Buscar

citações chartier

Prévia do material em texto

Resistência ao impresso 
Calvino sempre manifestou uma extrema reticência diante da transcrição escrita e depois 
impressa de seus sermões, como se houvesse aí um gênero que só resistisse na e pela 
oralidade, a palavra viva. (p.26) 
 
Justificativa da impressão 
A justificativa da edição impressa deve sempre implicar razões particulares, seja porque foi 
publicada uma edição pirata do texto, não controlada e não desejada pelo autor, seja porque 
as condições da representação tinham sido medíocres, devendo-se entregar à leitura aquilo 
que tinha sido mal-entendido. (p.27) 
Costurado, portátil, acessível, o livro do século XX é um possível companheiro de cada 
momento. Ele se tornou um objeto comum que, como a tigela ou o cachimbo, satisfaz os 
prazeres mais simples. (p.99) 
 
Censura e interdições, quem faz? 
O direito de exercer a censura e a definição daquilo sobre o que ela deve ser exercida são 
sempre objeto de rivalidades agudas, muito reveladoras das tensões sócio-políticas que 
marcam uma sociedade em um momento dado de sua história. (p. 38) 
Para obter uma permissão ou um privilégio, era necessário obter a autorização a monarquia, e 
esta autorização da monarquia, e esta autorização encontrava-se impressa no próprio livro, na 
forma de uma permissão, com o selo real. (p.44) imprimatur 
Durante muito tempo, a leitura das mulheres foi submetida a um controle que justificava a 
mediação necessária do clero, por temos das interpretações selvagens, sem garantia do poder. 
O próprio Lutero, desde os anos 1520, depois de ter dado a todos a Bíblia, traduzindo-a para o 
alemão, tem um movimento de recuo quando percebe que ela suscita interpretações política e 
socialmente perigosas. Daí o retorno ao catecismo e ao ensinamento do pastor. (p.109) 
Novos suportes 
Hoje, com as novas possibilidades oferecidas pelo texto eletrônico, sempre maleável e aberto 
a reescrituras múltiplas, são os próprios fundamentos da apropriação individual dos textos que 
se vêem colocados em questão. (p.49) 
O que produz de fato a revolução do texto eletrônico, senão um passo suplementar no 
processo de desmaterialização, de descorporalização da obra, que se torna muito difícil de 
estancar? Todos os processos modernos sobre a propriedade literária, em particular, em 
torno da noção de imitação, plágio, de empréstimo, já estão ligados a esta dupla questão: a 
dos critérios que caracterizam a obra independentemente de suas diferentes materializações e 
a de sua identidade específica. (p.67) 
Talvez os autores da era multimídia, um pouco como o autor de teatro, sejam governados, não 
mais pela tirania das formas do objeto-livro tradicional, mas, no próprio processo da criação, 
pela pluralidade das formas de apresentação do texto permitida pelo suporte eletrônico. 
(p.72) 
Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códice medieval, do 
livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das 
maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da 
escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão. (p.77) 
Diante do uso do texto eletrônico, “o leitor não é mais constrangido a intervir na margem, no 
sentido literal ou no sentido figurado. Ele pode intervir no coração, no centro. Que resta então 
da definição de sagrado, que supunha uma autoridade impondo uma atitude feita de 
reverência, de obediência ou de meditação, quando o suporte material confunde a distinção 
entre o autor e o leitor, entre a autoridade e a apropriação? Eu ao sei se uma reflexão 
teológica se desenvolveu no mundo do texto eletrônico, mas ela seria absolutamente 
apaixonante, ao lado de uma reflexão filosófica ou de reflexão jurídica. (p.91) 
Sabe-se igualmente que os primeiros leitores eletrônicos verdadeiros não passam mais pelo 
papel. Novos suportes, novas práticas de leitura. 
Com o texto eletrônico, a biblioteca universal torna-se imaginável (senão possível) sem que, 
para isso, todos os livros estejam reunidos em um único lugar. (p.117) 
A biblioteca eletrônica permite, por sua vez, compartilhar aquilo que até agora era oferecido 
apenas em espaços onde o leitor e o livro deveriam necessariamente estar juntos. O lugar do 
texto e do leitor podem então estar separados. (p.119) 
Aquilo que outrora só era permitido pela comunicação manuscrita ou a circulação dos 
impressos encontra hoje um suporte poderoso com o texto eletrônico. (p.134) 
Pela primeira vez, no mesmo suporte, o texto, a imagem e o som podem ser conservados e 
transmitidos. Imediatamente, toda a realidade do mundo sensível pode ser apreendida através 
de diferentes figuras, de sua descrição, de sua representação ou de sua presença. 
PALAVRA FINAL, COLOCAÇÃO FINAL. SOBRE O FUTURO DO LIVRO IMPRESSO E DAS POLÊMICAS 
AO REDOR DELE. 
 
Livro e poder 
O livro indicava autoridade, uma autoridade que decorria, até na esfera política, do saber que 
ele carregava. (p.84) 
Ler, leitura, essas palavras armam ciladas. Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada 
circunstância, é singular. Mas esta singularidade é ela própria atravessada por aquilo que faz 
com que este leitor seja semelhante a todos aqueles que pertencem à mesma comunidade. O 
que muda é o que o recorte dessas comunidades, segundo os períodos, não é regido pelos 
mesmos princípios. 
[...] aqueles que são considerados não-leitores lêem, coisa diferente daquilo que o cânone 
escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de considerar como não-
leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, 
mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir 
esses leitores, pela escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar 
outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar 
acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de 
transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e de pensar. (p.104) 
Leituras coletivas, leituras silenciosas 
Os primeiros textos que impunham silêncio nas bibliotecas não datam senão dos séculos XIII e 
XIV. É apenas nesse momento que, entre os leitores, começam a ser numerosos aqueles que 
podem ler sem murmurar, sem “ruminar”, sem ler em voz alta para eles mesmos a fim de 
compreender o texto. Todo o parágrafo desta página que fala do silêncio que precisa ser 
retomado. Muito bom. P. 121. 
A leitura em voz alta foi também vivida como uma forma de mobilização cultural e política dos 
novos meios citadinos e do mundo artesanal e depois operário. Em seguida, esvaziaram-se 
numerosas formas de lazer, de sociabilidade, de encontros quer eram sustentados pela leitura 
em voz alta. Chega-se à situação contemporânea em que a leitura em voz alta é finalmente 
reduzida à relação adulto-criança e aos lugares institucionais. (p.143) 
 
 
Citações extraídas do texto “Revistas das revistas” 
 
Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, 
num espaço de trabalho específico. O meu organiza-se em torno de três pólos, 
geralmente separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos 
textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e 
estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para além, de todos os objetos que 
contém a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se 
apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferençadas. 
Ao longo de trabalhos pessoais ou de levantamentos coletivos, uma questão central sub 
tendeu esta abordagem: compreender como, nas sociedades do Antigo Regime, entre os 
séculos XVI e XVIII, a circulação multiplicada do escrito impresso modificou as formas 
de sociabilidade, autorizou novospensamentos, transformou as relações com o poder. 
(p.7) 
 
Estes, com efeito, não se confrontam nunca com textos abstratos ideais, separados de 
toda materialidade: manejam objetos cujas organizações comandam sua leitura, sua 
apreensão e compreensão partindo do texto lido. Contra uma definição puramente 
semântica do texto, é preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um 
texto estável na sua literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos 
quando mudam os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura. (p.178) 
 
E preciso considerar também que a leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, 
espaços, hábitos. Longe de uma fenomenologia da leitura que apague todas as 
modalidades concretas do ato de ler e o caracterize por seus efeitos, postulados como 
universais (7), uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições 
específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura. (p.178) 
 
A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo, é 
inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser reconstruídas 
as maneiras de ler próprias a cada comunidade de leitores, a cada uma dessas 
"interpretative communities "de que fala Stanley Fish (14). Uma história da leitura não 
se pode limitar unicamente à genealogia de nossos modos de ler, em silêncio e com os 
olhos, mas tem a tarefa de redescobrir os gestos esquecidos, os hábitos desaparecidos. A 
questão é de importância, pois não revela somente a distante estranheza de práticas por 
longo tempo comuns, mas também os agenciamentos específicos de textos compostos 
para os usos que não são os de seus leitores de hoje. (p.181 
 
É preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) 
e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das 
formas pelas quais atinge o leitor. Daí a distinção indispensável entre dois conjuntos de 
dispositivos: os que provêm das estratégias de escrita e das intenções do autor, e os que 
resultam de uma decisão do editor ou de uma exigência de oficina de impressão; (182)

Continue navegando