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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FUNDAMENTOS DE ANÁLISE SOCIOLÓGICA - HISTÓRIA 2020/1 ACÍLIO DE MIRANDA TAVARES, BEATRIZ LOPES MAZIM, GABRIELA LUCIANA LIMA INÁCIO, VICTÓRIA ANDRADE FLORES DE MELLO, VITÓRIA DE PAULA SOARES O CORINGA E OS CONCEITOS DE DURKHEIM BELO HORIZONTE 2020 Coringa, um dos grandes sucessos cinematográficos de 2019, apresenta história de origem do icônico vilão da DC Comics que deu nome ao filme, e dividiu opiniões por algumas sequências acusadas de incitar atos de violência. Apesar disso, o filme trouxe aspectos diferentes do que estamos acostumados a ver em filmes baseados em quadrinhos, uma vez que abandonou as grandes cenas de ação e os efeitos especiais e, no seu lugar, focou nos dilemas internos do seu protagonista. Nos quadrinhos, o personagem tem uma origem misteriosa, variando de acordo com a edição e história analisados. A explicação mais aceita pelos fãs, apresentada pela primeira vez na história A Piada Mortal, é a de que o vilão surge quando um comediante fracassado, tentando assaltar uma fábrica na qual já havia trabalhado, se atrapalha e cai em um poço de produtos químicos, adquirindo assim sua aparência característica: a pele branca e os cabelos verdes. Sob essa perspectiva mítica, a perversidade do Coringa é resultado do trauma produzido pelo acidente bioquímico e da transformação de sua imagem, sem uma explicação mais detalhada acerca das motivações psíquicas ou sociais para o nascimento do vilão. O Coringa de Todd Phillips, por outro lado, nos permite ver o personagem do palhaço líder do crime sob uma perspectiva totalmente diferente. Antes de assumir o nome “Coringa” (Joker, na versão original) e encarnar o famoso vilão, o personagem é apresentado apenas como Arthur Fleck, um cidadão da cidade de Gotham vivendo sua luta diária para conseguir um lugar na sociedade. Aos poucos o espectador vai tendo uma visão mais próxima da sua história de vida, repleta abusos, mentiras e abandonos, desde antes do seu nascimento até a vida adulta. Além de seus traumas, a vida de Arthur é ainda marcada pela solidão da doença mental que o fazia sentir ainda mais exilado da sociedade, representada principalmente por meio de suas crises de riso involuntárias e descontroladas. Arthur busca então seguir a vida de palhaço, motivado por algo que sua mãe frequentemente lhe dizia: “Você nasceu para fazer as pessoas rirem”. Diante de tanta tragédia que permeava sua vida, Arthur tentava achar um escape na comédia. No entanto, o personagem encontra na carreira de palhaço e comediante a mesma rejeição, humilhação e silenciamento que havia recebido em todos os outros lugares que ocupava na sociedade. O filme nos convida a enxergar Coringa sob uma nova perspectiva: não como a causa de uma cidade violenta como Gotham, onde o filme se passa, mas como efeito, como sintoma da sociedade que o violentou, o renegou, o excluiu e, sobretudo, não o escutou. Com o decorrer do filme, Arthur tenta inúmeras vezes avisar sobre o “Coringa”, quase como um pedido desesperado de ajuda, mas ninguém o ouvia e tudo que recebeu para se proteger, da sociedade e de si mesmo, foi um diagnóstico psiquiátrico e uma arma. Dessa forma, o protagonista têm colocadas à sua frente duas opções: dar fim à sua vida e, por consequência, à coerção social de se “encaixar” nos moldes pré-definidos de como ser um indivíduo na sociedade, a qual o rejeitou durante toda sua vida; ou o desmantelamento completo do tecido social e de suas normas, encontrando no estado de completa anomia social o único lugar a partir do qual conseguiria ser visto e ouvido como sujeito, ou seja, a única possibilidade de existir nas suas próprias particularidades. E é nesse conflito de decisões que o filme de Todd Phillips encontra o ápice de seu enredo. Um dos principais conceitos de Durkheim é o fato social que, nas palavras do sociólogo, representa toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou, ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter. Ou seja, o fato social apresenta três características, a exterioridade, coercitividade e generalidade. Além disso, Durkheim também caracteriza os fatos sociais como normais e patológicos. Pode-se considerar alguns dos acontecimentos de Coringa como fatos sociais patológicos. Isso porque eventos que poderiam ser normais tomam grandes proporções e tiram a sociedade do patamar de normalidade esperado. Um exemplo disso são os crimes que acontecem no filme. O crime é considerado um fato social normal por ser observado em grande maioria das sociedades, mas na trama eles tomam proporções exacerbadas, como os homicídios cometidos por Arthur e as agressões sofridas por ele. Deste modo, percebe-se uma patologia social no filme. Durkheim trabalha também o conceito de coerção social. Esse termo, derivado do latim "coercio", significa "ação de reprimir, de refrear; repressão; castigo". Partindo disso, a coerção social, para o sociólogo, refere-se ao instrumento de submissão do indivíduo à sociedade. Essa coerção possui um caráter impositivo, decorrente de uma força externa que acomete o sujeito, mesmo contra sua vontade. Dessa forma, essa imposição estrutura e exerce limites na vida humana e nas ações dos indivíduos, gerando uma espécie de pressão, que pode se manifestar tanto física quanto psicologicamente. Com base nesse conceito utilizado por Durkheim, torna-se possível fazer uma análise na forma com que o protagonista da trama se comporta. Fleck tinha muita dificuldade em agir de acordo com os padrões impostos pela consciência coletiva da sociedade, devido ao fato de que possuía um distúrbio mental chamado afeto pseudobulbar. Esse distúrbio, muito pouco conhecido no mundo, fazia com que ele tivesse reações emocionais e comportamentos involuntários, distintas do que ele de fato sentia, como a risada descontrolada, que foi muito enfatizada nas cenas (um grande exemplo é o momento, um dos mais importantes do filme, em que reage com esse riso descontrolado e alto no metrô ao presenciar uma cena de assédio e é brutalmente agredido pelos assediadores). Por conta dessa doença psiquiátrica, foi vítima de uma forte coerção social por toda sua vida, principalmente por parte da própria mãe, que tenta moldá-lo em um estereótipo de "pessoa normal" imposto pela sociedade. Fica claro, em diversos momentos do filme, que essa pressão sofrida o inseriu em um estado de tristeza profunda. A exemplo, o desabafo que Arthur faz ao seu diário, ao dizer que “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. Como consequência dessas situações, houve um agravamento gradual de seu estado mental, o fazendo chegar, enfim, a loucura. Em suas obras “Da divisão do trabalho social” e “O suicídio”, Durkheim estabelece o conceito de anomia, que também é importante para realizarmos uma análise do filme. A anomia seria um estado em que a sociedade careceria de coesão social, o que significa que as relações entre os indivíduos estariam desreguladas e indica uma falta de harmonia social. Tal situação poderia ser causada por mudanças rápidas e repentinas na sociedade, como é comum na modernidade, e isso implicaria o enfraquecimento de uma consciência coletiva. Assim, não seria possível regular as ações individuais; os limites sociais entre certo e errado ou justo e injusto, por exemplo, não seriam mais perceptíveis e a diminuição dos antigos princípios estruturais e organizacionais criam um estado de caos e desordem, no qual o indivíduo se sente frustrado ou desesperado. O filme se passa na cidade de Gotham, caracterizada por ser um ambiente opressivo e caótico. O local é marcado pela pobreza, pela desordem; é retratado como um ambiente sujo e sombrio que causa uma sensação de incômodo tanto nos personagens quanto em quem está assistindo. O protagonista parece sentir de forma mais intensa toda a negatividade presente ao seu redor, o queé amplificado pelos seus transtornos mentais. Arthur Fleck não se sente como parte de um todo; é excluído e rejeitado pela sociedade durante toda a sua vida, e não compartilha de uma consciência coletiva. A situação tensa e agonizante do personagem simboliza toda uma sociedade marcada por conflitos sociais e individuais, violência e solidão. Portanto, podemos analisar a situação de Fleck como anômica: ele não vive de forma coesa com o restante da sociedade, tem dificuldades em relacionar-se e suas expressões e gestos exagerados deixam transparecer o sentimento de desespero e não-pertencimento que provocam a sua transformação em Coringa. Além do conceito de anomia, Durkheim traz em sua obra “O suicídio” uma análise das mortes voluntárias por meio do estudo dos processos sociais, mostrando como esse ato está relacionado muitas vezes com a sociedade que esse indivíduo está inserido. Para ele, existem três tipos de suicídio: o egoísta - é aquele do qual o indivíduo se afasta da sociedade ao ponto de não ver mais sentido na vida -, o altruísta - ato esse que é fruto da obediência e força coercitiva do coletivo - e o anômico - esse acontece em momentos de anomia social, comum em momentos de crise, quando a sociedade não consegue fazer o devido amparo. Ao ter conhecimento disso, podemos fazer uma analogia do filme com o conceito por último definido. Como concluído anteriormente, a atmosfera em que o Arthur está inserido está passando por um momento de anomia social, onde o Estado não consegue amparar o sistema público de saúde e até mesmo assegurar o emprego da população. Por fazer parte da parcela mais pobre de Gotham, Fleck dependia do sistema de saúde público para poder tratar de seus distúrbios mentais. Contudo, ao ter o acesso cortado, sua condição psicológica rapidamente se agrava, fazendo com que as manifestações de seus distúrbios, como por exemplo suas risadas involuntárias, passem a acontecer com mais frequência e intensidade, levando-o aos acontecimentos do clímax do filme. Dentro dessa passagem, é passível uma associação com o que Durkheim chama de suicídio anômico. Mesmo não tirando sua própria vida, Arthur se transforma de tal maneira devido ao período de anomia em que sua cidade se encontra, podendo concluir que seus atos foram motivados pela própria sociedade. Na perspectiva tradicional, ou seja, com base na história de origem retratada em A Piada Mortal, Coringa seria apenas efeito de sua tentativa desastrada de burlar a lei, tornando Arthur o único culpado pelo seu infortúnio, uma explicação muito mais fácil de “digerir”, uma vez que é muito cômodo pensar em um vilão que nasce após um banho de produtos químicos. Já a versão de Phillips é dolorosa e em muitos pontos quase “intragável”, pois indica que o banho que transformou Arthur em Coringa não foi oriundo de bioquímicos, mas sim o banho de uma sociedade violenta, injusta e invisibilizadora, especialmente para aqueles mais vulneráveis e fora do padrão neurotípico. Sob a luz dessa versão dura e exposta do personagem, o Coringa não é um acidente, mas sim o fruto de uma sociedade doente, na qual a coerção social, paradoxalmente acompanhada do caráter caótico e anômico de Gotham, acarreta em fatos sociais que são extrapolados a ponto de se tornarem patologias, sendo a persona criada por Fleck o único lugar a partir do qual ele conseguiu ser visto e ouvido como sujeito. Isso pode ser observado em um momento crítico no filme, no qual Arthur está em meio a construção dessa persona e, ao aparecer em um programa de TV de grande audiência, ainda que em razão dos crimes cometidos por ele, o personagem diz: “As pessoas estão começando a falar sobre mim”. Assim, fica claro que no final do filme, com o ápex da trama resultando em uma verdadeira revolução social pautada na violência e na ausência completa de normas e ordem, Arthur encontra a sua voz e sua libertação das amarras sociais que o prenderam vida inteira. REFERÊNCIAS CORINGA. Direção: Todd Phillips. EUA, Canadá: [s. n.], 2019. DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia, 2ª. Edição. Pearson Prentice Hall: São Paulo, 2008. DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GIDDENS, Anthony. Sociologia, 4ª. Edição. Artmed: Porto Alegre, 2005.
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