fração de -1. Computando as utilidades parciais, o pastor racional conclui que a decisão mais sensata é agregar mais um animal a seu rebanho. E mais um, e outro mais... lv/as essa mesma decisão é tomada por todos os pastores racionais que dividem o uso das áreas comunais. Essa é a tragédia. Cada homem está trancado num sistema que o compele a aumentar seu rebanho sem limites - num mundo que é limitado. (..) A liberdade, no uso de áreas comunais, traz a ruína para todos. " Analogamente. a gestão "liberal" do problema da perambulação de migrantes de baixa renda, com cada município buscando uma fórmula que seja a melhor para si, leva a uma "tragédia" que, no caso, se expressa no iogo de soma zero, onde todos saem perdendo. A parábola apresentada por Hardin aponta a necessidade de um sistema de decisões que se sobreponha ao somatório das decisões individuais, de forma a assegurar o bem comum. No caso, fica evidente o papel decisivo do poder pÚblico federal. , in Daly e Townsend (1993). A parábola de Hardin está baseada no trabalho do matemático amador William Forster Lloyd, publicado em 1833. 47 Brasília capital social e de limpeza urbana, pelas administrações regionais e pelas forças policiais. No primeiro semestre de 1996 foi empreendida uma operação de remoção de 45 famílias de catadores que esta- vam numa área adjacente ao Supremo Tribunal de Justiça, a poucos passos do Paláciodo Planalto. O Governo do Distrito Federal montou um programa de transferência dessa população para outra área, aonde seria transportado diariamente o lixo, para ser catado, libe- rando-se a área ocupada. Depois de negociações e acertos, a mudança se efetivou. Foram necessários 18 caminhões da limpeza urbana para a limpeza das 2.120 toneladas de entulho e lixo acumulados. A um custo médio de R$ 50 por viagem, e considerando uma carga média de cinco toneladas, o custo total da limpeza pode ser estimado em algo em torno de R$ 470 por família. Mas não são apenas estes os custos. É preciso contar, também, o custo da limpeza do rastro de sujeira esparramada diariamente pela carroças, nas vias por onde circulam. Outros custos devem ser igualmente computados, como é o caso da manutenção de toda uma estrutura governamental montada para lidar com esse problema, envolvendo polícia, serviço social, obras e limpeza urbana. E outros custos, nem sempre mensuráveis, têm de ser contados também. Os acidentes, freqüentes, causados pelo tráfego noturno de carroças sem sinalização adequada, causando danos humanos e materiais são apenas parte des- ses custos. A deterioração das condições de saúde das populações catadoras de lixo representa outro custo não mensurável monetariamente. Sem dúvida, o saldo entre a renda auferida pelas famí- lias no curto prazo e o custo real de tais práticas é negati- vo. Seria mais em conta, sem dúvida, evitar o pro- blema, enfrentando-o sobretudo em suas origens rurais. 48 Parte 11 ~~ ~m~M~m~~n~ ~~ ~~~n~l 1. SOBRE A PESQUISA A pesquisa de campo foi realizada nos meses de maio e junho de 1996, quando ainda não se sentia o ímpeto da estação da seca, que normalmente conduz a Brasília um contingente de migrantes temporários. Ficou estabele- cido que seriam entrevistadas apenas famílias que tivessem chegado ao Distrito Federal após o início de 1995, ou seja, no mandato do governador Cristovam Buarque. Este havia deixado claro, desde os tempos da campanha eleitoral, que em seu governo não daria continuidade à política de distribuição de lotes com fins eleitoreiros. Buscava-se, portanto, aferir até que ponto o término formal da "farra dos lotes" implicaria dimi- nuição do fluxo migratório de famílias que tivessem esta expectativa. Foi feito, inicialmente, um estudo exploratório, bus- cando entender a lógica da subsistência de tais famílias, suas expectativas, onde se localizam na cidade, meca- nismos de informação e interação com a vida da Brasília capital. Logo, desenhou-se um instrumento de coleta de dados, contendo informações sobre condições de vida na origem e situação atual. Uma primeira versão do questionário foi testada, num local onde se aglomeravam algumas famílias, doze das quais se enquadravam no critério estabelecido pela pesquisa: terem chegado a Brasília após 10 de janeiro de 1995. O resultado foi intrigante: as doze famílias eram oriundas da Bahia. Além disso, foi possível corrigir algumas formulações de questões que não estavam apropriadas. Ao final, chegou-se a um total de 58 questões. Depois de identifi- cados os pontos em que esses migrantes se localizam, foram aplicados 150 questionários. Os resultados foram 51 Os perambulantes na capital tabulados e alguns cruzamentos de informações se fize- ram necessários para o aprofundamento das análises. Para checar a consistência das informações recolhidas e para melhor traçar o perfil das famílias-tipo, foram realizadas entrevistas abertas em alguns locais. Buscou-se, também, levantar informações com algumas pessoas que conhecem e têm experiência prática com essa problemática. A análise preliminar dos dados já revelou uma situação muito particular: o conceito tradicional de migração não se adequa convenientemente ao caso de boa parte das famílias estudadas. Suas trajetórias de deslocamentos pelo país, o modo como se locomovem (a pé, de carona), o tipo de moradia (em vários casos, inexistentes; em outros, apenas uma lona plástica), a perda de referência em relação a um endereço onde possam ser localizados; tudo isso os colo- ca numa situação bem particular. Não são, definitivamen- te, apenas migrantes: são perambulantes. Esse novo conceito reflete bem a nossa era: a era da saturação absoluta das condições de subsistência em áreas rurais, da existência de meios e vias de transporte relativamente rápidos e acessíveis, ligando as localida- des interioranas aos grandes centros urbanos (embora vários viagem a pé e de carona), da fácil circulação de notícias, da incapacidade das cidades acolherem e inse- rirem em sua dinâmica os que chegam. E expressa, também, o fabuloso fascínio que exerce a cidade grande, enquanto ideal de melhoria das condições de vida. Perambulam pelo Brasil, como perambulam pelas cidades por onde vão ficando. Não são contados nas estatísticas oficiais, pois não permanecem em local fixo. Ou podem fazer parte de estimativas de contagem em mais de um local. Em todo caso, não figuram nos censos da FIBGE. 52 Metodologia e objetivos o estudo se concentrou na população de rua, que sobrevive em Brasília pedindo esmolas, praticando pequenos serviços e catando papel e outros materiais nas ruas e nos lixos da cidade. Este contigente é formado por migrantes que chegam ao Distrito Federal e não conseguem domicílio fixo e nem emprego, seja no mercado formal, seja no informal. Alguns vivem em invasões (ocupações urbanas irregulares) próximas a depó- sitos de lixo; outros, sob pontes e nas ruas do Plano Piloto (centro de Brasília) e nos centros das Regiões Administra- tivas (periferia de Brasília). Esta população é caracterizada por um alto grau de pobreza e por ser composta de migrantes recentes. Muitos desses voltam para suas cidades de origem ou migram para outros centros urbanos. Entretanto, alguns procuram permanecer no Distrito Federal, mas não conseguem se engajar no mer- cado de trabalho e nem se estabelecer em endereços fixos. Sendo assim, passam a procurar alguma fonte de renda e sobrevivência, formando grupos coesos e altamente característicos. Ao serem pesquisadas 150 famílias de migrantes que vivem nas ruas e que chegaram há menos de um ano e meio ao Distrito Federal, foi possível demarcar indícios e, minimamente, caracterizar esse tipo de população excluída. A pesquisa mostrou como os migrantes pobres, ao chegarem a Brasília, tornam-se catadores e moradores de rua. Além disso, evidenciou como esta população vivia em sua última procedência ou cidade de origem, seus relacionamentos sociais básicos e sua visão do Estado como provedor. 53 Os perambulantes na capital Percebe-se, de modo global, que há laços sociais caracterís- ticos e que a população de rua pode ser definida a partir de suas relações com a esfera do trabalho excluído. Além das características gerais da população que migrou recentemente e que vive nas ruas do Distrito Federal, o quadro pesquisado aponta para algumas evidências teóricas que poderão ser usadas em estudos posteriores. A primeira pode ser assim enunciada: os migrantes que vivem nas ruas sofrem um processo de transformação em seu valores societais originários, principalmente em suas percepções sobre a cidade, as relações de trabalho e o Estado. A segunda mostra que os migrantes participam quotidianamente de "complexas" redes econômicas de sobrevivência ("economia política do lixo"), caracterizando relações de trocas específicas. A terceira evidência demonstra que o imbricamento da esfera de sobrevivência - o reino da necessidade - com a esfera valorativa é o objeto privilegiado para a caracterização das transformações simbólicas nesses grupos. Por fim, a quarta evidência aponta que há, a partir deste processo de transformação de valores, uma tendência de rompimento social desses grupos com as expectativas sociais médias da sociedade brasileira. Nesse sentido, trata-se de um processo que os caracterizaria não só como excluídos da esfera econômica produtiva e do mercado, mas também como excluídos sociais e culturais. o excluído moderno é assim um gruposocial que se torna economicamente desnecessário, politicamente incômodo e socialmente ameaçador, podendo, portanto, ser fisicamente eliminado. Nesta tendência, a expulsão do mundo econômico antecede as do mundo político e social para, finalmente, chegar à esfera da vida. (Nascimento,1994) 54 Pressupostos o convívio quotidiano e árduo com um tipo específico de trabalho, com suas regras e estratégias próprias, cria pessoas típicas, com imagens e consciência específicas. Para entender como este grupo se relaciona com a cidade, com as redes sociais familiares, com a própria esfera do trabalho e com o Estado, fez-se necessário compreender o sistema de valores que rege suas imagens e sua consciência. Não se quer dizer com isso que a esfera do trabalho seja universalmente a única responsável pela formação social e cultural de todos os grupos societais. Admite-se a plura- lidade de sociabilidades, o que, por sinal, é marca caracte- rística das sociedades complexas e mais característica ainda das sociedades modernas, onde o grau de diferenciação e individualização, associado ao alto grau de diversificação institucional, de papéis e esferas estruturantes, é enorme. A constatação é de que a esfera do trabalho, que não se reduz a trocas materiais, mas inclui, nesta conceituação, os substratos valorativos em relação à produção, é nesse grupo o elemento estruturante. Isso é razoável ao se constatar que as condições quotidianas e o tempo gasto por este com a sobrevivência é o que parece mais significativo. Deste modo pôde-se não só circunscrever o grau de exclu- são econômica a que este grupo está submetido, mas, sobretudo, investigar o grau de exclusão social e cul- tural com relação às expectativas médias da sociedade brasileira. Com isso, foi possível perceber que a noção de exclusão social não pode ser reduzida a uma mera exclusão econômica, do trabalho e do consumo. Esta noção ou categoria pode ser utilizada do ponto de vista sociológico. A exclusão 55 Os perambulantes na capital social seria, portanto, mais que uma exclusão econômica, seria uma exclusão moral e cultural. Estaria ligada direta- mente a uma exclusão dos valores médios societais e de uma sociabilidade excluída. Os níveis mais profundos que garantem a coesão social estariam sendo rompidos. Os catadores seriam mais que miseráveis econômicos, seriam miseráveis sociais e cultu- rais. Nesse sentido, importa desvendar que tipo de socia- bilidade é desenvolvida quotidianamente entre as famílias e seus membros, suas redes de relacionamento econômico e a forma de estruturação familiar dessas pessoas. Em outros termos, trata-se de entender a desuma- nização destes migrantes recentes. Bases da coleta de dados Dois patamares da realidade do migrante recente e mo- rador de rua foram fundamentais para o entendimento das transformações de relacionamento com o trabalho e o per- fil deste contingente: o mundo sócio-econômico e o mundo valorativo em relação à sua própria imagem e ao Estado. Foi possível, por meio da mensuração básica dos aspectos sócio-econômicos desses migrante e, sobretudo, da análise compreensiva das estratégias de ação desenvolvidas por esses grupos, chegar ao sistema de valores que constroem suas representações e imagens da realidade circundante e do Distrito Federal. Foi tal conteúdo social que serviu como o ponto de partida para a análise da transformação de valores e estratégias de ação que configuram a formação social deste tipo de trabalhador. 56 Da utopia à exclusão Foi possível configurar e mostrar como as forças materiais e morais estruturam os valores grupais do migrante recente. A estrutura pesquisada compôs um quadro básico que possibilitou descrever e explicar a ação desses grupos na vida urbana. A base consensual que nutre a consciência grupal e os laços de solidariedade social entre os catadores, entendidos a partir das dimensões do trabalho, da cidade e das relações com o Estado, caracterizou o estudo socioló- gico desse grupo. O pressuposto de que esses grupos instalam unidades não-formais e redes de produção na esfera econômica e de representações foi fundamental. São redes e unidades específicas, tanto do ponto de vista mais convencional (trabalhadores excluídos), quanto do ponto de vista menos convencional (não-cidadão). Essas dimensões do problema - exclusão do trabalho for- mal e exclusão da cidadania -, que configuram uma situação específica, produziram um grupo apto a ser estudado em suas relações interativas, em condições concretas. Estas condições reúnem os elementos fundamentais que caracte- rizam um sistema de valores e imagens definidas por uma estrutura de símbolos culturais estabelecidos e ao mesmo tempo em transformação. 57 2. OS RESULTADOS Quem são? A população de rua que chegou no Distrito Federal a partir de janeiro de 1995 é formada principalmente por jovens casais com filhos (dois terços dos chefes de família ou seus cônjuges têm até 35 anos de idade), que deixaram seus lugares de origem não tanto em busca de um eldorado, mas principalmente fugindo às dificuldades em que se encontra- vam. A expectativa do que encontrariam na cidade era muito baixa: na verdade, suas principais ambições, logo quando chegaram ao Distrito Federal, não iam além de necessi- dades imediatas, como a próxima refeição. A Figura 2 mostra que há um predomínio dos mais jovens. Na faixa etária de 15 a 25 anos concentram-se 31 % dos Figura 2 - Faixa Etâria dos Chefes de Família ou Cônjuges 5% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 0% 16-25 26-35 36-45 46-55 56-70 58 Da utopia à exclusão migrantes recentes pesquisados. Os percentuais das outras faixas são os seguintes: 35% de 26 a 35 anos, 22% de 36 a 45 anos, 8% de 46 a 55 anos e, finalmente, 4% de 56 a 70 anos. A maior parte é formada por negros e pardos (72%), como mostra a Figura 3. Isto confirma que ainda há no Brasil correspondência entre exclusão social e a questão racial. Confirma-se que o maior contigente de excluídos ainda é o dos que estão historicamente alijados do processo de modernização do país. Figura 3 - Distribuição dos Entrevistados por Cor Pardo 42% Branco 27% Figura 4 - Escolaridade dos Chefes ou CÔnjuges Entrevistados 60% 50% 55% 40% !li!Sem Escolaridade . 1° grau incompleto O 1° grau completo I!!!J2° grau incompleto - - . 2°graucompleto30% 20% 10% 1% 3% 0% 59 Os perambulantes na capital Oitenta e oito por cento possuem até o primeiro grau in- completo, sendo que um terço da amostra não possui qualquer escolaridade. A escolaridade é outro representativo quadro do grau de exclusão social dos pesquisados. Conforme a Figura 4 percebe-se que apenas 11% podem ser considerados alfabetizados ou semi-alfabetizados. Os migrantes pesquisados tinham uma variada gama de profissões em suas últimas procedências, conforme se verifica na figura 5. Um alto percentual declarou não ter nenhuma Figura 5 - Profissões ou Atividades de Chefes ou Cônjuges (última procedência) 30% 27% 5% 25% 20% 15% 10% 0% . Agricultores . Trabalhadores da indústria . Trabalhadores domésticos D Mecânicos D Construção civil . Pintores de parede D Sem profissão . Freteiros . Autônomos III!IIFuncionários públicos III!II Trabalhadores do comércio . Outras profissões 60 Da utopia à exclusão profissão ou atividade. Ressalta-se o fato de 27% do universo pesquisado serem agricultores. Este índice mostra os mi- grantes que vieram diretamente do meio rural. Entretanto, em entrevistas abertas, foi possível verificar que muitos dos que declararam ter alguma outra profissão em sua última procedência haviam sido agricultores originalmente. Figura 6 - Renda das Famílias nas localidades de origem 5% 50% 45% 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 0% Tinham uma renda muito baixa, com 50% ganhando até um salário mínimo; 21 % ganhavam entre 1 e 2 salários e 7% declararam que não tinham nenhuma renda. Do restan- te, 10% conseguiam uma renda entre 2 e 4 salários, 6% afirmaram que ganhavam mais de 4 salários e, por fim, 6% não souberam dizer quanto
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