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Entrevistas com Roger Chartier

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Roger Chartier - entrevista 
• Postado por Fabricio Leal de Souza em 12 dezembro 2009 às 19:02 
• Exibir blog 
Transcrição da entrevista com o historiador Roger Chartier no programa Roda Viva, da TV 
Cultura, em 3/9/2001. 
 
O historiador cultural fala das transformações dos livros ao longo dos séculos e ainda discute a 
técnica eletrônica - como internet, e-books - nas novas formas de se praticar a leitura e a 
escrita 
 
 
 
 
 
Paulo Markun: Boa noite. O livro, que já enfrenta grandes mudanças, vai existir um dia 
somente na tela do computador? Isso vai significar acesso ao conhecimento universal ou a 
uma sociedade mais justa? Quem busca resposta para estas perguntas é o diretor de estudos 
da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Há décadas ele pesquisa a história 
do livro e da leitura, e agora se debruça sobre o impacto das novas tecnologias no universo da 
escrita. O Roda Viva entrevista, esta noite, o historiador francês, Roger Chartier. 
 
[Comentarista]: Roger Chartier em sua [obra] A aventura do livro [- do leitor ao navegador; 
conversações com Jean Lebrun] (1999) faz mais do que um histórico da cultura, da escrita e da 
leitura. Começa em reflexões sobre a tensão que atravessa o mundo contemporâneo, dividido 
entre afirmações de particularidades e o desejo do universal. A internet faz renascer um sonho 
de universalidade - no qual toda a humanidade participa de idéias -, mas suscita também a 
angústia de ver desaparecer a cultura do livro: qual é o futuro do livro? O que nos ensina o seu 
passado? Analisando a revolução das revoluções, Roger Chartier diz que: "de fato, a primeira 
tentação é comparar a revolução eletrônica com a imprensa revolucionária de [Johann 
Gensfleish] Gutenberg [(1397 (?)- 1468) inventor alemão do processo de impressão tipográfico 
com caracteres móveis], discutir o que já mudou e imaginar o que ainda pode ser mudado". 
Dos manuscritos aos livros feitos com antigos móveis, passando pelo livro moderno, até a tela 
dos computadores, Roger Chartier registra as mudanças que a sucessão de técnicas novas 
promoveu na escrita e na leitura ao longo dos séculos. Como era escrever e ler nos antigos 
livros escritos em rolos? As relações entre o autor e o poder religioso ou político, o surgimento 
da figura do editor, do livreiro e de outros profissionais envolvidos na atividade editorial? Ao 
longo dos séculos, a cultura da escrita viveu dilemas, ameaças e temores. O temor de perda, 
http://historica.me/profile/fabricio
http://historica.me/profiles/blog/list?user=1e2ayt8qw16pm
por exemplo, que levou em busca de textos ameaçados, a cópia de livros sacros, a cópia de 
livros preciosos e a criação de grandes bibliotecas, símbolos da acumulação do saber. Mas na 
análise de Roger Chartier, a preservação do patrimônio escrito criou uma nova preocupação: a 
do excesso. A proliferação de textos pode ser um obstáculo ao conhecimento e o controle do 
excesso aponta para uma situação irônica - as idéias para atrair, classificar e hierarquizar a 
escrita, acabam - elas próprias - reunidas em novos livros, que vão se juntando ao gigantesco 
universo de textos já acumulados pela humanidade ao longo da aventura do livro. 
 
Paulo Markun: Para entrevistar o historiador Roger Chartier nós convidamos: a jornalista Sylvia 
Colombo, repórter do jornal Folha de S. Paulo, da sessão Ilustrada; o empresário Pedro Herz, 
diretor da Livraria Cultura; a historiadora Andrea Daher, da Universidade Federal do Rio de 
Janeiro (UFRJ); Alcir Pécora, ensaísta e professor de literatura da Universidade Estadual de 
Campinas (Unicamp). Convidamos também o editor Quartim de Moraes, da editora Senac São 
Paulo; e João Adolfo Hansen, professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo 
(USP); está conosco ainda a professora Maria Theresa Fraga Rocco, da Faculdade de 
Educação da Universidade de São Paulo (USP). O Roda Viva é transmitido em rede nacional 
para todos os estado brasileiros e também para Brasília [...] Boa noite, professor Roger. 
 
Roger Chartier: Boa noite. 
 
Paulo Markun: A essa hora, provavelmente meu filho que tem 15 anos de idade vai estar lendo. 
Tenho a mais absoluta certeza disso, porque ele passa quase 12 horas por dia diante da tela 
de um computador, lendo e escrevendo. Mais do que isso, entrando em contato com amigos e 
colegas de várias partes do país e até do exterior. O problema, para mim, é que metade do que 
ele escreve, ou do que ele lê, eu não compreendo. É escrito em uma língua diferente, que não 
é exatamente o português, as regras gramaticais [são] diferentes. E, ao mesmo tempo, isso é 
feito numa sucessão de telas que trocam tão rapidamente, que eu jamais consigo perceber 
com quem que ele está conversando, o que ele está escrevendo, ou lendo. [Mas] não há a 
menor dúvida de que ele está lendo, porque são caracteres que têm um sentido e que ele 
digita e compreende e com isso se comunica. Tenho certeza que ele não é o único. Há milhões 
de garotos da mesma idade, no mundo inteiro, que fazem isso. Queria saber o que [esse 
movimento] vai fazer com esse objeto aqui, que é o livro, e eu sei que você - em um certo 
sentido - também gostaria de saber. Mas, em linhas gerais, é possível imaginar o que essa 
geração, que escreve e lê dessa maneira, vai fazer com o livro no futuro? 
 
Roger Chartier: Em primeiro lugar, quero dizer que infelizmente não falo português e por isso 
pensei em usar o espanhol para este diálogo com você e com os amigos. Acho que este livro 
que temos, agora, vai sobreviver num futuro que não podemos medir com exatidão, mas é o 
futuro das próximas décadas. Alguns textos são compatíveis com a forma eletrônica, como os 
textos enciclopédicos, por exemplo. Ninguém lê uma enciclopédia da primeira à última página. 
A busca de um artigo significa a busca a partir de um tema, de uma rubrica, de um campo de 
interesse. A partir desse momento, vemos que o que você descreveu: essa série de telas que 
se sucedem é adequada a uma leitura de tipo enciclopédico. Esta é a razão pela qual as 
primeiras obras que têm apenas edição eletrônica são as enciclopédias. A enciclopédia 
Britânica, a Universalis. Já para um ensaio, um romance, um livro de história acho que o tipo 
de leitura exigido é uma leitura contínua, que estabelece familiaridade com o texto e, 
sobretudo, que envolve percepção da obra como obra em sua integridade, sua essência, sua 
coerência. Até agora, acho que o livro, tal como o conhecemos, corresponde a essa exigência. 
Um romance, mesmo que não sejam lidas todas as páginas, impõe sua existência, sua 
coerência, sua identidade, através da forma livresca. Já na tela, o risco é que a fragmentação 
da leitura desconsidere totalmente a obra como obra. E se existe o risco que você mencionou, 
com relação aos hábitos dos jovens diante da tela, devemos sempre insistir na dimensão da 
obra como obra, o que se perde no texto eletrônico. Por um lado, acho que esse tipo de livro 
vai sobreviver, no que se refere a certos gêneros de texto. Por outro lado, acho que cada um 
deve, diante do uso que os jovens fazem do computador, ensinar que os textos não são 
apenas fragmentos, que não há apenas a língua inventada da comunicação eletrônica. O que 
você mencionou com respeito ao português vale também para o francês ou o inglês. O inglês 
da internet não é o inglês culto ou correto. Além disso, o predomínio do inglês na rede 
eletrônica impõe suas próprias formas a outras línguas. Por exemplo, a desaparição dos 
acentos ou da pontuação invertida do espanhol. Eles desapareceram da comunicação 
eletrônica. É uma forma muito sutil do triunfo do inglês na comunicação eletrônica. Impor 
formas não acentuadas às línguas que usam acentos é uma forma de simplificação, que você 
está sentindo e com toda razão. O risco não é apenas a hegemonia de uma só língua, mas 
também a destruição das outras línguas, sobrevivendo dentro desse mundo eletrônico. 
 
Paulo Markun: Agora, o senhor é otimista em relação a essa sobrevivência? Quer dizer,o 
senhor acha que será uma sobrevivência saudável, essa do livro, ou apenas - vamos dizer 
assim - a duração de um produto e de uma forma de comunicação que já está caducando? 
 
Roger Chartier: Acho que não. Acho que existe uma primeira realidade, diferente das telas de 
antigamente. As telas de computador transmitem textos, trazem cultura escrita, e não apenas 
imagens. É claro que transmitem imagens também, e sabemos que muitos passam muito 
tempo diante delas, mas também existem textos, há bancos de dados com textos, o acesso a 
jornais e livros, a comunicação eletrônica, que é escrita. Então, não podemos supor que o 
triunfo da forma eletrônica signifique a morte da cultura escrita. De forma alguma. Dentro dessa 
sobrevivência - da cultura escrita - acho que existe a sobrevivência de outras formas além da 
eletrônica. Ou seja, o texto manuscrito ou impresso deve sobreviver, porque corresponde a 
usos, necessidades e hábitos tão profundamente incorporados que não vão desaparecer. Se 
há o risco da desaparição, entre os grupos mais jovens, acho que podemos insistir, mostrar a 
riqueza, a importância da forma impressa, que mantém a relação entre o objeto escrito e a obra 
como obra. Aí vejo uma possibilidade de sobrevivência e otimismo. 
 
Quartim de Moraes: A sua referência, feita há pouco, sobre a predominância do inglês na rede, 
fez lembrar a sua intervenção na palestra na Bienal do Livro [de São Paulo. Evento em que 
editoras de todo o mundo expõem suas obras e lançamentos. Momento em que o público 
pode, além de comprar livros, encontrar com os escritores, assistir palestras, debater idéias, 
pedir autógrafos, etc], a qual eu tive o privilégio de assistir. E temos também os dados que 
você mencionou: 49% da rede hoje fala inglês, uma quantidade impressionante. A constatação 
dessa realidade, dessa tendência - a hegemonia - que você qualifica como uma ameaça e eu 
concordo, em sua opinião, pode favorecer o fato de que algum idioma - o inglês, o chinês -, por 
exemplo, um dia se torne hegemônico, não só na rede, mas no mundo. Ou, por outro lado, o 
desenvolvimento, a proliferação da rede pode facilitar, estimular mesmo a pluralidade cultural, 
que é inerente à natureza humana. Qual a sua opinião? 
 
Roger Chartier: Acho que é um desafio. Porque os dois elementos que você mencionou 
existem. Por um lado, a tendência à hegemonia, começando com a hegemonia de uma língua; 
48% dos sites ou endereços eletrônicos estão localizados em países de língua inglesa, o que 
significa a onipresença do inglês, que é também o domínio das empresas de multimídia mais 
poderosas, além do domínio do modelo cultural relacionado à língua. Esse é o risco, daí vem 
um certo temor frente a uma unificação lingüística, que seria também uma unificação cultural. 
Foi por isso que, nessa conferência, mencionei um texto de [Jorge Luís] Borges [(1899-1986) 
escritor e poeta argentino. Autor de Ficções (1944), livro de contos; A cifra (1981), livro de 
poesias e outros], “Utopia de um homem que está cansado” [conto do Livro de areia, 1975], no 
qual a humanidade volta a ter uma só língua. Mas, ao mesmo tempo, nesse mundo unificado, 
não há passado, não há livros, não há memória, nem identidade ou nome. A fábula de Borges 
significava o temor, o risco dessa dependência. No outro extremo das possibilidades de nossa 
imaginação, ou de nossa intervenção, existe a idéia de que, pela comunicação eletrônica - em 
primeiro lugar - seria mantida a diversidade lingüística e cultural. Acho que é uma promessa 
para a humanidade. No entanto, é preciso respeitar certas condições. Por um lado, o ensino, a 
capacidade de entender idiomas - sem necessariamente falar, mas para manter um diálogo 
entre duas línguas. Por outro lado, uma reação diante da tendência hegemônica de uma só 
língua das empresas que controlam o mercado da informação, a composição dos bancos de 
dados e uma intervenção não apenas na comunicação eletrônica, mas também no universo 
dos textos. Seria possível respeitar a diversidade cultural e também dar um conteúdo técnico 
particular ao sonho da ilustração. Construir um espaço público com a participação de cada um 
como leitor e como escritor. Ou seja, num mundo de intercâmbios, críticas, opiniões, idéias, 
reações. Não acho que esse futuro já esteja determinado. É uma aposta, um desafio, e cada 
um tem seu próprio poder. Os poderes são desiguais, claro. Cada um pode interferir para que o 
futuro não seja o pior possível, mas o melhor. 
 
Sylvia Colombo: Você costuma chamar atenção para o caos textual que vivemos na internet, a 
possibilidade de muitas informações falsas que estão sendo veiculadas. Qual seria a solução 
para evitar isso? Criar um conselho que legitimasse alguma informações e não outras? 
 
Roger Chartier: É um tema importante, porque acho que essa desaparição da relação entre um 
objeto particular, quer seja um livro, uma carta, uma revista ou um jornal, e certos tipos de 
textos causa confusão quanto à autoridade dos textos. Vemos isso entre os jovens, sobretudo 
nos EUA, que buscam informações na rede, mas são informações não controladas. Todas as 
informações disponíveis parecem iguais. Podem ser utilizadas numa tarefa de escola ou num 
trabalho dentro da universidade. Não tenho... Não existe uma solução simples, mas o desafio 
essencial do texto eletrônico é que, eliminando essa vinculação tão forte para nós entre certos 
tipos de objetos e uma autoridade diferenciada dos textos, cria-se essa confusão. Isso pôde ser 
visto quando um jornalista francês pesquisou na rede todas as referências a respeito do 
Holocausto. O que assusta é que a maioria das "informações" que chegam vêm dos sites 
negacionistas [teoria negacionista], que dizem que não existiram câmaras de gás e que o 
Holocausto não aconteceu. Diante dessa proposta, há uma diferença total com relação ao livro 
impresso. Se a mesma pesquisa for feita em textos impressos, será baseada em artigos, em 
enciclopédias, em livros de historiadores reconhecidos e com um estatuto de validação 
científica. Isso é um grande problema, pois tudo o que vem pela rede eletrônica parece igual. É 
possível localizar um fragmento de informação dentro do web site, do banco de dados, do texto 
ao qual pertence esse fragmento. É um grande problema. Não sei se pode resolver, mas 
devemos pensar nessa questão. A questão da autoridade diferencial dos textos. Na cultura 
impressa, era mantida a percepção dessa diferença graças aos diferentes registros de textos. 
Uma enciclopédia não é uma revista, que não é um jornal, que se compra diariamente, e uma 
carta não tem a mesma natureza ou autoridade de um livro científico. Cada um tinha um 
sistema mais ou menos espontâneo de organização, de hierarquia, de autoridade dos textos, e 
tudo isso acaba no texto eletrônico como o conhecemos. Por isso, acho que um futuro possível 
seria a diferença entre a comunicação eletrônica, que corresponde ao que você descreveu - 
cada um propondo suas idéias, abrindo um site - e a edição eletrônica, que seria a 
reconstituição no mundo do texto eletrônico, dos controles, da autoridade dos textos, de um 
processo de verificação e autenticação dos textos. Até agora, há confusão entre comunicação 
e edição eletrônica. Tudo aparece da mesma forma na tela, como se ela transmitisse um 
mundo textual unificado, mas acho que já existe uma diferenciação entre a edição e 
comunicação eletrônica que vai se aprofundar nos próximos anos ou décadas. Não seria uma 
resposta, mas um caminho a direção da sua pergunta, que me parece mais uma inquietude. 
 
Maria Theresa Fraga: Eu queria voltar um pouquinho àquela primeira questão que o Markun 
começou falando sobre o filho dele, sobre que tipo de texto esse menino de 15 anos faz. 
Pensando nos textos dos jovens, e mesmo nos textos das pessoas mais velhas, e numa 
comunicação menos formal, mais informal, eu poderia dizer, num primeiro momento, que uma 
nova forma de escrita tem surgido, uma escrita híbrida, que tenta passar pelo canal eletrônico 
umaforma oralizada. Ela é cuidadosamente produzida com ícones, com abreviaturas, com 
sinais para poder parecer oral. Então, haveria uma escrita híbrida, que seria um meio caminho 
entre a oralidade e a escrita, ela seria uma escrita diferente. Uma primeira coisa que eu teria a 
perguntar é: seria isso uma escrita diferente, quando a gente tem essa comunicação menos 
formal? Porque eu acho que na comunicação formal, escrita, a gente continua obedecendo as 
mesmas regras. Agora, se isso acontece, se a comunicação passa a ser híbrida - uma mistura 
de oral e de escrito - eu posso pensar, por exemplo, que essa comunicação eletrônica, de certo 
modo, está substituindo a função de um suporte, que é o telefone. O telefone passa a servir, 
por exemplo, para o fax, para a própria rede, mas não mais... É, fundamentalmente, aquele 
suporte através do qual os jovens conversam tanto entre si, através do qual nós fazemos 
convites para as pessoas, ou contando coisas. Isso vai para o veículo eletrônico. Então, eu 
acho que há uma mudança de função de suporte do telefone, ao mesmo tempo em que, a meu 
ver, surge o texto escrito híbrido, que é uma mistura de oral e de escrito. O que o senhor pensa 
a respeito? 
 
Roger Chartier: Acho que você tem razão em destacar a ambigüidade do texto do computador. 
É um texto que mistura, ao mesmo tempo, uma língua mais ou menos deteriorada ou 
simplificada, o inglês, o português, o francês, que introduz nessa expressão lingüística uma 
linguagem pictográfica, como se vê, sobretudo, nos EUA, aquelas carinhas que se chamam 
emoticons. [Elas] indicam se a frase deve ser lida como irônica ou triste, ou se quem escreve 
tem uma reação de ira, de cólera. É uma língua pictográfica e uma transposição da oralidade. 
As abreviaturas podem desempenhar esse papel de introduzir formas orais no texto escrito. Aí 
há uma ambigüidade dentro do texto, que reflete a complexidade desse meio, que transmite 
textos, imagens e sons ao mesmo tempo, música, palavras vivas. Isso ajudaria numa 
comunicação mais espontânea, mais livre e, a partir desse momento, mais imediata e 
universal. O grande risco seria considerar que, qualquer que seja a forma do texto, sua função, 
seu gênero, deve duplicar essa forma de texto espontâneo. Seria responsabilidade da escola 
permitir, dentro da hierarquia e da autoridade dos textos, um mundo textual diferenciado. Não 
havendo razões de oposição contra esse uso livre e inventivo do texto eletrônico dentro da 
comunicação eletrônica. Acho que devemos mesmo insistir na diferença do que é escrever um 
texto, porque os textos não são sempre iguais. Se você escreve um ensaio ou um texto 
personalizado não se deve respeitar as convenções. Elas podem mudar, claro, mas não existe 
a obrigação de unificar qualquer texto a partir do modelo que você descreve. Mas é uma 
contribuição interessante na longa história da expressão escrita. 
 
Pedro Herz: [A] comunicação eletrônica, [a] que você se refere, é informalidade e até uma 
mudança de comportamento, estimula a produção intelectual no seu modo de ver? 
 
Roger Chartier: Seguindo esse caminho aberto pela ilustração, e estou pensando num texto de 
Immanuel Kant [(1724-1804) filósofo alemão. Autor de Fundamentação da metafísica dos 
costumes, A crítica da razão prática, entre outros], de 1784: O que é a ilustração?. Kant definia 
a ilustração como o processo por meio do qual cada um pode, potencialmente, intervir como 
sábio. Segundo o texto, propondo suas idéias, suas críticas das instituições, podemos 
acrescentar até criações estéticas diante do público que lê. Trata-se de intervir como leitor 
desses textos propostos para definir um espaço comum, uma esfera pública. Pensando nas 
técnicas que correspondem a esse sonho, vemos que, na época de Kant ou no mundo da 
cultura impressa, havia limites muito marcados para essa construção de uma esfera pública a 
partir de uma prática em que cada um podia intervir como escritor e leitor. A técnica eletrônica 
propõe uma forma de intervenção em relação a essas duas posições, escritor-leitor, sábio-
leitor. Isso, até agora, não existia. Por isso acho que há uma realidade técnica que permite 
cumprir o programa previsto por Kant. Se entendi bem a pergunta, devemos acrescentar que 
isso que eu descrevi é uma realidade virtual, como o texto eletrônico. Não é a realidade do 
mundo contemporâneo. Ainda citando Kant, ele dizia que seu tempo não era um tempo 
ilustrado, mas um tempo em que se iniciava um processo de ilustração. Poderíamos dizer o 
mesmo do nosso tempo contemporâneo. Há desigualdades no acesso a essas técnicas, 
desigualdades econômicas, sociais, culturais, que existem em todos os países e também em 
âmbito mundial. Por exemplo, dos 48% de endereços eletrônicos em países de língua inglesa, 
podemos opor os 4% de endereços eletrônicos em países de língua espanhola. Isso mostra 
que existem desigualdades socioeconômicas no acesso à possibilidade de manejar a técnica 
eletrônica. Esse é um limite bem visível que pode ser superado, mas que existe hoje. Em 
segundo lugar, e até já discutimos essa questão, a relação com essa forma de comunicação 
escrita na realidade eletrônica não corresponde exatamente ao sonho de Kant, e alguns usos 
não fazem parte desse projeto de um intercâmbio crítico que define um espaço público. Essa 
ambigüidade me parece o fio condutor da discussão. É uma idéia clássica, as técnicas não têm 
sentido em si mesmas. Existem possibilidades de uso que dependem dos usuários, e não há 
um destino inscrito dentro de uma técnica. A técnica é o que os povos, os cidadãos, os poderes 
econômicos ou geopolíticos fazem com ela. Aí existe a possibilidade de uma intervenção. É 
uma outra razão para o otimismo. Não é um destino inscrito dentro da técnica. Se entendi bem 
a pergunta, há dois elementos: há o risco de um uso muito distante do que poderia ser, ou seja, 
uma técnica que oferece uma possibilidade de construir esse espaço público na escala de cada 
país e do mundo inteiro. 
 
Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos daqui a instantes. 
 
[intervalo] 
 
Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva. [Que] esta noite entrevista o historiador 
francês Roger Chartier. O senhor, nesse livro, A aventura do livro - do leitor ao navegador, da 
editora Unesp - aliás, muito bem editado, com imagens muito bonitas - menciona as mudanças 
que aconteceram também na questão da leitura, e se refere especificamente à perda do 
espaço para a leitura em voz alta, que, durante muito tempo, foi dominante na nossa 
sociedade. E eu, lendo esse texto, me perguntei se, eventualmente, a televisão não se 
transformou nesse espaço, já que eu, nos últimos vinte anos, como jornalista de televisão, 
nada mais fiz do que ler em voz alta textos que foram escritos por mim, por outras pessoas, por 
uma equipe, que são os telejornais e as reportagens de televisão. Quer dizer, uma boa parte 
do que se faz - não é o caso desse programa - [mas] boa parte do que o público vê em casa - 
imaginando que são idéias originais daquele cidadão que fala com ele todas as noites - na 
verdade são textos elaborados por outras pessoas, num trabalho bastante complexo de 
produção, e que dão a plena sensação ao telespectador de que aquilo é uma conversa. Mas, 
na verdade, aquilo é uma leitura em voz alta. E queria entender o que o senhor imagina que vai 
acontecer com a leitura daqui para frente? Se essa transformação toda da comunicação 
eletrônica afetará também a leitura? 
 
Roger Chartier: É uma observação interessante, porque a tendência geral foi a redução da 
importância da leitura em voz alta nas sociedades contemporâneas; limitada à relação entre 
adultos, pais e crianças, ou em ambientes institucionais, como tribunais, igrejas ou aulas 
acadêmicas. Eu nunca havia pensado na televisão como a forma mais abrangente da leitura 
em voz alta, mantendo algo do que caracterizava essa leitura nos séculos XVI, XVII, XVIII. Ou 
seja, uma socialização ao redor do texto lidopor um leitor para outros, que são ouvintes. Daí 
essa forma de socialização permitida no meio familiar ou entre amigos pela TV. Podemos 
pensar no passado para entender melhor o futuro. Os historiadores gostam de dizer isso, 
porque justifica seu papel social. Não sei se funciona bem, mas podemos aceitar a idéia. [risos] 
Na Idade Moderna, séculos XVI a XVIII, a importância da leitura em voz alta - que você citou - 
relacionava-se à transmissão da cultura escrita aos analfabetos, ou aos que podiam apenas 
escutar o texto, sem poder ler diretamente. E se relacionava também, entre pessoas 
alfabetizadas, à idéia de compartilhar o texto. Ler um texto é criar uma forma de socialização, 
de amizade, de convivência. No mundo fragmentado da sociedade contemporânea, a leitura 
em voz alta, por parte dos jornalistas, ou dos que lêem na televisão, permite manter um pouco 
dessa socialização. Diante da técnica eletrônica, a tendência também é ambígua. Porque por 
um lado, existe a relação com o mundo inteiro, é um diálogo sem limites. O limite é o acesso à 
rede, em que há desigualdade, mas dentro desse universo não há limites. A realidade, ou a 
ilusão - não sei - é que existe uma comunicação universal, mas há também uma solidão radical 
do indivíduo frente à tela. A tela abre o mundo para ele, mas é um mundo por trás de uma 
superfície de vidro, que mantém o indivíduo em solidão, numa forma de relação consigo 
mesmo. O risco é que a idéia de comunicação com o mundo acabe sendo uma relação com 
você mesmo. Nesse momento, a tela poderia ser considerada um espelho, no qual cada um 
veria a si mesmo. Aqui há, sem dúvida, uma forma de radicalização, da perda do vínculo social 
nas sociedades contemporâneas e uma tendência a aumentar a divisão entre os indivíduos a 
partir da técnica, do objeto que permite o acesso ao universo, mas de uma maneira 
absolutamente individualizada. 
 
Andrea Dahaer: Você fala de uma permanência da cultura escrita com a contextualidade 
eletrônica, por um lado. [E] fala, por outro lado, das possibilidades de usos inventivos e 
distintivos, tudo isso eletrônico. Mas acusa, ao mesmo tempo, a emergência de um novo 
iletrismo, com essa impossibilidade de acesso a essas formas eletrônicas de transmissão. 
Então, seria o caso talvez de inserir esse novo iletrismo numa longa duração. A pergunta seria: 
quais seriam, então, nessa longa duração, as figuras mais evidentes históricas do iletrismo, 
chegando até hoje a essa nova forma de iletrismo? 
 
Roger Chartier: É uma pergunta interessante, porque utilizamos palavras como iletrismo, mas 
por trás delas, em cada situação histórica, há realidades diversas. Por exemplo, o iletrismo na 
idade média, ou nos séculos XVI, XVII e XVIII, correspondia à impossibilidade de ler e 
escrever. Então, era necessária uma mediação na leitura, a leitura em voz alta, ou uma 
mediação para escrever - os escribas públicos nas cidades. Percebe-se que há uma definição 
de iletrismo que vem desde o século XVIII até a sociedade contemporânea - anterior ao texto 
eletrônico - que é a incapacidade de ler ou escrever segundo critérios definidos, por exemplo, 
pela escola. Necessitamos de ler em voz alta para entender o texto, que se considera 
tradicionalmente nas pesquisas sociológicas como um sinal, uma indicação de analfabetismo, 
iletrismo, ou a possibilidade de escrever apenas de maneira fonética, num mundo em que a 
maioria escreve de outra forma. E agora, uma nova definição poderia ser a exclusão do acesso 
ao mundo eletrônico, que seria uma divisão profunda dentro das sociedades, numa escala 
mundial. Seria a tradução da desigualdade no desenvolvimento socioeconômico. Daí a idéia de 
um novo analfabetismo, que definiria pessoas capazes de escrever e de ler, mas sem acesso a 
tudo que existe por meio dessa nova forma tecnológica. Existe uma série de definições. Se 
pensarmos no presente, na necessidade de atuar, de agir para que o futuro não seja o mais 
provável e, se pensarmos de maneira teórica, quando utilizamos uma palavra como iletrismo, 
livro, leitura, devemos pensar naquilo que, para nós, é a realidade dessas palavras. Não 
devemos projetá-las como se fizessem referência às práticas do passado. Esse esforço talvez 
defina mais que o prognóstico, o papel do historiador, que é indicar descontinuidade em 
palavras, que não mudam. Estamos vendo isso hoje com o tema do livro. O livro não é 
necessariamente o objeto que você apresentou. Os gregos e romanos liam livros que não 
tinham nada a ver com esses. Eram rolos manipulados com as duas mãos para segurar seus 
suportes laterais. Talvez venha a existir um livro eletrônico, mas com critérios, formas e 
definições diferentes das definições de livro como objeto impresso, ou seja, a vinculação entre 
um objeto material e uma obra intelectual ou estética. 
 
João Adolfo Hansen: Bom, Roger, você sabe que eu o admiro muito, esse seu pensamento 
material que eu acompanho com muita atenção. Em função do que você dizia agora, me 
parece que quando a gente vê a sua obra percebemos um processo histórico de 
desmaterialização crescente - quando a gente pensa no suporte. E você acabou de falar do 
volume, pode pensar o códice, até chegar à tela do computador. Como você pensa a função da 
memória hoje, na medida em que, aparentemente, o computador permite a gente ser só 
inteligente. Ou seja, a memória pode ser guardada fora de nós e ao mesmo tempo é uma 
memória, teoricamente, simultânea e descontínua, que permite, inclusive, a produção social de 
uma desmemória. 
 
Roger Chartier: Essa memória é teoricamente infinita e simultânea, coisa que não existia na 
memória humana, na memória mental, que tem limites e é sucessiva. No sentido de fazer 
aparecer na mente elementos dessa memória, que é como uma prótese da memória que 
transforma a própria memória. Se voltarmos a Borges, “Funes el memorioso” [conto do livro 
Prosa completa (1979)], é totalmente paralisado por sua memória infinita. Ele memorizou cada 
momento, cada instante, cada segundo de sua existência, e essa memória precisa do tempo, 
do momento memorizado. Então, é uma memória que o paralisa, que não permite a criação. 
Não é uma memória que ajuda a criatividade, mas é um obstáculo absoluto ao pensamento. 
Esse risco, transferido da memória de Funes para o computador, parece-me ser o mesmo 
risco. É a questão do excesso de textos, da confusão textual, que agora está vinculada à 
técnica eletrônica. E não é a primeira vez. Mesmo antes da invenção da imprensa, alguns 
escritores diziam que havia um excesso de textos, que o leitor não podia ler, não podia domar 
esse acúmulo de textos. Era um obstáculo ao saber, e não uma ajuda. Depois da invenção da 
imprensa multiplicaram-se esses discursos, que destacavam a impossibilidade do leitor 
penetrar, controlar e domesticar essa proliferação textual. A realidade eletrônica multiplica esse 
excesso. A questão que considero mais importante é como reconstruir, dentro desse mundo 
textual, uma ordem dos discursos, uma possibilidade de acesso, de hierarquização, de 
organização, como suporte para a criação, a invenção, o pensamento. O tema da 
desmaterialização relacionado a este, é um tema complicado. Por um lado, no mundo 
eletrônico, os textos perderam sua materialidade própria. O texto da Antigüidade era 
identificado a partir de um objeto, um rolo que era lido ou colocado sobre uma mesa. O texto do 
mundo da cultura impressa também se vinculava a um objeto próprio. Um livro é ao mesmo 
tempo um objeto e uma obra. Ao falar de um livro, falamos do objeto material e da obra, que 
não podem ser desvinculados desse livro. O texto eletrônico existe de maneira 
desmaterializada, porque é um texto móvel, aberto, flexível, onipresente, mas isso não significa 
uma desaparição da materialidade, porque a materialidade do computador é muito forte e 
impõe a esses textos flexíveis e móveis suas próprias regras, seu próprio espaço, suas 
próprias estruturas. Então, a desmaterialização dos textos remete diretamente a uma 
onipresençamaterial do computador. Resulta disso uma tensão entre a necessidade de pensar 
o texto nessa nova forma: muito mais difícil de escrever e compreender que as formas 
clássicas. E, ao mesmo tempo, a necessidade de refletir sobre o que impõe aos textos e à 
leitura a forma eletrônica. 
 
Alcir Pecora: Eu gostaria de conversar um pouco sobre alguns pressupostos, talvez do seu 
método historiográfico, digamos assim. Uma, certamente, das linhas de força do seu trabalho é 
o estudo dos hábitos de leitura antiga - que o senhor chama "maneira de ler antiga" - que são 
sempre relativos às práticas datadas ou, algumas vezes, você fala em "pragmáticas 
dissolvidas", já no presente. [Como] esse esforço de recomposição dessas maneiras, dessas 
práticas, desses hábitos de leitura é compreendido pelo senhor? São compreendidos como um 
esforço do historiador contemporâneo de construir - através dos seus recursos, mesmo da 
imaginação - esses processos, então, como verossímeis, ou o senhor acredita na 
possibilidade, de fato, de uma recomposição de vestígios empíricos de uma realidade, mais ou 
menos de um nível que pudesse ser recomposta? Isso em primeiro lugar. Em segundo, em um 
caso ou no outro, acreditando na realidade empírica ou, digamos, nesse constructo, digamos, 
verossímil do passado, o que exatamente o senhor imagina que essa recomposição, ou esse 
objeto reconstituído, essa prática, digamos, restaurada, pode significar? Ela é só uma 
interferência do presente no passado, ou essa reconstituição também significa uma alternativa 
para o próprio presente? Nesse caso, é também uma intervenção no presente, na própria 
prática contemporânea? 
 
Roger Chartier: Vou começar pela última observação, porque se há utilidade nesse tipo de 
reconstrução histórica de práticas desaparecidas, ou que mudaram, é para permitir localizar 
mais corretamente dentro da história de longa duração o presente, e evitar comparações mal 
fundamentadas. Por exemplo, é comum dizer que a invenção do texto eletrônico corresponde à 
invenção de Gutenberg. É um tema comum, mas não é verdade. Gutenberg não inventou uma 
nova forma de livro, não criou uma nova estrutura material para os textos. Um livro, antes da 
imprensa, antes de Gutenberg, tinha a mesma estrutura de um livro pós-Gutenberg. Para 
pensar a novidade radical do presente, devemos pensar em outras comparações. O mesmo 
ocorre com as práticas de leitura. Alguns dizem, como eu disse, no início deste programa, que 
a leitura diante da tela é uma leitura fragmentada, é uma leitura segmentada. Não é a primeira 
vez que há leituras fragmentadas e segmentadas. A leitura dos humanistas [humanismo] era 
particularmente fragmentada, porque o problema era extrair de todos os livros lidos as 
sentenças, os exemplos, as citações úteis para produzir novos discursos. Isso também é uma 
fragmentação. Há também um tema que se discute muito no Brasil - a fotocópia dos textos - 
que também é uma fragmentação. O importante é que, exceto no caso das fotocópias, a leitura 
fragmentada frente ao texto eletrônico é uma leitura na qual o fragmento é totalmente 
desvinculado da unidade textual - do livro, obra a qual pertence. O leitor pode utilizar o livro 
como um banco de dados, extrair elementos singulares sem os referir, sem perceber que os 
fragmentos pertencem a uma unidade textual com coerência, identidade. O humanista extraía 
fragmentos de um livro lido, porque o problema era extrair de todos os livros lidos a realidade 
da obra inteira, mesmo que o livro não fosse lido em sua totalidade. São exemplos para 
mostrar que o trabalho com o passado permite, algumas vezes, um diagnóstico mais adequado 
frente ao presente. Quanto à primeira parte de sua pergunta, acho que há algo impossível. 
Uma história da leitura, ou das leituras, seria uma história impossível. Como reconstruir todos 
os atos de leitura, de todos os leitores, através de todos os tempos? É um projeto utópico. O 
que podemos fazer é identificar modelos compartilhados de leitura, seja numa sociedade 
inteira, ou em comunidades de leitores que compartilham as mesmas competências, normas, 
os mesmos hábitos ou práticas de leitura, e confrontar esses modelos compartilhados com as 
experiências individuais. Quando o leitor se torna escritor, quando deixa marcas de suas 
leituras. É o caso dos que escrevem sobre suas leituras dentro de uma correspondência, ou 
dos que escrevem nos livros mesmo. Para o historiador - o que era o pesadelo dos 
bibliotecários -, ou seja, o livro, com textos dentro dele mesmo, constitui uma fonte 
fundamental. Aceito a idéia de que haja um saber controlado, porque se fundamenta sobre 
documentos, marcas deixadas pelos leitores do passado, e há também algo de imaginação, no 
sentido de fazer uma reconstrução nos casos em que não há nenhum documento capaz de 
indicar práticas reais. Por exemplo, os leitores dos séculos XVI, XVII frente aos livros impressos 
mais populares. Os pliegos sueltos, na Espanha [espécie de folhtos de cordel], os livros 
vendidos na França [manuscritos denominados littèratue de colportage] e na Inglaterra 
[manuscritos denominados chapbook] não deixaram nenhuma marca de sua leitura. O 
historiador deve imaginar, a partir do conteúdo dos textos difundidos, ou a partir do que se 
sabe das competências de leitura, o tema da leitura em voz alta e reconstruir um modelo, um 
paradigma de leitura. É um pouco o que tentamos fazer. Gostaria de encerrar dizendo o que é 
fundamental nessa reconstrução não é unicamente reconstruir as práticas dos homens e 
mulheres do passado. Mas também compreender melhor a literatura. Todos os textos, inclusive 
os literários, foram interpretados, foram compreendidos, apropriados por leitores que não liam 
como nós. Por exemplo, voltando ao tema da leitura em voz alta, no Dom Quixote [El ingenioso 
hidalgo Don Quixote de La Mancha (1605), do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra 
(1547-1616)] há muitos títulos de capítulos ou frases finais de outros capítulos que evocam as 
duas leituras do livro. Os que vão ler, como nós, e os que vão ouvir o texto lido em voz alta. E 
não o fazemos de maneira espontânea. Devemos reconstituir em nossa percepção do texto, o 
mundo da leitura, que era o mundo contemporâneo. Porque Cervantes sabia disso e escrevia 
também para essa forma de leitura, o que conduz à fragmentação do texto em capítulos curtos, 
que se transformam em unidades de leitura. É possível fazer uma leitura em voz alta com a 
dimensão dos capítulos de Dom Quixote, e também, no texto, o uso de palavras comuns, das 
formas da conversação, da tertúlia, do diálogo. Se há uma oralidade dentro de Dom Quixote, 
não é apenas porque Cervantes queria escrever seu romance com uma linguagem nova, 
diferente da linguagem da corte e da que havia na literatura humanista. Mas também porque 
pensava na transmissão oral dessa obra de ficção dentro do texto escrito do romance. É uma 
justificativa. 
 
Pedro Herz: Na sua opinião, no curto, médio e longo prazo, qual é o futuro da indústria 
editorial, seja de livros, revistas ou jornais? 
 
Roger Chartier: A questão hoje é difícil. Por um lado o texto eletrônico não suprime o papel do 
editor, ou seja, de alguém que seleciona textos, que trabalha sobre eles com o autor, que 
define uma forma de apresentação do texto. Tudo que pertence ao trabalho editorial pode e 
deve ser mantido no texto eletrônico. Não é necessariamente o papel do editor como o 
conhecemos, porque cada um poderia... É possível para cada um desempenhar esse papel no 
texto eletrônico. Pelo menos é o que pensam os que editam os seus textos. Aí existe uma 
dificuldade, porque a divisão das tarefas, que era bem clara no mundo do livro impresso, 
perde-se no texto eletrônico. Se há edição, não há necessariamente uma figura bem 
identificada do editor. A médio prazo há uma tendência para a reconstrução desse papel 
particular e específico que pressupõe competências específicas e singulares. Se pensarmos na 
divisão entre comunicação eletrônica e ediçãoeletrônica, há uma profissionalização dessa 
edição. Se precisamos de uma ordem dos discursos eletrônicos, se precisamos de autoridade 
e validação dos textos, supõe-se que haja instâncias que permitam isso. A instância editorial é 
uma delas. A reconstrução dessa função profissionalizada da edição está, por um lado, nas 
edições eletrônicas que publicam unicamente textos nessa forma, ou com a importância cada 
dia mais visível, dentro de empresas tradicionais, de um setor de edição eletrônica. É uma 
reconquista, por parte dos editores, no sentido clássico da palavra, de um certo controle sobre 
o texto eletrônico. Começamos dizendo, e talvez eu esteja errado, mas não seria o primeiro 
historiador a errar, que o livro como o conhecemos vai sobreviver paralelamente ao texto 
eletrônico. Podemos dizer que, dentro do mundo eletrônico, a edição eletrônica vai ocupar um 
lugar, uma função específica, que não pode ocupar a comunicação espontânea do texto 
numérico. Talvez no futuro vejamos uma distinção entre tipo de texto e tipo de objeto, voltando 
a materialidade do computador. O discurso sobre o e-book, o livro eletrônico... 
 
João Adolfo Hansen: Você leu algum livro eletrônico? 
 
Roger Chartier: E-book? Para mim não é um livro. Não é. Pode ser uma biblioteca, uma 
agenda... É um suporte que transmite todo tipo de texto. Nesse sentido, não é um livro como o 
definimos, ou seja, a vinculação entre um objeto e uma obra. O e-book permite ler muitas 
obras, e são obras sucessivamente carregadas na máquina. Assim, não é um livro enquanto 
obra. É o veículo de textos, que podemos definir como livros se houver coerência, unidade e 
identidade específica. A discussão me parece interessante, porque o e-book não permite 
copiar, transportar, imprimir, e não permite que o leitor se introduza no texto. A partir daí, 
vemos que esse objeto, que pertence ao mundo dos objetos eletrônicos, permite uma presença 
editorial mais forte que o computador tradicional, porque o texto deve ser comprado e não é 
totalmente acessível. Há mecanismos de segurança, que não permitem a comunicação livre e 
gratuita. Por outro lado, com relação ao autor, isso permite uma certa estabilidade do texto e de 
uma obra reconhecível como tal, ou ao menos não sujeita a ser escrita permanentemente. 
 
Pedro Herz: E os direitos autorais? 
 
Roger Chartier: Ficam mais protegidos assim do que no caso do computador. Porque os 
exemplos de pirataria eletrônica estão vinculados aos computadores clássicos. É quase 
impossível estabelecer controle sobre o texto que é recebido no computador clássico. Temos o 
famoso exemplo de Stephen King [escritor reconhecido mundialmente pelo gênero horror e 
ficção, muitos de seus livros foram adaptados para o cinema. Entre esses Carrie, a estranha 
(1974); O iluminado (The shining - 1977) e outros], cujo livro sofreu muita pirataria, porque era 
vinculado por meio dos computadores, os PCs . Os textos vendidos, acessíveis através dos e-
books, não permitem isso e garantem uma proteção maior dos direitos autorais, dos ganhos 
legítimos do editor e de uma consciência de obra mais respeitada porque a obra tem uma 
identidade fixa. Talvez isso indique uma divisão dos textos, ou melhor, uma divisão dos 
equipamentos em relação à divisão entre comunicação e edição. 
 
Paulo Markun: Doutor Roger vamos fazer mais um rápido intervalo e nós voltamos já, já. 
 
[intervalo] 
 
Paulo Markun: Nós estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o historiador 
francês Roger Chartier. Outro tema que o senhor aborda sempre em seus escritos é a questão 
- se eu não estou interpretando erroneamente - do papel do historiador e da história, enfim, 
para quê serve a história? E eu queria agregar a essa pergunta ao fato de que, quem verifica a 
lista de livros mais vendidos no Brasil, no campo da não-ficção, se deixarmos de lado os livros 
chamados de auto-ajuda, boa parte dos livros mais vendidos são livros que refletem momentos 
da história e do passado. Há um enorme interesse dos leitores contemporâneos [pela] história, 
por uma certa história, que é uma história nova, uma história que transforma certos momentos 
do passado em uma narrativa muito interessante. Minha pergunta é: para quê serve, se é que 
serve para alguma coisa, esse estudo da história? 
 
Roger Chartier: Acho que esse interesse pela história pode ser analisado de dois modos 
diferentes. Um deles seria encontrar um refúgio no passado em relação às dificuldades do 
presente. Uma leitura, um gosto pela história, que transforma o passado numa forma de 
exotismo protegido, numa forma de utopia do passado, mesmo que seja um passado terrível e 
violento, mas separado radicalmente do presente. Ler um texto de história sob essa 
perspectiva é afastar-se de um presente difícil, complicado e ambíguo. Há uma outra 
possibilidade, como tentamos fazer esta noite, seria a leitura do passado, a compreensão dos 
objetos, das práticas, das sociedades do passado para podermos nos localizar de maneira 
mais adequada em nosso presente. Devemos partir, não das lições da história - pois não há 
lições de história - mas sim o conhecimento das formas sucessivas daquilo que nos parece 
estável, o que nos parece invariável, como uma realidade permanente, e essa deve ser a 
utilidade mais profunda da história. Cada leitor de história deve procurar instrumentos para 
entender o próprio presente. Não necessariamente deduzindo o que aconteceu para repetir ou 
não esses atos, mas como instrumentos intelectuais para compreender situações do presente, 
e que o historiador utiliza para entender situações do passado. Talvez cada leitor passe de 
uma posição a outra: o prazer do exotismo e a aquisição de instrumentos de compreensão. 
 
Sylvia Colombo: Você tem um trabalho - que eu acho que ainda está em progresso - sobre a 
circulação de textos impressos de teatro do século XVI e XVIII na Europa, textos que eram 
encenados. Existe alguma comparação possível entre aquela realidade e a que a gente vive 
hoje com o texto eletrônico? 
 
Roger Chartier: Há uma comparação dupla. Estou trabalhando com as muitas formas desses 
textos que adquirem sentidos diferentes quando representados num cenário... Madri, Londres, 
ou quando lidos por um leitor que nunca viu a representação da obra teatral. Hoje, esta 
realidade para as obras teatrais já está existindo. Está relacionada à questão da oralidade e do 
texto: como criar palavras escritas a partir de palavras ditas. Quais são as formas de 
transcrição da oralidade dentro de um texto escrito, ou como um texto escrito se transforma em 
algo que se articula por meio da palavra viva. É o exemplo da televisão que você mencionou. 
Essa é uma primeira relação entre um trabalho histórico, sobre Shakespeare [(1564-1616) 
dramaturgo e poeta inglês. Autor de Romeu e Julieta, Sonhos de uma noite de verão, entre 
outros], Molière, [Félix] Lope de Vega [(1562-1635) dramaturgo espanhol. Escreveu cerca de 
quatrocentas comédias e mais de trinta autos, além de poesias líricas e poemas épicos e 
burlescos, entre esses La Dorotea (1632), Rimas humanas y divinas del licenciado Tomé de 
Burguillos (1634) e outros], e o presente. A relação entre oralidade e texto escrito é um tema 
que vem de longe, inclusive com mudanças nas formas dessa relação. Quanto ao texto 
eletrônico, acho que também é uma realidade profunda. O que está por trás dessa pesquisa 
histórica é a idéia de que num texto nada muda, nem uma palavra ou uma vírgula sequer. Mas 
isso muda quando se altera a forma de transmissão. Ouvir um texto ou ler esse texto na edição 
impressa não é apropriar-se do mesmo texto. Esse é o problema de todos os textos que 
tiveram uma existência prévia, em forma manuscrita ou impressa e que num certo momento 
são transformados em texto eletrônico. É uma questão fundamental, pois as bibliotecas 
decidiram, por exemplo, nos EUA nos anos 1960, 1970 e 1980, digitalizar, como se diz, 
transformar em texto eletrônico os jornais e alguns livros impressos. Assim, houve aconservação dos textos em outro suporte e a destruição dos objetos que eram publicados nos 
séculos XIX e XX. O exemplo mais recente foi a Biblioteca Britânica, de Londres, que em 1999 
decidiu transformar suas coleções de jornais americanos posteriores a 1850 em textos 
microfilmados, para vender ou destruir as coleções originais. A tentação é ainda mais forte com 
o texto digitalizado. Por que conservar quantidades enormes de textos impressos se podemos 
transformá-los num texto imaterial, digital, o texto eletrônico? A tentação é forte, mas devemos 
recusá-la, porque é outra forma de tornar útil a história. Ler o mesmo artigo num jornal 
impresso e num banco de dados - que é a forma digitalizada - não é ler o mesmo texto, não é a 
mesma prática de leitura. No jornal - como o conhecemos - cada leitor tem suas trajetórias. Ele 
entende um artigo em relação a todos os outros, inclusive, os de outras rubricas ou os artigos 
que são de publicidade. O leitor sabe o que significa a publicação de um artigo particular dentro 
de um jornal que tem um projeto editorial, ideológico, cultural, político. Os critérios de 
compreensão de um texto singular estão vinculados à compreensão da totalidade. Totalidade 
da edição do jornal e da coleção dessas edições. Num banco de dados, a partir de uma 
hierarquia de rubricas, temas e tópicos é possível ler um artigo sem saber nada dos outros 
artigos que foram publicados no mesmo dia, ou na mesma semana no jornal e sem saber nada 
da identidade cultural do jornal. É o mesmo artigo, mas não é a mesma leitura, não é o mesmo 
sentido dado ao jornal. É mais um exemplo no qual a reflexão de tipo histórico pode ajudar a 
política das bibliotecas. Ao mesmo tempo, desenvolver programas de reprodução, como 
microfilmagem e digitalização, mas sempre mantendo o acesso, para compreensão, aos 
objetos impressos ou manuscritos tal como foram publicados e lidos pelos leitores do passado. 
 
Maria Theresa Fraga: Eu queria voltar um pouquinho sobre as práticas de leitura. Nós 
poderíamos dizer, hoje, que existe uma coexistência no mesmo indivíduo de uma prática de 
leitura mais, vamos dizer, mais superficial, menos reflexiva diante do texto eletrônico. Porque 
aquele texto informa. É aquele texto que dá notícia, pelo menos para mim. O senhor fala de um 
leitor futuro, que já faria essas reflexões diante do texto eletrônico. Não existe hoje mais uma 
convivência no mesmo leitor, no mesmo produtor, de uma pessoa que tem uma prática de 
leitura puramente superficial, mas que quando vai para o livro - e nunca se produziram tantos 
livros como hoje - o processo de reflexão aí sim se aprofunda. Eu não sei se um dia eu vou 
conseguir ser uma leitora que consiga fazer uma reflexão de um texto eletrônico sem colocar 
no papel. Não sei. Acho que eu não tenho essa capacidade. Agora, acho que coexistem, no 
mesmo indivíduo, essas duas práticas, que mostram, inclusive, uma introdução quando se 
pensa na escrita, na escritura. Porque, para escrever, sou capaz de escrever e fazer minhas 
reflexões no texto, fazendo eletronicamente. Mas para ler não. Como o senhor vê isso? É uma 
coisa comum, um dia chegarei lá, todos chegaremos ou talvez não? Eu não consigo, 
realmente, é uma limitação pessoal: ao ler o texto eletrônico fico nas coisas superficiais com as 
informações que me foram dadas, para escrever não, eu faço reflexões. Agora, para refletir, é o 
livro de papel mesmo, onde eu escrevo, anoto, e as livrarias estão cada vez mais cheias. 
 
Roger Chartier: É uma observação importante para evitar a idéia de que a técnica impõe as 
práticas de forma direta, sem mediação, e de que há apenas uma prática possível de uma 
determinada técnica. Talvez uma debilidade da história da leitura tenha sido... com a 
dificuldade de encontrar fontes, ter simplificado e dado um modelo global para uma 
comunidade de leitores, sejam eles intensivos, extensivos, sábios, etc. Mas você tem razão. 
Cada leitor, sobretudo os que adquiriram uma competência mais forte e diversificada, lê de 
maneira diferente segundo o momento, os desejos, as necessidades. O leitor do texto 
eletrônico não está totalmente moldado pela forma eletrônica. Há diversas formas de se 
apoderar do texto eletrônico, e sua leitura é apenas uma, mas há outras paralelas, inclusive 
para os mais jovens, que são obrigados a ler certos textos na escola. Mas também lêem 
revistas e o que se pode encontrar nas livrarias, nas bancas. Não devemos pensar que a 
técnica impõe uma forma única de prática. Devemos pensar na pluralidade de práticas e talvez 
ajudar essa diversidade. Se colocarmos sua observação dentro de um marco pedagógico, o 
que fica muito claro é que essa diferença - e acaba sendo basicamente a mesma conclusão - é 
a ordem do discurso, com a distinção entre textos que têm uma autoridade diferenciada, a idéia 
de uma diversificação do mundo eletrônico, da sobrevivência de uma existência paralela - 
talvez conflituosa - mas paralela entre o manuscrito, o impresso, o texto eletrônico. Daí, a idéia 
de mostrar que há uma pluralidade possível de leitura, superficial ou profunda, de diversão ou 
de saber, de prazer ou de conhecimento. E não há normas determinadas pela forma do texto. 
Claramente, as técnicas permitem mais ou menos certo tipo de leitura, mas sempre existe a 
possibilidade de o leitor usar uma maneira original, diversificada daquilo que a técnica propõe. 
 
Quartim de Moraes: Professor Chartier, eu gostaria de propor um desafio de uma rápida 
incursão, um pouco fora da sua especialidade acadêmica, mas continuamos tratando de livro. 
Nós estamos aqui falando de livro, da importância de livro, de como ele é essencial à produção 
humana, para o desenvolvimento da humanidade, enfim. E, quando eu penso na realidade 
brasileira fico muito preocupado, até mais como cidadão do que como editor. E os dados 
recentes, o diagnóstico do setor editorial brasileiro do ano 2000 - que acaba de ser divulgado - 
revela que no passado foram produzidos no mercado editorial 303 milhões de livros para uma 
população de cerca de cento e setenta milhões de habitantes. O que nos dá um consumo per 
capta anual de menos de dois livros por habitante. Esses números consideram a publicação de 
livros didáticos, ou paradidáticos, que são de consumo compulsório. Se excluírmos os 
didáticos, que são 60% desse mercado, esse índice cai para menos disso. Então esse é 
desafio e eu pergunto: como se faz para aumentar esse índice? Como se faz? É lógico que é 
uma questão cultural, e ela é certamente um dos traços mais fortes do subdesenvolvimento do 
Brasil. Muito mais forte do que nossos indicadores econômicos, que não são tão maus assim. 
Nos povos dos países desenvolvidos a média de consumo per capta está por volta de dez, 
vinte livros por ano, por habitante. [Então] com a sua experiência na história do livro, [ao] fazer 
uma incursão fora do seu campo, o quê você recomendaria? 
 
Roger Chartier: É uma pergunta muito difícil porque os diagnósticos são mais ou menos 
comparáveis para a França e a Europa, não pelas mesmas razões, porque o analfabetismo é 
baixo na Europa, o que é uma primeira realidade por trás dessas estatísticas. Mas também 
uma redução na aquisição de livros e talvez na leitura dentro dos meios que haviam constituído 
a partir dos anos 1930 e depois da Segunda Guerra Mundial, o núcleo, a população de leitores 
que desviaram seus gastos culturais para outra direção, como turismo, espetáculos, etc. Na 
França, isso significa uma redução radical das tiragens e das vendas de livros para esses 
meios cultos não profissionais ou acadêmicos, mas que estavam no núcleo de compradores e 
leitores. Mais graves ainda são as pesquisas com jovens. Além de o jovem de hoje ler menos 
que o jovem de dez ou vinte anos atrás, o jovem do sexo masculino não valoriza a leitura como 
uma imagem de si mesmo. Às vezes o jovem lê mais do que admite, porque apresentar-se 
como leitor não tem nenhuma valorização. Esse papel do leitor não lhe parece adequado a 
uma imagem positivade si mesmo. Tudo isso contribui para criar uma situação preocupante. 
Não há remédio, mas acho que se pode afirmar, em todas as oportunidades, a importância da 
cultura escrita sem um aspecto pedagógico pesado. Mas mostrar que, por meio da relação com 
obras densas, com textos de história como mencionamos, é possível ter um conhecimento 
crítico de si mesmo, dos outros, da sociedade, do mundo em que vivem os leitores. E isso 
ajudaria no confronto com as dificuldades do presente. É responsabilidade da escola, claro, é 
responsabilidade dos meios de comunicação, é responsabilidade de cada um, nos diversos 
papéis sociais que desempenha. Essa me parece a única possibilidade. Eventos, como as 
feiras de livros, me parecem fundamentais sob esse ponto de vista, inclusive para aqueles que 
não vão comprar nenhum livro. Seria melhor para os editores, mas reafirmar a presença da 
cultura escrita como algo que importa, que pode transformar o indivíduo, como um instrumento 
de compreensão é uma tarefa de todos. Acho que a televisão também pode fazer isso. Na 
Europa, infelizmente, a tendência é limitar muito os programas feitos ao redor da cultura 
escrita. É uma pena, porque é uma responsabilidade coletiva que cada instituição deve 
assumir. Não é apenas pelo interesse de quem escreve, vende e publica livros, mas porque a 
cultura escrita pode transmitir uma relação crítica com o mundo, e isso me parece a primeira 
identidade do cidadão. 
 
Andrea Dahaer: Vou fazer uma pergunta conclusiva. Falou-se muito hoje aqui de autoria, 
leitura, leitor, de modo geral, e se percebe, na sua reflexão, a presença de um elemento, de 
uma noção constante, talvez uma figura que eu não creio que seja uma figura simplesmente 
retórica, acho que é mais do que isso, acho que é de ordem talvez intelectual, conceitual, que é 
essa figura da tensão. Se a gente for prestar atenção no sumário desse livro publicado pela 
Unesp, nós temos aqui, [em] cada um dos capítulos: o autor entre punição e proteção; o texto 
entre autor e editor; o leitor em privações de liberdade, etc. Ou até nas suas reflexões de 
história, a história entre práticas e representações ou entre conhecimento e narrativa, portanto, 
a pergunta é a seguinte: qual seria, qual é a função dessa noção, dessa tensão, na sua 
reflexão, como historiador das práticas culturais? 
 
Roger Chartier: Poderia ser uma fórmula retórica sem conteúdo específico, um pouco vazia, 
mas acho que não. Há uma complexidade nos fenômenos históricos e sociais, que talvez não 
se reduza a uma tensão entre dois pólos, mas tenha uma fórmula mais complicada de 
contradições. A idéia da tensão que aplicamos neste programa demonstra que não é possível 
ler um fenômeno de uma maneira unitária, uma maneira que não englobe as contradições. Os 
elementos que discutimos, as possibilidades abertas pelo texto eletrônico, a definição da 
edição eletrônica, as práticas de leitura, a tensão entre a possibilidade de um espaço público 
comum e uma tendência à fragmentação, ao esquecimento, à perda de memória, mesmo com 
uma técnica que promete uma memória infinita. Tudo isso define a complexidade das coisas. 
Para o historiador, o antropólogo, o sociólogo ou o crítico literário, sempre há a exigência de 
não apresentar uma leitura simplificada das coisas. Existe essa tendência, porque é mais 
simples, é mais visível e mais acessível encerrar uma realidade dentro de um diagnóstico que 
tem apenas um sentido. Acho que as coisas não vão nessa direção e gostaria de acrescentar 
que, reconhecendo essas tensões, temos, como cidadãos, um espaço de intervenção. É 
graças às contradições, às defasagens e às discrepâncias que cada um pode intervir. Os que 
têm poder podem intervir mais, mas cada um, como cidadão, pode intervir, pode agir para que 
o futuro não seja o pior possível, mas o melhor, com todos os limites dessa palavra. A relação 
entre o diagnóstico que estabelece as contradições e a idéia de que cada um de nós, como 
cidadãos, qualquer que seja nossa profissão, nosso papel, cada um de nós pode intervir em 
nosso presente e futuro define não só a responsabilidade dos historiadores, mas também de 
todos os outros. 
 
Paulo Markun: Professor Roger, o nosso programa está chegando ao fim e eu confesso que é 
uma satisfação saber que esse programa - que tem quase 15 anos, e eu estou aqui a apenas 
três - significa um espaço que permite discutir questões como esta durante uma hora e meia. 
Isso para a televisão tradicional é uma eternidade, mas para a complexidade dos assuntos é 
muito pouco. A única vantagem que a gente tem é que, às vezes, de debates como esse, se 
promove, se divulga [em] outros veículos de comunicação como o livro. Já houve autores que 
estiveram aqui no centro do Roda Viva e impulsionaram muito a venda dos seus livros no Brasil 
em função da discussão. Eu espero que isso tenha acontecido no caso do senhor e tenho 
certeza que quem acompanhou esse programa até o final certamente saiu com idéias a mais 
sobre como aproveitar tensões e as contradições da nossa sociedade. Muito obrigado pela sua 
entrevista, aos nossos entrevistadores, também muito obrigado, e a você que está em casa, 
nós voltamos na próxima segunda feira, sempre às 10:30 da noite. Uma ótima semana e até lá. 
ENTREVISTA COM ROGER CHARTIER 
Por: Ivan Jablonka // Tradução: Luciana S. Salgado (FAPESP/USP) 
(Entrevista originalmente concedida para o site La Vie des Idées em 29 de setembro de 2008 com 
foto de Carol Reis, Revista Cult) 
 
 Internet, e-book, projeto Google: Roger Chartier, professor do Collège de 
France, analisa essas novidades à luz da história. Uma questão inédita se põe hoje: 
http://www.laviedesidees.fr/
http://revistacult.uol.com.br/website/
em sua forma eletrônica, o texto deve 
manter-se fixo, como acontece com os 
livros de papel, ou ele pode se abrir às 
potencialidades do anonimato e da 
multiplicidade sem fim? O que parece 
irrefutável é que a multiplicação dos 
suportes editoriais, dos jornais e das 
telas de leitura vem diversificando 
práticas numa sociedade que, contrariamente ao que se diz aqui e acolá, lê cada 
vez mais. 
 
 
As mutações do objeto livro 
 
La Vie des idées: Eu gostaria de evocar, com o senhor, a maneira como o 
objeto livro se metamorfoseia hoje sob a influência das tecnologias ligadas à 
internet (os e-books, o print on demand, etc.). O senhor poderia retomar algumas 
das mutações por que o livro passou desde a invenção do códex? 
 
Roger Chartier: A primeira questão é: o que é um livro? É uma questão 
que Kant se punha na segunda parte dos Fundamentos da metafísica dos costumes, 
e ele definia muito claramente o que é um livro. De um lado, um objeto produzido 
por um trabalho de manufatura, qualquer que seja – cópia, manuscrito, impressão 
ou eventualmente produção eletrônica –, e que pertence àquele que o adquire. Ao 
mesmo tempo, um livro é também uma obra, um discurso. Kant diz que é um 
discurso voltado ao público, que é sempre propriedade daquele que o compôs e que 
só pode ser difundido por meio de uma autorização oficial que ele dá a um livreiro 
ou a um editor, para que o faça circular publicamente. 
Todos os problemas dessa reflexão têm a ver com essa relação complexa 
entre o livro como objeto material e o livro como obra intelectual ou estética, 
porque até hoje segue estabelecida a relação entre essas duas categorias – de um 
lado, obras que têm uma lógica, uma coerência, uma completude e, de outro, as 
formas materiais de sua inscrição – que podia ser, da Antiguidade até o primeiro 
século de nossa era, o rolo. Neste caso, muito freqüentemente a obra era 
disseminada em diversos objetos [diversos rolos]. A partir da invenção do códex 
(isto é, do livro como o conhecemos, com cadernos, folhas e páginas), uma 
situação inversa surge: um mesmo códex pode, e chega mesmo a ser a regra, 
conter diferentes livros no sentido de obra. 
A novidade atual é que essa relação entre as várias classes de objetoe os 
tipos de discurso explodiu, uma vez que há uma continuidade textual que se dá a 
ler na tela, e a inscrição material nessa superfície ilimitada não corresponde mais a 
esses tipos de objeto (os rolos da Antiguidade, os códex manuscritos ou o livro 
impresso a partir de Gutenberg). Isso gera discussões que podem assumir aspectos 
jurídicos, no plano do direito ou da propriedade. Como se manterão as categorias 
de propriedade de uma obra no interior de uma técnica que não delimita mais a 
obra como acontecia com o rolo antigo ou o códex? E isso pode ter conseqüências 
sobre o reconhecimento do status de autoridade científica. À época do códex, uma 
hierarquia de objetos podia indicar mais ou menos a hierarquia da validade dos 
discursos. Havia uma diferença imediatamente perceptível entre a enciclopédia, o 
livro, o jornal, a revista, a ficha, a carta, etc., que eram materialmente dadas a ler, 
a ver, a manipular, e que correspondiam a registros de discursos que se inscreviam 
nessa pluralidade de formas. 
Ora, hoje o único objeto – temos um ali, sobre a mesa de trabalho – é o 
computador, que acolhe todos os tipos de discurso, quaisquer discursos, e que 
torna absolutamente imediata a continuidade entre as leituras e a escritura. 
Podemos, então, passar às reflexões contemporâneas, mas retomando essa 
dualidade que não raro é esquecida. O problema do livro eletrônico está posto com 
a rematerialização dentro de uma ordem de objetos, como o e-book ou o 
computador portátil, que são objetos únicos para todas as classes de textos. A 
partir daí, a referida relação se põe em termos novos. 
 
La Vie des idées: Michel de Certeau estabelece uma distinção entre o traço 
escrito, fixado e durável, e a leitura, que é da ordem do efêmero[1]. Mas, na 
internet, os textos não cessam de mudar, de se transformar. Exagerando um 
pouco, poderíamos dizer que a internet é um universo de "plagiadores plagiados"[2]. 
A seu ver, trata-se de uma ruptura ou o senhor diria que, no curso da história, e 
notadamente no século XVII, o texto já não era uma forma estável? 
 
Roger Chartier: Isso. Na sua distinção, Michel de Certeau remete ao leitor 
viajante, que constrói a significação a partir de coerções e, ao mesmo tempo, de 
liberdades que toma, ou seja, ele abre veredas furtivas. São veredas furtivas 
porque há um território protegido, interdito e fixado. De Certeau freqüentemente 
comparava a escritura ao labor e a leitura à viagem ou a uma expedição um tanto 
matreira, astuta. De fato, essa é uma visão que inspirou os trabalhos sobre a 
história da leitura, ou a sociologia e a antropologia da leitura, pois a leitura não 
estava mais encerrada no texto; antes, era o produto de uma relação dinâmica, 
http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao03/entrevista_chartier.php#_ftn1
http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao03/entrevista_chartier.php#_ftn2
dialética, entre um leitor, seus horizontes, suas expectativas, suas competências, 
seus interesses, e o texto de que se apodera. 
Mas essa distinção produtiva pode também mascarar dois elementos. O 
primeiro diz respeito ao leitor e seus astuciosos movimentos de busca, pois ele 
mesmo é bastante determinado pelas determinações coletivas, partilhadas pelas 
comunidades de interpretação ou as comunidades de leitura, e, então, essa 
liberdade criadora, esse consumo que é produção, tem seus limites; ele aponta 
para diferenças sociais. O segundo elemento, como o senhor disse, é esse terreno 
do texto, que é mais móvel do que o de um pedaço de chão, na medida em que, 
por diversas razões, essa mobilidade há muito já existia. As condições técnicas de 
reprodução dos textos, por exemplo a cópia manuscrita (que existiu até o século 
XVIII ou mesmo no XIX), abrem-se a essa mobilidade do texto de uma cópia à 
outra. Salvo no caso dos textos muito fortemente marcados por uma sacralidade 
que se deve respeitar como letra de lei, todos os textos estão abertos a 
interpretações, adições, mutações. Nos primórdios da impressão, isto é, entre o 
meio do século XV e o começo do século XIX, por diversas razões, as tiragens eram 
sempre muito restritas, entre 1.000 e 1.500 exemplares. Mas já aí o sucesso de 
uma obra é assegurado pela multiplicidade de reedições. E cada reedição é uma 
reinterpretação do texto, seja na letra – modificável – seja mesmo nos dispositivos 
materiais de apresentação que são uma outra forma de variação. Mesmo supondo 
que um texto não tem nem uma vírgula modificada, a modificação de suas formas 
de publicação – caracteres tipográficos, presença ou não de imagem, divisões do 
texto, etc. – cria mobilidade nas possibilidades de apropriação. 
Temos, então, poderosos argumentos para afirmar que há essa mobilidade 
nos textos. E há outras, que são intelectuais e estéticas: até o romantismo, as 
histórias pertencem a todo mundo, e os textos são escritos a partir de fórmulas 
previstas. Essa maleabilidade das histórias, essa pluralidade de recursos disponíveis 
para a escritura, cria uma outra forma de movimento, impossível de encerrar num 
texto estabilizado para todo o sempre. E podemos acrescentar, ainda, que o 
copyright não fez outra coisa senão reforçar esse dado. Certamente é paradoxal, 
pois o copyright reconhece que a obra é sempre idêntica a ela mesma. Mas o que o 
copyright protege? No século XVIII e no XIX, ele protege todas as formas possíveis 
de publicação impressa do texto e, hoje, todas as formas possíveis de publicação 
do texto, seja uma adaptação cinematográfica, um programa de televisão ou 
múltiplas edições. Temos, então, um princípio de unidade jurídica que cobre 
justamente a pluralidade indefinida dos estados sucessivos ou simultâneos de uma 
obra. 
Penso que é preciso restituir a mobilidade do contemporâneo, com o texto 
eletrônico, esse texto palimpsesto e polifônico, numa concepção de longa duração 
sobre as mobilidades textuais que lhe são anteriores. O que resta dessa questão é 
o fato de que há tentativas constantes de reduzir essa mobilidade no mundo 
eletrônico. É a condição de possibilidade para que os produtos sejam vendáveis – 
um opus mechanicum, como teria dito Kant –, e é a condição de possibilidade para 
que os nomes próprios sejam reconhecíveis como criadores e como beneficiários da 
criação. Daí a profunda contradição que Robert Darnton observa entre essa 
mobilidade infinita da comunicação eletrônica e esse esforço para encerrar o texto 
eletrônico numa das categorias mentais ou intelectuais, mas também nas formas 
materiais que o fixam, que o definem, que o transformam em um terreno por onde 
o leitor vai perambular, mas um terreno que seria suficientemente estável em suas 
fronteiras, em seus limites e em seus conteúdos. Aqui se situa o grande desafio, 
que é saber se o texto eletrônico deve ser submetido aos conceitos herdados e, 
então, deve ser prontamente transformado em sua materialidade mesma, com 
fixações e seguranças, ou se, inversamente, as potencialidades desse anonimato, 
dessa multiplicidade, dessa mobilidade sem fim vão dominar os usos da escritura e 
da leitura. Creio que aí é que se situa a discussão, assim como as incertezas e as 
vacilações contemporâneas. 
 
La Vie des idées: Para terminar esse conjunto de questões sobre as 
mutações do objeto livro, eu gostaria de perguntar ao senhor sobre as mutações do 
lugar que historicamente guarda esse objeto: a biblioteca. Em seu programa 
google.books, a Google numerizou os livros de vinte e oito bibliotecas, entre as 
quais as de Harvard, Stanford e Oxford. Esse programa tem adeptos (críticos) como 
Darnton e adversários como Jean-Noël Jeanneney. O senhor acredita que a Google 
fará surgir uma biblioteca mundial e aberta a todos? 
 
Roger Chartier: De novo, por trás desse projeto, encontraremos mitos ou 
figuras antigas, em particular uma biblioteca que comportaria todos os livros. Era o 
projeto dos ptolomeus na Alexandria. A Google está inscritanessa perspectiva da 
biblioteca que conteria todos os livros que já existem e todos os que ainda serão 
escritos. Técnica e idealmente, não há razão para pensar que todos os livros 
existentes sob uma forma ou outra não são passíveis de ser numerizados e, então, 
integrados a uma biblioteca universal. Mas um dos primeiros limites reside no fato 
de que o projeto Google está sendo implantado por uma empresa capitalista. Há 
lógicas econômicas que o governam, mesmo não sendo imediatamente visíveis, e 
que podem governar também anunciantes ou patrocínios dessa firma enorme. De 
outro lado, é um projeto que, mesmo se pretendendo universal, põe em evidência a 
produção em língua inglesa. Como dizia uma ex-governadora do Texas, "se o inglês 
foi suficiente para Jesus, ele deve bastar para as crianças do Texas". Ela decerto 
não leu a Bíblia senão na tradução do rei Jacques de Inglaterra e desconhece as 
versões anteriores... O projeto não se apresenta assim, mas dado que as cinco 
primeiras bibliotecas escolhidas eram anglo-saxônicas, predominaram os arquivos 
em língua inglesa. 
Quais são, agora, as respostas possíveis? Propôs-se que bibliotecas 
nacionais e européias se organizassem com vistas a compor um projeto alternativo. 
Ele era alternativo em termos de variedade lingüística e também porque era 
fundado sobretudo no poder público e não numa empresa privada. Mas podemos 
supor que, por meio desses fragmentos de bibliotecas universais, também 
chegaríamos a uma biblioteca universal, mesmo que não seja unificada por um 
Ptolomeu contemporâneo; e não há razão para pensar que ela não seria acessível 
numa forma eletrônica. 
A questão que se põe, diante disso, é não só a das línguas e a da 
responsabilidade, mas também a questão de saber se essa biblioteca universal, que 
potencialmente não precisa de um lugar físico, na medida em que cada um com seu 
computador, de onde estiver, pode chamar esse ou aquele título, é um sinal da 
morte das bibliotecas tal como as conhecemos – um lugar onde os livros são 
conservados, classificados e consultáveis. Creio que a resposta é não. O processo 
de numerização demanda ainda mais fortemente a manutenção da definição 
tradicional, porque voltamos a um ponto sempre fundamental, segundo o qual, 
como dizia Don MacKenzie, as formas afetam o sentido. O grande perigo do 
processo de numerização é fazer crer que um texto é o mesmo não importando seu 
suporte. Tão fundamental quanto o acesso aos textos sob uma forma numérica, e 
que acaba reforçado por essa numerização, é a conservação patrimonial das formas 
sucessivas que os textos tiveram para seus leitores sucessivos. A tarefa de 
conservação, de catalogação e de consulta dos textos nas formas que foram as de 
sua circulação são uma exigência absolutamente fundamental, que reforça a 
dimensão patrimonial e de conservação das bibliotecas. 
As demonstrações podem se multiplicar. No século XIX, o romance existe 
em múltiplas formas materiais, sob a forma de folhetins semanais ou cotidianos nos 
jornais, sob a forma de publicações por encomenda, sob a forma de livros para 
gabinetes de leitura, sob a forma de antologias de um só autor ou de obras 
diversas, sob a forma de obras completas, etc. Cada forma de publicação induz 
possibilidades de apropriação, de tipos de expectativa, de relações temporais com o 
texto. A necessidade de reforçar a função de conservação do patrimônio escrito é 
não só boa para os eruditos que querem reconstruir a história dos textos, mas 
também para a relação que as sociedades contemporâneas mantêm com seu 
próprio passado, isto é, com as formas sucessivas que a cultura escrita assumiu no 
passado. 
Aí está a maior discussão em torno de projetos como o da Google, imitados 
em seguida por consórcios de bibliotecas. Assim que souberam do projeto Google, 
alguns responsáveis por bibliotecas concluíram disso que eles poderiam se livrar 
das revistas e dar outro destino às salas de leitura. Vemos isso também na 
controvérsia enfurecida que há hoje nos Estados Unidos, sobre a destruição de 
jornais dos séculos XIX e XX, posto que foram reproduzidos em microfilme. Mas o 
risco será ainda maior agora, com a numerização. As bibliotecas venderam suas 
coleções, ou elas foram destruídas no curso do processo de microfilmagem. Um 
romancista norte-americano, Nicholson Baker, escreveu um livro para denunciar 
essa política que foi assumida pela Biblioteca do Congresso [Library of Congress] e 
pela Biblioteca Britânica [British Library], e também para tentar, ele próprio, 
manter seu patrimônio escrito, uma vez que constituiu uma espécie de arquivo de 
coleções de jornais cotidianos norte-americanos dos anos 1850 a 1950. 
 
 
O que é ler? 
 
La Vie des idées: Desde a invenção da escrita, as práticas de leituras não 
pararam de se transformar. Lê-se em voz alta, em família, ou sozinho, em silêncio. 
O senhor poderia retomar as diferentes formas do ler ao longo da história? 
 
Roger Chartier: Há uma dupla dimensão – morfológica e cronológica. 
Podemos recuperar momentos nos quais as condições de possibilidade de leitura se 
transformam massivamente. Num longuíssimo desenvolvimento medieval, cada vez 
mais leitores puderam ler como lemos, isto é, silenciosamente e com os olhos, 
enquanto a leitura oralizada era tanto uma forma normal de partilha do texto entre 
letrados quanto uma das condições de compreensão do texto. Os progressos da 
leitura silenciosa e visual têm como causa e conseqüência uma nova forma de 
inscrição dos textos, em particular a introdução da separação entre as palavras, 
que não existia na maior parte dos textos latinos. É uma das grandes revoluções da 
leitura. 
Poderíamos falar, considerando o século XVIII, de uma nova revolução da 
leitura, mas isso é muito discutido. Por um lado, os objetos se multiplicam: é o 
momento de uma circulação importante de periódicos, multiplicam-se os libelos e 
panfletos, cresce a produção livresca em todos os países europeus. De outro lado, a 
leitura se afastou da forma de respeito, obediência e sacralidade que a marcava 
ainda fortemente, para tornar-se mais desenvolta, crítica e móvel. Houve, no 
século XVIII, e de fato os contemporâneos assim o sentiam, uma febre de leitura, 
uma voracidade mesmo. Uma outra etapa importante marca o século XIX, 
momento em que se tornou mais forte a tensão entre as normas de leitura, 
impostas pela escola, e a proliferação desenfreada de leituras nos diversos meios 
sociais, cada vez mais abrangente. Essa multiplicação dos escritos no século XIX 
podia ser vista numa cidade tanto em seus muros, cartazes, placas, quanto na 
imprensa – que muda de natureza nessa época – e, a partir da segunda metade do 
século, nas coleções populares. 
Então, há uma retomada possível das transformações, algumas ligadas à 
morfologia da leitura (silenciosa ou oral), outras à tensão entre a imposição de 
normas do "bem ler" e as práticas cotidianas tão rudes quanto múltiplas. Mas os 
historiados muito discutiram sobre a validade de considerar essas experiências 
como ruptura, aventando a possibilidade de qualificá-las como "revoluções da 
leitura". De um lado, a pluralidade que você evocou não é simplesmente uma 
pluralidade morfológica e cronológica; em cada sociedade (medieval, das Luzes, do 
século XIX) se observa uma diferenciação disso que poderíamos chamar 
comunidades de interpretação ou comunidades de leitura, organizadas a partir de 
certas competências, certas expectativas em relação ao escrito e certas convenções 
de leitura. Há um artigo famoso de Michel de Certeau sobre comunidades místicas, 
espanholas ou francesas, do fim do século XVI e do começo do XVII, cuja unificação 
se dá em torno de um livro, práticas específicas de leitura e um desligamento 
progressivo da oração. 
Poderíamos, também, tentar recuperar o que caracterizaria as leituras 
"populares", quer dizer, as leituras efetuadas nos meios menos

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