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1 UNIAMÉRICA A TEORIA DO BODE EXPIATÓRIO, DE RENÉ GIRARD, APLICADA À FERA DE MACABÚ Rildo de Sousa Araújo Júnior Junho/2021 RESUMO O presente trabalho analisa o caso conhecido com a Fera de Macabú, através da aplicação dos quatro "estereótipos persecutórios", propostos por René Girard em sua obra O Bode Expiatório. No primeiro capítulo, o pensamento girardiano é brevemente apresentado ao leitor, para depois, passar-se à uma descrição detalhada dos elementos que permitem a identificação de um "bode expiatório", quais sejam: a "crise indiferenciadora”; os "crimes indiferenciadores"; as "marcas vitimárias" e a violência ou expulsão coletiva. No segundo capítulo, discorre-se acerca da origem do município de Conceição de Macabú - RJ e de suas características históricas e o contexto que a região passava após a segunda metade do século XIX, partindo-se, então, para o relato pormenorizado da condenação de Manuel da Motta Coqueiro. No terceiro capítulo é realizada a análise do caso estudado, à luz dos "estereótipos persecutórios", verificando ou não a sua aplicabilidade. Palavras-chave: Bode expiatório. Mecanismo vitimário. Crise indiferenciadora. Marcas vitimarias. Crime indiferenciador. Manuel da Motta Coqueiro. Fera de Macabú. Condenação. Pena de Morte. Maldição. 1. INTRODUÇÃO O presente estudo de caso tem como objetivo identificar, à luz dos estereótipos persecutórios elaborados por René Girard, elementos que permitam apontar, no caso a Fera de Macabú, a existência ou não de bode expiatório. A participação do Estado em conhecer, julgar e punir crimes como esse, pela sua natureza impactante, inevitavelmente suscita inúmeros questionamentos. A partir do método de abordagem hipotético-dedutivo, buscar-se-á responder: se o condenado como mandante do crime possuía características que o diferenciava dos membros da sociedade que encomendaram seu assassinato – marcas vitimarias-; se a região de Macaé (atual Conceição de Macabú), no Rio de Janeiro, viveu uma crise indiferenciadora; e em caso positivo, se ao transgressor foi atribuído algum comportamento que pudesse guardar relação ou consequência 2 com essa crise - crime indiferenciador-. Serão citadas, essencialmente, fontes primárias, tais como artigos, trabalhos científicos e sítios da internet que possam colaborar com o desenvolvimento da pesquisa. O presente trabalho será estruturada em três partes: a) na primeira, a autora realizará uma introdução ao pensamento girardiano, para então descrever com maior minúcia os "estereótipos persecutórios” que servirão à investigação aqui proposta, ilustrando-os com rápidos exemplos históricos; b) na segunda, far-se-á breve relato acerca da origem do município e dos aspectos socioculturais que o caracterizavam na época do acontecimento, descrevendo, após a Chacina de Matupá; c) na terceira, por fim, o linchamento em questão será analisado à luz dos "estereótipos persecutórios". Ao longo do trabalho, também serão abordadas, entre outros temas conexos, a infinitude do ciclo de vingança privada e a finalidade, eficácia e eficiência do monopólio estatal sobre o poder punitivo. Estudar as raízes de um comportamento é basilar para perceber até que ponto ele é um desvio e quão culpável é. Munido dessa noção o aplicador do Direito fica apto a interpretar as leis de forma menos mecanizada, mais humana e abrangente, não cerceada pelo reducionismo metodológico imposto quando se ignoram os esclarecimentos oferecidos pelas demais ciências. Naturalmente, não se tem a pretensão de esgotar os assuntos de que trata René Girard e nem a autoria e materialidade do delito analisado, mas, se comprovadas as hipóteses aqui levantadas, pode-se concluir que episódios como a Fera de Macabú, na qual se executa um bode expiatório, merece ser analisado pelo Direito sob um enfoque multidisciplinar, ganhando assim maior clareza.a introdução o aluno deverá explicar o objetivo do trabalho e, principalmente, como desenvolveu o mesmo. É interessante relatar o que o leitor irá observar nas seções. 2. O BODE EXPIATÓRIO O segredo do sucesso, nos negócios como no amor, é a dissimulação. É preciso dissimular o desejo que sente, é preciso simular o desejo que não sente. É preciso mentir. René Girard 2.1. Introdução ao pensamento Girardiano René Girard – 25 de dezembro de 1923, Avignon, França – é um historiador conhecido pela criação da teoria do desejo mimético, a partir da qual desenvolveu, ao longo 3 de suas pesquisas, muitos outros pensamentos – entre eles, o “mecanismo do bode expiatório”, o qual será detalhadamente analisado neste trabalho. De acordo com os relatos bíblicos mais antigos, o universo e os primeiros seres vivos viviam em perfeita harmonia, até que houve a incidência do pecado na vida do homem e a existência paradisíaca do jardim do Éden se esgotou, tendo que tirar da terra, com trabalho penoso, o sustento diário de sua vida. 1 Com a germinação humana, foram geradas as primeiras comunidades, e, sem a existência do Estado garantidor, as vontades e interesses individuais destoam-se dos interesses coletivos, gerando conflitos e tornando instável a paz e o convívio dentro da comunidade. Com isso, se faz necessário o restabelecimento das condições de convivência, se dando por meio do sacrifício. Senão, vejamos a explanação de Márcio Meruje e José Maria Silva Rosa2 sobre este apontamento: [...]O sacrifício apresenta-se como uma estrutura simbólica que, ao envolver um elemento de mistério em acção tem a função de impedir que a violência, tida como interna à sociedade, atinja repercussões tais – todos contra todos - que coloque em causa a sobrevivência da própria sociedade, levando-a a uma situação de colapso. [...] (sic) Um dos objetos de estudo do historiador René Girard, é o mecanismo vitimário, ou “mecanismo do bode expiatório”, o qual será analisado detalhadamente nesse trabalho. De acordo com a teoria mimética de Girard, os homens elegem seus desejos por imitação, por isso o objeto não tem um valor em si mesmo. Um primeiro indivíduo elege um objeto, causando-lhe um brilho diferenciado, despertando interesse de um segundo indivíduo, que passa a também desejar o mesmo objeto. Esta é a configuração do desejo mimético, caracterizada pela relação triangular entre os dois polos desejadores e o objeto desejado. Como bem expões Dr. Pe. Edvilson de Godoy3: O desejo é matriz do fenômeno religioso. O homem girardiano age sempre desejando ser outro, que é ao mesmo tempo o seu modelo e o seu rival: eis o foco da inveja, do ódio, da vingança e de todas as formas de exclusão. O desejo é a matriz da violência que alimentada pelo ódio progressivo dos rivais, numa relação de reciprocidade negativa, envolve toda a comunidade, ameaçando a ordem social e a própria sobrevivência do grupo. O desejo mimético é intrínseco do homem e se fortalece a medida que o objeto desejado se torna fora do alcance, deixando os indivíduos em estado de guerra, com extrema agressividade, ficando obcecado pelo objeto desejado. No momento da busca da apropriação 1 A Bíblia (GÊNESIS, capítulo 3) 2 MERUJE, Márcio & ROSA, José Maria Silva, SACRIFÍCIO, RIVALIDADE MIMÉTICA E “BODE EXPIATÓRIO” EM R. GIRARD. Griot – Revista de Filosofia 3 A Igreja como povo de Deus. Revista de Cultura teológica- v. 20 n 80- out/dez 2012 p. 127 4 do objeto, com esse caráter aquisitivo, emerge a violência nas relações humanas. Com a instalação dessa veemência, vem o escândalo, que tem por conceito ser um obstáculo que fomenta em primeiro plano a retinência, seguida de extrema impaciência, culminando em expressões violentas que aparentam serem o único meio de pacificar a lide. Senão vejamos a ilustração feita pelo Dr. Pe. Edvilson de Godoy4 acerca do escândalo e suas consequências: O escândalo começa no desejo mimético e desenvolve-secompletamente na crise mimética. A pedra de tropeço que causa a queda do inocente; começa a desenvolver-se na relação entre modelo, obstáculo e sujeito. O sujeito, ao desejar o objeto do seu modelo, inicia o processo de imitação, tornando- se uma pedra de tropeço para o modelo. O sujeito fará de tudo para derrubar o próprio modelo e arrancar-lhe o objeto desejado; para ser como o modelo, o sujeito precisa destruí-lo. O modelo, por sua vez, ao perceber a presença do imitador, apega- se completamente ao objeto já possuído para não perdê-lo para o rival. Assim, também o modelo se torna rival do seu rival, ou seja, será um obstáculo, na realização do desejo do imitador. O modelo é contagiado pelo escândalo do rival de maneira que o escândalo é recíproco. Nessas circunstâncias, rapidamente o escândalo se espalha para a comunidade, onde a sociedade passa a ocupar um dos polos da relação triangular do desejo mimético. A rivalidade mimética passa a ser paradoxal, porque a sociedade, o sujeito e o objeto deixam de estar diferenciados. Nessa etapa há a passagem de todos contra todos para todos contra um, que ao final, apazígua-se a crise, ao inventar um Bode expiatório, que silencia a violência generalizada e impede o colapso da comunidade. Em sua obra, Girard ilustra em uma de sua passagem como Édipo é um candidato perfeito para candidatar-se como bode expiatório, onde é de fácil visualização da violência generalizada pairando sobre a multidão, e, ele enxergando ser o sacrifício, arranca os próprios olhos dado a desgraça que ele (e exclusivamente ele) jogou contra a cidade ao tentar se aproximar de seus pais. Édipo deixa Tebas, e com isso, põe fim à violência que atormentava a cidade inteira. “Para libertar toda a cidade da responsabilidade pela crise sacrificial que pesa sobre ela e para transformar a crise sacrificial em peste, esvaziando-a de sua violência, é preciso transferir esta violência sobre Édipo ou, de forma mais geral, sobre um indivíduo único.” 5 Contudo, que a efetivação da paz só reinará com a canalização unânime da violência da comunidade contra o bode expiatório. Na seleção deste, é importante citar a 4 Ibid., p. 130 5 GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. 3ª Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1990. P. 103. 5 vulnerabilidade da vítima, pois para que o sucesso é necessário que não haja ninguém disposto a vingá-la. A inconsciência da multidão é outra característica imprescindível para o sucesso do “mecanismo vitimário”, já que cada membro da multidão deve crer cegamente na culpa do bode expiatório para se lançarem contra ele. Algo relevante é que na esfera da inconsciência, observa-se um aspecto racional. Esse aspecto racional é observado quando a culpa consensual é lançada sobre a vítima ela é diferenciada dos indiferenciados da multidão. Assim, sem encontrar nenhum apoio, e com a configuração de todos contra um, a violência se extingue com a expulsão ou morte da vítima, não ocorrendo à vingança.6 Podemos observar essa efetivação do mecanismo vitimário nas palavras de Marcos Antônio Bezerra Uchôa: Para que o acontecimento seja eficaz enquanto reprodução do mecanismo fundador percebe-se claramente a sequência: a lapidação acontece fora da cidade, não se pode ter contato direto com a vítima por causa da contaminação, a participação unânime e espontânea da comunidade no assassinato, e, finalmente, tudo isso de forma legal que é a ritualização da própria violência espontânea. Os mártires de ontem e de hoje ‘multiplicam as revelações da violência fundadora’ que não produz mais mitos e sim textos de perseguições.7 Diante disso, é fácil observar que com a ausência do Estado os indivíduos tornariam comum o instituto da vingança privada, e linchamentos seriam cada vez mais recorrentes. Com isso, o Estado avoca para sim o monopólio punitivo, buscando manter a ordem e reprimir e evitar manifestações violentas. Os críticos e defensores do Direito Penal do Inimigo8 afirmam que esses indivíduos são diferenciados por meio do tipo penal, o infrator personifica um comportamento que desestabiliza a sociedade, e que por possuírem certas características, são vítimas do sistema judiciário. Visto isso, segundo René Girard, nas palavras de Marcos Antônio Bezerra Uchôa, afirma que o sacrifício não substitui o sistema judiciário, pois possuem a mesma função de interromper a vingança privada, senão vejamos: O problema é quando eu digo que somente pelo sistema judiciário posso controlar o perigo da vingança e não reconheço a função do sacrifício, do religioso. Logo, meu sistema está fechado, está cego. Devemo-nos perguntar é se as sociedades primitivas sobreviveram à escalada de violência, como conseguiram sem um sistema judiciário? A solução está no religioso e no sacrifício, ou seja, naquilo que a sociedade moderna exclui ou relega ao plano do insignificante.9 6 FURTADO, Letícia de Souza. A Teoria Do Bode Expiatório, De René Girard, Aplicada À Chacina De Matupá. 2013. 30 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direiro) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Rio Grande do Sul. 7 As interfaces: Sagrado e violência, segundo René Girard. P.91 8 Teoria introduzida por Günther Jakobs, jurista alemão que desenvolveu esse conceito em 1985. 9 As interfaces: Sagrado e violência, segundo René Girard. P.48 https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%BCnther_Jakobs 6 2.2 Os esteriótipos persecutórios que definem um “bode expiatório” A expressão bode expiatório tem origem bíblica, no ritual judaico do livro de Levíticos, que a Arão, após ordem do Senhor comunicada por Moises, põe suas mãos sobre a cabeça de um bode e transmite todos os pecados do povo de Israel, senão vejamos os relatos históricos: Então Arão fará chegar o bode, sobre o qual cair a sorte pelo Senhor, e o oferecerá para expiação do pecado.10 Depois de delimitado o universo em que surge o “bode expiatório”, sua função e utilidade perante a comunidade, passa-se a análise mais detalhada dessa sua figura. René Girard mostrou que existe um esquema transcultural de violência coletiva e que é fácil esboçar seus contornos,11 o sistema que denomina de estereótipos persecutórios, que é característico por observar nos acontecimentos e nos indivíduos a afirmação de uma vítima expiatória. O primeiro estereótipo persecutório, respeitando a cronologia lógica do autor é a crise indiferenciadora, que se trata de um fenômeno de ajuntamentos populares espontâneos que tem como característica o sentimento comunitário de baderna e desordem. Esta crise pode ser gerada por diversos motivos, sendo estas causas internas, como agitações políticas ou conflitos religiosos, ou por vezes, são causas externas, como as epidemias ou ainda a seca extrema, ou a inundação que coloque a comunidade em dificuldade; é válida a lembrança que para a ciências humanas, o campo social (interno) é sempre o que goza de maior importância. Tem como características principais a perda do radical social, fim das regras e da ordem que define a cultura local. As instituições estruturam, determinam e ditam, em regra, os comportamentos, deveres, obrigações e direitos dos homens em sociedade, pretendendo que eles possam se relacionarem nos diversos aspectos sociais sem a ocorrência grandes conflitos, ou seja, as instituições impõem papéis aos indivíduos, escalonando-os hierarquicamente em diferentes posições sociais. Essa estrutura permanece estável até o estopim da crise, que quando se instala, gera a desestruturação da organização determinada pelas instituições, fazendo com que toda a estrutura social se desconfigure, e que aspectos sociais não estarão mais revestidos por ordens, e sim com pessoalidade, tratando diretamente os indivíduos dessa tarefa. Com isso, a reciprocidade instantânea se instala nas trocas sociais, as impressões positivasou negativas se aceleram, visto a ausência da regularização das instituições12. 10 Bíblia (LEVÍTICOS 16:9) 11 GIRARD, René, O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. P 29. 12 GIRARD, René. O bode expatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. P 19 – 21. 7 Com a incredibilidade das instituições, os mecanismos de proteção da sociedade encontram-se em risco, estando as relações a margem da instabilidade. A multiplicação das trocas agressivas assemelhava toda a sociedade, que, ao desaparecerem as diferenças que eram propostas pelas regras, desaparecera também a ordem, instalando-se a anarquia do caos. A violência padroniza o comportamento social, provocando um “efeito cascata”. Os homens passam a ver como único meio correto de agir o seu próprio, mas que por tanto se diferenciarem, se igualam e passam a conviver nesse meio turbulento. É como Girard bem expõe: Embora oponha os homens uns aos outros, essa má reciprocidade uniformiza as condutas e é ela que produz uma predominância do mesmo, sempre um pouco paradoxal, pois essencialmente conflituosa e solipsista. A experiência de indiferenciação corresponde, portanto, a algo de real sobre o plano das relações humanas, mas não dei de ser menos mítica13 Nesse universo anárquico, ausente de instituições garantidoras, onde os membros da sociedade estão imersos na indiferenciação é que se inicia a perseguição. Diante da eminência destruição da comunidade, e da improvável renúncia de qualquer um dos membros indiferenciados, a única e alternativa viável para manter e garantir a sobrevivência da sociedade comunal é canalização da violência de todo o social indiferenciado em uma única vítima, dando um fim a ideia do “todos contra todos” e iniciando a nova fase, sendo “todos contra um”. 14 Ou seja, o mecanismo vitimário do “bode expiatório” aparece como um instituto que tem por objetivo salvaguardar a existência da comunidade em meio a extrema rivalidade de seus membros. Visto o universo em que se encontra a comunidade, passa-se a buscar o entendimento de como é eleita o bode expiatório. Girard aponta que são diversas e certas as características que determinam a escolha da vítima, mas aponta que a responsabilidade ficará mais evidente se a ela for imputado um fato delituoso que acarrete uma reprovação unânime dos membros da sociedade, não se fazendo necessário que esta imputação seja verídica. Dá-se início ao estudo do segundo estereótipo persecutório, qual seja, o crime indiferenciador. Segundo Letícia de Sousa Furtado e Wilson Frank Júnior, observa-se que: A atribuição de um crime indiferenciador, baseia-se no pensamento lógico, não sendo essencial às massas regidas estritamente pelo pensamento mágico. Por isso, Girard entende que, na sociedade contemporânea, o crime indiferenciador facilita a vinculação causal da vítima expiatória à crise, mas que o motivo da seleção 13 GIRARD, René, O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. P 21. 14 GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Traduzido por Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990. 8 daquela não é esse.15 Essas acusações, à primeira vista, são bastante diversos, mas é fácil indicar sua unidade. De início há crimes de violência que tem como objeto violação criminal, de um modo mais absoluto. Tem-se também como acusados os praticantes de delitos sexuais, que frequentemente transgridam os tabus mais rigorosos da relação cultural, quais sejam a violação, incesto chegando até a bestialidade. Há também os crimes religiosos, que são os mais severos tabus a serem transgredidos, como exemplo a profanação das hóstias. Todos esses crimes lesam a dignidade cultural, e geram na esfera individual uma revolta que quando posta em conjunto com todos os indivíduos, desencadeis um desastre incomparável.16 Após o cometimento do tipo delituoso, tem-se início o conhecimento do fato perante a sociedade, que, a partir do momento que sua propagação aumenta, e o enredo goza uma pequena credibilidade, já se tem o necessário para que a população produção com forte convicção apologia contra o acusado. É válido ressaltar que não se faz necessário que a acusação recheie a acusação de provas de autoria e materialidade delitiva. É a acusação estereotipada que autoriza e facilita esta crença, servindo de ponto entre a pequenez do indivíduo acusado e a enormidade do corpo social acusar e juiz. Esse enorme corpo social perseguidores em potência, pois buscam purificar a comunidade de elementos impuros, atribuindo a um(ns) homem(ns) a responsabilidade por grandes crises e catástrofes, ampliando muito o potencial lesivo do(s) bode(s) expiatório(s)17. O crime indiferenciador funciona como catalizador vinculando a vítima (bode) expiatório a crise, mas que não seja este o motivo dela. Girard. Afirma ainda que são suas ‘marcas vitimarias18’ que apontam quem será objeto da perseguição. Entendem-se por marcas vitimarias como constituintes do terceiro estereótipo persecutório apontado por Girard, que à primeira vista são puramente diferenciais, mas que colocam o “bode expiatório” à margem do sistema, antes mesmo que a ele seja imputado qualquer ato verdadeiramente reprovável. É público e notório que a sociedade não é toda regular e congênere, ela aceita determinadas diferenças que lhe convém, e que, mediante apresentação de algumas anormalidades que dificultem a compreensão dos demais indivíduos, ocorre aversão. O autor explana bem ao relatar: 15 FURTADO, Letícia de Souza; FRANCK JUNIOR, Wilson. O linchamento de Guarujá e a violência mimética de René Girard. Iurisprudentia: Revista da Faculdade de Direito da Ajes, v. 3, 2014 16 GIRARD, René, O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. P 23. 17 FURTADO, Letícia de Souza. A Teoria Do Bode Expiatório, De René Girard, Aplicada À Chacina De Matupá. 2013. 30 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Rio Grande do Sul, 2013. 18 GIRARD, René, O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. P 30. 9 Não é toda diferença no seio do sistema que significam as marcas de seleção vitimária, mas a diferença fora do sistema, é a possibilidade de para o sistema de diferir de sua própria diferença, ou, em outras palavras, de não diferir do todo, de cessar de existir como sistema19. O bode expiatório deve possuir uma característica, marca, sinal ou deformidade que o diferencie claramente do resto da população. Essas diferenças podem serem diversas, a depender do caso, podem se apresentar como um fator econômico, sendo a vítima bastante rica ou pobre; pode se tratar de característica anatômica, sendo essa alguma enfermidade, feiura, sinal de nascença ou grande beleza; pode se tratar também da esfera religiosa, onde é citado um mulçumano entre cristãos20. René Girard também aborda os exemplos dos estrangeiros, que quando estes chegam a nova terra, os costumes já estão estabelecidos, não tendo costumes ou não tendo gosto conforme o caso21. Agora com estes apontamentos, é entendido que no ápice da crise indiferenciadora (primeiro estereotipo), quem dotado de marca vitimaria (terceiro estereotipo) praticar algum delito amora [crime indiferenciador (segundo estereótipo)], será o ponto de canalização de toda a violência coletiva (quarto estereótipo). A multidão que era dotada de instabilidade na esfera interindividual, abre mão do todos contra todos, para na esfera coletiva aplicar o todos contra um, sendo este um titulado como fonte de todos os problemas e responsável por todo o mal que paira sobre a comunidade. 3. FERA DE MACABÚ 3.1 Do descobrimento à emancipação de Conceição de Macabú Macabú é um município originalmente habitado por tribos indígenas nômades, o município foi parteda Capitania de São Tomé até ser doado em sesmaria para os Sete Capitães. Com o fracasso da sesmaria a região foi dividida, cabendo as terras do município aos padres jesuítas, que a partir da Freguesia de Nossa Senhora das Neves e Santa Rita, exploraram o interior catequizando e aldeando os índios habitantes do vale do rio Macabu, no vizinho vale do rio Macaé. Em meados do século XXVIII, os jesuítas são expulsos, nos anos seguintes os desprotegidos indígenas retornam ao vale do Macabu formando os primeiros povoados, que logo foram atingidos pelo progresso oriundo do cultivo do café na região serrana fluminense. Com o início das grandes plantações, 19 Idem 31 20 FURTADO, Letícia de Souza. A Teoria Do Bode Expiatório, De René Girard, Aplicada À Chacina De Matupá. 2013. 30 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Rio Grande do Sul, 2013. 21 GIRARD, René, O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. P p 31 10 a cidade acarretou grande chegada de imensas quantidades de escravos africanos. A região de Macabu composta por serras cobertas de florestas foi rica local de refúgio de escravos fugitivos que formaram o Quilombo de Cruz Sena e Quilombo do Carucango, o maior que existiu na região. A cidade contava com portos fluviais, a estrada Macaé-Cantagalo e o ramal ferroviário oriundo de Conde de Araruama (Quissamã) tornam-se vias de acesso à região contribuindo para o seu povoamento, crescimento econômico e evolução política: freguesia em 1855 e primeira emancipação em 1891-1892. Durante esta época de grande crescimento econômico, ocorreu o caso da Fera de Macabu, uma história de crime erros judiciários a partir do qual se iniciou o fim da pena de morte no Brasil.22 3.2 Manuel da Mota Coqueiro Manuel da Mota nasceu na fazenda do Coqueiro, município de Campos dos Goytacazes, em fevereiro de 1799, embora haja divergência entre datas, visto que sua certidão de nascimento conste como 17 de agosto de 180223. Tinha filiação de Manuel José da Motta, fazendeiro da região, e Anna Francisca do Nascimento; fato comum à época, teve em seu nome acrescentado ‘Coqueiro’ em virtude de ter nascido na Fazenda Coqueiro e passou toda sua infância na fazenda administrada pelo pai.24 Da Motta Coqueiro se tornou um homem muito influente, de grandes negócios na região, mas de temperamento rude. Era característica o pavor de todos que o circundavam pela sua valentia, arrogância e pela forma cruel com que tratava seus escravos.25 A história da Fera de Macabú inicia-se no dia em que o primo e amigo Julião Baptista Coqueiro apresenta-lhe sua noiva Joaquina Maria de Jesus. Como iria ao Rio de Janeiro dedicar-se aos estudos, Julião pediu ao primo que cuidasse de sua noiva, prestando toda assistência necessária durante o seu período acadêmico e assim Manuel o fez. Ocorre que Da Mota terminaria pôr-se apaixonar por Joaquina, passando a cortejá-la e envolvendo-se em um grave atrito com seu Primo Julião, que jurou vingança e passou a persegui-lo de todas as formas possíveis. Bel Aquino26 descreve bem os primórdios dos inimigos de Coqueiro: 22 Prefeitura Municipal de Macabu. Nossa História. Disponível em: <http://www.conceicaodemacabu.rj.gov.br/?INT_PAG=4857>. Acesso em: 05 jun. 2018. 23 Divergência que ocorrera por imprecisão dos serviços cartorários da época, tendo frequentemente a divergência entre a idade biológica e a presente no registro civil. 24 AQUINO, Diego Bayer e Bel. Fera de Macabu: o maior erro do judiciário brasileiro. Justificando. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/12/fera-de-macabu-o-maior-erro-judiciario- brasileiro/>. Acesso em 05 de jun. 2018. 25 SOUSA, Valter Ney Macedi. O caso Mota Coqueiro. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/55822/o- caso-mota-coqueiro>. Acesso em 06 de jun. 2018. 26 Servidora pública federal, pós-graduada em Direito e Processo Penal e estudiosa de criminosos famosos e julgamentos históricos. https://jus.com.br/artigos/55822/o-caso-mota-coqueiro https://jus.com.br/artigos/55822/o-caso-mota-coqueiro 11 [...]E Coqueiro assim o fez mas, de tanto concentrar todos os olhares em Joaquina, se apaixonou por ela e a desposou em 07 de fevereiro de 1820, deixando Julião profundamente humilhado, jurando-lhe vingança eterna – o que o levou a persegui-lo de todas as maneiras, abusando do prestígio de sua família, manipulando forças políticas de seu irmão José Bernardino Baptista Pereira de Almeida (que foi Ministro da Justiça e da fazenda de D. Pedro I) e aproveitando-se de sua ligação familiar com o visconde de Maranguape para apressar, dentro do próprio palácio imperial, a execução de Coqueiro anos mais tarde. Para Manuel, o casamento com Joaquina não rendeu bons fruto, ofertando uma inimizade mortal com o seu influente primo, cumulado com ausência de dote por sua noiva. É importante ressaltar que Coqueiro não desfrutou muito tempo de sua amada, já que em março de 1823 ela contraiu uma grave infecção pulmonar (acreditam-se que se tratava de Tuberculose) que a levou ao óbito. Logo após a morte de Joaquina, Manuel da Mota começa a receber uma herança do seu tio-avô, uma fazenda, vizinha a de Julião, seu primo que lhe jurara vingança. Coqueiro foi adquirindo novas propriedades, ampliando sua fortuna, até que conheceu Úrsula Maria das Virgens Cabral, prima de seus primos. Era uma fazendeira que tinha uma posição social elevada, sendo muito respeitada apesar de ser mulher, por ter personalidade fortíssima. Em 1832, ocorreu o casamento entre Manuel da Motta Coqueiro e Úrsula Maria das Virgens Cabral. Logo no início do matrimônio, o casal passou a juntar bens, expandindo os limites das propriedades, arrendando ou ocupando terras abandonadas. Essas terras foram doadas a padres beneditinos que nunca as ocuparam, posteriormente ocupadas por Coqueiros e por outros fazendeiros, o que gerou um conflito entre Manuel e os Padres. O atrito chegou a tal tamanho que a Igreja enviou tropas de escravos para que pudessem recuperar a posse das terras. Da Motta enfrentou os escravos e conseguiu garantir a propriedades das terras, porém, os padres se agregaram ao grupo dos inimigos de Manuel. Em 1847, Coqueiro já era dono de cinco fazendas e muitos escravos respeitado pela sociedade local. Foi convidado para um casamento em que o Imperador D. Pedro II. Na festa luxuosa, para dois mil convidados, Úrsula e Coqueiros são apresentados ao Imperador.27 Nesse mesmo período, o mercado escravocrata estava em baixa, com a crise do Tráfico Negreiro e pressão da Inglaterra requerendo o fim dessa prática mercantil. Como solução se tem a substituição de mão-de-obra escrava pela utilização de colonos livres, prática que se 27 FERA DE MACABU. Linha Direta Justiça. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=syXGcpn6Vos&t=543s>. Acesso em 05 de jun. 2018. 12 tornou frequente no Brasil no século XIX. Bel Aquina expõe as atitudes de Da Motta sobre essa inovação: Coqueiro foi um dos primeiros a aderir a esta experiência e, por intermédio de seu vizinho e amigo, José Pedro Gomes de Moura, conheceu Francisco Benedito da Silva, casado e com seis filhos; um colono trabalhador, mas que tinha um histórico de embriaguez e de arrumar brigas com as escravarias.28 Com o acordo de trabalho, Francisco Benedito se instalou na fazenda Bananal com sua família. Em visitas laborais para resolução de diligências mercantis, Coqueiro descobre os encantos de uma das filhas de Benedito, era Francisca, por quem se apaixonou, passando a visitar com mais frequência seus aposentos fazendários. Em abril de 1852, em uma visita de Coqueiro à Fazenda Bananal, este encontrou-se com Francisca, ficando quase dois dias inteiros sem que ninguém os visse, resultando na gravidez da moça. Devido a gravidez indesejada, Manuel tentou,sem sucesso, mandar Francisco embora de todas as formas, o que gerou desentendimentos severos. Diego Bayer e Bel Aquino descrevem um dos atritos em que as partes se envolviam: Em uma das indisposições criadas entre eles, Francisco Benedito desembalou e jogou no rio carga de madeiras que seriam vendidas a comerciantes por Coqueiro; então, Fidélis, o feitor da fazenda, organizou um grupo de escravos, sem conhecimento de Coqueiro, para punir Francisco Benedito, mas, chegando em sua residência, foram afugentados pela família que estava municiada de espingardas, foices e paus. Não tardava a chegar uma resposta. 29 Com as constantes ausências do marido, Úrsula desconfia e após apurar a situação, e surpreende Coqueiro a dizer que sabe das relações dele com Francisca e também da gravidez. Com o desenrolar do discurso, Manuel decide marcar um encontro com Francisca para esgotar a situação. No caminho, foi espancando brutalmente por dois homens que estavam escondidos. Para se proteger, Da Motta decide andar acompanhado de um “guarda- costas” chamado de Florentino da Silva. 3.3 Chacina de Macabu No dia 11 de setembro, Coqueiro chegou na Fazenda Bananal por volta das 23 horas, em uma canoa remada pelos seus escravos negros e seu capanga, Flor. Todavia, em 28 AQUINO, Diego Bayer e Bel. Fera de Macabu: o maior erro do judiciário brasileiro. Justificando. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/12/fera-de-macabu-o-maior-erro-judiciario- brasileiro/>. Acesso em 05 de jun. 2018. 29 AQUINO, Diego Bayer e Bel. Fera de Macabu: o maior erro do judiciário brasileiro. Justificando. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/12/fera-de-macabu-o-maior-erro-judiciario- brasileiro/>. Acesso em 05 de jun. 2018. 13 razão das fortes chuvas, foi para casa encontrando um grupo de amigos, com os quais ficou durante a noite toda, inclusive com eles dormindo em sua residência em razão da tempestade. Naquela noite, enquanto comiam e bebiam, a 1300 metros dali houve um assassinato coletivo, os ruídos e gritos foram abafados pela noite de trovões. Nesta mesma noite, de 11 para 12 de setembro de 1852, era lua nova e chovia demais. Um grupo de homens ligados à Fazenda Bananal atacou a casa de Francisco Benedito e iniciou uma chacina. Quando percebeu o ataque, o jovem José Benedito (filho de Francisco Benedito) tentou fugir para buscar socorro, sendo morto por uma violenta paulada que lhe rachou o crânio. Em seguida, os assassinos arrombaram a porta principal e mataram todos: Francisco Benedito foi retalhado por golpes de facão e foice; em seguida, sua mulher, Amélia, morreu com golpes de pau e foi esganada por um dos assassinos. As crianças menores foram trucidadas sem pena, com quantas pauladas bastassem até que não mais se movessem. Sem serem percebidas, as duas filhas de Francisco Benedito haviam fugido pela janela. Quando os assassinos estavam saindo da casa, um clarão de raio revelou uma das filhas que havia fugido e estava na árvore. Era Maria, qual foi agarrada pelos homens e morta ali mesmo. Francisca, mais acima, viu sua irmã ser morta a pancadas, tremendo de medo e de frio. Os homens amontoaram os corpos em um dos cômodos da casa e atearam fogo. Tão logo saíram para o mato, a chuva caiu mais forte, apagando o fogo, deixando a cena do crime quase que intocada.30 Após ter certeza que não havia mais ninguém ali, Francisca desceu da árvore e correu sentido contrário a Fazenda Bananal. Vagou solitária até ser encontrada na tarde seguinte, sendo levada até a fazenda de André Ferreira dos Santos, outro inimigo de Coqueiro, onde, em estado de choque e traumatizada, não conseguiu falar nada. Quando viu Francisca chegar em estado de choque, André (inimigo de Coqueiro) já sabia o que tinha acontecido, e sequer esperou pelo subdelegado Oliveira, que era a autoridade máxima da região: mandou ofício ao delegado de Macaé, formalizando a denúncia de crime coletivo, acusando Coqueiro. Apenas na terça feira, dia 14 de setembro, os escravos, após notarem uma revoada de urubus em torno de onde ficava a palhoça de Francisco Benedito, perceberam que havia ocorrido uma chacina. Foram imediatamente contar para Coqueiro que, em pânico por saber que seria acusado pelo crime, convocou todos os escravos para arrancar deles uma confissão. O pajem (escravo que tinha função prestar serviços) Carlos admitiu que estava entre os 30 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.5 14 assassinos. Coqueiro avançou sobre ele e o puniu severamente; diante disso, nenhum outro escravo admitiu ter participado.31 A partir daí começou o calvário de Manuel da Motta Coqueiro. Os inimigos levaram uma caixa com todas as peças de roupas dos mortos, rasgadas e ensanguentadas. Com medo da sequência dos fatos, Coqueiro, após uma conversa com Úrsula, decidiu fugir, mesmo contra a opinião desta e de seu filho, que o avisaram que pareceria estar assumindo o crime. Após forte apelo dos jornais – que cumpriram papel fundamental no pré-julgamento de Coqueiro – e ampla divulgação do caso. Foi preso na Vila do Itapemirim. 3.4 Da prisão a execução O delegado Dinis mandou Coqueiro até Campos dos Goytacazes montado em um jumento, com as pernas amarradas por baixo da barriga da montaria e as mãos algemadas, acompanhado de uma escolta de cinco homens armados; nas noites, era amarrado em árvores. Uma multidão ali concentrada gritava impropérios, a polícia teve que conter os manifestantes. Para os inimigos de Coqueiro era importante manter a imprensa atuante, para atrair a atenção de Dom Pedro II, pois sabiam que o imperador se impressionava com o que era veiculado nos jornais. No dia 02 de novembro, o jornal Diário do Rio de Janeiro reproduzia a cena da chegada de Coqueiro a Campos dos Goytacazes, surgindo a partir desta publicação o apelido “A Fera de Macabú”.32 Coqueiro foi colocado na cela mais segura da cadeia pública de Campos dos Goytacazes, com uma sentinela à porta em tempo integral. De madrugada, sua esposa Úrsula, acompanhada pelo filho André, conseguiram visitar o marido. Ela chorou muito e saiu amparada. Mais tarde, um amigo da família tentou lhe entregar um pequeno vidro com veneno, mas Coqueiro recusou o suicídio esperando provar sua inocência. Para chamar a atenção da mídia e do povo, os inimigos de Coqueiro, que comandavam as investigações, começaram a prender um a um dos escravos e os aterrorizavam, para que prestassem depoimentos assustados e manipulados. Diziam, ainda, que se dessem depoimentos que incriminasse Coqueiro, deixariam de ser escravos.33 Após o depoimento de uma testemunha chamada Bento Pereira da Silva, foram presos Flor e um “capanga” conhecido como Faustino, acusados de serem os executores a 31 Autor desconhecido, Macaé, a lenda de Motta Coqueiro e a Maldição. Disponível em: <http://pontonulonotempo.blogspot.com/2013/06/macae-lenda-de-motta-coqueiro-e-maldicao.html> Acesso em 11 de jun. 2018. 32 VASCONCELOS, Antônio Antão. "Crimes Célebres de Macaé". Macaé (RJ): 1901. 33 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. http://pontonulonotempo.blogspot.com/2013/06/macae-lenda-de-motta-coqueiro-e-maldicao.html 15 mando de Coqueiro. O que ficou claramente demonstrado, é que o interesse em incriminar Coqueiro e a intenção de leva-lo a forca era tanta, que a polícia não checou diversas informações importantes, como a presença de visitantes na casa de Coqueiro na noite do crime, álibi que poderia tê-lo inocentado. Nenhum dos visitantes foi convocado a depor.34 Pressionado pela opinião pública, Pacheco pronunciou rapidamente os réus Manuel da Motta Coqueiro como mandante, Florentino da Silva, Faustino Pereira da Silva, o feitor Fidélis e os escravos Domingos, Alexandre, Peregrino, Sabino e Guilherme, e o menor Carlos, como executores. O trâmite foi veloz: o crime ocorreu em11 de setembro de 1852, os últimos acusados foram presos em outubro, os interrogatórios terminaram em novembro, o sumário de culpa foi concluído no dia 29 de dezembro e, em janeiro de 1853, o processo foi à apreciação do promotor para oferecer a denúncia; no dia 07 de janeiro o juiz expediu convocações e precatórios para o primeiro julgamento, marcado para o dia 17 de janeiro. O Promotor mudou completamente os rumos da acusação. Dos dez acusados, sem nenhuma razão objetiva, ele acusou somente quatro pessoas, sendo estas Coqueiro, Faustino, Domingos e Flor. O promotor os denunciou por infringência ao artigo 192 do Código Criminal Imperial35 reconhecendo homicídios em grau máximo com vários agravantes, qual a pena máxima era a morte na forca. O primeiro julgamento foi preparado como grandes espetáculos teatrais: o advogado Luiz José Pereira da Fonseca se esforçou ao máximo para reunir novas provas, testemunhos ou indícios no curto espaço de tempo que teve até o dia de julgamento. Este pedia mais prazos argumentando o cerceamento da ampla defesa, mas nada parecia mais importante para as autoridades e para o juiz do que condenar os acusados e puni-los exemplarmente, fossem culpados ou não. Chegavam pessoas de todos os lados, de navio, a cavalo, de carroça ou remando em canoas. As pessoas não entendiam o porquê do julgamento se a mídia já havia condenado e a população confirmado o veredicto. Na véspera do julgamento, as roupas das vítimas ensanguentadas, apesar de serem peças do processo, apareceram penduradas em postes nas principais ruas junto a cartazes que incitavam a população contra os acusados. Nos dias antecedentes ao julgamento, o juiz Almeida Couto disse a pessoas próximas que estava tão convencido da culpabilidade de Coqueiro que nem estudaria o processo a fundo, já antecipando que seria parcial. 34 TINOCO, Godofredo. "Mota Coqueiro, a Grande Incógnita". Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966. 35 Art. 192. Matar alguém com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas no artigo dezesseis, números dois, sete, dez, onze, doze, treze, quatorze e dezessete. Penas - de morte no grão máximo; galés perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte anos no mínimo. 16 Os jurados só sairiam da sala secreta às 02h00min do dia 19. O presidente do corpo de jurados, comunicou ao juiz que o conselho considerava Manuel da Motta Coqueiro culpado como mandante das mortes de Francisco Benedito da Silva e sua família, e os três acusados culpados pela execução dos crimes.36 Os jurados concordaram sempre por unanimidade, com quase todas as agravantes listadas pelo promotor, condenando desta forma os acusados a pena máxima, a morte na forca. Quando o juiz emitiu a sentença no dia 19 de janeiro foi intensamente aplaudido dentro e fora do fórum, com foguetes estourando para saudar a condenação.37 Os advogados recorreram, mas Coqueiro, desapontado com o desempenho de seu advogado dispensou seus serviços. O presidente da província julgou procedente o recurso para que fosse efetuado um novo júri, para não haver dúvidas quanto a condenação à morte na forca. O juiz Almeida Couto agiu com imensa alegria e marcou novo julgamento para 28 de março de 1953, apenas 68 dias após terminado o primeiro julgamento. Assim, no dia 28 de março de 1853, às 10 horas da manhã, iniciou o segundo julgamento de Manuel da Motta Coqueiro. O advogado Tinoco fez uma defesa brilhante, argumentando a falta de provas materiais e a fragilidade dos depoimentos, sustentado em suposições de escravos. Acusou os escravos de terem executado as mortes para acusarem seu senhor e conseguirem a liberdade da escravidão. Mas por mais que se esforçasse, não conseguiu sensibilizar o júri, qual já estava decidido pela condenação. As decisões do segundo júri também foram da mesma forma que o primeiro julgamento38. Desta forma estava decidido: Coqueiro foi condenado a morte na forca. Todavia, alguns meses depois do segundo julgamento, quando os ânimos começaram a esfriar, as críticas à forma e ao resultado dos julgamentos timidamente surgiram, crescendo as pessoas que achavam que o caso Coqueiro merecia uma revisão. Após o segundo julgamento, a defesa de Coqueiro entrou com diversos recursos, sendo o recurso de revista negado em 12 de maio de 1854 por 17 ministros. No dia 20 de junho de 1854 foram julgados improcedentes também os recursos de Flor, Faustino e Domingos. Em 17 de setembro de 1854 fora negado por completo o último recurso de Coqueiro. Restavam a eles somente a petição de graça. A defesa de Coqueiro nem havia esperado a decisão do último recurso e já havia protocolado petição implorando a graça 36 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.137 37 Op. Cit. 38 Op. Cit. 17 imperial, sua última cartada.39 Havia dois anos que o terrível crime esperava para ser punido. A graça foi rejeitada por unanimidade pela Seção de Justiça do Conselho de Estado e o parecer foi enviado ao imperador com o seguinte conselho: “O réu Manuel da Motta Coqueiro não merece a Imperial Clemencia”. Tratava-se apenas de questão de tempo, pois era impensável que Dom Pedro II rejeitasse a decisão do Conselho de Estado e foi o que aconteceu, negando a Coqueiro a graça imperial. Então, o ministro dos Negócios da Justiça, José Thomaz Nabuco Araújo mandou cumprir a sentença.40 Na manhã do dia 03 de março, quando a forca ficou pronta em Macaé, Coqueiro foi tirado de sua cela na Casa de Correção e entregue a uma tropa de 52 homens do Corpo Municipal Permanente do Rio de Janeiro. Considerando que o Corpo Permanente tinha 419 homens em 1850, estima-se que 12,5% de todo o efetivo foi designado para acompanhar um único preso. Coqueiro pediu para falar com um padre, que chegou às 17h; padre Freitas era treinado para casos de condenados a morte e foi tomar a confissão e dar consolo ao condenado, que falou sem parar durante um bom tempo, sem ser interrompido. A medida que Coqueiro falava a testa do padre franzia pouco a pouco, ficando assustado com o que ouvia. Quando a confissão terminou, o padre levantou-se tenso, despediu-se de Coqueiro e seguiu para fora da cadeia com uma expressão perturbada e atormentada. Acreditava ainda que o padre Freitas pudesse postergar os votos sagrados da Igreja e usasse a confissão para arrancar a absolvição. Mas não aconteceu. Desta forma, às 04h30min do dia da execução, Coqueiro concentrou-se para fazer o que antes havia negado: pegou um pequeno caco de vidro que achou na cela e fez vários cortes no pulso esquerdo. No entanto, um gemido de dor e o barulho das correntes alertaram o carcereiro, que chamou a guarda aos gritos, e controlou o sangue que jorrava. Terminava ali a última esperança de Coqueiro para morrer com o mínimo de honra.41 Chegou então o dia 06 de março de 1855, uma terça feira nublada de outono. Coqueiro foi vestido com uma bata branca, sem bolsos, traje obrigatório dos enforcados. Prenderam seus braços com grossos braceletes de ferro. Os milicianos abriam caminho até a forca. O carrasco se adiantou, braços 39 Entrevista – Fera de Macabú. Disponível em: <http://www.record.com.br/autor_entrevista.asp?id_autor=1136&id_entrevista=153> Acesso em: 09 de jun. de 2018. 40 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. 41 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.128 http://www.record.com.br/autor_entrevista.asp?id_autor=1136&id_entrevista=153 18 cruzados sobre o peito musculoso, vestido com calça e camiseta negras sem mangas, com um largo capuz pontiagudo. Ao chegar no pé da forca, tocou-se o clarim pela última vez e o porteiro leu a sentença. Ao sinal do juiz Lima e Castro, o carrasco pegou Coqueiro pelo braço e o dirigiu a forca. Eram 14 horas, pontualmente e o escrivão perguntou qual a última vontade de Coqueiro. Conforme estudos de Marchi, Coqueiro, com a voz trêmula,gritou o mais alto que pode para que o maior número de pessoas possível o ouvisse: “Eu sou inocente… minha maldição é que esta cidade vai pagar cem anos de atraso pelo que me faz”. Coqueiro subiu os 13 degraus que o levavam a morte. O carrasco colocou o laço em seu pescoço quando sentiu a abertura do alçapão. O corpo projetou-se no espaço vazio e ficou balançando, mas o pescoço não quebrou. Percebendo isso, o carrasco pendurou-se à trave superior e com os dois pés sobre os ombros de Coqueiro começou a pular macabramente até que se ouviu um enorme estalo que atravessou a multidão, a coluna vertebral havia rompido. Só então as pessoas conseguiram perceber o problema da irreversibilidade da pena de morte. Se Coqueiro fosse inocente, nada lhe traria a vida novamente. Alguns relatos posteriores demonstraram sérios indícios de culpabilidade de Úrsula das Virgens, e não de Manuel da Motta Coqueiro. Nos estudos, verificou-se que esta enlouqueceu nos 31 meses que se passaram entre os assassinatos e o enforcamento de seu marido. Primeiro ela não conseguia dormir, depois, passava os dias e noites delirando monólogos desconexos com confissões alegóricas. Chegou a relatar algumas vezes que chamou Fidélis à Fazenda Carrapato, e ordenou que matasse toda a família Silva, que não era para deixar pedra sobre pedra, extinguir todo aquele sangue maldito e depois botar fogo em tudo e em todos. Pouco antes da execução de Coqueiro, conta-se que ela torturava a família quando repetia cansativamente a mesma frase: “Todo mundo, Fidélis, todo mundo! Não é para ficar pedra sobre pedra!”. Coqueiro só soube que a mandante seria Úrsula das Virgens quando seu enteado o visitou na fortaleza de Santa Cruz e lhe contou tudo. Coqueiro, então, soube a verdadeira mandante do crime e decidiu nunca revelar seu nome, para não trocar de lugar com ela no caminho a forca. A única pessoa que provavelmente soube dessa situação fora o padre Freitas e os filhos de Úrsula.42 Por volta de 1856, os boatos de que Coqueiro era inocente chegaram aos ouvidos do imperador Dom Pedro II, sentindo este o peso da culpa por ter indeferido aquela petição de graça, podendo ter condenado um inocente. A partir deste momento, Dom Pedro II decretou 42 FERA DE MACABU. Linha Direta Justiça. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=syXGcpn6Vos&t=543s>. Acesso em 05 de jun. 2018. 19 que a ordem agora era executar somente os assassinos brutais e, depois, instituiu que todo homem livre condenado a morte teria sua pena convertida em prisão ou galés. Mais um tempo e a graça imperial passou a ser dada a libertos e até a escravos. O governo imperial dava mostras de que pretendia extinguir a pena de morte. E assim foi acontecendo.43 4 A FERA DE MACABU A LUZ DOS ESTERIOTIPOS PERSECUTÓRIOS 4.1 A crise contra a comunidade e marca vitimária (2º e 3º estereótipos) Violência disseminada em níveis insuportáveis. Sede de vingança sempre latente. Ao longo de seus pouco mais de cinquenta anos, Coqueiro colecionava inimigos e desafetos por toda a região de Campo dos Goytacazes, tendo inclusive alguns deles, como o caso de Julião, jurado vingança eterna pela traição quando fora a capital estudar e pediu apoio a sua noiva. José do Patrocínio44 bem expõe em sua obra Motta Coqueiro ou Pena de Morte esta passagem: Mota Coqueiro tinha vários inimigos pessoais com influência na política local. Um deles era um primo, Julião Batista Coqueiro, talvez por algum sentimento de vingança. Vinte e cinco anos antes, quando o primo Julião Batista foi estudar longe de Macaé, Mota Coqueiro aproveitou a sua ausência para cortejar e casar com sua antiga noiva. Esta primeira esposa de Mota Coqueiro morreu algum tempo depois e ele casou-se novamente com Úrsula das Virgens, que era viúva e tinha um filho. Após o casamento com Úrsula, e a expansão de suas terras e fortunas, veio a problemática da substituição da mão de obra, visto edição de lei que proibia o tráfego de escravos, passando Manuel apelar para os serviços dos colonos europeus. Quando contrata Francisco Benedito, que se muda para suas terras trazendo consigo toda a sua família. Francisco tinha uma filha, de nome Francisca que se tornaria amante de Motta Coqueiro, e dessa paixão resultaria uma gravidez indesejada. Somente os escravos tinham ciência dos encontros do casal, até que o boato chegasse aos ouvidos de Úrsula, que após conversa com Manuel, solicitou o fim do concubinato. Francisco ao saber da gravidez, a usa para conseguir tirar proveito e vantagens quando Coqueiro a procura para findar o contrato de prestação de serviços. Diante desse contexto que ocorre a chacina contra a família Benedito. A delito praticado pelos escravos da fazenda Bananal foi de um enorme terror, não somente ir de encontro ao instituto da família que é a mais antiga e sólida instituição 43 AQUINO, Diego Bayer e Bel. Fera de Macabu: o maior erro do judiciário brasileiro. Justificando. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/12/fera-de-macabu-o-maior-erro-judiciario- brasileiro/>. Acesso em 05 de jun. 2018. 44 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.29. 20 formadora, mas por ter altos índices de crueldade, liquidando mulheres e crianças a sangue frio, com armas brancas e ainda com emboscada, não facultando as vítimas nenhum mecanismo de defesa. É sabido lembrar que a imprensa local teve uma importante participação na condenação de Coqueiro. Sempre instigada pelos seus inimigos, ela cuidou de deixar sempre acesa a revolta nos habitantes da região. Isso ficou mais claro, quando nas datas próximas ao julgamento, foram espalhadas pelos portes da cidade as objetos, utensílios e roupas ensanguentadas do dia do crime, instigando ainda mais o ódio na comunidade. Com isso, não resta dúvida da constituição do segundo estereótipo persecutório de Girard, satisfazendo um toque de razão aos perseguidores de Coqueiro, e despertando inconscientemente o mecanismo vitimário. Logo após as denúncias, Motta Coqueiro resolveu fugir, uma escolha que não teve muito sucesso, primeiro porque isso ratificaria as suspeitas do seu envolvimento com o delito ali então praticado e, por este não se camuflar dentre os demais membros da comunidade. Manuel ostentava uma marca no seu rosto, que não consegui esconder nem mesmo quando deixava a barba crescer. Desde o início da fuga, Coqueiro encobria o rosto com um lenço toda vez que encontrava uma pessoa, alegando ser asmático e evitava aspirar a poeira dos matos. Porém, era um ardil muito grande esconder a metade inferior do rosto, marcada pelo nevus pigmentado, sinal que o diferenciava facilmente.45 Outra característica que deixava Coqueiro em evidencia era a sua arrogância e crueldade. Sua personalidade hostil contribuiu para que a população da região se voltasse contra ele. Numa passagem de sua obra, Coqueiro almejando a sua liberdade contrata o melhor advogado da região, que tendo o dom da oratória, seduziria os jurados, porém isto não ocorreu. Outra marca importante era seu próprio sobrenome: Coqueiro. Toda a sua família carregaria essa marca, e seriam ligados a Fera de Macabú. Visando livrar-se da maldição, Julião abdicou o sobrenome, recebendo até um poema o congralutando por ter abominado publicamente o cognome amaldiçoado. O Monitor Campista publicou no seu jornal o seguinte poema: Por sobre esse appelido abominável, Indignado, passaste a esponja humente, Que embebida de Lethes na torrente, Tudo no mundo torna imemorável... 45 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.137. 21 Exibiste uma prova assaz notavel De quanto horror te causa o crime ingente!... Exibiste uma prova assaz patente Do quanto o autor do crime hé detestável!... Praticaste uma ação que tanto agrada Ao coração do justo e justiceiro, Que a julgo já por todos imitada.Louvor te rende, pois, um povo inteiro, Que, á tua, a sua voz unindo brada: - Eterno anátema ao fatal Coqueiro!... Para Julião, era um momento triunfante; 32 anos depois, dava ao primo o troco final, comemorado por um soneto panfletário, ao homem que na juventude lhe roubara a bela e suave Joaquina, fazendo dele um bobo na corte familiar. Assim, não resta dúvida que Manuel da Motta Coqueiro apresenta marcas vitimarias que o distingue dos demais indivíduos da sociedade. 4.2 Efeitos da Maldição – A crise Instalada (1º estereótipo) Crise e ordem são opostos, algo que ficou claro após a consumação e disseminação do delito ali praticado pelos escravos de Manuel da Motta. A partir da tarde de 6 de março de 1855, começou-se a viver com a maldição de Coqueiro, que prometeu 100 anos de atraso a esta região pela injustiça que ali realizaram. A partir desta data e da maldição do enforcado, para os supersticiosos, qualquer situação desdita resultaria da praga do enforcado.46 Carlos Marchi47 bem explica em sua obra, que não importaria qual o real motivo que levasse a tragédia, ela terminaria sendo inexpressiva frente a maldição de Coqueiro. Pouco tempo depois do enforcamento, uma epidemia de cólera-morbo grassou sobre Campo Dos Goytacazes e deixou sequelas graves em Macaé. Só entre outubro e novembro de 1855, a cidade tinha em torno de dez mil habitantes, e destes 1200 foram sepultados. Nas seguintes décadas após o enforcamento, alguns meios de comunicação passaram a sair de circulação. Alguns deles sequer falaram de Coqueiro, mitos ou fantasmas, mas após a sua saída de circulação, foi atribuída como rendição a maldição. Carlos Marchi48 menciona bem em sua obra esta passagem: 46 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. 47 Op. Cit. 48 Op. Cit. 22 O jornal Monitor Macahense [...] vacinado contra fantasmas e mitos, nunca falou de Coqueiro; mas, quando parou de circular, todos na cidade atribuíram seu fim exatamente à maldição. O desaparecimento do Monitor foi seguido pelo surgimente de vários outros periódicos: Tribuno do Povo, nascido quando o Monitor morria, que foi até 1890, quando parou as máquinas... por causa da maldição de Coqueiro; em 1867 veio o Telegrapho, que durou pouco (por causa da maldição, é claro); e em 1873 brotou O Seculo (sic), que persistiu até 1918, quando capitulou à maldição. Entre a década 60 e 70, o Brasil enfrentava a guerra do Paraguai pela região da Prata. O sentimento nacionalista também era comum entre os cidadãos da atual cidade de Conceição de Macabú. Os jovens fizeram seu alistamento no órgão competente e foram à guerra, saindo vitoriosos. Por mais que ânimo de conquista fosse presente, aos jovens que foram mortos em combate se atribuíra a maldição como causa. Carlos Marchi 49também aborda essa passagem: Mas nem a vitória, contada em tosn de glória pelas notícias d’O Telegrapho, nem o retorno pungente dos soldados sobreviventes e do brilhante auditor macaense aplacaram o sentimento de culpa da população. Para ele, os poucos jovens da cidade mortos nas batalhas tinham sido levados pela maldição, mas não pelo horror da guerra. Em 1869 houve a implantação de três ramais telegráficos, que simbolizava um importante avanço para época, que interligava as principais cidades da região. Ocorre que diante do melhoramento, surgiu um problema, que toda vez que a linha era interrompida por rompimentos dos fios ou queda de portes- e isso acontecia frequentemente – a culpa não era dos ventos ou vândalos, e sim da maldição. Por fim, a economia apresentava certa instabilidade que, quando estava bem, não havia queixas, porém, quando fugia do esperado, já se culpava a maldição. A região de Macahé chegou a apresentar o sexto maior movimento portuário do país. Com o auxilo do canal Macahé – Campos dos Goytacazes, o escoamento fluía bem, tanto os grandes fazendeiros como os pequenos proprietários conseguiam enviar sua produção por ali, arquivando assim a maldição. Mesmo diante de todo o progresso, os habitantes da região vivam sempre na expectativa do desastre, sempre lembrando que a qualquer momento a maldição poderia voltar à tona50. 4.3 Enforcamento, o Estado legitimando o desejo coletivo (4º estereótipo) É nítido a comoção dos habitantes da região após tomarem conhecimento do 49 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.271. 50 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu, Record, Rio de Janeiro, 1998. 23 crime praticado na fazenda Bananal que, após a formalização da denúncia e formalização de um acusado, Motta Coqueiro, chegou o momento do “todos contra um”. A comunidade da região estava ansiosa para dar uma resposta ao crime ali ocorrido, e se utilizou da pele de Coqueiro que personificou a causa do caos da cidade. Os indivíduos que compunham a multidão não foram diretamente atingidos pelo crime ocorrido, mas substituiriam desafetos particulars pelos invasores; a paixão que movei o provo ao assassinato do fazendeiro foi recheada por lembranças pessoais de desavenças e atritos passados. Segundo Marchi, “André levava tão a sério sua inimizade com Coqueiro que esteve presente no julgamento e pediu ao juiz uma certidão da sentença, que exibiria em um quadro, pendurado na sala principal de sua casa”51. No final do primeiro julgamento, o juiz foi ovacionado pela multidão dentro e fora do fórum, como se fosse ator principal de uma peça recém-finda. Na rua, foguetes espocaram para saudar a condenação. Não era novidade a condenação de Manuel, mas sua formalização caiu com um alívio coletivo no sentimento de ira que a população acumulou nos últimos três meses. No seu segundo julgamento, da Motta contratou o melhor advogado para que pudesse seduzir os jurados. No tribunal do júri, os jurados demonstravam total desinteresse, como se já estivessem convictos de quem fosse o culpado. Carlos Marchi52 expõe a desenvoltura do nobre advogado de Coqueiro: Mas no julgamento de Coqueiro, por mais que se esforçasse, não consegui sensibilizar o júri; provavelmente, não conseguiria nunca, porque os jurados já foram para lá com uma idéia formada sobre o crime e sobre os culpados; não queria ouvir nada que lhes pudesse suscitar qualquer dúvida ou alterar essas convicções adrede consolidadas. Enquanto o advogado Thomé falava, os membros do júri conversavam, bocejavam, olhavam para o teto – demonstravam ostensivamente que não estavam interessados em ouvir argumentos para defender Coqueiro. Ao fim, irritado a deselegância dos jurados, Thomé desabafou com seu cliente, no momento em que, algemado, ele deixava a sala de sessões da Câmara: “Que valor podem ter minhas palavras, que reboam sobre um júri que não as ouve, que ressona?”. [sic] Ademais, só restariam a autorização das autoridades imperiais para que a execução ocorresse. Algo que com a influência dos inimigos de coqueiro foi concedida até com certa facilidade, inclusive a negativa do Indulto da Graça Imperial. A terça-feira, 6 de março de 1855 seria um dia de festa para o município que tinha 51 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu, Record, Rio de Janeiro, 1998. P.183 52 MARCHI, Carlos. Fera de Macabu. Record, Rio de Janeiro, 1998. P.192 24 um pouco mais de 5 mil habitantes, pois um homem seria enforcado. Esse tipo de evento costumava atrair incontáveis multidões, pessoas ingênuas que comparecia à cerimônia horrenda, uma versão renovada das arenas romana, como se fossem divertir-se no circo; e depois ficariam o resto dos dias com o sono perturbado pelos pesadelos que as cenas dantescas costumavam provocar. Logo após a horrenda execução, então as pessoas conseguiram perceber o caráter irreversível da pena de morte: se Coqueiro fosse inocente, não haveria mais como devolver- lhe a vida; e confrontados com a crueza da maldição dos cem anos de atraso, a comunidade se questionava se Coqueiro era mesmo culpado,nascendo assim a maldição e trazendo a questionável dúvida. Essa dúvida foi ratificada pelo “imprevisto” que ocorreu no momento da execução de Manuel. Naquela época, quando iria ocorrer alguma execução se tinha a crença que se o condenado fosse inocente, a corda quebraria, sendo uma manifestação divina, como bem expões Carlos Marchi53: Pairava no ar a tênue expectativa de a corda arrebentar. Dizia a crendice popular que a corda arrebentava toda vez que o condenado era inocente. Se a corda se rompesse o juiz tinha poderes para decidir se a execução seria adiada para outro dia ou se apenas era o caso de esperar, enquanto alguém ia atrás de uma corda nova. Antes da mudança da lei, era essa a hora em que a confraria interferia e interrompia a execução. A lei já tinha resolvido isso, mas ficava sempre a dúvida da superstição popular: corda arrebentada, réu inocente. Como por encanto, operava-se uma transformação mágica: a multidão, que minutos antes imprecava o condenado e, excitada, colisaica, urrava de prazer com sua chegada à praça. Na subida ao patíbulo, mudava repentinamente de lado e clamava por misericórdia, gritava refrões pela inocência do desgraçado, atestada infalivelmente pela corda rompida. Quem ansiava por ver o cristão ser estraçalhado pelas feras agora transbordava de sentimentos de piedade e queria impedir aquela cena pavorosa que tanto o excitara, fazia só alguns minutos. É fato que a aplicação da pena morte gera diversas discursões, principalmente pela sua irreversibilidade. No caso de Coqueiro, poucos anos após a sua execução, a convicção da condenação foi colocada à tona, com os abalos emocionais sentidos por Úrsula das Virgens, que foram relatados pelos seus escravos, tal como o depoimento do frade foi tornado público. Nesse contexto, a Majestade D. Pedro II instituiu a conversão da pena de morte em prisão ou galés aos homens livre, cumulado com a maior frequência de concessão da Graça Imperial. Aos poucos, o Brasil extinguia a pena de morte do sistema penal, que completou o seu fim somente na República. Carlos Marchi relata um trecho de uma carta de D. Pedro II à Princesa 53 MARCHI, Carlos. Fera de Macabú. Record, Rio de Janeiro, 1998 P. 255. 25 Regente Isabel54: Sou contrário a pena de morte, executa-se ainda porque o Poder Moderador não tem o direito de anular o artigo do Código Criminal que estabelece tal pena, comutando-a sempre. Décadas depois o judiciário visivelmente fracassou na sua missão de monopolizar a vingança; a pegou para si e agiu guiado pelo desejo de sangue da multidão. O receio, então é de que sejam repetidos novos mecanismos, sobretudo pelo grande nível de violência e crimes bárbaros que a sociedade brasileira viveu durante toda a sua história que se perdura até os dias atuais. 5 CONCLUSÃO Ao longo da presente pesquisa, foi possível confirmar a perfeita aplicabilidade da teoria do “bode expiatório” à Fera de Macabú. Com uma atenta observação, constatou-se que a população de Conceição de Macabú encontravam-se em estado de calmaria, com um grau razoável de estabilidade até que, em setembro de 1852 ocorre a carnificina da família de Francisco Benedito, fato este que foi organizado sem o conhecimento de João da Motta Coqueiro, a quem foi atribuído a cúpula do evento. Com essas características, fica evidenciado o primeiro estereótipo, o “crime indiferenciador”. Com isso, o massacre praticado contra os familiares do colono ameaçou uma instituição tradicional, a família nuclear, ideia clássica de ordem. Além disso, concluir que a “indiferenciação” gerada pelo crime colocou em prova a estabilidade do próprio do município. O poder midiático e o poderio dos inimigos de Coqueiro foram cruciais para que João da Motta Coqueiro fosse identificado com sucesso como o principal responsável pelo abominável delito ocorrido. Portanto, o primeiro estereótipo proposto por Girard: a “crise indiferenciadora” foi identificado com perfeição. Era comum ver, em diversos seguimentos sociais a aclamação da pena severa a Motta Coqueiro, mostrando que este já estava configurado metastasiamente como mandante e responsável da atrocidade ali ocorrida. Ademais, infere-se que João da Motta preenche também o terceiro estereótipo, as “marcas vitimarias”. Era um senhor poderoso, tendo posição relevante na hierarquia social. Porém, este era conhecido por sua brutalidade e agressividade com seus escravos e demais civis que o cercavam, despertando uma grande aversão e se configurando para ser um “bom” alvo da massa. Há de se ressaltar ainda que se não bastassem as marcas comportamentais, ele 54 MARCHI, Carlos. Fera de Macabú. Record, Rio de Janeiro, 1998 P. 255. 26 possuía um grande sinal no rosto, que lhe causava diferenciação de feição dos demais indivíduos. Nunca houve dúvidas em relação ao enquadramento do episódio a Fera de Macabú no quarto estereótipo – assassinato ou expulsão coletiva – com o auxílio do pensamento girardiano, pôde-se aqui melhor analisar o funcionamento da violência de grupo canalizada e utilizada através do anteparo estatal. Uma vez que foram identificados todos os quatro estereótipos elaborados por René Girard, podemos afirmar, com segurança, que João da Motta Coqueiro trata-se de um bode expiatório. Dessa forma, o estudo de caso aqui realizado cumpriu sua finalidade, obtendo resposta positiva para todas as hipóteses lançadas na introdução, e comprovou que a teoria do bode expiatório, estudada por pesquisadores de inúmeras áreas – psicólogos, antropólogos, teólogos, sociólogos, etc. – amplia conhecimentos acerca do comportamento humano, aprimorando, com isso, a interpretação que os operadores do Direito darão a leis e fatos. 6 REFERÊNCIAS AQUINO, Diego Bayer e Bel. Fera de Macabu: o maior erro do judiciário brasileiro. Justificando. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/12/fera-de- macabu-o-maior-erro-judiciario-brasileiro/>. Acesso em 05 de jun. 2018. AUTOR DESCONHECIDO. A lenda de Motta Coqueiro e a Maldição. Disponível em: <http://pontonulonotempo.blogspot.com/2013/06/macae-lenda-de-motta-coqueiro-e- maldicao.html> Acesso em 11 de jun. 2018. BÌBLIA, A. T. Provérbios. In BÍBLIA. Português. Sagrada Bíblia Católica: Antigo e Novo Testamentos. 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Fera de Macabu, Record, Rio de Janeiro, 1998 MERUJE, Márcio & ROSA, José Maria Silva, SACRIFÍCIO, RIVALIDADE MIMÉTICA E “BODE EXPIATÓRIO” EM R. GIRARD. Griot – Revista de Filosofia MIRANDA, Mario de França. A Igreja como povo de Deus. Revista de Cultura teológica- v. 20 n 80- out/dez 2012. SOUSA, Valter Ney Macedi. O caso Mota Coqueiro. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/55822/o-caso-mota-coqueiro>. Acesso em 06 de jun. 2018. TINOCO, Godofredo. "Mota Coqueiro, a Grande Incógnita". Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966. VASCONCELOS, Antônio Antão. "Crimes Célebres de Macaé". Macaé (RJ): 1901.
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