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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL MARILENE APARECIDA COELHO IMEDIATICIDADE NA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL Rio de Janeiro 2008 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL MARILENE APARECIDA COELHO IMEDIATICIDADE NA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da ESS/UFRJ, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Montaño. Rio de Janeiro 2008 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL MARILENE APARECIDA COELHO IMEDIATICIDADE NA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da ESS/UFRJ, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Aprovada pela banca abaixo indicada: ______________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Montaño. _____________________________________ Prof. Dr. José Paulo Netto ______________________________________ Profa. Dra Maria Inês Souza Bravo ______________________________________ Profa. Dra Yolanda Guerra _____________________________________ Profa. Dra Maria Lucia Duriguetto 3 Ficha Catalográfica Coelho, Marilene Aparecida Imediaticidade na prática profissional do assistente social/ Marilene Aparecida Coelho; orientador: Carlos Eduardo Montaño − Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Serviço Social, 2008. 319 f.; Tese (doutorado) − Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social. Inclui referências Bibliográficas 1. Serviço Social. 2. Prática profissional. 3. Razão histórico- crítica. 4. Imediaticidade. I Montaño, Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social. III. Título. 4 À Joana Maria, minha filha querida, que ilumina o futuro. À Isabel Cristina, irmã amiga, que recompõe o nosso passado. 5 AGRADECIMENTOS O momento de externar os agradecimentos àqueles que contribuíram diretamente para o cumprimento de uma jornada tão rica em aprendizagem é necessário e oportuno. Os primeiros agradecimentos dirigem-se à Universidade Católica de Goiás, por meio da Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa, que oportunizou as condições e o apoio para a realização deste doutorado, particularmente, o Departamento de Serviço Social da Universidade Católica de Goiás. Em especial, à professora Carmen Paro, diretora do Departamento de Serviço Social, sempre atenta às nossas necessidades e partilhando cada momento, cada batalha. Agradeço, também, todas as colegas professoras do Departamento, indistintamente. Agradeço e compartilho com alegria, respeito e admiração todas as conquistas com a nossa querida amiga professora Walderez, que nos inspira em sua coerente trajetória profissional de luta e atitude crítica. O percurso iniciado com o processo de seleção e que culmina com a apresentação da tese não foi realizado solitariamente, pois alguns ombros amigos foram fundamentais para o cumprimento dessa tarefa. Dentre eles, agradeço a minha irmã, Isabel Cristina, e a sua família, pelo apoio logístico durante a minha estada na cidade do Rio de Janeiro, sempre amiga, companheira, preocupada com cada detalhe e com o bem-estar de minha filha. Agradeço às colegas do curso de doutorado, especialmente Eleusa e Omari pelos momentos compartilhados, pelas discussões teóricas e troca de saberes, e, ainda, à amiga e colega da comissão de ensino, Terezinha e a Leile pelo apoio. Contei, nessa trajetória, com uma companheirinha destemida: Joana Maria, minha filha, que mudou de cidade, de escola, conheceu novos 6 horizontes, fez amigos, cresceu, amadureceu e aprendeu a exercitar a paciência, acompanhando-me para verificar in loco como eram interessantes as aulas ministradas por meus professores, ouvindo as dúvidas, as angústias, as euforias pelas descobertas e as reclamações pelo cansaço. Estudar em um programa da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro é um grande privilégio, e procurei valorizar cada momento, da forma mais intensa possível. Nesse caminho, encontrei mestres que me instigaram e que, apaixonados por seus ofícios, profundamente comprometidos com o conhecimento e com o Serviço Social brasileiro e latino-americano, me estimularam a redescobrir as dimensões teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas da profissão. Dentre esses mestres, destaco os professores José Paulo Netto, Yolanda Guerra e, especialmente, Carlos Montaño, meu querido orientador. Produzir uma tese não é uma tarefa fácil, o processo é árduo, doloroso, exaustivo intelectual e fisicamente. O professor Carlos assumiu um comportamento pedagógico ímpar, conjugando rigor, exigência e respeitando meus limites para a produção intelectual na dose certa. Aprendi, ao longo desse processo, a admirá-lo como pessoa e como intelectual, a valorizar as suas produções, a compreender a importância da ação política e profissional desse jovem professor na América Latina. Por último, gostaria de agradecer aos professores doutores que gentilmente aceitaram participar da banca de qualificação dos papers, do projeto de tese, da pré-defesa e da defesa da tese − Yolanda Guerra, José Paulo Netto, Maria Inês Souza Bravo, Elaine Berhing e Maria Lúcia Duriguetto. 7 SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................................. 9 ABSTRACT........................................................................................................................10 APRESENTAÇÃO............................................................................................................. 11 CAPÍTULO I – FENOMENOLOGIA DA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL: O APARECER NA TOTALIDADE ...........................18 1.1 Emergência do Serviço Social e as bases teóricas e ideo-políticas da prática profissional.......................................................................................... 25 1.2 Concepção de Serviço Social e a prática profissional................................... 43 1.3 A fenomenologia em Hegel: o aparecer da prática profissional ................. 58 1.4 A fenomenologia da prática profissional do assistente social: a preponderância da certeza sensível............................................................... 65 1.4.1 A prática profissional assistencialista................................................ 72 1.4.2 A prática profissional imediatista ....................................................... 77 1.5 A percepção e a prática profissional do assistente social............................91 CAPÍTULO II – O REINO DO ENTENDIMENTO E A PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL ...................................................... 107 2.1 A força do entendimento.................................................................................... 112 2.2 A força do entendimento, o pensamento burguês e o Serviço Social ...... 131 2.3 Descrição da práticaprofissional do assistente social orientada pelo entendimento ................................................................................................155 2.4 A prática profissional burocratizada e repetitiva..........................................173 8 CAPÍTULO III – RAZÃO DIALÉTICA IDEALISTA E A RAZÃO HISTÓRICO-CRÍTICA: COTIDIANO E IMEDIATICIDADE...........................190 3.1 Razão dialética idealista hegeliana................................................................... 191 3.2 A perspectiva ontológica da concepção materialista: a razão histórico-crítica...................................................................................................204 3.3 A unidade teoria e prática..................................................................................216 3.4 Cotidiano e Imediaticidade ...............................................................................223 3.5 Alienação, valores e vida cotidiana..................................................................230 3.6 Reconstrução do trajeto: imediaticidade uma categoria reflexiva ................................................................................................................238 3.7 O sentido da prática ...........................................................................................246 CAPÍTULO IV – RAZÃO HISTÓRICO-CRÍTICA, SERVIÇO SOCIAL E IMEDIATICIDADE..................................................................................................252 4.1 O processo de renovação do Serviço Social brasileiro e a razão histórico-crítica...................................................................................................258 4.2 O processo de desenvolvimento da perspectiva marxista no Serviço Social brasileiro....................................................................................265 4.3 A prática profissional orientada pela razão histórico-crítica ..................276 4.4 Descrição da pratica profissional histórico-crítica: determinações, mediações e legalidades .......................................................284 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Imediaticidade na prática profissional do assistente social................................................................................314 Referências Bibliográficas .........................................................................................330 ANEXO Pesquisa documental ....................................................................................................345 9 RESUMO O presente estudo propõe investigar a imediaticidade na prática profissional cotidiana do assistente social. A superficialidade extensiva da vida cotidiana, a forma fragmentada de apreensão da realidade hegemônica na sociedade capitalista e sua tendência à naturalização dos fenômenos sociais, conduzem ao obscurecimento da essência, ao considerar o aparente como a substância. O conhecimento da realidade implica o desvelamento da aparência, e a consciência assume um papel fundamental nesse processo. Para apreender a essência, a consciência movimenta-se dialeticamente, a fim de capturar as mediações que conectam os complexos sociais constitutivos e constituintes da totalidade do ser social, e supera, no plano do pensamento, a imediaticidade. A descrição desse movimento, pautado no discurso dos assistentes sociais relativo à prática profissional possibilitou submeter à crítica como a imediaticidade ou a imediatez do fazer profissional condiciona a concepção que os assistentes sociais têm da elaboração teórica e, portanto, ao empobrecê-la, perpetuam a prática reiterativa. Possibilitou, também, analisar a relação teoria e prática no âmbito da certeza sensível, da percepção, do entendimento e da razão histórico-crítica. A base filosófica e teórico- metodológica para o desenvolvimento da presente tese fundamenta-se na tradição marxista e foram realizadas pesquisas bibliográfica e documental. Palavras-chave: prática profissional − imediaticidade − razão histórico-crítica. 10 ABSTRACT This study investigates the immediacy in professional practice of everyday social worker. The extensive superficiality of daily life, the fragmented way of apprehending reality hegemonic in capitalist society and its tendency to naturalization of social phenomena, leads to the obscurity of the essence, when considering the apparent as the substance. Knowledge of reality involves the unveiling of appearance, and awareness is a key role in this process. To grasp the essence, the conscience moves up dialectically, in order to capture the mediations that connect the complex social constituent and and the constituents of social being's totality, and exceeds, in terms of thinking, the immediacy. The description of this movement, based on the discourse of social workers on professional practice, allowed to submit the criticism of how the immediacy of professional practice stipulates the view that social workers have about the theoretical development and therefore as they impoverish it, perpetuate the reiterative practice. Also enabled exam the relationship theory and practice within the sensitive sure, the perception, understanding and historical-critical reason. The philosophical and theoretical – methodological base for the development of this thesis is based on Marxist’s tradition and literature and bibliography and documentary searches were made. Key Words : profissional practice − immediacy − historical-critical reason 11 APRESENTAÇÃO O presente estudo propõe investigar a imediaticidade na prática profissional cotidiana do assistente social. A superficialidade extensiva da vida cotidiana, a forma fragmentada como o pensamento hegemônico apreende a realidade na sociedade capitalista e sua tendência à naturalização dos fenômenos sociais, conduzem ao obscurecimento da essência, ao considerar o aparente como a substância. O conhecimento da realidade implica o desvelamento da aparência, e a consciência assume um papel fundamental nesse processo. Para apreender a essência, a consciência movimenta-se dialeticamente, a fim de capturar as mediações que conectam os complexos sociais constitutivos e constituintes da totalidade do ser social, e supera, no plano do pensamento, a imediaticidade. Entende-se imediaticidade como uma categoria reflexiva que designa um certo nível de recepção do mundo exterior pela consciência. Para estudar a imediaticidade na prática profissional do assistente social, buscou- se discernir as formas como a consciência conhece a realidade, movimentando- se dialeticamente tanto sobre o seu saber quanto sobre o seu objeto. A descrição desse movimento tem como referência os discursos dos assistentes sociais relativos à prática profissional, problematizado no âmbito da certeza sensível, da percepção, do entendimento e da razão histórico-crítica. Essa perspectiva de investigação possibilitou a discussão e a análise da imediaticidade na prática do assistente social por meio de dois eixos que se conectam. Primeiro, abriram-se caminhos para submeter à crítica como 12 a imediaticidade ou a imediatez do fazer profissional condiciona a concepção que os assistentes sociais têm da elaboração teórica e, que, ao empobrecê-la, restringem-se à prática reiterativa. A reiteração, segundo Vasquez (1977), é um componente da práxis e constitui um nível da prática ineliminável, mas não pode ser toda a prática. Segundo, adentra-se o debate acerca da relação teoria e prática, enfatizando os estágios da consciência a caminho do conhecimento e buscando elucidar o debate filosófico entre o entendimento e a razão. A tese apresentada neste estudo é que a prática profissional assume diferentes orientações e característicasem decorrência do nível de receptividade do mundo exterior pela consciência. Como na cotidianidade tende a prevalecer a conexão imediata entre pensamento e ação, a imediaticidade é a categoria reflexiva que orienta a prática profissional quando o nível de consciência do assistente social atém-se à certeza sensível, ou à percepção ou ao entendimento. Verifica-se que a prática profissional do assistente social caracteriza-se pela rotina, repetição de tarefas e pela espontaneidade necessárias para a reprodução do indivíduo e da profissão, a fim de responder às múltiplas exigências estabelecidas no âmbito da reprodução social. Para responder às heterogêneas e imediatas demandas sócio-institucionais no cotidiano da prática profissional, os assistentes sociais − como muitas outros profissionais −, por meio do movimento da consciência que se atém à certeza sensível, ou à percepção ou ao entendimento, apreendem apenas as expressões fenomênicas da realidade, conectando imediatamente teoria e prática. A base filosófica e teórico-metodológica para o desenvolvimento da presente tese sustenta-se na dialética materialista marxiana. Para analisar o caminho que a consciência percorre em busca do conhecimento recorreu-se à obra de Hegel (2001), Fenomenologia do espírito. Conforme o autor, nesse 13 caminho, a consciência movimenta-se da certeza sensível para a percepção, da percepção para o entendimento, e do entendimento, para a razão dialética. Esse movimento realiza-se por meio da supra-sunção, isto é, a consciência, ao exercitar-se em si mesma, tanto em seu saber quanto em seu objeto, eleva-se de um estágio a outro. O caminho para o conhecimento inicia-se no estágio da certeza sensível, no qual a consciência, ao indagar sobre si mesma e sobre o seu objeto, torna-se cônscia de que o conhecimento, que, de início, provém da certeza do indivíduo como ser singular, em relação ao objeto singular, que simplesmente é, se relaciona com o universal. Nesse momento, ocorre a supra-sunção para a percepção. Quando atinge esse estágio, a consciência, para conhecer o objeto singular, quer apreender as propriedades desse objeto, no entanto, tais propriedades relacionam-se entre si, e apenas podem ser firmadas na relação com as propriedades do próprio objeto. Abalada na verdade da percepção, a consciência movimenta-se para o reino do entendimento. Essa dimensão é constitutiva, segundo Hegel (2001), de dois momentos: o momento da força e o momento da formulação de leis. O momento da força implica um retorno à percepção, relacionando as propriedades, agora de diferentes objetos, em um movimento complexo, no qual a consciência passa de um extremo a outro. De um lado, desse extremo está o solicitante e, de outro, o solicitado. De um lado está o objeto e, de outro, o sujeito e o seu conhecimento sobre as propriedades de diferentes objetos. No momento seguinte, cônscia desse movimento, a consciência formula leis relacionando as características singulares e universais desses objetos. No entanto, esses objetos relacionam-se entre si apenas para firmarem o que eles são. Quando a consciência busca estabelecer as mediações 14 entre os objetos e a existência desses objetos, ocorre a supra-sunção para a razão dialética. Trata-se de um movimento que, ao mesmo tempo, aniquila, recupera e supera os conhecimentos do sujeito em relação ao objeto, conduzindo a consciência à supra-sunção de um estágio a outro até chegar à verdade que, para o pensamento hegeliano, resulta da idéia. Como a realidade, para Hegel (2001), é posta pelo pensamento, buscou-se no materialismo histórico-dialético fundado por Karl Marx (2004; 2005; 2007), os fundamentos ontológicos para compreender a caráter concreto do ser social, com base nas dinâmicas de suas contradições dialéticas, suas conexões e legalidades, a fim de estabelecer a relação entre imediaticidade e mediação e demonstrar que a vida cotidiana freqüentemente oculta a essência do próprio ser. Para investigar a imediaticidade na prática profissional do assistente social no cotidiano, foram realizadas pesquisas bibliográfica e documental. A pesquisa bibliográfica objetivou a apreensão da categoria imediaticidade como categoria reflexiva, problematizada com base na relação sujeito e objeto conforme a dialética idealista de Hegel (2001), e na ontologia do ser social, segundo a dialética materialista de Karl Marx (1988; 2004; 2005; 2007). Lançou-se mão, ainda, da ontologia do ser social, de Georg Lukács (1966; 1979a; 1979b; 1997), e se buscaram trabalhos de outros autores contemporâneos, como Eric Hobsbawm (1994), David Harvey (1989), Agnes Heller (2000; 2002) e István Mészáros (2002) A pesquisa bibliográfica para apreender as particularidades do Serviço Social subdivide-se em fontes de referências teóricas e referências 15 empíricas1. As fontes de pesquisa das referências teóricas foram embasadas, especialmente, nas obras de Marilda Iamamoto (1982; 1998, 2002; 2007) e José Paulo Netto (1994; 1996; 2000; 2004). Foram pesquisadas, ainda, obras de Ana Elizabete Mota (1998, 2000), de Maria do Carmo Falcão (2000), Maria Inês Souza Bravo (1996), Maria Lúcia Martinelli (2003), Maria Lúcia Silva Barroco (2005), Yolanda Guerra (1999; 2004), Carlos Eduardo Montaño (1998; 2007), Ana Maria Vasconcelos (2003), Reinaldo Pontes (1997), Consuelo Quiroga (1991), dentre outros. Para a investigação das referências empíricas, foram buscadas, especialmente, as seguintes fontes bibliográficas: Vasconcelos (2003), Silva et al. (1980), Silva e Hackbart (1998), Freire (2003) e Torres (2006). A pesquisa documental foi realizada com o objetivo de apreender, por meio dos discursos dos assistentes sociais, como a imediaticidade comparece na prática profissional na cotidianidade. Para a sua realização, recorreu-se às comunicações orais2 apresentadas no XI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais3 e III Encontro Nacional de Serviço Social e Seguridade, realizado na cidade de Fortaleza, em 2004, organizados pelas entidades da categoria − o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS), a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e a Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO). Nesse congresso, as comunicações 1 Tais referências são de absoluta importância, uma vez que o presente estudo utilizou pesquisas realizadas por diferentes autores em momentos históricos diferenciados. 2 Segundo a comissão organizadora do evento, foram apreciados 1.367 trabalhos e selecionados 1.169, apresentados em sessões temáticas e painéis, na forma de comunicações orais e pôsters. 3 O Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) constitui o maior evento da categoria no Brasil, e reúne, trienalmente, profissionais de todo o território brasileiro para debater as relações sociais e o Serviço Social. A pesquisa documental foi realizada durante o período de junho de 2006 a maio de 2007, e buscou- se, naquele momento, acesso às comunicações do último congresso realizado, o XI CBAS. 16 orais foram organizadas em dezessete eixos, apresentadas em sessões temáticas4 simultâneas. Foram pesquisadas as comunicações orais cujos títulos continham referência direta à prática profissional (análise e sistematização da prática e narrativas de experiências). Com base nesse critério, foram selecionadas 65 comunicações orais, analisadas conforme os seguintes aspectos: área de atuação, tema, concepção de Serviço Social, problematização da realidade, referência bibliográfica, proposições, atividades/ações desenvolvidas, dados empíricos e objetivos da prática. Recorreu-se, ainda, às comunicações apresentadas no VI Seminário de Teorização de Serviço Social5, realizado na cidadedo Rio de Janeiro, de 26 a 29 de agosto de 1997, organizado pelo Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais (CBCISS) e aos artigos publicados na última década que analisam a prática profissional do assistente social. Os conteúdos da tese são abordados em quatro capítulos. A estrutura dos capítulos segue o movimento da consciência a caminho do conhecimento e explicita as características da prática profissional em cada estágio que conduz ao processo de conhecimento. Buscou-se, por meio desse movimento, apreender as dimensões teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas da profissão, contextualizado-as no movimento das relações de reprodução social. 4 As comunicações orais e os pôsters foram apresentados conforme as seguintes sessões temáticas: Estado, direitos e democracia; Seguridade social (concepção, controle social, financiamento, gestão); Direitos geracionais (infância e juventude, velhice); Questões de gênero, raça, etnia e sexualidade; Direitos e garantias das pessoas com deficiência; Famílias e sistemas de proteção social; Questão urbana e direito à cidade; Questão agrária e o acesso à terra; Desenvolvimento regional, meio ambiente e direito à vida; Direitos humanos e segurança pública; Políticas alternativas de geração de trabalho e renda; Sociedade civil e a construção da esfera pública; O projeto ético-político, trabalho e formação profissional; Etica e Serviço Social; Serviço Social, educação e expressões artísticas; Serviço Social e sistema sócio-jurídico, Serviço Social e as relações de trabalho. 5 Recorreu-se às comunicações do seminário em referência com o objetivo de apreender a pluralidade teórico-metodológica, técnico-operativa e ideo-política presente no Serviço Social brasileiro. 17 No primeiro capítulo, descrevem-se as características da prática profissional orientada pela certeza sensível e pela percepção. O segundo capítulo trata da prática profissional orientada pelo entendimento, suas características sócio-históricas, sua direção social e os fundamentos teórico- metodológicos que a alicerçam. Contrapõem-se, ainda, nesse capítulo, a concepção de entendimento para o pensamento hegeliano e o entendimento para o pensamento kantiano. No terceiro capítulo, procura-se apreender o movimento da consciência no estágio da razão dialética e evidenciar a crítica às antinomias contidas na dialética hegeliana, aproximando-se da razão histórico-crítica que capta as contradições, determinações, mediações e legalidade da realidade com base no movimento do real em sua totalidade. Busca-se, ainda, analisar a relação entre teoria e prática com base nos fundamentos filosóficos vinculados à ontologia do ser social, problematizando-a com base na esfera do cotidiano. No quarto capítulo, apreendem-se, no contexto do processo de renovação do Serviço Social brasileiro, os elementos sócio-históricos que possibilitaram a aproximação de segmentos da profissão com a teoria social de Karl Marx, nas décadas de 1970 e 1980. Procura-se evidenciar a concepção marxiana de prática com base nas Teses sobre Feuerbach, e descreve-se a prática profissional do assistente social orientada pela razão histórico-crítica. A categoria imediaticidade perpassa todos os capítulos, constituindo, assim, a categoria central do presente estudo. 18 CAPÍTULO I −−−− A FENOMENOLOGIA DA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL: O APARECER NA TOTALIDADE A consciência na vida cotidiana tem, em geral, por seu conteúdo, conhecimentos, experiências, sensações de coisas concretas, e também, pensamento, princípios − o que vale para ela como um dado ou então como ser ou essência fixos e estáveis. A consciência, em parte, discorre por esse conteúdo; em parte, interrompe seu [dis]curso, comportando-se como um manipular do mesmo conteúdo, desde fora. Reconduz o conteúdo a algo que parece certo, embora seja só a impressão do momento; e a convicção fica satisfeita quando atinge um ponto de repouso já conhecido (HEGEL, 2002, p. 47). O processo de formação profissional do assistente social, materializado nas diretrizes curriculares do curso de Serviço Social provoca mal-estar em um segmento dos assistentes sociais que não encontram aplicabilidade para os conteúdos históricos, teórico-metodológicos, ético- políticos e técnico-operativos que conformam tais diretrizes. Esse mal-estar, entre outras ocasiões, evidenciou-se no processo de construção das novas diretrizes curriculares do Curso de Serviço Social, permeado por um amplo e sistemático debate desencadeado pela Associação 19 Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), a partir de 1994. Conforme as deliberações da XXVIII Convenção Nacional da ABEPSS (então denominada como Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social − ABESS) dentre os encaminhamentos para a revisão do currículo mínimo, desde 19826, dever-se-ia proceder a uma profunda avaliação do processo de formação profissional, tendo em vista as exigências decorrentes das transformações societárias do último quartel do século XX. Foram promovidas e organizadas pela ABEPSS, aproximadamente 200 oficinas locais nas 67 unidades de ensino filiadas à entidade, 25 oficinas regionais e duas nacionais que, na primeira etapa, avaliaram os impasses e as tensões presentes no processo de formação profissional, dentre os quais se destacava a relação entre a teoria e a prática. A problematização dessa inquietação dá-se em duas direções. A primeira nega qualquer possibilidade de mediação entre a realidade, a prática profissional e o conhecimento, sustentando que os fundamentos teórico- metodológicos e ético-políticos que alicerçam o processo de formação profissional não têm utilidade prática para o cotidiano do exercício profissional. A explicitação dessa negação evidencia-se, prioritariamente, no discurso dos profissionais que conectam de forma imediata a teoria e a ação. Observa-se que o recurso utilizado por esse segmento é o discurso que unifica pensamento, linguagem e realidade, conferindo uma suposta veracidade àquilo que está sendo afirmado. Trata-se de um discurso que se propagou rapidamente e teve forte apelo porque uma parte do meio profissional nele reconhece o escape para as dificuldades encontradas na prática profissional, cujo horizonte é a cotidiano. Trata-se, também, de um discurso generalista que universaliza as particularidades e dilui as diferenças histórico-sociais, institucionais e a própria competência profissional. Esse discurso é uma peça 6 Resolução nº 6 de 23 de setembro de 1982 (BRASIL, CFE, 1982a) e parecer do Conselho Federal de Educação nº 412, de 4 de outubro de 1982 (BRASIL, CFE, 1982b). 20 de retórica utilizada para descrever a realidade no cotidiano da prática profissional institucionalizada tal qual como ela aparece em sua fenomenalidade. Esse discurso encontra receptividade também no meio acadêmico, entre docentes e discentes nas escolas de Serviço Social porque ele, ao mesmo tempo em que reprime o conhecimento científico tem a sua base em um determinado pensamento e justifica um determinado modo de ser da sociedade. A segunda perspectiva de problematização dessa inquietação é aquela que se contrapõe aos fundamentos históricos, teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos expressos nas diretrizes curriculares, argumentando que os conteúdos transmitidos nas escolas não instrumentalizam os profissionais para exercício da prática no cotidiano das instituições que compõem o mercado de trabalho dos assistentes sociais e propõe outros referenciais teórico-metodológicas. Tais direções, na atualidade, são expressões de determinadas formas de objetivação do ServiçoSocial e podem ser identificadas no discurso de um segmento profissional, em sistematizações da prática profissional e em reflexões teóricas relativas à profissão, que criticam a perspectiva que se fundamenta na teoria social marxista no interior do Serviço Social brasileiro. Os discursos que explicitam esse mal-estar imputam essa fissura ao processo de formação e o seu suposto distanciamento com o exercício profissional cotidiano nas instituições, dando a impressão que se trata de um problema do tempo presente e com a pertinência restrita ao Serviço Social. No afã em evidenciar esse mal-estar, denunciam o descompasso e o distanciamento entre o processo de formação e o exercício profissional que, de uma forma reduzida, é identificado como prática, sinônimo de ação 21 interventiva. O tratamento dessa questão como um descompasso permite suscitar a hipótese de que seria uma questão de tempo para que ocorresse o encontro entre os fundamentos que alicerçam o processo de formação e o exercício profissional. No entanto, não se trata de um descompasso. A questão exige a reflexão para ultrapassar o maniqueísmo e o mecanicismo presentes na reprodução desse pensamento, e apreender essa problemática para além do Serviço Social, isto é, para além da coisa em-si7. Na direção da análise do Serviço Social no âmbito das relações de produção e reprodução da sociedade capitalista, os esforços e os avanços obtidos pelo Serviço Social brasileiro são consideráveis e reconhecidos nacional e internacionalmente, dos quais emerge a crítica e a possibilidade de superação a um modo específico pelo qual a prática profissional se objetiva − aquela que se atém ao imediatismo/espontaneísmo e ao imediato, que se retém à fenomenalidade dos processos sociais. Aparentemente, a questão seria meramente teórica e, para tanto, se faz necessária uma adequação: substituir a teoria que não responde ao discurso do profissional que vivencia o exercício profissional ou desqualificar esse discurso. A questão, todavia, é de cunho prático-social e político-ideológico, pois envolve a razão, a consciência dos assistentes sociais, o significado que atribuem à prática profissional e a direção social que reforçam com a sua intervenção. Na literatura referente ao Serviço Social brasileiro, identifica- se um crescente esforço em apreender o significado da profissão e suas bases de objetivação no âmbito das relações sociais. Observa-se uma crescente produção acadêmica dos assistentes sociais − fomentada pelos cursos de pós- 7 Segundo Japiassú e Marcondes (2006, p. 48), coisa significa, no âmbito do pensamento filosófico, “tudo aquilo que possui uma existência individual e concreta.Sinônimo de objeto, portanto realidade objetiva, isto é, independente da representação. Nesse sentido, a coisa de apõe à idéia. Em Descartes, a coisa é sinônimo de substância, de algo que existe em si mesmo (...). Em Kant, a coisa em si designa aquilo que existe independentemente do espírito e do conhecimento que este tem dela, sendo em si mesma incognoscível”. 22 graduação − e apresentação de comunicações em encontros da categoria resultantes de pesquisas ou de sistematizações do exercício profissional. Tais produções e sistematizações do exercício profissional explicitam as principais preocupações dos assistentes sociais e, dentre elas, se destacam as tensões vivenciadas no cotidiano. Constata-se, ao mensurar quantitativamente o acervo de comunicações8 enviadas pelos assistentes sociais para o XI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais e II Encontro Nacional de Serviço Social e Seguridade, realizado em 2004, na cidade de Fortaleza, dentre aquelas que foram aprovadas pela comissão técnica organizadora, que 7,5% se referem diretamente ao trabalho, ou atuação, ou exercício, ou prática profissional. Verifica-se, na análise da produção literária do Serviço Social brasileiro resultantes de pesquisas apresentadas em trabalhos acadêmicos dos cursos de pós-graduação e em artigos publicados em revistas da área nas últimas duas décadas, a recorrência da temática que reflete a relação entre a teoria e a prática na agenda profissional. A prática começa a ser problematizada e se conforma em objeto de preocupação vinculado aos fundamentos históricos e teórico-metodológicos da profissão a partir da década de 1960, quando se instaurou o pluralismo teórico, ideológico e político no Serviço Social brasileiro. Segundo Netto (1996, p. 128), é inconteste que o Serviço Social no Brasil, até a primeira metade da década de sessenta, não apresentava polêmicas de relevo, mostrava uma relativa homogeneidade nas suas projeções interventivas, sugeria uma grande unidade nas suas propostas profissionais, sinalizava uma formal 8 As comunicações orais fundamentam-se em diferentes matrizes teórico-metodológicas. 23 assepsia de participação político-partidária, carecia de uma elaboração teórica significativa e plasmava-se numa categoria profissional onde parecia imperar, sem disputas de vulto uma consensual direção interventiva e cívica. Netto (1996) não nega a existência de conflitos e tensões no Serviço Social brasileiro até a década de 1960, mas eles não provocavam perturbações no âmbito profissional, ao passo que o processo desencadeado, a partir de então, configura-se em ruptura, cujas bases se vinculam à laicização do Serviço Social e suas incidências no mercado nacional de trabalho e nas agências de formação profissional. Para Netto (1996), esse é um dos elementos caracterizadores do processo de renovação do Serviço Social sob a autocracia burguesa, conduzindo à diferenciação da categoria profissional e à disputa pela hegemonia em todas as suas instâncias − projetos de formação, órgãos de representação, valores e princípios e paradigmas de intervenção. A refuncionalização da prática profissional e o redimensionamento das condições de formação são apreendidos pelo autor com base no movimento sócio-histórico das relações sociais na sociedade brasileira, do qual o Serviço Social é constitutivo e constituinte. Assinala Netto (1996, p. 129): Ao refuncionalizar a contextualidade da prática profissional e redimensionar as condições da formação dos quadros por ela responsáveis, o regime autocrático burguês deflagrou tendências que continham forças capazes de apontar para o cancelamento de sua legitimação. O regime autocrático burguês, ao implementar o modelo de modernização conservadora de desenvolvimento das relações capitalista criou 24 suas demandas específicas mas, também, as condições e as possibilidades de “se gestarem alternativas às práticas e às concepções profissionais que ela demandava”, afirma Netto (1996, p. 129, grifos do autor9). Nesse cenário deflagrou-se, em meados da década de 1960, o processo de renovação do Serviço Social no Brasil, entendido por Netto (1996, p. 131) como o conjunto de características novas que, no marco das constrições da autocracia burguesa, o Serviço Social articulou, à base do rearranjo de suas tradições e da assunção do contributo de tendência do pensamento social contemporâneo, procurando investir-se como instituição dotada de legitimação prática, através de respostas a demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica, mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais. O processo de renovação do Serviço Social brasileiro não liquidou o Serviço Social tradicional, mas a instauração do pluralismo possibilitou aos assistentes sociais acessarem e construírem procedimentos diferenciados para embasar a sua prática profissional. Trata-se de um processo repleto de tensão, pois a homogeneidade nas projeções interventivas no Serviço Social brasileiro foi posta em questão,a assepsia de participação política-partidária foi desbloqueada e se iniciou um processo no qual o significado sócio-histórico da profissão passou a referenciar-se em matrizes teóricas antagônicas, explicitando a disputa por projetos societários. O consenso relativo à direção interventiva e cívica no interior da categoria profissional deixou de existir e 9 Quando não houver indicação expressa, os grifos são do texto original. 25 uma parcela da categoria passou a ter a compreensão da relação entre a prática e a teoria que se constituir em objeto de permanente indagação. As bases teóricas e ideo-políticas que sustentavam o modelo de intervenção do Serviço Social tradicional foram discutidas, avaliadas, criticadas, renovadas, mas ainda permanecem no ideário de um segmento da profissão. Essas bases constituem e são constituídas pelo padrão hegemônico de objetivação da sociedade burguesa que “confere aos fenômenos e processos sociais uma positividade que privilegia o seu tratamento ao nível da sua imediaticidade” (NETTO, 1988, p. 142). Trata-se de um modelo de intervenção cujas bases teóricas e ideo-políticas sustentam que os fenômenos sociais estão postos, estabelecidos. Na trajetória do Serviço Social brasileiro, esse modelo de intervenção prescritiva sustentou a prática profissional do assistente social em sua emergência e permanece presente na atualidade, referendado em diferentes matrizes teóricas, mas que expressam uma forma de conhecer e agir circunscrita ao imediato e contribui para conservar a sociedade vigente. A caracterização e a lógica que permeiam a sua forma de aparecer foram desveladas no processo de renovação do Serviço Social brasileiro. Para compreender a reprodução desse modelo prescritivo de intervenção profissional na atualidade, faz-se necessário retomar o seu processo de constituição, enfatizando os parâmetros teórico-metodológicos que o sustentam. 1.1 Emergência do Serviço Social e as bases teóricas e ideo-políticas da prática profissional A constituição do Serviço Social como profissão reveste-se de ambigüidades, decorrentes de sua necessidade de legitimar-se perante a 26 classe burguesa e a classe trabalhadora. As transformações sócio-históricas são impulsionadas pela permanente luta que essas classes travam entre si no âmbito das relações de produção e de reprodução social. Para manter-se desfrutando do poder econômico-político e ideológico, a classe hegemônica deve manter a classe subalterna sob controle. O desenvolvimento das forças produtivas complexifica as relações sociais, colocando e recolocando a exigência de reordenamento das estratégias dos instrumentos de coerção e persuasão que a classe burguesa utiliza para garantir a valorização, a acumulação e a ampliação do capital. Na fase do capitalismo monopolista, o Estado, como instância política e econômica da burguesia, ampliou as suas funções. Segundo Netto (2001), no capitalismo concorrencial, a intervenção estatal no enfrentamento às seqüelas da questão social circunscrevia-se básica e coercitivamente às lutas da classe trabalhadora e à necessidade de preservar o conjunto de relações pertinentes à propriedade privada burguesa. No capitalismo monopolista, o Estado assumiu, além daquelas, a função de preservar e controlar a força de trabalho, ocupada e excedente, assinala Netto (2001). Essa assunção é compulsória e suas determinações vinculam-se às contradições da economia capitalista que aumenta a capacidade de produção social da riqueza mas gera, simultaneamente e na mesma proporção, a pobreza. Na idade do capitalismo monopolista, para garantir o aumento das taxas de lucratividade, o Estado assegura a manutenção e a reprodução da força de trabalho, ocupada e excedente, mas também é compelido (e o faz mediante os sistemas de previdência e segurança social) a regular a sua pertinência a níveis determinados de consumo e a sua disponibilidade para a ocupação sazonal, bem como a instrumentalizar 27 mecanismos gerais que garantam a sua mobilização e alocação em função das necessidades e projetos do monopólio (NETTO, 2001, p. 27). O sistema de poder da burguesia tem como objetivo central garantir a lucratividade do capital monopolista, mas para exercer as suas funções econômicas necessita legitimar-se ideo-politicamente perante a classe trabalhadora que, para o atendimento as suas necessidades sociais, se organiza, luta e reivindica direitos econômico-sociais e políticos. Para responder às demandas do capital na fase dos monopólios, o Estado amplia a sua base de sustentação e legitimação sócio-político, absorvendo demandas da classe trabalhadora, institucionalizando o acesso aos direitos de cidadania. Trata-se de um processo permeado por confrontos e conflitos entre as classes sociais e, para atenuá-los e refuncionalizá-los conforme a lógica e os interesses do capital, o Estado burguês intervém, como pseudo-agente neutro, regulando as relações sociais por meio da força e da persuasão. Na ordem do capitalismo monopolista, uma das respostas dada pelo Estado é a intervenção contínua e sistemática nas expressões da questão social, implementando políticas sociais como estratégias de preservação e de controle da força de trabalho, ocupada e excedente, e regulando o patamar mínimo de aquisição para o consumo. Ao implementar a política social, o Estado burguês no capitalismo monopolista procura administrar as expressões da questão social de forma a atender às demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas operantes (NETTO, 2001, p. 30). 28 A racionalidade burguesa é a fonte inspiradora para a organização da política social que se fragmenta em políticas sociais, respondendo de forma fracionada à questão social, cujas manifestações são recortadas e enfrentadas como problemáticas particulares. Como problemas sociais, as expressões da questão social são individualizadas e psicologizadas e se tornam problemas pessoais, de ordem moral. Ao tomar para si as respostas às expressões da questão social como agente regulador das relações sociais, o Estado cria as condições histórico-sociais para que se constitua o espaço sócio-ocupacional na divisão social e técnica do trabalho de práticas profissionais como do assistente social, assinalam Iamamoto (1982, 2002) e Netto (2001). O Serviço Social, no contexto do capitalismo monopolista, surgiu como profissão, e o modelo de intervenção profissional adotado centrava-se em valores ético-morais cultuados pela burguesia e necessários para o estabelecimento e a manutenção da ordem social baseados na resignação humana, na concepção fatalista da vida e na naturalização dos fenômenos e processos sociais. No período que antecedeu a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a assistência social, na Europa, organizava-se com o objetivo de controlar, policiar e contrapor-se ao movimento da classe trabalhadora, com o intuito de frear as utopias revolucionárias e dotar os operários dos condicionamentos básicos para a obediência e a vivência dos bons costumes, afirma Verdès- Leroux (1986). A concepção que os assistentes sociais tinham do modo de vida dos operários era aquela transmitida e captada pela classe burguesa, com todas as suas implicações morais e culturais. Para elas, os operários eram homens simples, mas perniciosos, noviços, decadentes, grosseiros; nada havia neles de artificial, mas eram muitas vezes alcoólatras, viciados, decadentes; 29 eram fracos porque se deixavam levar pelos agitadores profissionais − os dirigentes sindicais. O projeto de assistência social nascente era o de educar a classe operária, isto é, “fornecer-lhe regras de bom senso e razõespráticas de moralidade, corrigir seus preconceitos, ensinar-lhe a racionalidade; discipliná-la em seus trajes, nos lares, nos orçamentos domésticos, na maneira de pensar”, declara Verdès-Leroux (1986, p. 15). O trabalhador social era parte de uma engrenagem que controlava coercitivamente os operários, interferindo em seu modus vivendi, impondo e reproduzindo a moralidade e as regras adequadas aos interesses da burguesia. Este discurso é substituído após a Primeira Guerra Mundial, pois a correlação de forças entre as classes sociais alterou-se e, com ela, o eixo orientador da assistência social. O governo, representante da classe burguesa, propunha o pacto de colaboração sincera entre o patronato e os operários10. Para a viabilização desse pacto, a assistência social tornou-se um instrumento legítimo e ganhou novos impulsos. Ao final da Primeira Grande Guerra o mundo acordou profundamente transformado, pela experiência da própria guerra que, segundo Hobsbawm (1995), evidenciou o colapso da sociedade ocidental do século XIX e o impacto da Revolução Russa de 1917. A sociedade ocidental do século XIX que entrou em colapso era uma civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica; exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da educação e 10 Verdès-Leroux (1986) destaca que as autoridades do governo francês buscam, para a grandeza da França e o futuro de sua civilidade a paz e a colaboração entre as classes sociais, destacando a atitude patriótica dos operários que pagaram fisicamente um tributo esmagador. As conquistas sociais da classe trabalhadora anterior a 1914 fora questionadas, as leis sociais foram suspensas, a jornada de trabalho foi prolongada. Os salários rebaixados e congelados. Após 1920, o discurso social modifica-se, rondava a Europa e o mundo a revolução bolchevique na Rússia, trazendo conseqüências na forma como as assistentes sociais passaram a ver a classe operária. 30 também com o progresso material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populações (incluindo-se o vasto e crescente fluxo de emigrantes europeus e seus descendentes) haviam crescido até somar um terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da política mundial (HOBSBAWM, 1995, p. 16). Nesse cenário de colapso da sociedade do século XIX, na Europa, as práticas do Serviço Social modificaram-se em busca da interação entre as classes sociais. O assistente social foi chamado a intervir nas demandas sociais, constituídas com base nas relações de produção nas fábricas e nos conjuntos habitacionais operários e se criou o serviço social das empresas, das caixas de compensação, da habitação, das caixas de seguro social, da infância, e outros, afirma Verdès-Leroux (1986). O Serviço Social, adequando-se à concepção fragmentária do homem e da sociedade, e nela, das políticas sociais, enfatizava a fragmentação de seu saber e de seu fazer. O significado da prática, contudo permaneceu o mesmo. Tratava- se de mudanças na forma e de continuidade, de permanência e de sofisticação do conteúdo11. Resultou dessa fragmentação a diversificação das funções e das atividades no âmbito da assistência social segundo os espaços de atuação: enfermeira-visitadora, superintendente de fábrica, visitadora-controladora do seguro social e assistente familiar. Estrategicamente, os trabalhadores sociais 11 Nesse momento, a assistência social reconhecia a importância do Estado e, ao mesmo tempo, era por ele reconhecida e encontra guarida no governo e nos meios políticos. Segundo VerdèsLeroux (1986), as assistentes sociais faziam elogios sem reservas às autoridades governamentais. 31 participavam dos mecanismos de controle sócio-econômico e ideo-político da classe dominada, inserindo-se de forma parcializada e fragmentada nas esferas constitutivas do ser social e contribuindo para aumentar o domínio sobre a vida cotidiana dos operários. O processo de formação era permeado por essa lógica, pois eram habilitadas visitadoras sociais, superintendentes de fábrica, assistentes familiares, assistentes sociais, entre outros. Para Verdès-Leroux12 (1986), o trabalho social impôs-se, arbitrariamente, pela violência simbólica por meio de práticas produzidas pelo habitus, isto é, pela interiorização de normas e valores e por sistemas de classificação vinculados às representações sociais dominantes. As modalidades de intervenção constituem o meio pelo qual ocorre a inculcação de normas e valores e, conforme o campo de forças entre as classes sociais, tais valores e modalidades de intervenção são adaptados ideologicamente aos interesses da classe dominante, a eles se adequando também os espaços e as formas de celebração da profissão. Segundo a autora, o habitus que conforma a prática dos trabalhadores sociais, isto é, o conjunto de valores, costumes, formas de percepção dominantes, os modelos de pensamento incorporados pelos profissionais que orientam e regulam o fazer profissional são ideologicamente 12 O tangenciamento analítico de Verdès-Leroux (1986) é aquele que concebe o Serviço Social como evolução, racionalização, organização e profissionalização das formas anteriores de ajuda, a caridade e a filantropia. Contudo, o seu arcabouço teórico-analítico apreende − no jogo da correlação de força entre as classes sociais, no campo das forças simbólicas que atuam na lógica da dominação − o significado e as modalidades de ação do trabalho do assistente social como agente a serviço do controle social, denominado como o habitus dos assistentes sociais. O conceito de habitus que permeia a análise do trabalho do assistente social de Verdès-Leroux (1986) inspira-se no pensamento do sociólogo contemporâneo Pierre Bourdieu (1930-2002), e propõe desnudar o modo de engendramento da prática desses agentes profissionais. Para Bourdieu, segundo Canesin (2001, p.114), o “Habitus produz a prática, porque ela é produto da relação dialética entre uma situação (condições objetivas da estrutura) e um Habitus. Autônoma em relação à situação, a prática nasce da relação dialética de uma estrutura − por intermédio do Habitus como princípio mediador − e uma conjuntura entendida como as condições de atualização desse Habitus. Há pois, entre as estruturas e as práticas, a mediação operada pelo Habitus como estruturas interiorizadas social e individualmente”. 32 inculcados mediante suas modalidades de intervenção e impõem aos trabalhadores assistidos a violência simbólica por meio do controle, do constrangimento, da tutela, da imposição da moralidade burguesa, da invasão e da vigilância da vida privada das classes dominadas. O significado do Serviço Social vincula-se à reprodução ideológica da ordem burguesa por meio do poder conferido aos profissionais que objetivam a assistência social. São profissionais subalternos, cujas práticas se caracterizam pelos baixos níveis de teorização e objetivam impregnar a população de princípios simples, moldando-a conforme as necessidades da classe dominante, assinala Verdès-Leroux (1986). O estudo em tela evidencia a fragmentação do trabalho social em relação aos espaços sócio-ocupacionais e a divisão de funções para garantir o controle social da vida cotidiana dos trabalhadores. As primeiras assistentes sociais no Brasil buscavam a sua formação acadêmica na Bélgica, cujo padrão desde o término da Primeira Guerra Mundial até 1936, segundo Verdès-Leroux(1986), fundava-se no discurso da paz social e na proximidade com o operariado, alterando a marca do período precedente de violência moral e juízo negativo e depreciativo explícito em relação aos hábitos de vida dos trabalhadores. Tratava-se de uma aproximação cujo objetivo era, sobretudo, o controle ideológico. Os traços ideológicos e doutrinários que permearam o Serviço Social latino-americano em sua gênese foram sugados, acriticamente, do modelo belga-francês e, a partir do início da década de 1940, do funcionalismo norte-americano. Derivam-se daí, modalidades de práticas que se reproduzem na atualidade e habitam o imaginário dos profissionais e estudantes, conformando a representação da profissão como vocação. A formação 33 profissional nas primeiras escolas de Serviço Social13 na América Latina objetivava dotar essa vocação de referências doutrinárias para diferenciar a atividade profissional da ação de caridade, com o intuito de salvaguardar os interesses da igreja, assinalam Castro (1989) e Carvalho (1982). No entanto, encontrava-se em jogo, sobretudo, a necessidade de alterações o padrão de dominação burguesa no momento sócio-histórico de trânsito do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista. A formação profissional ocultava essas reais necessidades e se constituía de estudos teóricos fundamentados na doutrina social da Igreja Católica, na filosofia neotomista e de atividades práticas de cunho adestrador, consistindo na transmissão/assimilação de modelos prescritos14. A profissão era exercida majoritariamente por mulheres, que eram preparadas para atuar na área da saúde e higiene, tal qual como se organizava o trabalho social na França e na Bélgica. Assim como o modelo europeu, o processo de seleção das futuras profissionais era rigoroso e elas deveriam enquadrar-se nos seguintes critérios: serem moças de boas famílias, educadas no berço da tradição cristã-católica, com boa saúde, devidamente atestada, e antecedentes probatórios de honorabilidade. A prática profissional desenvolvia-se em instituições assistências, públicas e filantrópicas, cujas características era marcadamente permeadas, segundo Carvalho (In: Iamamoto e Carvalho, 1982), pelo autoritarismo, paternalismo, 13 Segundo Castro ( 1989) a primeira escola de Serviço Social na América Latina foi fundada por Alejandro Del Rio, médico, sanitarista, em 1925, no Chile, em um contexto de crise institucional e contínuos protestos, no qual a “classe operária experimentou significativo crescimento em sua organização e consciência política” (p. 64). Em 1929, foi criada a primeira escola católica de Serviço Social que pretendia, afirma Castro (1989), no contexto dos interesses globais da igreja, recuperar o seu papel de condutora da moralidade. 14 Os estudos teóricos no processo de formação profissional, segundo Carvalho (In Iamamoto e Carvalho, 1982), abordavam os fundamentos gerais de sociologia, pedagogia, economia social, legislação social, instrução cívica, anatomia e fisiologia, higiene privada, ética profissional e religião. No ensino prático, destacavam-se: tratamentos de caso individual, encaminhamentos jurídicos, técnicas de escritório e estatísticas, contabilidade, primeiro socorros, cuidados domiciliares a doentes, puericultura, nutricionismo, trabalhos manuais e exercícios de oratória. 34 doutrinarismo e ausência de base técnica. Tais características refletiam a ideologia da classe dominante e assumiam determinadas particularidades em decorrência das condições sócio-históricas de cada país latino-americano. No exame dessas condições, destacam-se a dinâmica das relações econômicas, sócio-culturais e políticas entre os países centrais e os países periféricos de economia capitalista dependente e subdesenvolvidos e a formação dos sujeitos sócio-históricos e o padrão de dominação burguesa em cada país, levando-se em consideração a sua inserção na lógica de acumulação do capital. Elucidar esse complexo emaranhado constitui o grande desafio para compreender a emergência do Serviço Social no Brasil, na década de 1930, o seu significado e à sua funcionalidade em um país com baixíssimo grau de escolaridade, com o acesso restrito à educação, com mão-de-obra desqualificada, com ausência de políticas de saúde e estrutura de saneamento e atendimento médico-hospitalar e com o espectro do comunismo rondando a classe trabalhadora. Nesse momento, a economia brasileira encontra-se premida, pelas condições externas e internas, a substituir o esgotado modelo de desenvolvimento agro-exportador para o modelo urbano-industrial no contexto do capitalismo monopolista. Segundo Fernandes (2006, p. 346), as conexões da dominação burguesa com a transformação capitalista “se alteram de maneira mais ou menos rápida, na medida em que se consolida, se diferencia e se irradia o capitalismo competitivo no Brasil e, em especial, em que se aprofunda e se acelera a transição para o capitalismo monopolista”. O comando da máquina propulsora de tais alterações guiava-se pelos interesses econômicos do capitalismo central das nações hegemônicas e o elemento principal era a emergência da industrialização “como um processo econômico, social e cultural básico, que modifica a organização, os dinamismos e a posição da economia urbana dentro do sistema econômico brasileiro”, 35 assinala Fernandes (2006, p. 346). Subproduto da hegemonia do complexo industrial-financeiro, a hegemonia urbano e industrial intensificava a concentração de recursos materiais, técnicos e humanos nas grandes cidades, “dando origem a fenômenos típicos de metropolização e de satelitização sob o capitalismo dependente” (FERNANDES, 2006, p. 346). No momento específico de trânsito à fase do monopólio, pode-se apreender a particularidade da gênese histórico-social do Serviço Social, afirma Netto (2001, p. 18). Essa apreensão busca as raízes das conexões sócio-históricas entre a forma, a natureza e as funções da dominação burguesa e a emergência do Serviço Social, permitindo, por sua vez, compreender a forma, a natureza e as funções do Serviço Social. No momento de emergência do Serviço Social, as conexões entre os interesses econômicos da burguesia local, o padrão de dominação burguesa e a profissão eram viscerais, decorrendo a assimilação de uma compreensão que naturaliza os processos sociais, fragmenta os fenômenos relativos à questão social e enfatiza o aspecto moralizador para salvaguardar a ordem e o progresso. As condições sócio-históricas da emergência do Serviço Social, até então, foram encobertas por descrições fincadas em um sentimento de mundo, no qual a profissão teria surgido da institucionalização de suas protoformas. As pesquisas realizadas por Iamamoto e Carvalho (1982) ilustram a relação visceral entre os interesses da burguesia e a profissão, ao analisarem a constituição do grupo pioneiro, a criação das primeiras escolas de Serviço Social no Brasil, o papel da Igreja15 e do Estado. 15 Para contrapor o perigo do movimento socialista dos trabalhadores, a Igreja intensificou a sua presença nas vilas operárias e incentivava a participação do laicado em obras assistências surgindo, no princípio da década de 1920, a Associação das Senhoras Brasileiras, no Rio de Janeiro, e a Liga das Senhoras Católicas em São Paulo. Tais associações, tuteladas e imbuídas pelo pensamento social da Igreja, foram instituídas tendo como perspectiva a 36 As intervenções desenvolvidas pelas obras sociais vinculadas à Igreja eram caracterizadas como ajuda, caridade, filantropia e denominadas, como as anteriores formas de ajuda. Segunda a tese endogenista, essas ações criaram as bases para a emergência do Serviço Social. Os objetivos dessas ações vinculavam-seao atendimento e à atenuação de determinadas seqüelas produzidas e reproduzidas pelo desenvolvimento capitalista admitindo-se os problemas estruturais advindos do modo ser da sociedade do capital, mas a intervenção centrava-se no indivíduo, considerado o responsável por todos os seus infortúnios. Os preceitos que embasavam o projeto de formação profissional das primeiras escolas de Serviço Social16 no Brasil, ignoravam as condições sócio-históricas que engendraram a emergência da profissão. Dentre elas, há que se pontuar que o mercado de trabalho para o assistente social constituiu- se, de fato, quando o Estado assumiu para si as respostas às expressões da questão social17. As primeiras assistentes sociais foram contratadas para atuarem em institutos e caixas de pecúlios, na Legião Brasileira de Assistência (LBA), no Serviço Social da Indústria (Sesi), no Serviço Nacional de formação das bases organizacionais e doutrinários do apostolado laico, objetivando “a assistência preventiva, de apostolado social, atender e atenuar determinadas seqüelas do desenvolvimento capitalista, principalmente no que se refere a mulheres e crianças”, assinala Carvalho (1983, p. 170). Para efetivar tais objetivos foi criado o Centro de Estudo e Ação Social de São Paulo (Ceas), em 1932, com o objetivo de promover as obras de filantropia vinculadas às classes dominantes, e as moças, representantes de frações da classe dominante, foram convidadas para participar de um curso intensivo de formação social, com uma representante da escola de Serviço Social de Bruxelas, para orientá-las, esclarecer as idéias e formar um julgamento acertado acerca dos problemas da atualidade. Por problemas da atualidade, entendem-se os movimentos sociais − fundamentalmente a organização sindical da classe trabalhadora − considerados altamente subversivos, desafetos da Igreja e do Estado. 16 Em 1936, o Centro de Estudos e Ação Social de São Paulo, vinculado a Igreja católica criou a primeira Escola de Serviço Social. Carvalho (In: Iamamoto e Carvalho, 1982, p. 180) assinala que “esta não pode ser considerada como fruto de uma iniciativa exclusiva do Movimento Católico Laico, pois já existe presente uma demanda − real ou potencial − a partir do Estado, que assimilará a formação doutrinária própria do apostolado social”. 17 Na década de 1930, o Estado brasileiro organizou-se para garantir as bases de sustentação econômica e social para garantir o desenvolvimento urbano-industrial. No Estado de São Paulo o governo criou o Departamento de Assistência Social, em 1935, com as seguintes finalidades: “a) superintender todo o serviço de assistência e proteção social; b) celebrar, para realizar o seu programa, acordos com as instituições particulares de caridade, assistência e ensino profissional; c) harmonizar a ação social do Estado, articulando-a com a dos particulares; d) distribuir subvenções e matricular as instituições particulares realizando o seu cadastramento” , assinala Carvalho (In: Iamamoto e Carvalho, 1982, p. 178). 37 Aprendizagem Industrial (Senai), nas prefeituras municipais, e, sobretudo, em órgãos governamentais federais e dos estados federativos que começavam a estruturar as políticas socais. No âmbito desses espaços sócio-ocupacionais, a intervenção profissional do assistente social deveria transpor o caráter intuitivo e os sentimentos de compaixão balizadores das ações caritativas, que do ponto de vista do capital apenas mantinha o círculo vicioso da pobreza, para tornar-se racionalmente eficaz na utilização dos recursos técnicos e competente na inculcação de valores morais adequados aos interesses do capital. Além do caráter assistencial em si-mesmo, a intervenção profissional imbuía-se da dimensão educativa para moldar o comportamento, os costumes e hábitos da população alvo, os operários. O sentido da educação na perspectiva da burguesia era a preparação técnica para o trabalho e para a vida cotidiana (hábitos e costumes), por meio do adestramento, cujos conteúdos moralizadores se revestiam do necessário para a reprodução da subalternidade. O caráter pragmático da intervenção sócio-assistencial moldada para essas finalidades vinculava-se ao desenvolvimento urbano-industrial em curso na década de 1930, isto é, a necessidade de mão-de-obra para a nascente indústria de base e a retenção dos movimentos dos trabalhadores por meio da persuasão ideológica. Nessa direção, os problemas sociais com as quais os assistentes sociais deparavam-se eram a infância abandonada, as condições de habitação, o carecimento econômico, a ausência de saúde e a falta dos hábitos de higiene, o despreparo técnico para o mercado de trabalho, a fraqueza moral dos operários que se deixavam influenciar por agitadores comunistas. A identificação das necessidades sociais ocorria por meio da abordagem 38 individual, o Serviço Social de caso, com o atendimento estendido aos familiares. A sustentação da ação profissional erguia-se em um tênue fio condutor de princípios pincelados da doutrina neotomisto e do pragmatismo. Dessa tríade provinha a visão transcendental idealista do mundo no qual a razão humana é a expressão imperfeita da razão divina e a ela se encontra subordinada, a democracia balizada na liberdade do mercado e o princípio da utilidade guiando e justificando a intervenção. Esse arranjo pretende eliminar as desigualdades sociais estruturais per-si, atribuindo ao homem a responsabilidade por suas imperfeições e resulta na prática voltada apenas por sua utilidade imediata. Pode-se afirmar que os pressupostos contidos nesse arranjo têm sua proveniência das práticas produtivas capitalistas, ao mesmo tempo que se constituem em mecanismos ideológicos estratégicos para a garantia de sua reprodução. Ao reproduzir as normas e os valores morais18 da burguesia, a prática profissional do assistente social reorientava os costumes e os valores da classe trabalhadora. A ação educativa consistia na impregnação de normas e valores que projetavam um dever-ser pautado no senso moral, adequado às necessidades do capital que se incorporavam à vida cotidiana dos trabalhadores. A formação profissional para a efetivação de tais funções requeria a assimilação acrítica das doutrinas moralizadoras e o domínio de técnicas adequadas ao adestramento de comportamentos sociais para a vida cotidiana. Tratava-se de reproduzir modelos ideais para legitimar o Serviço Social diante das necessidades vinculadas à reprodução do capital e solidificar o padrão de dominação da burguesia. 18 Os parâmetros ideais para mensurar o que é moralmente adequado − bom ou ruim, certo ou errado, bonito ou feio, virtuoso ou vergonhoso − são estabelecidos por determinações sócio-históricas e, ainda que devam ser aceitos individualmente, expressam e objetivam interesses de classes. 39 Tendo em vista tais atribuições e responsabilidades, a prática profissional iniciava-se com a identificação dos problemas bio-psíquicos e sócio-comportamentais dos operários19 e seus familiares que buscavam as instituições e os órgãos governamentais20. Esta identificação ocorria por meio da abordagem individual, utilizando como instrumental técnico-operativo o diagnóstico. A execução desse procedimento técnico-operativo iniciava-se com a ausculta do indivíduo queixoso que demandava o auxílio assistencial, a fim de instituir o caso, procedendo-se ao estudo para efetuar o diagnóstico, averiguar a pertinência das solicitações e estabelecer os encaminhamentos subseqüentes − o tratamento. No estudo do caso, o profissional recorria a instrumentos técnico-operativos de apoio, dentre os quais se destacavama entrevista e a visita domiciliar, que possibilitavam a coleta de dados, o acesso aos costumes e hábitos higiênicos da família e a averiguação da veracidade das informações fornecidas pelo assistido. A entrevista apoiava-se nas fichas sócio-econômicas e/ou anamnese, instrumento de coleta de dados sócio-econômicos das famílias dos operários pertinentes e relevantes para justificar a intervenção profissional na instituição/programa e possibilitar o registro para fins estatísticos. Com base nesse estudo concluía-se o diagnóstico estabelecendo as medidas a serem aplicadas no tratamento do caso. Tais medidas comportavam respostas às necessidades de cunho social, econômico, educacional, saúde, jurídico e moral. Assim, um caso, em sua face de tratamento, demandava encaminhamentos diversos, constituindo-se na forma preponderante de ação, ou seja, 19 O público alvo atendido pelo Serviço Social de caso eram os operários e suas famílias, os artesãos, viúvas e aposentados . 20 Departamento de Serviço Social do Estado de São Paulo que, segundo Carvalho (In: Iamamoto e Carvalho, 1982) absorvia 17 entre as 27 profissionais em exercício, em 1940, Departamento Estadual do Trabalho e Juízo de Menores. 40 o tratamento dos casos [era] basicamente feito através de encaminhamentos, colocação em empregos, abrigo provisório para necessitados, regularização da situação legal da família (casamento), etc., e fichário dos assistidos (CARVALHO, in Iamamoto e Carvalho, 1982, p. 194). Como os problemas de ordem estruturais existentes, em decorrência da relação que os homens estabelecem entre si eram desconsiderados, o indivíduo situava-se no centro da atividade porque ele era o responsável por suas condições de vida e de sua família, considerada como a célula básica da sociedade. Segundo Iamamoto (2002), a individualização dos casos sociais, em detrimento do reconhecimento da situação comum vivida pelos seguimentos da classe trabalhadora que demandam serviços sociais, é uma característica do movimento reformista-conservador presente na prática profissional. Nessa perspectiva, a ação profissional orientava-se por princípios e postulados centrados no indivíduo Iamamoto (2002, p. 19-20): os indivíduos são encarados como seres únicos e particulares, com potencialidades a serem desenvolvidas, desde que estimuladas, cuja dignidade de seres humanos e cuja liberdade merecem o respeito do profissional. Porém, tais características tendem a ser apreendidas sem vinculação com suas bases materiais, isto é, subjetivamente e apartadas da situação social de vida dos clientes, transformando-se em princípios e postulados universalizantes orientadores da ação profissional. 41 Os princípios e os critérios de validade da verdade eram tomados como conhecimentos constitutivos e derivados da sensibilidade, da cultura cristã e da experiência profissional. Conforme essa percepção, quanto mais sensível, portadora de uma cultura geral adquirida no seio da convivência familiar e dos círculos sociais freqüentados e experiente a profissional, mais eficaz e parcimonioso era o seu trabalho. Essas qualidades ressaltadas nas assistentes sociais pioneiras são constantemente destacadas na atualidade quando se discutem as dificuldades relacionadas ao processo de ensino e aprendizagem na formação profissional. Carvalho (In: Iamamoto e Carvalho, 1982) transcreve o relato de um caso no qual se apreendem os objetivos, as atividades e os procedimentos realizados pelo profissional no atendimento do caso. Verifica-se que, ao prestar a assistência, por meio de auxílios monetários, encaminhamentos a órgãos assistencias, educacionais, hospitalares e jurídicos, o profissional intervinha no cotidiano da família com um poder que implicava até mesmo encaminhamentos que separavam pais e filhos. Recaía sobre o indivíduo o julgamento moral sobre a sua (in)capacidade de prover a si mesmo e à sua família. Tratava-se de uma prática fincada na tutela, permeada pelo sentido do dever e baseada na força da opressão. Independentemente do espaço sócio-ocupacional, os balizamentos das ações profissionais eram mensurados pelos benefícios que poderiam ser obtidos para consolidar os interesses da classe burguesa, reafirmando sempre as normas e os padrões da racionalidade que espelham o seu mundo e de suas práticas produtivas21. A ação do assistente social objetivava remediar as 21 Assim, por exemplo, nas creches, uma vez que as operárias continuavam a amamentar seus filhos além dos dias regulamentados pela legislação trabalhista, a profissional as encaminhava ao serviço médico para obter orientações de dietas alimentares para as crianças e encaminhava os nomes das operárias que cometiam a infração à gerência das fábricas para que suas saídas fossem impedidas com o objetivo de salvaguardar “os interesses legítimos da empresa, que perdia muitas horas de trabalho” (CARVALHO. In Iamamoto e Carvalho, 1982, p. 198). 42 deficiências dos indivíduos e da coletividade tendo em vista o ajustamento à ordem burguesa. O atendimento ocorria por meio de uma ação individualizada, e a ação nas coletividades não devia atingir as estruturas dos grupos sociais. Os estudos disponíveis referentes a prática profissional no período da emergência do Serviço Social até o final da década de 1950 revelam a explícita sintonia e defesa dos interesses da classe burguesa. Sem uma contraposição interna, o discurso, os registros da prática profissional não escamoteiam o significado da profissão, os interesses defendidos, os parâmetros normatizadores das atividades e dos procedimentos. Segundo Carvalho (In: Iamamoto e Carvalho, 1982), nesse contexto, as atividades desenvolvidas pelos assistentes sociais eram restritas em virtude dos limites de atuação dos órgãos públicos e da incapacidade de as instituições viabilizarem os encaminhamentos requeridos no atendimento de casos individuais. Com o recurso heurístico fundado na teoria social marxiana, a partir da década de 1970, o significado da emergência do Serviço Social deixa de ser narrado na perspectiva da evolução, organização e profissionalização das formas de ajuda para o enfrentamento de desvios sócio-comportamentais cujas causas relacionavam-se à inadaptabilidade do indivíduo. No entanto, essa marca indelével permanece, guiando um determinado modo de ser do Serviço Social, deixando um rastro que se identifica a um sulco fechado, isto é, um rego que se abriu de um arranjo, forjou uma técnica que se repete indefinidamente no interior da profissão e prende o fazer profissional às expressões fenomênicas do ser social, circunscrito ao espontâneo e ao imediato. Trata de um arranjo cuja sustentação se encontra em seu escopo − a reprodução de um padrão de dominação que objetiva o ajustamento do ser que vive do próprio trabalho à ordem do capital. A finalidade vinculada à 43 utilidade do Serviço Social é o elemento que permanece como norteador e justificador da prática forjada por esse arranjo, ignorando o significado, a concepção, os princípios, a funcionalidade da profissão que aparecem apenas como gomas que mudam de cor dependendo das circunstâncias e, por isso mesmo, carecem de sentido ou se constituem no verniz que encobre o real. Em decorrência, há constantes tentativas de burilar uma concepção de Serviço Social sustentado em si-mesmo, a permanente busca por uma identidade profissional, o contínuo mal-estar atribuído à dicotomia entre a teoria e a prática. São os falsos dilemas encobrindo as contradições que engendram a constituição e o significado da profissão e, se de um lado, contribuem para explicitar os vínculos e os compromissos com direções sociais contrapostas, de outro, embaraçam, amarram
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