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As três ordens da idade media (1)

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Georges Duby 
 
 
 
 
 
 
 
 
AS TRÊS ORDENS 
 
 
ou o Imaginário do Feudalismo 
 
 
 
2ª edição 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1994 
EDITORIAL ESTAMPA 
 
 
IV – FUNÇÕES: ORAR E COMBATER 
 
Não falam de duas, como os seus antecessores. Porque Bonifácio, por exemplo, 
utilizava a ternaridade para descrever os fundamentos da desigualdade; via como Gregório, 
o Grande, a humanidade dividida em dois planos. Distinguindo os que dão as ordens, 
daqueles que as executam, separava os que, colocados à frente (pre-positi) abrem a marcha 
e condescendem em amar, daqueles que atrás, ou melhor, abaixo (sub-diii), procuram 
segui-los, cheios de um respeito prestes a transformar-se em terror. A quem olha 
ingenuamente o espectáculo no universo social, revela-se a predominância de uma série de 
oposições binárias. Que se vê? Escravos e senhores, velhos e novos, primogénitos e 
benjamins; para não falar na subordinação natural, tão natural que nenhum discurso sobre a 
desigualdade se dá ao cuidado de evocar, da subordinação da mulher ao homem, seu 
“senhor”. 
Uma destas bipartições retivera a atenção das pessoas de alta cultura que, na época 
carolíngia, se interrogavam a respeito da ordenação das coisas – e de quem Adalberão e 
Gerardo são os herdeiros directos (tal como o Senhor de Torquat é, menos 
conscientemente, o herdeiro de Loyseau: tenhamos presentes no espírito esses fenómenos 
de filiação e de persistência que intervêm de maneira tão decisiva na lenta evolução das 
formações ideológicas e cujo entrelaçamento não é fácil de desenredar). Faziam parte da 
Igreja. Para eles, a sociedade cristã achava-se dividida em duas partes: a “ordem” e a 
“plebe”, conforme dizia Tertuliano. E esta estrutura fundamental, instaurada pela lei divina, 
reflexo da ordenação profunda que separa o céu e a terra, o espírito e o corpo, refractava-se, 
por sua vez, sobre a ordem dos “prelados”, dos “reitores”, dos dirigentes, impondo que se 
distinguisse os chefes da Igreja, os bispos, e “vindo a seguir”, como diz Bonifácio, os 
chefes do povo. De tal maneira que acaba por tratar-se de duas formas de classificação 
binária que se entrecruzam, sobrepondo os defensores do poder aos outros e impondo o 
clero ao povo. Dois graus, duas funções. Mas a segunda distinção [Pg. 097] apaga-se no 
mais alto grau da escala; no céu, tal como o vê Gerardo de Cambrai, Jesus Cristo que, por 
estruturas de parentesco, permanece submisso a seu Pai e assume, ao mesmo tempo, o 
ofício de Sacerdote e o ofício de Rei. 
Sobre a separação das duas funções, a do padre e a do rei, assentam todas as 
concepções da ordem sociopolítica de que conservamos os traços e que, retomadas pelos 
prelados carolíngios, atormentam o espírito de Gerardo e de Adalberão. Os historiadores 
actuais, que se ocupam destes problemas, chamam-lhe “gelasiana”. O papa Gelásio (492-
496) enunciou-a, com efeito, perante o imperador Anastácio: “O que principalmente rege o 
universo é duplo; a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real.” 
1
 Duas pessoas, dois 
papéis; dois campos de acção; duas ordens, que a “modéstia” deve distinguir – conforme o 
repete Gelásio seguindo Cícero: modestia utriusque ordinis. Dois ofícios, autónomos 
embora solidários: os imperadores precisam dos bispos para a sua salvação eterna; os 
bispos esperam dos imperadores a paz na terra. Contudo, não são iguais: as duas palavras 
que servem para designar cada um dos dois poderes, auctoritas e potestas, marcam a 
hierarquia; ela liga-se a essa orientação do universo que, colocando no alto o céu e em 
baixo a terra, estabelece a precedência do sacerdócio. A cisão cava-se assim entre os 
chefes. Mas prolonga-se através da sociedade inteira, pois que não são escravos, que são 
livres, membros da cidade, acham-se pois ordenados em dois grupos separados, conforme 
usam ou não armas: entre os cidadãos, uns combatem; e os outros cooperam, de outro 
modo, desarmados, na manutenção da ordem divina. 
Depois que as migrações de povos militarizaram tudo o que no universo romano 
escapava à escravidão, o limite entre as duas funções tornou-se, simultaneamente, tão 
necessário e tão frágil que os estudiosos de meados do século VIII – fundava-se então o 
Estado carolíngio – se esforçaram por fortalecê-lo através da palavra. No concílio que em 
742 trabalhava na reforma da Igreja franca, Bonifácio manda que se proíba 
“terminantemente aos servos de Deus que usassem armas ou combatessem ou ainda 
participassem em cavalgadas e em hostes” 
2
. A partir daqui vemos que, ao falar-se dos 
dirigentes, se estimulava a substituição dos termos antinónimos auctoritas-potestas, clerus-
populus, por um outro par: oratores-bellatores. Em Cícero, encontravam-se as duas 
palavras, associadas 
3
. Sabemos o uso que delas iriam fazer Adalberão e Gerardo. A partir 
de 747, se não os dois substantivos, pelo menos os dois verbos que lhes correspondem, 
estão no âmago de um discurso político, simétrico do [Pg. 098] discurso de Gelásio que o 
papa Zacarias fez a Pepino, o Breve 
4
: “Aos príncipes, aos homens do século e aos 
 
1
 Schwanz, Publizistische Sammiung zum acacianischen Schisma, Munique, 1934, p. 7 e ss. 
2
 MUG, Epist. 3, 56. 
3
 Tusculanes, IV, 24 
4
 A palavra ordo não figura aqui, ao contrário do que E. Delaruelle deixaria crer, “Essai sur la formation de 
l'idée de croisade”, Boletim de literatura eclesiástica, 1944: “En relisant le De Institutione Regia de Jonas 
d'Orléans”, Mélanges Halphen, 1951. 
guerreiros (bellatores) cabe o cuidado de vigiar a astúcia dos inimigos e defender o país: 
aos bispos, aos padres e aos servidores de Deus, cabe agir por meio de conselhos salutares 
e orações – para que, graças a Deus, nós orando (oratibus), aqueles combatendo 
(bellantibus), o país permanece livre.”
5
 Estas palavras ficaram. Perante o papa Leão III, 
Carlos Magno não as escuta: di-las ele próprio. Para afirmar agora que só a ele cabe 
conduzir os negócios terrestres, relegando o papa para a oração. 
A fórmula exprime o que foi o ideal político carolíngio. Ideal que, por principio, é 
monárquico. Na terra – como no céu – só reina um. Ocupa aqui o lugar de Cristo, como Ele 
desempenhando as duas funções, actor único desempenhando dois papéis, encarnando duas 
personagens (personae). Isto lembram os bispos francos ao imperador Luis, o Piedoso, em 
829 
6
, quando se referem expressamente ao papa Gelásio: “O corpo da comunidade está 
repartido principalmente entre duas pessoas eminentes e porque o corpo do rei é ele 
próprio dividido e porque esta duplicidade inicial se difunde por todo o corpo do povo de 
Deus.” Nisto reside o essencial: bífrons, o soberano, sagrado, o ungido do Senhor, encara 
dos dois lados os que ele próprio dirige, para a direita e para a esquerda; e é este duplo 
olhar, são os mandamentos proferidos de um lado e do outro que determinam a divisão da 
sociedade, pelo menos da sociedade que interessa, a parte da humanidade não escravizada. 
A ideia impõe-se na Francia do século IX. Oiçamos o que diz Wala: “Só existe uma 
comunidade, embora o seu Estado seja administrado segundo duas ordens” 
7
 (828-829). 
Oiçamos também Walafrid Strabon, ao falar de “cada uma das ordens”, cuja união e amor 
mútuo fazem a unidade da “casa de Deus” 
8
. Oiçamos Hincmar de Reims, que parte deste 
conceito para descrever o palácio real: duas ordens, duas funções, duas categorias de 
serviços, duas milícias. Admoestando o rei em 833, como dois séculos mais tarde fará 
Adalberão, Agobardo, bispo de Lyon, cujo discurso é talvez a mais exacta prefiguração do 
Carmen, recomenda que se esteja atento “perante as perturbações da época, para que 
estejam a postos cada uma das ordens, a militar e a eclesiástica, quer dizer, aqueles que 
servem na milícia do século e no ministério sagrado, uns combatendo pelo ferro, outros 
discutindo pelo verbo” 
9
.O ferro, o verbo; as armas, a palavra. Chegámos ao ponto 
 
5
 Codex Carolinus, MGH, Ep. K. Aevi, 480. 
6
 MGH, Leges. II, 2. 
7
 Incluído na sua biografia por Paschase Radbert, PL 120, 1609. 
8
 Liber de exordiis (841), MGH, Cap. II, 515. 
9
 MGH, Ep. K. Aevi, 3, 226. 
desejado: uns combatem, os outros oram. [Pg. 099] 
Todos podem ver esta dualidade com os próprios olhos. Na ordenação das 
cerimónias: quando os reis do século IX são sagrados em Reims, os dignitários laicos 
sentam-se à sua esquerda e os dignitários eclesiásticos à sua direita – do lado melhor: Cristo 
senta-se à direita do Pai 
10
. Ora, uma vez que cabe aos oratores ensinar os outros, indicar 
aos bellatores onde está o bem e onde está o mal, erigir proibições em sua intenção, 
instituir valores – esta tarefa prepara o advento de uma nova ordo destinada a tomar lugar 
junto da das viúvas, dos monógamos, junto dos clérigos: trata-se da ordem dos guerreiros. 
O rei, claro está, é a personagem-modelo desta categoria ético-social. Porque se o rei, 
principaliter, acumula as duas funções, um dos seus papéis, uma das suas personalidades, a 
guerreira, com o entusiasmo da sua “juventude”, o peso da sua carne, separa-o dos clérigos 
e inclina-o irresistivelmente para a esquerda, para a terra, para o combate. O monarca dirige 
a outra coorte, a temporal; isto mesmo no-lo mostram os pintores, enquanto foi tradição 
representar a ecclesia por figuras humanas, colocando uns atrás do papa, os outros atrás do 
imperador 
11
.
 
E quando Sedulius Scot, no seu Tratado dos Dirigentes, traça a efígie simbólica do 
monarca, representa-o pacífico, na vasta sala do palácio, como o que há de mais belo no 
mundo visível, como o Sol e como o mar, sozinho, sentado, imóvel, recebendo dádivas, 
distribuindo benefícios às mãos cheias – e os seus deveres são de justiça e de generosidade. 
Mas se é generoso, se é justo, se dele emana a paz, é porque primeiramente se bateu bem. O 
seu dever “principal” é conduzir a guerra, “mais necessária aos homens que o repouso: a 
paz adormenta, a guerra excita a virtude”. Missão máxima: Zacarias atribui-a àquele que 
considerar o verdadeiro rei do povo franco. Os “espelhos dos príncipes” atribuem-na, no 
século IX, a todos os “nobres”. 
Aos homens que, não sendo da Igreja, se dedicam contudo a dirigir os outros homens. 
As duas funções são funções de comando. Para a alta cultura carolíngia, há um campo do 
poder, dividido em duas áreas distintas. Esse campo não abrange, no entanto, todo o espaço 
social. Alcuíno, em finais do século VIII, dizia já claramente – o que para os estudiosos 
seus amigos era desnecessário – que nem todos os laicos são guerreiros, apelando para o 
clero de Kent para que corrigissem os seus costumes, a fim de que “os laicos que são os 
 
10
 W. Ullmann, The growth of legal government in the Middle Ages, Londres, 1955, p. 143. 
11
 M. Avery, The Exultet Rolls of South Italy, Princeton, 1936, II, estampa 169. 
vossos guerreiros se tornem fortes para vós e que o povo entre assim no caminho da 
Salvação” 
12
. Os clérigos, os guerreiros, o povo. A bipartição funcional só divide em dois 
corpos os rectores. Deixa de lado os submetidos. No esquema gelasiano, dualista, [Pg. 100] 
inscreve-se a tripartição, essa “divisão entre as três espécies” que Loyseau julga ser sempre 
a mais perfeita. Nem todo o jogo se joga a três; “toda a interacção social é, por essência, 
triangular e não linear”; mesmo que a defrontação seja um duelo, este processa-se perante 
espectadores e “o papel das testemunhas pode transformar-se, de um momento para o outro, 
no de actores – o que efectivamente se passa em Douai, em 1024-1025, quando o bispo 
Gerardo e o Conde da Flandres discutiram perante numerosa assistência e em que cada um 
dos antagonistas, voltado para o “povo”, se esforçava por atraí-lo para si – e em inúmeras 
tríades encadeadas que constituem uma sociedade, existe uma constante alternância de 
pares activos e de alianças dominantes” 
13
. O único manuseio do conceito legado pela 
moral política do século IX levava a dividir em três o campo social: os detentores da 
“autoridade”, encarregados de conduzir o combate espiritual, os detentores da “força”, 
encarregados de dirigir o combate temporal e, finalmente, os “servos” ou os “escravos” 
(servi), que não usam a espada, emblema do poder, nem oram e só têm o direito de estar 
calados e o dever de obedecer, passivos, submissos. 
Adalberão dirá algo de diferente? [Pg. 101] 
[Pg. 102] Página em branco 
 
 
12
 MGH, Ep. K. Aevi, 191-192. 
13
 Th. Chaplow, Deux contre un. Les coalitions dans les triades, 1971.

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