Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ana Terra Reis de Grammont A Pedagogia da Leitura: análise de material didático na perspectiva da Educação Linguística Mestrado em Língua Portuguesa São Paulo 2012 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ana Terra Reis de Grammont A Pedagogia da Leitura: análise de material didático na perspectiva da Educação Linguística Mestrado em Língua Portuguesa Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa, sob orientação da Professora Doutora Dieli Vesaro Palma. São Paulo 2012 3 Banca examinadora _____________________________________________ Profª. Drª. Dieli Vesaro Palma _____________________________________________ Profª. Drª. Nílvia Therezinha da Silva Pantaleoni _____________________________________________ Prof. Dr. José Everaldo Nogueira Junior. 4 Aos meus pais, Julio de Grammont [In memórian] e Leila Reis 5 AGRADECIMENTOS ESPECIAIS À minha mãe, por ter acreditado em mim e pelo suporte psicológico, emocional e material, imprescindível para a finalização deste trabalho. Ao Vitor, pelo amor, cumplicidade e muito companheirismo. Pela paciência e conforto nos momentos em que mais precisei. À Lua, minha irmã, pelo apoio, a amizade e pelo interesse que demonstrou pelo trabalho. À família e queridos amigos, que tiveram muita paciência e compreensão pela minha ausência. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço à Profª. Drª. Dieli Vesaro Palma, quem eu escolhi para ser minha orientadora por ter, em primeiro lugar, acreditado em meu trabalho, por ter me orientado com valiosas sugestões e correções realizadas no decorrer do processo. Pela paciência, apoio e carinho dedicados à minha pesquisa. Ao Prof. Dr. José Everaldo Nogueira Junior, que vem me acompanhando desde a graduação, pelas preciosas contribuições na fase da qualificação e, em especial, pelo incentivo para seguir com meus estudos e entrar no mestrado. À Profª. Drª. Nílvia Pantaleoni, por quem também tenho muito carinho desde a graduação e cujas contribuições melhoraram meu trabalho na qualificação e que me ajudaram a chegar até aqui. À minha eterna professora, a Profª Drª Valeuska França Cury Martins, que me acompanha desde a graduação e sempre me acolheu nos momentos em que mais precisei. Sem ela, sem dúvida, eu não teria chegado até aqui. Agradeço imensamente à Vivian Aparecida Leite da Silva e ao Flávio Dreger da Silva, por todo suporte que me deram no decorrer desse processo. Pela paciência, lealdade carinho e disposição com que me ajudaram sempre que precisei. À Christiane Gally, por todo apoio que me deu desde que nos conhecemos, na pós-graduação. Por ter se disposto a revisar este trabalho, mesmo com pouca disponibilidade de tempo, e ter feito o possível e impossível para fazê-lo. Ao Guilherme Xavier da Silveira Viana, meu amigo, que se dispôs a fazer a tradução do resumo deste trabalho em cima da hora e, principalmente, pela lealdade com que sempre me tratou. 7 “Quem não lê não sabe o que está perdendo, pois a leitura dá um sentido espiritual à vida, abre horizontes, dá uma visão melhor e mais ampla do mundo e da sociedade em que vivemos, estimula a imaginação e o sonho, cria possibilidades antes impensadas de reivindicar mudanças em nossa sociedade, corrigindo as injustiças sociais e políticas que nos afligem.” José Mindlin 8 A Pedagogia da Leitura: análise de material didático na perspectiva da Educação Linguística Ana Terra Reis de Grammont Resumo “A pedagogia da leitura: análise de material didático na perspectiva da Educação Linguística” é o resultado de uma investigação realizada de 2009 a 2012, situada na linha de pesquisa “Leitura, Escrita e Ensino de Língua Portuguesa” do Programa de Estudos de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi orientada pela Profª. Drª. Dieli Vesaro Palma, líder do Grupo de Pesquisa em Educação Linguística para o Ensino de Português – GPEDLINP, da PUC-SP – da PUC-SP. A presente pesquisa objetivou analisar, pela perspectiva da Educação Linguística, de que forma o livro didático trabalha a pedagogia da leitura, com a finalidade de responder às perguntas: 1. Qual o modelo de leitura que subjaz à proposta do LD? 2. De que forma os autores tentam acionar o conhecimento prévio dos aprendentes? Para a análise, fazemos uso da pesquisa interpretativista crítica, que está inserida no paradigma qualitativo de pesquisa, com o intuito de analisar os exercícios de compreensão e interpretação de texto, do livro didático de Língua Portuguesa, do 6º ano do Ensino Fundamental II, da coleção didática Português – Linguagens, dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Concluímos que as questões propostas fundamentam-se no modelo interativo de leitura, de base cognitiva, embora haja a predominância do modelo ascendente (bottom-up), em comparação ao descendente (top-down) (KLEIMAN, 2008 e KATO, 1990). Os autores tentam ativar os conhecimentos prévios dos leitores-aprendentes por meio das perguntas de interpretação, além de destinarem uma seção de cada unidade com esta finalidade. Assim, consideramos ter atingido satisfatoriamente os nossos objetivos, a saber: 1. Constatar qual o modelo de leitura que subjaz a proposta do LD analisado. 2. Analisar de que forma os autores tentam acionar o conhecimento prévio dos aprendentes. Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa. Gênero textual. Pedagogia da Leitura.Educação Linguística. Livro Didático. 9 Reading pedagogy: schoolbook analysis under the Linguistic Education perspective Ana Terra Reis de Grammont Abstract Reading pedagogy: schoolbook analysis under the Linguistic Education perspective is the outcome of an investigation carried out from 2009 to 2012 following the “Portuguese language reading, writing and teaching” research track from the Portuguese Language Studies Program from the Pontific Catholic University of São Paulo, guided by Prof., Dr. Dieli Vesaro Palma, PUC-SP Linguistic Education for Portuguese Teaching research group leader – PUC-SP GREDLINP-. The following research has intended to analyze it under the Linguistic Education perspective in what way the schoolbook explores the reading pedagogy so the following questions can be answered: 1. What is the reading model which rests under the schoolbook? 2. How do the authors try to awake the learners´ previous knowledge? So the analysis is done we have used the critic interpretative research, which lies in the research qualitative paradigm, aiming for analyzing the Portuguese Language schoolbook text interpreting and comprehension exercises of the Fundamental School II 6th grade from school collection Portuguese – Languages, featuring William Roberto Cereja and Thereza Cochar Magalhães as authors. We conclude that the cognitive reading model awakened by the questions was interactive, although the majority is bottom-up, contrasting with the top-down (KLEIMAN, 2008 and KATO, 1990). The authors try to awake the readers-learners´ previous knowledge through the interpreting questions, besides saving a section in each unity for this purpose. Therefore, we consider achieving satisfactory our goal: 1. Discovering what reading model rests under the proposal of the analyzed LD. 2. Analyzing how the authors try to awake the learners´ previous knowledge. Keywords: Portuguese LanguageTeaching. Text Gender. Reading Pedagogy. Linguistic Education. Schoolbook. 10 Sumário Introdução ................................................................................................................... 12 Capítulo I. Educação Linguística................................................................................. 20 1.1. Perspectiva de Educação: prática da liberdade .................................... 20 1.2. Conceito de EL....................................................................................... 35 1.2.1. Dimensões Linguísticas............................................................... 41 1.2.1.1. Linguagem................................................................... 41 1.2.1.2. Língua, Norma e Uso (Variedade linguística)............. 42 1.2.1.3. Gêneros Textuais........................................................ 47 1.2.1.4. Texto........................................................................... 52 1.2.2. Dimensões pedagógicas............................................................. 54 1.2.2.1. Transposição Didática................................................. 54 1.2.2.2. Contrato Didático......................................................... 56 1.2.2.3. Situações Didáticas..................................................... 57 1.2.2.4. Obstáculo Epistemológico........................................... 61 1.2.2.5. Registros de Representação....................................... 64 1.2.2.6. Teoria dos Campos Conceituais................................. 65 1.2.2.7. Engenharia Didática.................................................... 67 Capítulo II. A Pedagogia da leitura.............................................................................. 71 2.1. O que é ler? Para que ler?..................................................................... 72 2.2. Paradigmas de leitura e suas respectivas abordagens.......................... 76 2.2.1.1. Paradigma Tradicional...................................................... 77 2.2.1.2. Abordagem Tradicional..................................................... 77 2.2.2. Paradigma Cognitivista................................................................ 80 2.2.2.1. Abordagem Cognitivista.................................................... 82 2.2.2.1.1. Modelo ascendente (Bottom-up) de leitura............ 86 2.2.2.1.2. Modelo descendente (Top-down) de leitura.......... 87 2.2.2.1.3. Modelo interativo de leitura.................................... 87 2.2.2.1.4. Estratégias de leitura.............................................. 89 2.2.2.2. Abordagem Interacional.................................................... 90 2.2.3. Paradigma Sociocultural.............................................................. 91 2.2.3.1. Abordagem da leitura como prática social........................ 92 2.2.3.2. Eventos e práticas sociais de leitura................................. 94 2.2.3.3. O Pensar Alto em Grupo (PAG)........................................ 95 2.3. A leitura no ambiente escolar: formação de leitores............................... 95 2.3.1. Gêneros Textuais na escola: sequências didáticas..................... 104 11 2.3.2. O livro didático (LD)................................................................. 106 Capítulo III. Metodologia e Análise.......................................................................... 110 3.1. Contextualizando a pesquisa.............................................................. 110 3.2. O paradigma qualitativo x paradigma quantitativo............................. 111 3.2.1. A pesquisa interpretativista crítica........................................... 115 3.2.2. Análise documental................................................................. 115 3.2.2.1. Contexto ............................................................................ 117 3.2.2.2. O autor ou os autores........................................................ 118 3.2.2.3. A autenticidade e a confiabilidade do texto....................... 118 3.2.2.4. A natureza do texto............................................................ 118 3.2.2.5. Os conceitos-chave e a lógica interna do texto................. 119 3.2.2.6. A análise............................................................................ 119 3.3. Análise do corpus............................................................................... 119 3.3.1. Análise preliminar.................................................................... 120 3.3.1.1. Contexto............................................................................. 120 3.3.1.2. Sobre os autores................................................................ 123 3.3.1.3. Natureza do LD.................................................................. 124 3.3.1.3.1. Descrição da coleção........................................ 124 3.3.1.3.2. Análise da apresentação da coleçãoPortuguês: Linguagens – Ensino Fundamental.................. 133 3.3.1.3.3. Análise das questões sobre leitura................... 134 3.4. Discussão dos resultados................................................................... 151 Considerações finais................................................................................................ 152 Referências bibliográficas........................................................................................ 155 12 INTRODUÇÃO A pedagogia da leitura: análise de material didático na perspectiva da Educação Linguística é o resultado de uma investigação realizada de 2009 a 2012, situada na linha de pesquisa “Leitura, escrita e ensino de língua portuguesa” do Programa de Estudos de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, orientada pela Profª.Drª. Dieli Vesaro Palma, líder do Grupo de pesquisa em Linguística Funcional – PUC-SP1, GPeLF, do qual fazemos parte. A pedagogia da leitura aqui é vista pela perspectiva da Educação Linguística2, pois entende a Educação como um processo de ensino- aprendizagem, onde a aprendizagem acontece por meio da troca entre os atores envolvidos, que tanto ensinam como aprendem. Com o fim apenas didático, a EL se divide em quatro pedagogias do ensino: a pedagogia do oral, da leitura, do escrito e do léxico-gramatical, destacando que “esta divisão se presta exclusivamente a um melhor detalhamento dos estudos, pois na prática de língua não é possível separarmos o ouvir do ler ou o conhecimento do funcionamento da língua do escrever”. (REGO, 2009: 23). O nosso tema é a leitura do livro didático de língua portuguesa, destinado a estudantes do 6º ano: Português: Linguagens, dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Queremos descobrir como os exercícios de leitura são elaborados, pois, a partir deles, os professores desenvolvem as atividades em sala de aula a fim de formar leitores. A partir dessa pesquisa, levantamos questionamentos expressos pelas seguintes perguntas: 1. Qual o modelo de leitura que subjaz à proposta do LD? 2. De que forma os autores tentam acionar o conhecimento prévio dos aprendentes? 1 O GPeLF existe desde 2006 e tem como membros doutores, mestres, mestrandos e estudantes de pós-graduação, que se reúnem mensalmente para discutir obras que dizem respeito ao Ensino de Língua Portuguesa e à Educação linguística em sala de aula. 2 Neste trabalho será referida por EL. 13 Esta pesquisa surgiu do nosso incômodo com a Educação, primeiramente, como sujeitos atuantes na sociedade e, em segundo lugar, como profissionais da área.Esse incômodo nos persegue desde a época em que éramos secundaristas e escolhíamos qual faculdade cursar. Quando decidimos ser professores, sentíamos que era a profissão que nos permitiria fazer diferença, contribuir paraa transformação do outro e da sociedade. Ainda sem saber o que ensinaríamos, demo-nos conta de que a base da transformação era a nossa língua. Essa sensibilização veio de um episódio, que vou descrever para efeito ilustrativo. Um dia, deparamo-nos com um senhor em frente a um caixa eletrônico de um banco, que segurava, em suas mãos, um envelope com uma quantia de dinheiro que tentava depositar sem conseguir, porque não sabia ler as instruções. Embora o tivéssemos ajudado, pensamos no que poderia ter acontecido caso aquele senhor tivesse cruzado em seu caminho com alguém que não tivesse boas intenções. O episódio nos fez refletir sobre o poder que o domínio da língua materna nos dá e o que a falta dele, nos tira. A história, a nosso ver, pode ilustrar a importância que o aprendizado de Língua Portuguesa tem em nossa sociedade letrada. O mais grave, e que nos preocupa, é saber que aquela situação não é exclusiva àquele homem. O Brasil é marcado pelo alto índice de analfabetismo funcional, aferido por diversos sistemas de avaliação. Crianças não sabem o que deveriam saber na idade em que se encontram e, mesmo assim, formam-se no Ensino Médio, sem o conhecimento mínimo para poder desenvolver-se intelectualmente e ter as mesmas oportunidades que uma pessoa plenamente alfabetizada. Há de se ressalvar a queda no índice de analfabetismo funcional nos últimos sete anos. “Esta evolução pode ser associada à crescente escolarização da população brasileira, que aumentou significativamente nas últimas décadas. A parcela de crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos frequentando a escola, por 14 exemplo, praticamente se universalizou, graças ao maior acesso e permanência na escola.”3 Mas, mesmo assim, a situação é preocupante, pois, segundo a última pesquisa do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional), estudo realizado pelo IBOPE com base na metodologia desenvolvida em parceria entre o Instituto Paulo Montenegro – responsável pela atuação social do IBOPE – e a ONG Ação Educativa, 25% da população brasileira é alfabetizada rudimentarmente, ou seja, “corresponde à capacidade de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares (como um anúncio ou pequena carta), ler e escrever números usuais e realizar operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita métrica.Os dados consolidados do período de 2001 a 2007 confirmam que quanto maior o nível de escolaridade, maior a chance do indivíduo atingir bons níveis de alfabetismo.”4 Essa percepção levou-nos a cursar a Faculdade de Letras. Ao iniciar nossa experiência em sala de aula como professores, vimos que o desafio era maior do que esperávamos: era necessário muito mais do que superar a falta de experiência e a formação cheia de lacunas tanto na Educação Básica como no Ensino Superior. O grande desafio era conseguir realizar um trabalho eficiente, no qual acreditamos, apesar da instituição escolar, de caráter fortemente conservador. A EL destaca o papel de um professor reflexivo, com uma formação que lhe dê suporte para trabalhar de forma autônoma e fazer do livro didático mais um instrumento para alcançar seu maior objetivo é educar. Devemos oferecer atividades de ensino/aprendizagem que permitam aos alunos se preparar para suas vidas – presente e futura – dentro de uma sociedade com uma determinada forma de cultura. Em relação à língua como forma de atuação social e/ou exercício de cidadania, permite-nos afirmar que ela tem uma relação direta com a qualidade de vida de nossos alunos. 3http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por&ver=por, acessado em 24 de abril de 2012. 4http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por&ver=por, acessado em 24 de abril de 2012. 15 A EL seria o conjunto de atividades de ensino/aprendizagem, formais ou informais, que levam uma pessoa a conhecer o maior número de recursos da sua língua e a ser capaz de usar tais recursos de maneira adequada para produzir textos a serem usados em situações específicas de interação comunicativa para produzir efeito(s) de sentido pretendido(s). Ela permite saber as condições linguísticas da significação e, portanto, da comunicação, uma vez que só nos comunicamos, quando produzimos efeito de sentido entre nós e nossos interlocutores. A EL deve, então, possibilitar o desenvolvimento do que a Linguística tem chamado de competência comunicativa, entendida aqui como a capacidade de utilizar o maior número possível de recursos da língua de maneira adequada a cada situação de interação comunicativa. A EL, portanto, trata de ensinar os recursos da língua e as instruções de sentido que cada tipo de recurso (e cada recurso em particular é capaz de por em jogo na comunicação) se apresenta por meio de textos linguísticos. Evidentemente, todos na sociedade, começando pela família e pela escola a seguir, devem trabalhar a EL. O meio em que a criança vive e convive será o responsável por seu aprendizado linguístico. O fim essencial da EL deve ser a discussão de como cada tipo de recurso da língua pode significar dentro de um texto. Ao mesmo tempo, deve utilizar, neste contexto de ensino/aprendizagem, a metalinguagem e as teorias linguísticas/ gramaticais. Do ponto de vista da comunicação, é preciso alertar as pessoas para a questão da variedade linguística: os dialetos e registros que toda língua possui. Mesmo sendo igualmente válidas, essas variedades são rotuladas por uma sociedade que estabelece uma espécie de etiqueta social para o uso da língua e valoriza mais ou menos certas formas linguísticas. Quase sempre essa etiqueta social – norma de uso que configura o que se tem chamado de gramática normativa – não é calcada em critérios linguísticos, mas nas razões de prestígio social (econômico, político, cultural). Assim a EL deve alertar para a existência das variedades linguísticas, suas características, e quão adequado é o seu uso. A EL formal, ou seja, a aprendida na escola, é a 16 responsável quase sempre pela aquisição da variedade escrita da língua, em oposição à variedade falada. A EL na escola deve começar na pré-escola e estender-se até a Universidade, que tem como incumbências: a. produzir o conhecimento linguístico necessário para subsidiar um bom trabalho de educação linguística; b. formar profissionais competentes que sejam responsáveis diretos (professores de Português e de Literatura) ou indiretos (professores de outras disciplinas) pela educação linguística; c. desenvolver a competência comunicativa dos profissionais de qualquer área que forme, tendo em vista que a competência comunicativa é componente essencial à formação de bons profissionais em qualquer área; d. ajudar a estabelecer na sociedade a consciênciada importância da educação linguística, de tal forma que as pessoasentendam sua essencial correlação com a possibilidade de ser cidadãos de primeira categoria, de viver bem e com mobilidade dentro da sociedade. E que desejem e busquem, como um direito seu, uma boa formação linguística. A partir do que apresentamos e das perguntas elaboradas na problematização deste trabalho, nosso objetivo é 1. constatar qual o modelo de leitura que subjaz a proposta do LD analisado; 2. analisar de que forma os autores tentam acionar o conhecimento prévio dos aprendentes. Na fundamentação, buscamos apresentar, primeiramente, o que a EL concebe como Educação. Para tanto, buscamos autores como Paulo Freire (1989, 1996 e 2005), Alicia Fernández (1991, 2001a, 2001b e 2012), Roberto Freire (1987, 1988, 2006) e Sara Paín (2008 e 2009), pois esses educadores acreditam na educação como prática da liberdade, ou seja, uma educação que, em vez de servir à dominação e à preservação do sistemapolítico-econômico vigente e de inibir a criatividade das pessoas, seja transformadora. Uma educação que favoreça o desenvolvimento de sujeitos, de pessoas críticas, 17 capazes não só de interferir e de transformar a realidade em que vivem, mas também que sejam capazes de lutar por uma vida autêntica, autônoma e autorregulada, a fim de exercerem sua cidadania plena, com liberdade. Paulo Freire (1989: 88) assegura que queremos “uma educação para decisão, para a responsabilidade social e política.” A Educação Linguística abrange duas dimensões: a linguística e a pedagógica. Para fundamentá-las, partirmos da linguística textual, sociolinguística e da análise do discurso para trazer definições e conceitos, como texto, linguagem, variedades linguísticas e gêneros textuais, ancorados nos referenciais teóricos contidos nas obras de Bechara (2006), Palma, Turazza & Nogueira Júnior (2008),Lomas (2003), Travaglia (2008) e Antunes (2003 e 2009). Em seguida, tratamos de conceitos, também utilizados na educação matemática, como a transposição didática referente à adequação que determinado saber a ser ensinado será submetido para que possa ser aprendido da melhor forma pelo estudante. Focalizaremos também o contrato didático, que deve ser articulado entre as partes diretamente relacionadas no processo de ensino-aprendizagem para que ele seja possível. Depois, veremos as situações didáticas que caracterizam a situação em que esse processo se dará e também alertaremos o professor para tomar cuidado com os obstáculos epistemológicos que poderá encontrar no caminho para, no lugar de ensinar, não confundir ainda mais seus aprendentes. Finalmente, abordaremos os registros de representação, as teorias dos campos conceituais e de engenharia didática. Nossos referenciais teóricos da pedagogia da leitura, em que discutiremos os paradigmas de leitura e as suas respectivas abordagens, fundamentaram-se em Kleiman (2008),Solé (1998), Smith (1988 e 1999), Bloom (1983), Queiróz (2009), Marcuschi (2007), Bezerra (2010), Antunes, (2003, 2009). Este trabalho estrutura-se da seguinte maneira: No primeiro capítulo, apresentaremos a Educação Linguística (EL) e sua dupla dimensão: a Pedagógica – cuja fundamentação encontra-se nas obras de Paulo Freire (1989, 1996 e 2005), Alicia Fernández (1991, 2001a, 2001b e 2012), Roberto Freire (1987, 1988, 2006) e Sara Paín (2008 e 2009) – momento em que 18 descreveremos como se dá o processo de aprendizagem, individual e socialmente, entre o ensinante e o aprendente – lembrando do papel importante da família e da escola no processo; e a Linguística. No segundo capítulo, desenvolveremos o conceito de pedagogia da leitura e apresentaremos uma reflexão sobre o que é ler. Em seguida, focalizaremos a leitura na visão dos paradigmas tradicional, cognitivo e sociointeracional. Pelo paradigma cognitivo da leitura, abordaremos os três modelos cognitivos e as suas estratégias. Por fim, trataremos do desenvolvimento de leitura na escola e da formação de leitores baseando-nos em Solé (1998), Smith (1988, 1999), Kleiman (2008), Bloom (1983), Queiróz (2009), Marcuschi (2007), Bezerra (2010), Antunes, (2003, 2009). Por fim, apresentaremos a metodologia e análise do corpus. Analisaremos o livro didático de língua portuguesa, destinado a estudantes do 6º ano: Português: Linguagens, dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Na primeira parte, contextualizaremos a pesquisa, retomando as perguntas deste trabalho e os seus objetivos. Em seguida, apresentaremos o paradigma qualitativo e focaremos na pesquisa interpretativista, depois esclareceremos os aspectos da análise documental. Na segunda parte, realizaremos a análise do corpus, que consiste na descrição da coleção de que o Livro Didático (LD) faz parte para, posteriormente, analisarmos a apresentação da coleção e, por fim, fazemos a análise dos exercícios voltados para a compreensão e a interpretação de leitura. Para finalizar, discutiremos os resultados da análise. Nas considerações finais, respondemos às perguntas elaboradas na problematização. As questões propostas fundamentam-se no modelo interativo de leitura, de base cognitiva, embora haja a predominância do modelo ascendente (bottom-up), em comparação ao descendente (top-down) (KLEIMAN, 2008 e KATO, 1990). Os autores tentam ativar os conhecimentos prévios dos leitores- aprendentes por meio das perguntas de interpretação, além de destinarem uma seção de cada unidade com esta finalidade. 19 Acreditamos ter atingido nosso objetivo proposto para este trabalho, uma vez que constatamos o modelo de leitura que subjaz a proposta do LD analisado e analisamos de que forma os autores tentam acionar o conhecimento prévio dos aprendentes. Nossa ambição, com este trabalho, é poder orientar o olhar dos professores sobre os livros didáticos adotados e, desta forma, favorecer a sua autonomia diante dos materiais didáticos usados em sala de aula. 20 CAPÍTULO I EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA Neste capítulo, apresentaremos a Educação Linguística (EL) e sua dupla dimensão: a Pedagógica – cuja fundamentação encontra-se nas obras de Paulo Freire (1989, 1996 e 2005), Alicia Fernández (1991, 2001a, 2001b e 2012), Roberto Freire (1987, 1988, 2006) e Sara Paín (2008 e 2009) – momento em que descreveremos como se dá o processo de aprendizagem, individual e socialmente, entre o ensinante e o aprendente – lembrando do papel importante da família e da escola nesse processo; e a Linguística, ancorada nos referenciais teóricos contidos nas obras de Bechara (2006), Palma, Turazza & Nogueira Júnior (2008) e Lomas (2003). 1.1. Educação como prática da liberdade Paulo Freire (1989, 1996 e 2005), Alicia Fernández (1991, 2001a, 2001b e 2012), Roberto Freire (1987, 1988, 2006) e Sara Paín (2008 e 2009) acreditam na educação como prática da liberdade, ou seja, uma educação que, em vez de servir à dominação e à preservação do sistema político-econômico no qual estamos inseridos e de inibir a criatividade das pessoas, seja transformadora. Uma educação que favoreça o desenvolvimento de sujeitos, de pessoas críticas, capazes não só de interferir e transformar a realidade em que vivem, como também de lutar por uma vida autêntica, autônoma e autorregulada, a fim de exercerem sua cidadania plena, com liberdade. “Uma educação para decisão, para a responsabilidade social e política.” (FREIRE, 1989: 88). Os autores, a partir de distintas atuações, cada um sob uma perspectiva – a da educação, a da psicopedagogia, a da psicologia e a da filosofia 21 respectivamente –, defendem uma ideia comum: a liberdade do ser humano, por meio da autoria de pensamento e da criticidade. Paulo Freire, pedagogo, que trabalhou por muitos anos com Educação de Jovens e Adultos, dedicava-se à alfabetização, por meio dos círculos de leitura. Francisco Weffort (1989:5) ressalta, na introdução do livro Educação como prática da liberdade, de autoria de Paulo Freire, a importância da liberdade em sua pedagogia: A visão da liberdade tem nesta pedagogia uma posição de relevo. É a matriz que atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida da participação livre e crítica dos educandos. É um dos princípios essenciais para a estruturação do círculo de cultura, unidade de ensino que substitui a “escola”, autoritária por estrutura e tradição. Ele acreditava que nossa sociedade precisava aprender a viver em democracia, após tantos anos de ditadura militar. Precisávamos aprender a lutar pelos nossos direitos, a nos reconhecer sujeitos de nossa própria vida, a retomar nossa liberdade. Essa transição, então, seria viabilizada por meio da educação. Freire explica que, assim, iríamos ajudando o homem brasileiro, no clima cultural da fase de transição,a aprender democracia, com a própria existência desta. Na verdade, se há saber que só se incorpora ao homem experimentalmente, existencialmente, este é o saber democrático. (FREIRE, 1989: 92). Ele acreditava ainda que a educação teria de ser, acima de tudo, uma tentativa constante de mudança de atitude. De criação de disposições democráticas através da qual se substituíssem no brasileiro, antigos e culturológicos hábitos de passividade, por novos hábitos de participação e ingerência, de acordo com o novo clima da fase de transição. (FREIRE, 1989: 93). Seu trabalho teve foco na alfabetização de adultos que, como ele mesmo dizia, “transcendia a superação do analfabetismo e se situava na necessidade de 22 superarmos também a nossa inexperiência democrática.” (FREIRE, 1989: 94). Pensava em um “trabalho com que tentássemos a promoção da ingenuidade em criticidade, ao mesmo tempo em que alfabetizássemos”. (FREIRE, 1989: 104). Alicia Fernández é argentina, psicopedagoga, tem seu trabalho voltado ao desenvolvimento da aprendizagem da criança e suas dificuldades no aprendizado. É fundadora do Centro de aprendizagem do Hospital Nacional A. Posadas, em Buenos Aires, Argentina, onde teve a experiência piloto interdisciplinar e interinstitucional de prevenção e atendimento de problemas de aprendizagem, com diferentes serviços do departamento materno-infantil. Dedicou-se a populações carentes e ao atendimento de famílias com crianças e adolescentes com problemas de aprendizagem. Ela observa que a dificuldade de aprendizagem apresentada pelas crianças está ligada ao não desenvolvimento da autoria de pensamento, de sua criticidade e da autonomia, portanto, na sua falta de liberdade. Para a autora, “torna-se cada vez mais necessário que dirijamos nossa ação para produzir condições facilitadoras da autoria de pensamento.” (FERNÁNDEZ, 2001a: 93). Em outras palavras, a autoria do pensamento possibilita a compreensão da própria existência e da condição mais preciosa da humanidade: a liberdade. (cf. FERNÁNDEZ, 2001a). Roberto Freire atuou em diversas áreas culturais, como teatro, educação, jornalismo, literatura, cinema e televisão. Foi terapeuta, tendo se dedicado à psiquiatria e, posteriormente, à psicanálise. Como atuante político ativo, criou a SOMA – uma terapia anarquista – que defendia a política do cotidiano e a ideologia do prazer, nascida na década de 1960, no Brasil, como resistência às forças autoritárias da ditadura militar. Também foi ele militante contra as relações autoritárias ainda presentes na nossa sociedade no cotidiano das instituições, como a família, a escola e o Estado democrático-capitalista. Apesar de hoje não vivermos uma ditadura, vivemos uma democracia neo-liberal, que impõe uma sutil forma de controle e se torna muito mais complexa em suas malhas de poder. A sutileza é sua grande arma: já não percebemos claramente onde navega o autoritarismo e 23 notamos apenas seus efeitos. A escravidão negra ou as ditaduras foram substituídas por um processo de lenta e progressiva diminuição do poder crítico e da autonomia das pessoas, gerando seres dóceis e passivos. Essa domesticação do ser humano começa desde a infância, estendendo-se pela adolescência até atingir a vida adulta, criando homens e mulheres apáticos e acomodados, sem espírito de luta. Educadas por meio de uma pedagogia alienante, a maioria dos jovens torna-se obediente e submissa. (MATA, 2001: 35). Roberto Freire defende a pedagogia libertária, pois acredita que tanto a “pedagogia doméstica, quanto a escolar, quando autoritárias, visam a reprimir nas crianças e nos jovens o sentimento e a necessidade da liberdade como condição fundamental da existência.” (FREIRE, 2006: 220). Ressaltando a importância da instituição escolar como mantenedora ou libertadora do poder, acrescenta que a manutenção do poder do Estado nas ditaduras ou nas democracias capitalistas é garantida não mais diretamente pelas armas e pelo dinheiro. Vem sendo garantida pela família e pela escola, por meio da pedagogia autoritária, apoiada e estimulada pelo Estado autoritário. (FREIRE, 2006: 220). Sara Paín é uma psicóloga argentina, doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e em Psicologia pelo Instituto de Epistemologia Genética de Genebra. Acredita em uma pedagogia em que o conhecimento e o desejo sejam tratados integradamente, que seja levada em consideração a subjetividade de cada aprendente e de cada ensinante1. Paín (2009: 17) afirma que na escola, ao mesmo tempo em que promovemos um conhecimento, promovemos também a emergência de sujeitos que se sentem mais seguros, capazes, felizes, à medida que dominam, ou que se apropriam do conhecimento transmitido. Permitir à criança apropriar-se de um conhecimento é lhe permitir fortificar seu ego, à medida que ela pode se constituir em uma personalidade mais segura, mais dominadora e mais responsável. Para o educador, esses dois aspectos aparecem ao mesmo tempo. Constatamos, entretanto, que, em decorrência de posturas dominadoras, a escola nem sempre desempenha um trabalho 1 Fernández (2001) traz em sua obra os termos aprendente e ensinante, os quais adotamos neste trabalho. Para a autora, os dois termos se interrelacionam, um depende do outro para existir. A criança aprende sozinha, por mais que a intenção do ser ensinante seja prioritária no processo de aprendizagem. 24 competente. Ela domina, oferecendo menos elementos às crianças para pensar, pois seu domínio depende da manutenção da ignorância. É o colonialismo no nível de aula. A função da educação escolar, além de transmitir conhecimentos, é a de contribuir para a formação de sujeitos, inclusive porque, segundo Paín (2009: 15), “o sujeito não é sujeito até que conheça. É sujeito porque conhece, e é sujeito a esse conhecimento”. Sujeitos autônomos, criadores, capazes de pensar autonomamente, que não se sujeitem à heterorregulação e que não sejam acomodados, estes, Guilherme Castelo Branco (2004: 255) afirma serem, segundo texto kantiano, “pacatas criaturas, tímidas, temerosas de pensar, decidir, até de andar.” A escola tem um papel cada vez mais importante no desenvolvimento de sujeitos. Juntamente com a família, é a instituição em que as pessoas passam a maior parte do tempo de suas vidas. Acácio Augusto lembra-nos da grande presença que a escola ganhou nas nossas vidas hoje em dia: a escola não é mais o lugar de uma etapa necessária ao desenvolvimento da criança e do adolescente, estabelecida pelo país, sob o controle do Estado, para uma educação de conhecimentos regulada por pedagogos e psicólogos. Ela perdeu o status de lugar especial, de etapa a ser cumprida ou um estágio a ser vencido para se atingir a vida adulta como um indivíduo preparado. Tornou-se um lugar familiar para toda a vida. Em seu interior se aprende conhecimentos e obediências, mas, também, é pra lá que se dirige a vida do bairro, das redondezas, da comunidade. A escola passou a ser um lugar de convívio onde se estuda, desfruta de lazer e se decidem coisas da vida entre os habitantes do local. (AUGUSTO, 2011: 117). As quatro funções interdependentes da educação, constituída pela dinâmica de transmissão da cultura, no processo de aprendizagem são, segundo Paín (2008), a. Mantenedora: responsável pela continuidade da espécie humana e pela transmissão das aquisições culturais de uma civilização; b. Socializadora: a utilização da linguagem transforma o indivíduo em sujeito. O indivíduo transforma-se em sujeito social e se identifica com o grupo, que com ele se submete ao mesmo conjunto de normas; 25 c. Repressora: a garantia da sobrevivência específica do sistema que rege uma sociedade, instrumento de controle e de reserva do cognoscível; d. Transformadora: modalidadesde militância transmitidas por meio de um processo educativo que consiste não apenas na doutrinação e em propaganda política, mas também nas formas peculiares de expressão revolucionária. Em resumo, “em função do caráter complexo da função educativa, a aprendizagem se dá simultaneamente como instância alienante e como possibilidade libertadora.” (PAÍN, 2008: 12). O processo educativo compreende os comportamentos dedicados à transmissão da cultura, seja pela instituição específica, como a escola, seja pela família. Ambas as instituições servem, paradoxalmente, tanto à conservação, como à transformação da sociedade. A transmissão da cultura é sempre “ideológica, na medida em que é seletiva e é própria da conservação de modos peculiares de operar, e, portanto, serve à manutenção de estruturas definidas de poder”. (PAÍN, 2008: 18). Porém, servem também às transformações, pois “é evidente que, se os sistemas estabilizados precisam educar para conservar-se, os revolucionários necessitam educar, com mais razão ainda, a fim de conscientizar e motivar a militância.” (idem). Uma educação libertária constrói-se desde os primeiros momentos de aprendizagem da criança. Isso quer dizer que a família tem grande responsabilidade nesse processo. “A pedagogia que vem depois, na fase escolar, a pedagogia oficial, é padronizada. Trata-se de um complemento da doméstica.” (FREIRE, 1988: 37). Roberto Freire ainda acrescenta: é importante, sem dúvida, que a criança tenha condições de desenvolver a espontaneidade, criatividade e espírito crítico durante a primeira infância. Ao mesmo tempo, os pais não podem obstruir isso como geralmente fazem. Então queremos ‘explodir’ a estrutura familiar, também temos de tornar os pais acessíveis a uma pedagogia libertadora, profilática, em relação ao autoritarismo. (FREIRE, 1988: 39). O desenvolvimento da criança começa no meio familiar. Sua família será seu primeiro exemplo, primeira referência e, mais ainda: será por meio da troca, 26 da intervenção da família que a criança aprenderá. Portanto, se constituirá como sujeito também, pois o indivíduo “não é sujeito antes da aprendizagem, mas que vai chegar a ser sujeito porque aprende.” (FERNÁNDEZ, 1991: 51). “O problema de aprendizagem que apresenta, sofre, estrutura um sujeito, se situa, entrelaça, sintomatiza e surge na trama vincular de seu grupo familiar, sendo, às vezes, mantido pela instituição educativa.” (FERNÁNDEZ, 1991: 48) Por isso, pode-se dizer que as características dos problemas de aprendizagem diferenciam-se por suas causas ou origens, dividindo-se em dois grupos: a. Os fatores internos ao grupo familiar e ao paciente (problema de aprendizagem-sintoma); b. fatores de ordem educativa, relacionados com uma instituição educativa que rechace ou desconheça a capacidade intelectual e lúdica, a corporeidade, a criatividade, a linguagem e a liberdade do aprendente (problema de aprendizagem-reativo). (FERNÁNDEZ, 1991: 49). Toda aprendizagem passa necessariamente pelo corpo. A apropriação do aprendizado, quer dizer, o seu domínio, traz uma sensação corporal de prazer. Fernández (1991: 59) diz que “a apropriação do conhecimento implica o domínio do objeto, sua corporização prática em ações ou em imagens que necessariamente resultam em prazer corporal.” Uma tarefa só poderá “ser prazerosa se desenvolvida em um espaço de confiança e liberdade, com medida e com possibilidades de apropriar-se do produto do seu trabalho” (idem:61). O processo de aprendizagem perpassa quatro níveis do sujeito: o organismo, o corpo, a inteligência e o desejo. Os dois primeiros se diferem um do outro por seus mecanismos, uma vez que o organismo trata de automatismos, mecanismos involuntários e funcionamentos vitais corporizados do sujeito. O corpo é o lugar onde o organismo funciona e é por meio da interação dele com o meio que se aprende. Embora organismo e corpo sejam tratados indiferentemente, para nós, educadores, é necessário fazermos essa diferenciação. O organismo são todas as nossas funções vitais e só nos damos conta dele quando alguma dessas funções falha. São mecanismos involuntários, que não passam pela nossa 27 consciência para funcionar. A suas falhas são emitidas por meio de sinais para nossa consciência, em forma de dor, espirro, asfixia etc. As nossas funções vitais, tais como nossos instintos, são automatismos, que funcionam em e pelo nosso organismo. Eles são fundamentais para a aprendizagem, pois o organismo tem – dentro do que possa ser a aprendizagem – a possibilidade de inscrever os esquemas perceptivo-motores. O organismo é capaz de inscrever certo tipo de conhecimento de maneira que tenha o mesmo valor dos instintos, das respostas instintivas. Quer dizer que, no homem, coisas tão elaboradas como a escrita ou a palavra podem ser realizadas, num certo momento, como se fossem instintivas, tal como o canto dos pássaros. Isto porque a inscrição se faz no nível do organismo. (PAÍN, 2009: 64). Sara Paín reforça a importância da automatização no processo da aprendizagem: “a automatização permite que uma parte já não seja pensada – que esteja inscrita –, para que o pensamento possa se preocupar em adquirir novos conhecimentos.” (PAÍN, 2009: 64). A construção de novos conhecimentos se dá a partir – ou sobre – o conhecimento já automatizado, portanto, apropriado pelo aprendente. O corpo, diferentemente de organismo, é o lugar onde acontecem as coordenações perceptivo-motoras. É por meio dele, por sua interação com o meio externo, no momento presente, que a aprendizagem ocorre. É, no organismo, que fica armazenada a aprendizagem, quando apreendida. “O organismo, transversalizado pela inteligência e o desejo, irá se mostrando em um corpo, e é deste modo que intervém na aprendizagem, já corporizado” (FERNÁNDEZ, 1991: 62). Entretanto, no corpo, não só é coordenada a percepção em todos os seus níveis, com o movimento, como também são sentidos com o corpo “todos os afetos (sentimentos e emoções). Tudo ressoa no corpo. Quer dizer que, em cada movimento, ao mesmo tempo ressoa corporalmente um sentimento.” (PAÍN, 2009: 65). 28 Tanto a inteligência quanto o desejo são estruturas que fabricam o conhecimento nos níveis da objetividade e da subjetividade, respectivamente. Elas se diferenciam pelas suas construções, ou seja, o modo como se dão os seus mecanismos, suas operações e seus resultados. Enquanto a objetividade instaura a realidade, a subjetividade se instaura na irregularidade. Tal realidade se constitui por aquilo que está fora de nós, que não podemos modificar, é a realidade do que é possível. Paín (2009: 19) diz que o subjetivo se constitui na esfera do desejo e é o que nos diferencia como pessoa singular. O desejo é algo que falta; não existe na realidade. Para que haja desejo, tem que haver falta. Assim, o desejo se instaura em uma irrealidade. Pensamos por meio da significação simbólica e pela nossa capacidade de organização lógica – a primeira na esfera do desejo e segunda na esfera da inteligência, simultaneamente. (cf. FERNÁNDEZ, 1991). Na ordem da inteligência, “o pensamento é pensamento do que eu projeto como possível, dentro da realidade. Na ordem do desejo, ao contrário, o que se pensa é o impossível.” (PAÍN, 2009: 19). Entender o problema de aprendizagem é compreender como se dá a relação que se estabelece entre a estrutura da inteligência, “de caráter claramente genético, que vai se autoconstruindo, e uma arquitetura desejante, que, ainda que não seja genética, vai entrelaçando um ser humano que tem uma história” (FERNÁNDEZ, 1991: 67). A inteligência é uma estrutura lógica, genética. O conhecimento se constrói por meio de um trabalho lógico, a partir de ações, de experiências e intercâmbio com a realidade, com o meio. Ela funciona por meio de mecanismos, definidospor Sara Paín (2009: 25) como determinadas reações de comunicação com o meio, que constroem os elementos sobre os quais o pensamento pode atuar. Os mecanismos vão captar as coisas exteriores e metabolizá-las para que possam ser digeríveis. Há uma série de mecanismos entre o que é matéria e o que é pensamento, para que possamos ter elementos de pensamento. Tenho primeiro que tornar os objetos cognoscíveis, antes de conhecê-los, porque eles não são imediatamente cognoscíveis. Tenho de transformá- 29 los, para conhecê-los. Para passar da matéria ao pensamento, algo tem de se converter. Segundo Piaget (1965, apud FERNÁNDEZ, 1991: 71), “todo conhecimento é sempre assimilação de um dado exterior às estruturas do sujeito”. Piaget foi um grande pesquisador do desenvolvimento da inteligência, especificamente da criança. Dois mecanismos, trazidos por ele, são a assimilação e a acomodação. “A assimilação seria a capacidade de o sujeito construir o mundo de acordo com seus próprios esquemas. O mundo se converte naquilo que ele pode assimilar.” (PAÍN, 2008: 25). Quando, porém, o mundo exigir transformações muito grandes, nosso organismo se adapta, por meio da acomodação. “Ele se acomoda para assimilar o que existe.” (PAÍN, 2008: 25). São mecanismos inversos e complementares. Apenas após termos nos apropriado do mundo, por meio dos nossos esquemas, é que poderemos transformá-lo, isto é, apenas depois de tê-lo assimilado. Já a acomodação é o processo de autoajustamento dos nossos próprios esquemas, com objetivo de nos propiciar a assimilação, nos acomodarmos a um novo estímulo que nunca experimentamos antes. Paín (2009: 27) explica que todos os conhecimentos, todas as demandas de acomodação, exigem esquemas mínimos de assimilação. A acomodação vem da capacidade da criança de integrar todas as assimilações a um novo estímulo, que logo se converte em um esquema mais completo; e sucessivamente, cada vez conjuntos mais complexos vão passando a ser esquemas. Portanto, pela assimilação/ acomodação, se constroem os esquemas que servirão para aplicar as operações. Outros dois mecanismos são a circularidade e inibição que, assim como os anteriores, estão intrinsecamente ligados. A circularidade é a repetição contínua de uma ação, como forma de automatizá-la. “Nós estamos sempre submetidos a esse tipo de mecanismo, pois todo tipo de aprendizagem é repetida circularmente, de modo a se automatizar.” (PAÍN, 2009: 27). A inibição é o processo de identificar o domínio do próprio corpo, de modo a melhorar a ação que será produzida por nós. “A inibição não é só a possibilidade de aprender, isto é, de saber qual o movimento adequado para conseguir um fim, mas também a de 30 alcançar um domínio do próprio corpo capaz de agir de maneira eficaz”. (PAÍN, 2009: 29). Vemos a aprendizagem, necessariamente, como um processo, que se realiza no momento da interação entre pessoas, que assumem explicitamente as funções de ensinante e de aprendente. Fernández (2001a) diferencia o saber do conhecer e os dois conceitos de informação. Esclarece ainda que os primeiros são verbos, por carregarem a ideia de ação, de processo. A informação é substantivo, por se tratar de dados concluídos. Na aprendizagem, não se transmitem conhecimentos, mas sim sinais de conhecimento – chamados de informações – que podem ser transformados e reproduzidos. Por um lado, não se aprende com qualquer um – ao ensinante são outorgados a confiança e o direito de ensinar; por outro lado, o aprendente possui, em si, estruturas que lhe permitem converter os signos transmitidos em conhecimento. No entanto, conhecimento não é o mesmo que sabedoria, ou melhor, conhecer não significa saber. Alicia Fernández (2001a: 63) explica essa diferença: o conhecimento é objetivável, transmissível de forma indireta ou impessoal; pode ser adquirido através de livros ou máquinas; é factível de sistematização nas teorias; enuncia-se através de conceitos. (O conhecer tende a objetivar.) Em troca, o saber é transmissível só de modo direto, de pessoa a pessoa, experimentalmente; não se pode aprender através de um livro, nem de máquinas, não é sistematizável (não existem tratados de saber); só de pode ser enunciado através de metáforas, paradigmas, situações, histórias clínicas. O saber dá poder de uso, mas o conhecimento não.. Conhecer não significa poder colocar em prática certas informações. Saber é a apropriação do conhecimento e, portanto, sua aplicação. “Poder e saber relacionam-se. ‘Saber é saber fazer’, ‘saber e prática de saber estão intimamente ligados’”. (FERNÁNDEZ, 2001a: 64). Segundo Bollas (1989, apud FERNÁNDEZ, 2001a: 65), o saber não é instintivo, nem um bloco irremovível. Pelo contrário, esse saber, que embora careça de palavras conceituais para ser expresso, 31 constrói-se pela experiência de vida na história do sujeito. O saber está sempre em construção. A informação está fora do sujeito e só é transformada em conhecimento quando o aprendente passa a conhecê-la. O aprendente precisa construir o conhecimento e, para tanto, recorrerá ao seu próprio saber para dar sentido à informação. O mérito maior do ensinante não é mostrar apenas conteúdos de conhecimento: “ser ensinante significa abrir espaço para aprender. Espaço objetivo-subjetivo em que se realizam dois trabalhos simultâneos: a) construção de conhecimentos; b) construção de si mesmo, como sujeito criativo e pensante.” (FERNÁNDEZ, 2001: 30). No processo de ensino e de aprendizagem, entre o ensinante e o aprendente abre-se um campo de diferenças onde se situa o prazer de aprender. O ensinante entrega algo, mas para poder apropriar-se daquilo o aprendente necessita inventá-lo de novo. É uma experiência de alegria, que facilita ou perturba, conforme se posiciona o ensinante. (FERNÁNDEZ, 2001: 29). Muito importante no papel do ensinante é o desejo sincero de que o outro aprenda. Esse desejo é percebido pelo aprendente, que sente em si o potencial de aprender depositado nele pelo ensinante. Aí está o caráter da subjetividade, que, muitas vezes, é esquecido no processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, o ensinante oferece ao aprendente a “autorização de um lugar de sujeito pensante.” (FERNÁNDEZ, 2001: 29). Assim como é essencial para a aprendizagem a crença do ensinante no aprendente, o desejo do aprendente em saber também o é. Dominar certo conteúdo, uma habilidade – como andar de bicicleta, tocar violão, falar uma língua estrangeira, escrever – é mais do que o motor do aprender: é o terreno onde se nutre a aprendizagem. Em nossa sociedade, os ensinantes são os pais, parentes mais próximos e também os professores e colegas de escola. “Embora os professores precisem possuir informação, sua função principal não é transmiti-la, mas propiciar 32 ferramentas e espaço adequado (lúdico) onde seja possível a construção do conhecimento.” (FERNÁNDEZ, 2001: 31). O ensinante cumpre exitosamente o seu papel quando o aprendente já não precisa dele para realizar certa ação, pois se apropriou do conteúdo aprendido. No processo de aprendizagem, em que haja prazer em aprender, a vontade de aprender do aprendente deve preceder o ato de ensinar do ensinante. O ideal é que as iniciativas de ensino-aprendizagem surjam do desejo de aprender em si, de um processo subjetivo, e não devido a um objetivo final, tais como estudar inglês para um exame de proficiência ou atingir uma meta para se ter promoção no trabalho. Nessa situação, em que não há o prazer ou realização pessoal, não se dá o processo da apropriação do objeto aprendido pelo aprendente. O aprender é um pretexto para desfrutar de uma alegria compartilhada entre aprendente e ensinante. Aprender, segundo Fernández (2001), é apropriar-se da linguagem; é historiar-se, recordar o passado para despertar-se ao futuro; é deixar-sesurpreender pelo já conhecido. Aprender é reconhecer-se, admitir-se. Crer e criar. Arriscar-se a fazer sonhos textos visíveis e possíveis. Só será possível que os professores possam gerar espaços de brincar-aprender para seus alunos quando eles simultaneamente os construíram para si mesmos. (FERNÁNDEZ, 2001: 36). Um bom ensinante é um bom aprendente. Para ensinar, é preciso querer aprender, pois o desejo de ensinar deve originar-se do desejo de aprender. A grande prova de que o trabalho do ensinante foi bem feito é o fato de o aprendente não precisar mais dele. O ensinante dá o protagonismo que leva o aprendente a apropriar-se com alegria do que aprendeu e a desenvolver sua autoria. A interação entre aprendente e ensinante, no processo de aprendizagem, começa pelo ensino do ensinante, porém termina na aprendizagem do aprendente. E isso só é possível pelo desenvolvimento de autoria do aprendente no processo, porque ele tem a oportunidade de praticar, tentar, arriscar-se e apropriar-se do conhecimento no momento em que o ensinante lhe dá condições 33 para tal, seja por meio de ferramentas, de orientação, mas, sobretudo pela confiança depositada nele. Essa sinergia só acontece quando o aprendente sente que o ensinante está ao seu lado, compartilhando desafios e, ao mesmo tempo, a responsabilidade. Dessa maneira, o aprendizado se torna de dupla autoria, de uma parceria no qual ambos são os responsáveis pelo processo. As condições de aprendizagem são as que caracterizam o conceito de autoria do aprendente. Essa autoria só acontece porque o que o ensinante entrega ao aprendente não é o conhecimento, mas os meios que lhe possibilitam se apropriar de tal conhecimento. Como mencionado anteriormente, os meios são instrumentos adequados ao aprendente, explicações acessíveis e, por fim, a cumplicidade para acompanhá-lo durante o novo desafio. Fernández (2001: 90) define autoria como o “processo e o ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de tal produção”. O reconhecimento é uma etapa essencial no processo de desenvolvimento da autonomia. A autoria de pensamento inicia-se com o desejo, quer dizer, quando o sujeito se reconhece um ser desejante de algo, portanto, pode movimentar-se, produzir ações para alcançar o que deseja. A autoria de pensamento é “condição para autonomia da pessoa e, por sua vez, a autonomia favorece a autoria de pensar. À medida que alguém se torna autor, poderá conseguir o mínimo de autonomia.” (FERNÁNDEZ, 2001: 91). O pensamento não é autônomo, mas sim vinculado ao desejo, ao querer. Assim, a autoria do pensamento possibilita a autonomia do sujeito. A principal função do ensinante é a de ajudar o aprendente a desenvolver, em si, a autonomia no pensar para que se torne autor de pensamento. Como a autoria do pensamento possibilita a compreensão da própria existência, ela abre o caminho para se alcançar a mais preciosa condição da humanidade: a liberdade. O professor, capaz de fazer com que os estudantes descubram o quanto eles pensam e de responsabilizá-los pelo pensado, abre caminho para a liberdade. Um ensinante só é capaz de fazer pelo outro aquilo que faz por si 34 mesmo – ele também deve reconhecer-se autor de pensamento e, portanto, livre para pensar. O autor é aquele que cria uma obra e, reciprocamente, se faz autor pela obra. Conforme cria, dá-se conta de que é autor. De novo aprende com o que sua própria obra lhe mostra, coisa que não conhecia antes de criá-la. A aprendizagem que compreendemos aqui neste trabalho é o ato de produção, o processo construtivo do autor e da obra. Neste momento, é que se desenvolve o conceito de autoria: “em um entre, entre a obra e seu produtor (que, por sua vez, é produzido como autor pela obra), pelo reconhecimento que o mesmo possa fazer de si mesmo a partir do ato de encontrar-se em sua obra.” (FERNÁNDEZ, 2001: 97). Os primeiros processos de aprendizagem de uma criança são essenciais para que ela tenha boas ou más condições de se desenvolver autonomamente no decorrer de sua vida. Desde pequenas, as crianças têm oportunidades de desenvolver a sua autonomia e sua autoria. Pensar é fazer. Pensar é ação. Será na interação com um adulto – que incorpora o papel ou função de ensinante – que a criança poderá se reconhecer autora de pensamento, portanto, de ações, uma vez que, como afirma Fernández (2001: 99), “para reconhecer-nos autor, torna-se necessário que um outro nos acompanhe reconhecendo o sujeito como autor de seu discurso.” Vivemos uma época em que somos muito pouco estimulados a pensar, pois isso não interessa à sociedade de consumo em que vivemos. “Quanto menos pensam os consumidores, mais comprarão o lhes é oferecido.” (Fernández, 2001: 107). Ao nos oferecer tantas opções de consumo, a sociedade nos tira, inclusive, a capacidade desejante. Temos de saber voltar para nós mesmos a fim de resgatar esse desejo. Quando se perde a capacidade de desejar, perde-se também a de pensar, portanto, a de aprender. O próprio desejo de aprender é um desejo de autoria. A vontade de passar por certa experiência é a vontade de obter o prazer de entrar em contato com a construção, com a aprendizagem. Ao reprimir uma criança de viver experiências lúdicas espontâneas, cerceia-se sua autoria de pensamento. Muitas das dificuldades de aprendizagem apresentadas na escola são resultado da 35 dificuldade de as crianças pensarem por conta própria, de não conseguirem sentir-se capazes de pensar ou de ter sequer o interesse em conhecer, saber, aprender o novo. Conforme aponta Fernández (2001: 106), precisamos disseminar a ideia de pensar e entrelaçá-la com a experiência, a ação, a transformação. Pensar implica, necessariamente, transformar(se). Quando digo “Eu penso”, estou dizendo que estou construindo algo novo em relação ao que pensava antes. A falta de contato com a experiência autoral, ou as más experiências, pode fazer com que, como lembra a autora, nos momentos em que o estudante seja solicitado a pensar por conta própria, tenha “sintomas individuais graves, indicadores de angústia ou descontentamento, respostas reativas, psicoses e problemas que a sociedade, em seu conjunto, não consegue encarar, como o fracasso escolar, que é um processo da escola e não do aluno”. (FERNÁNDEZ, 2001: 107). Após termos discorrido sobre o conceito que concebemos de educação, vamos adentrar no conceito específico de Educação Linguística e suas duas dimensões: a linguística e a pedagógica. 1.2. Conceito de Educação Linguística A Educação Linguística (EL) é um processo de ensino-aprendizagem2, a partir de uma relação horizontal entre ensinante e aprendente. A EL vê o processo de aprendizagem como uma via de mão dupla – diferente da visão tradicional do ensino de Língua Portuguesa, na qual o professor, como detentor do saber, deposita no estudante seus conhecimentos sobre conteúdos gramaticais e literários – em que o professor é visto como ensinante, e o aluno, 2Esta é uma das perspectivas da EL, como área de pesquisa, como propõe o grupo da PUC-SP (PALMA, Dieli Vesaro et al, 2008). 36 por sua vez, como aprendente. Esse aluno, porém, não tem o dever de acatar tudo o que o professor lhe impõe como certo sobre o uso da língua. Na EL, o professor funciona como mediador entre o saber a ser ensinado e os aprendentes. Ele perde a posição autoritária sobre o aprendente e atua em um ambiente de troca, no qual ambos constroem juntos o novo conhecimento sobre a língua a ser abordado. Nessa nova perspectiva, a língua não é estudada a partir da dicotomia do certo/errado, mas da adequação de suas diversas variantes diante das situações de comunicação, incluindo a comunicação não verbal. Portanto, na escola, estuda-sea linguagem. O processo de ensino-aprendizagem da língua materna e a formação de professores fazem parte dessa área de pesquisa em desenvolvimento da EL. Esse fator tem sido objeto de grande preocupação, uma vez que os tempos mudaram, obrigando o ensino, da educação básica ao nível universitário, a adaptar-se às mudanças para cumprir sua missão. Segundo Bechara (2006: 8), a EL “se constitui num promissor campo de pesquisa e de resultados para a linguística e a educação”. Nas escolas de ensino médio e nas universidades, onde tem sido sutil a influência científica dessas pesquisas, na década de 1960, surgiu uma reação desastrosa ao chamado tradicionalismo e à mudança (grifo do autor). A EL defende a necessidade de se respeitar o saber linguístico que vem com cada aprendente, mas não tira dele a possibilidade de ampliar e enriquecer seu conhecimento inicial. É um erro quando se privilegia uma ou outra variante. Todo falante deve ter domínio de diversas línguas funcionais para que possa se comunicar e transitar em variadas esferas da sociedade. Para o autor, “o indivíduo ‘dispõe’ dela [língua], para manifestar sua liberdade de expressão (...) cada falante é um poliglota na sua própria língua” (idem: 13). É dever do professor de língua portuguesa dar ao aprendente a liberdade de se escolher a língua funcional3 que mais lhe convenha a cada momento de produção linguística e de diferenciar as várias línguas que possam coexistir em 3 Línguas funcionais são as variantes linguísticas que serão faladas dependendo do objetivo do sujeito, no momento de interação verbal. A escolha da variante vai depender da função que ela terá. (Cf. BECHARA, 2006). 37 determinadas situações de comunicação. Em síntese, a EL centra-se na linguagem e não mais na língua. É dessa maneira que se obtêm os ricos recursos da linguagem no ato de comunicar entre indivíduos de uma sociedade. A EL, concebida por Palma, Turazza e Nogueira Junior (2008), não se restringe apenas ao ensino técnico da língua materna, mas sim à formação integral do cidadão, de modo que ele tenha condições de exercer sua cidadania plena. As linguísticas cognitivo-funcional e textual e trabalhos que priorizam o discurso e a linguagem como ação estão na essência da EL. Para os autores, a EL também é uma área de pesquisa em desenvolvimento no que diz respeito ao ensino de língua materna, cuja fundamentação teórica, do ponto de vista pedagógico, engloba conceitos como transposição didática, contrato didático, situações didáticas, a noção de obstáculo epistemológico, registros de representação, a teoria dos campos conceituais e engenharia didática. (PALMA, TURAZZA & NOGUEIRA JUNIOR, 2008: 221). Pensando nessa concepção, não se pode desprezar o contexto político e social em que o aprendente e o ensinante se encontram, pois tanto a escola quanto o ensinante deverão adaptar-se aos seus tempos. Nos dias de hoje, o ato educativo precisa ser visto na dicotomia ensino-aprendizagem. O eixo das aulas, na escola contemporânea, não pode mais ser o ensinante, mas sim os estudantes, aqueles que aprendem. O processo de aprendizagem era considerado uma aquisição de conhecimento, como lembra Paulo Freire (2005), em sua teoria sobre educação bancária – na qual se “depositavam” conhecimentos nos alunos que, como caixas eletrônicos, recebiam passivamente o que lhes era depositado. Hoje, o aprender significa a produção de conhecimentos, com base nessa visão de ensino de língua materna. Assim, a nova conjuntura exige transformações nos níveis pedagógicos, técnicos e tecnológicos, para que a escola se adapte a seu tempo. Nesse novo cenário, as ciências da linguagem passaram de uma linguística do sistema (langue) para uma linguística do discurso. Isso fez com que o ensino da língua também fosse repensado: passou-se a considerar o uso e não a 38 homogeneidade da língua, priorizando a comunicação como tem proposto a linguística cognitivo-funcional (cf. SILVA, 2004, apud PALMA, TURAZZA & NOGUEIRA JUNIOR, 2008: 220). Os autores reiteram a visão de Bechara (2006) sobre o papel da EL, quando diz que a escola deve – ou deveria – tornar o estudante “um poliglota em sua própria língua”, tendo condições de construir e desenvolver-se linguisticamente em situações de comunicação. Para tanto, “além da competência linguística, o falante deve ter ampliada sua competência textual, discursiva, estratégica, estilística, entre outras.” (PALMA, TURAZZA & NOGUEIRA JUNIOR, 2008: 221). Para ser coerente com a nova concepção de ensino da língua materna, a EL substituiu termos para simbolizar os novos papéis assumidos. Ao substituir aluno por aprendente, deixa mais explícito o processo pelo qual o indivíduo deverá passar no seu aprendizado: ser sujeito, capaz de agir por meio do uso adequado das formas linguísticas, ter uma postura ativa, produtiva, sem acatar simplesmente o que lhe é ensinado. O papel do professor já não é o mesmo, mas sim o de mediador “terminando com a hierarquia de poderes incutida nas antigas designações professor/ aluno”. (GRAMMONT, 2011: 17). O ensino da língua é visto como uma ação social, pois dá ao aprendente o acesso à norma culta e às diversas variações que coexistem em uma comunidade, manifestas nos mais diversos gêneros textuais que circulam na sociedade. Ao fazer isso, a EL dá condições aos falantes de determinadas comunidades linguísticas letradas de dominar um conjunto de conhecimentos sócio-culturais. Essa proposta pensa na formação do aprendente e do professor-ensinante. Com foco no desenvolvimento da formação científica, a EL implica um novo perfil de estudante: a de crítico-reflexivo. Muito diferente daquele que aplicava regras ou estratégias sem compreender o porquê de seus usos, nem verificava seus efeitos. Para que o ensinante garanta essa formação científica, ele também deverá ter, em sua própria formação, essa mesma visão de ensino-aprendizagem, tendo em conta que a graduação deverá ser apenas o começo de sua carreira acadêmica. 39 Os cursos de licenciatura devem, portanto, também garantir a formação de professores poliglotas na sua própria língua, ou seja, que dominem conhecimentos científicos e saberes a serem ensinados, interrelacionando a área da linguística e a da pedagogia. Outro ponto importante que distingue a EL da visão tradicional de ensino da Língua Portuguesa é a perspectiva da adequação e da inadequação em função do seu uso, na diversidade de situações comunicativas, que é visto ainda hoje, como erros e acertos gramaticais. Para Lomas (2003: 14), o objetivo essencial da EL deve ser a melhoria da competência comunicativa dos aprendentes, na sua dimensão expressiva e de compreensão – o fazer com as palavras –, isto é, a aquisição e o desenvolvimento do conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes e capacidades que permitem, nas nossas sociedades, um desempenho adequado e competente nas diversas situações e contextos comunicativos da vida quotidiana. Palma, Turazza e Nogueira Junior (2008), Lomas (2003) e Grammont (2011) acreditam em uma visão de educação linguística que se opõe aos moldes tradicionais de ensino da língua materna. Rechaçam o privilégio do conhecimento técnico e dos aspectos estruturais da língua e valorizam o conhecimento dos recursos comunicativos, ou seja, aqueles que dão condições aos falantes de dominar os usos da linguagem não apenas como falantes, mas também como ouvintes, leitores e escritores de textos de natureza e intenção diversas. Gumperz e Hymes (1972: 7, apud LOMAS, 2003: 16) esclarecem que a competência comunicativa refere-se à habilidade para agir e que os analistas da competência comunicativa consideram os falantes enquanto membros de uma comunidade, como expoentes de funções sociais, e procuram explicarcomo eles usam a linguagem para se auto- identificarem e levarem a cabo as suas actividades. Assim, fica claro qual deve ser o eixo da EL. Diferente do ensino de língua estrangeira, em que o aprendente deve ser apresentado às estruturas básicas da 40 nova língua a ser alcançada e a expressões diárias de comunicação (requisitos que o falante nativo de uma língua domina), o ensino de língua materna deve mostrar a adequação de uso da sua própria língua, tanto no aspecto formal como no social. O usuário, em comunidade linguística, não aprende todos os recursos de como e quando se devem usar determinadas expressões, nem as diversas variações que sua língua apresenta. É dever da escola, portanto, apresentar aos aprendentes as características de situações de comunicação com as quais eles conviverão em sociedade para se adequar melhor a elas, apontando suas características, tais como os interlocutores, a finalidade, a formalidade e todos os canais: escrita, oral e formas não verbais. Segundo Michael Breen (1987, apud LOMAS, 2003), uma das características mais significativas das perspectivas comunicativas sobre o ensino da língua é fazer com que os aprendentes não só adquiram um saber linguístico, mas também um saber fazer coisas com palavras. Lomas (idem: 18) elenca as competências comunicativas que um falante deverá dominar: a. Competência linguística ou gramatical: (...) o conhecimento da gramática dessa língua e das suas variedades; b. Competência sociolinguística: (...) o conhecimento das normas socioculturais, associada à capacidade de adequação das pessoas às características do contexto e da situação de comunicação; c. Competência textual: (...) conhecimentos e habilidades para se compreender e produzir diversos tipos de textos com coesão e coerência; d. Competência estratégica: (...) conjunto de recursos para solucionar problemas de comunicação, com finalidade de tornar possível a negociação do significado entre os interlocutores. A aquisição da competência comunicativa só será bem sucedida, se for trabalhada nas aulas de língua materna, na análise das estratégias verbais e não verbais comuns em textos de circulação pública. Lomas (op. cit.), ao se dirigir aos professores de língua materna, diz que o bom resultado depende de uma mudança de postura em relação às suas aulas, ou seja, eles devem refletir cotidianamente se suas ações têm contribuído, de 41 fato, para o desenvolvimento da competência comunicativa de seus aprendentes. Ele recomenda que o professor-mediador pense em que medida o conteúdo linguístico selecionado e a forma como é abordado colabora para o aprendizado das habilidades comunicativas do falar, escutar, ler, entender, escrever, no âmbito não apenas escolar, mas social, do estudante. Para ficar ainda mais clara a dimensão linguística da EL, como mencionado anteriormente, apresentaremos, a seguir, alguns de seus elementos: linguagem, língua, norma, variação linguística, gêneros textuais e texto. 1.2.1. Dimensão linguística Uma questão muito importante no ensino da língua materna são os temas que guiam o professor em sua prática de sala de aula. Eles são a fundamentação teórica que todos devem ter em sua formação e dominá-los para poder ensinar, com propriedade, a língua materna e os ricos recursos que ela apresenta. Nesse sentido, examinaremos as noções de linguagem, língua, norma, variedade linguística, texto e gêneros textuais. 1.2.1.1. Linguagem O conceito de linguagem é tão importante quanto o que se deve ter sobre educação, pois é ele que irá direcionar a prática docente nas aulas de língua materna, no caso do Brasil, de Língua Portuguesa. Existem três visões de linguagem: a primeira concebe-a como expressão do pensamento – isso significa que o que se pensa é traduzido em fala. Se o sujeito não se expressa “bem”, quer dizer que ele não pensa. Por essa perspectiva, vê-se a enunciação como um ato independente das circunstâncias que constituem a situação social e que depende apenas do que um indivíduo traduz de seu pensamento. 42 A segunda visão entende a linguagem como comunicação, portanto o que está em jogo é a mensagem que se quer transmitir a outrem. A língua é vista como estrutura – Saussure (2006) a chamaria de langue, vista de acordo com a concepção estruturalista da língua, e Chomsky de competência, vista segundo a concepção gerativo-transformacional. Como lembra Carvalho (2010: 16), atualmente, parece que o ensino da Língua Portuguesa, nas escolas brasileiras, tem-se baseado nessa concepção de linguagem, pois “grande parte das aulas é dedicada ao ensino da gramática, mais especificamente, de nomenclatura gramatical, ou seja, da língua como estrutura, um código, sincrônico, homogêneo.” Finalmente, a que vê a linguagem como forma ou processo de interação, em que a realidade fundamental da língua é o diálogo, no lato sensu. A enunciação depende das situações de comunicação, dos interlocutores e do efeito de sentido que se quer conseguir. As linhas de pesquisas que trabalham com essa perspectiva são todas as que, de alguma forma, estão ligadas à Pragmática. É essa a perspectiva adotada pela EL, pois considera a linguagem para além da estrutura da língua; a vê como uma construção, que se dá no momento da interação. 1.2.1.2. Língua, norma e uso (variações linguísticas) A língua, objeto de estudo da linguística, é um sistema composto por palavras que formam frases que, por sua vez, podem formar textos. Dentro de cada sistema, há uma possibilidade finita de usos, pois o princípio deles é o de comunicação e compreensão mútua entre os integrantes de determinada comunidade linguística. Em uma visão estruturalista, estuda-se a língua apenas como um sistema fechado de possibilidades entre seleções e combinações de palavras que foram convencionadas, socialmente, para permitir o exercício da faculdade de linguagem. 43 Uma língua viva implica, necessariamente, a ideia de mudança e de variação, isso porque, para que tenha esse status, ela precisa ser posta em uso por seus usuários, e eles, enquanto estiverem vivos, estão suscetíveis às mudanças sociais. Portanto, pode-se concluir que, conforme afirma Leite (2005: 183), “o uso propicia variações linguísticas”. Há aqueles que relutam em aceitar a língua como uma entidade mutável. Para eles, existe apenas uma forma de usá-la, e qualquer desvio é considerado erro gravíssimo. Existem, porém, inúmeras possibilidades de uso, pois os usuários de uma língua são variados e trazem, por meio da fala e da escrita, muito de sua identidade. Neste trabalho, consideramos a língua como um meio de comunicação posto em uso por um grupo social que, com o fim de se fazer compreender mutuamente por meio dele, constitui a comunidade linguística. (cf. Leite, 2005). As variações linguísticas têm algumas origens: umas provindas do próprio falante – referentes à sua origem geográfica e à sua classe social, categorizadas de dialeto –, e outras, das circunstâncias em que são faladas, distinguidas pelo grau de formalidade que elas exigem – chamadas por Halliday (cf. Leite, 2005) de situação de comunicação em que o falante se encontra, categorizadas por registros ou níveis de fala. Se, por um lado, a língua é considerada um sistema de possibilidades de realizações linguísticas, por outro lado, a norma, segundo Coseriu (apud LEITE, 2005: 186), é “um sistema de realizações obrigadas, de imposições sociais e culturais, e varia segundo a comunidade”. As imposições são tacitamente determinadas ou instituídas pelos próprios integrantes da comunidade linguística, evidenciando a língua como uma instituição social. Dentre tantas normas linguísticas coexistentes no Brasil – de acordo com cada dialeto, de cada falante da língua portuguesa –, há uma denominada culta, que é a linguagem
Compartilhar