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Resenha sobre o livro “A ralé brasileira” segunda parte. No capítulo 10, “O crente e o delinquente”, o autor traz a relação entre a condição precária de classe à adesão à religiosidade neopentecostal. Segundo Jessé, essa relação é interpretada de forma errônea, ao se traduzir na ideia de que pessoas menos instruídas são mais vulneráveis às enganações dos “empresários da fé”. Não que isso de fato não aconteça. Até mesmo porque, quando o autor desenvolve sua teoria, percebemos que toda a crença e esperança atribuída à religião, até mesmo na visão do autor, se estabelece com bases em ilusões de possibilidade de mudança de sua realidade e de seu fim. Todavia, o que o autor nos mostra é que, apenas a religião e todas suas caricaturas espirituais podem trazer à ralé a possibilidade de esperança, além de transferir a culpa de toda precariedade do indivíduo a um mal não personificado, mas sim espiritual. Esse mal espiritual tira daquele indivíduo suas más características, o vício é culpa do demônio, os planos mal sucedidos é culpa também do demônio e do vizinho que fez um trabalho espiritual. Essa possibilidade de transferência de responsabilidade permite a vida da ralé ser menos desprezível aos seus olhos. Acredita-se no milagre de ficar rico empenhando na grande fogueira uma calculadora, ou tudo que tiver. Acredita-se que qualquer ideia pode dar certo da noite pro dia e que todo seu histórico de imediatista e ser inquieto e despreparado some, porque tudo aquilo era obra de um ser maligno que não permitia a ele a vida plena. Essa crença não pode ser de tudo desvinculada da sua relação com a falta de instrução. Embora o foco do autor seja demonstrar que apenas através da religiosidade que a ralé pode crer num momento de superação, certamente isso não se dá apenas pelo fato de não ter essa ralé outro meio a recorrer, mas também sua fraca percepção da sua realidade, sua impossibilidade de analisar a si mesmo como improvável de conquistar tudo do nada. A meu ver, a religiosidade é, principalmente a forma de se manter vivo numa realidade em que a vida é amarga demais para pensar em continuar. Quando você percebe que a cor da fome é amarela e que amanhã seguirá enxergando tudo na mesma cor até que encontre no lixo algo que pode te fazer sobreviver mais um dia ou que te salvará do castigo da vida de vez, a única esperança será a espiritualidade. Acreditar num plano maior, num culpado maior por toda desgraça. Isso te ajuda a seguir. Achei brilhante por parte do autor os exemplos dados. Neste capítulo, trata-se de Carlos. A análise sobre o pai de Carlos, é simplesmente fantástica. O pai que impossibilitado de exercer “a função de homem da casa” sente-se na necessidade de impor sua paternidade pela privação exagerada e desnecessária, torna-se agressivo e alcoólatra também em função disso. Acaba por aceitar sua posição de dependente da esposa que “banca” a casa e que nunca tem tempo para o filho. O pai de Carlos acaba assassinado em uma mesa de bar o que faz Carlos largar de vez a escola que já piorava sua sensação de perdedor. Carlos depois de ter inúmeras experiências (normais para um adolescente da ralé) acaba adoecendo. O medo que antes era os resultados da vida baseada no hedonismo, o medo se transforma nesse próprio modo de vida. É quando Carlos passa a frequentar a Igreja Universal do Reino de Deus. Na igreja Carlos aprende que tudo aquilo que deu errado em sua vida é culpa do demônio e do mal olhado dos vizinhos. Não existe relação com a vida que teve, com a forma como foi negligenciado pela sociedade e pela família. Além disso, somente a igreja pode te prevenir de voltar àquela vida e somente a espiritualidade pode te trazer sucesso imediato e inimaginável. Sem dúvida, ainda que seja bem improvável que Carlos adquira todo sucesso prometido pela igreja e espiritualidade, sua vida longe do perigo e da delinquência não seria possível longe deste diálogo de esperança. Mais adiante, no capítulo 12, Jessé trata sobre a instituição do fracasso e dentre elas existem inúmeras, mas o autor trata especificamente da escola como uma grande instituição do fracasso e não como a instituição que elimina todas as desigualdades, como erroneamente pensamos que é. A escola nada mais é do que uma afirmação da desigualdade que se estabelece na sociedade. Para isso, Jessé traz o exemplo de dois jovens, Anderson e Juninho. Os dois são amigos de infância e pertencem ambos à ralé. A diferença entre o destino de Anderson e Juninho está na “segunda natureza” adquirida por cada um deles. Anderson, embora de classe ralé, tem a presença da mãe em casa, tem o horário do dever de casa, tem as regras escolares e domiciliares a cumprir, além disso, tem uma relação de afeto com o pai perante a música, onde invariavelmente eles se juntam para fazer música. Mesmo não possuído conhecimento técnico sobre isso, existe uma relação afetiva baseada na família. Existe uma certa e talvez limitada organização familiar que permite a Anderson, ao menos concluir o ensino médio e lhe oportunizar melhor emprego que seu amigo Juninho. Ao contrário de Anderson, Juninho não teve regras para cumprir as tarefas escolares e domésticas, não teve organização familiar e sua segunda natureza não foi construída por meio de uma relação afetiva familiar positiva. Juninho praticamente criado pela Avó, não tinha a presença dos pais e nem a exigência destes de forma a possibilitar um mínimo desenvolvimento. As duas experiências trazidas pelo autor, mostra que a segunda natureza de Anderson permitiu a ele chegar até o ensino médio e Juninho não chegou a concluir, se tornando “muambeiro”, ao passo que Anderson, mesmo que não seja dos melhores, conseguiu o emprego que exerce graças ao diploma obtido. Todavia, mesmo que a família desempenhe seu papel de apoio e atenção a determinado sujeito, a escola é uma instituição perversa com aqueles que chegam menos preparados. Anderson sofreu todo tipo de preconceito e desrespeito por parte dos professores o que fez com que ele deixasse de acreditar em si mesmo e deixasse de perceber que a culpa era da instituição e não sua. Hoje Anderson teria oportunidade de subir de cargo na empresa que trabalha, mas precisaria de um curso técnico, o qual ele tem receio de fazer por acreditar que é incapaz para tal. A análise do autor é extremamente exata e digna de desespero, visto que o Brasil está entre os piores sistemas educacionais do mundo. Ao ler, a todo momento eu me questionava qual seria a solução para mudarmos isso e não por acaso nos foi indicado o capítulo final que de forma brilhante diz que a ideia não é esperar do autor a solução para todos os problemas. A ideia do autor é nos mostrar uma outra visão do mundo, e mais precisamente da nossa realidade brasileira, somente uma visão mais profunda da relação social é que poderemos buscar uma nova realidade. Extremamente pertinente a colocação de Jessé no final do livro. Num momento tão obscuro em que estamos passando, nos é dado a missão de analisar todas as coisas sobre outro viés. Somente a epistemologia social permite mudarmos uma realidade tão perversa e, se pensarmos bem, isso se aplica a qualquer campo social, como por exemplo o que estamos vivendo atualmente, em que pessoas defendem a ruptura do Estado Democrático de Direito.