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O que nós queremos dizer com Cânon? Perguntas antigas e modernas. Lee Martin McDonald Texto original intitulado What Do We Mean by Canon? Ancient and Modern Questions publicado em CHARLESWORTH, J. H.; MCDONALD, L. M (eds.), Jewish and Christian Scriptures – The Function of “Canonical” and “Non-Canonical” Religious Texts. London: T&T Clark, 2010. Tradução de Thiago Corrêa sob orientação do Professor Dr. Marcus Reis Pinheiro. Os termos “cânon”, “canônico”, “não-canônico”, “bíblico” ou “não-bíblico”, “apócrifo” e “pseudoepígrafe”, ou até mesmo “Velho Testamento” e “Novo Testamento” são muitas vezes confusos quando citados em investigações contemporâneas sobre a literatura Judaica e Cristã antigas. Eles são todos termos anacrônicos que as comunidades Cristãs tardias usaram para descrever a literatura que em algum momento encontraria ou não aceitação nas Bíblias Hebraica e Cristã. Inicialmente, a maioria destes escritos, senão todos, funcionaram como literatura sagrada em uma ou mais comunidades religiosas Judaicas ou Cristãs. O presente artigo tem por foco o sentido e a validade de tais distinções para uma pesquisa investigativa sobre a literatura religiosa antiga, e inclui exemplos de escritos que funcionaram como fonte de autoridade no Judaísmo e/ou no Cristianismo primitivos, mas, em algum momento, não foram incluídos nos cânones bíblicos de nenhuma destas comunidades religiosas. A presente discussão serve de base para muitas das discussões que perpassam este livro. 1 O que nós queremos dizer com Cânon? Perguntas antigas e modernas. Introdução Historicamente, tanto judeus quanto cristãos trataram suas Bíblias como uma entidade completa e estabelecida e raras vezes puseram em foco a sua origem, o seu desenvolvimento e sua abrangência. Na verdade, até bem recentemente, havia pouco interesse concreto pela origem e desenvolvimento do cânone bíblico, fosse na igreja ou na sinagoga. De fato, por mais de mil anos, com exceção das ações do Concílio de Trento em 1546 houve pouquíssimas discussões sérias a respeito da formação do cânon. Alexander Souter, há aproximadamente um século, já ressaltava a escassez de interesse pelas origens do cânon bíblico.1 Mais tarde e de modo similar, Bruce Metzger manifestou surpresa pelo de que um tópico tão importante quanto este, dos livros incluídos na Bíblia, tenha recebido tão pouca atenção na antiguidade e também nos tempos modernos.2 O atual interesse pela formação do cânon pode ter sido disseminado pela publicação de livros de muita popularidade como O Código Da Vinci ou O Santo Graal e a Linhagem Sagrada e a infinidade de spin-offs que eles geraram, tanto quanto o modismo anual logo antes da Páscoa que se dá por exibições na mídia de obras como A Paixão de Cristo de Mel Gibson e O Evangelho de Judas ou pela descoberta de uma suposta tumba de Jesus e sua esposa, Maria Madalena! Com frequência estas publicações são apresentadas como promessas tentadoras de revelações que poderiam destruir a Cristandade. Chegam a sugerir haver algo que a igreja realmente não quer que você saiba, porque isto poderia prejudicar ou destruir a fé na igreja. Estas pretensões sensacionalistas, é claro, não apenas vendem muitos livros, mas também trazem um novo interesse pela formação da Bíblia, e especialmente pelos livros que foram excluídos dos cânones bíblicos tanto do Judaísmo quanto da igreja. Este interesse renovado não afasta o fato de que já se passaram dois mil anos e a igreja ainda não tem um acordo sobre a abrangência de sua Bíblia – mesmo havendo uma ampla concordância sobre a maior parte dela. Hoje 1A. Souter, The Text and canon of the New Testment (StTh; 1913; rev. C. S. C. Williams; London: Duckworth, 1954), p. 186. 2Ver, por exemplo, a sentença de abertura do prefácio e o parágrafo de abertura do primeiro capítulo de B. M. Metzger, The Canon of the New Testment: Its Origin, Development, and Significance (Oxford: Clarendon, 1987). 2 Lee Martin McDonald em dia há quatro cânones diferentes do Antigo Testamento vigentes na igreja Cristã, nomeadamente os da igreja Ortodoxa Oriental (tanto a Grega quanto a Russsa),3 da Católica Romana,4 da Protestante5 e da Etíope.6 Da mesma forma, há múltiplas coleções de livros sagrados na antiguidade que são muitas vezes parecidos no conteúdo, mas não são inteiramente iguais. A maior parte destas diferenças já se encontrava presente antes do quarto século, embora algumas tenham vindo mais tarde. Tanto naquele tempo quanto agora, os livros que uma comunidade religiosa chama de apócrifos ou até mesmo de pseudoepigráficos (com isto, desprezando-os), outra acolhe como escritura. Além disto, os livros que são postos em questão mudam de tempos em tempos. As pesquisas atuais sugerem que as mais amplas coleções de escritos do 3Além do livro dos Hebreus, a Igreja Ortodoxa do Oriente inclue em seu Antigo Testamento Esdras I, Judith, Tobit, Sabedoria de Salomão, Eclasiastes (Sirach), Baruch, e também trechos adicionais a Daniel e Esther). Os livros que não estão nos Hebreus são chamados livros Deuteronômicos. O seu Novo Testamento tem os mesmos 27 livros que são comuns às Igrejas Católica Romana e Protestante. 4O seu Antigo Testamento é similar ao Ortodoxo (eles têm 46 livros) com trechos adicionais a Daniel e Esther, mas eles não têm Macabeus 3 ou o Salmo 151. Os livros não inclusos nos Hebreus são chamados livros Deuteronômicos e a doutrina maior não se baseia neles. O seu Novo Testamento contém os mesmos livros das Bíblias Protestante e Ortodoxa. Não posso deixar de notar que, tal qual Loren Johns me rememorou muito apropriadamente, que Macabeus 4 é eclesiologicamente bom por ser Ortodoxo do Oriente, mas não para a igreja Cóptica; historicamente, alguém poderia argumentar que Enoch 1 fornece um melhor entendimento do meio social teológico do Novo Testamento. 5Protestantes aceitam apenas os livros nos Hebreus, mas em uma ordem diferente, e os 27 livros do Novo Testamento. 6As igrejas Ortodoxas da Etiópia adotaram como seu Antigo Testamento os livros adotados pela igreja Ortodoxa do Oriente, mas também os Jubileus, o Enoch Etiópico, Esdras 4, e O Resto das Palavras de Baruch. É difícil obter uma coleção completa dos livros que estão litados em seus catálogos, mas o Antigo Testamento deles consiste dos seguintes: o comentário Amharic tradicional sobre o texto de Ge’ez da Fetha Nägäst nos dá 46 como o número total de livros do Antigo Testamento, organizados da seguinte maneira: Octatêuco (8), Judith (1), Samuel e Reis (4), Crônicas (2), Esdras 1 e o Apocalipse Esra (2), Esther (1), Tobit (1), Macabeus (2), Jó (1), Salmos (1), livros de Salomão (5), Profetas (16), Eclesiastes (1), Pseudo-Josefo (1); Jubileus e Enoch 1 serão inclusos no número (ao se contar Samuel e Reis como se fossem apenas 2 livros). Isto totaliza 35 livros para o Novo Testamento, nomeadamente os Evangelhos (4), Atos (1), as epístolas Católicas (7), as epístolas Paulinas (14), Revelação (1), Sínodos (1). O seu Novo Testamento não se constitui apenas dos 27 livros do Novo Testamento, mas também de quatro outros livros menos conhecidos: Sínodos, Livro de Clemente (não Clemente 1 ou 2), Livro da Aliança e Didascalia. Este assunto é especialmente complexo entre os Cristãos Ortodoxos da Etiópia e um sumário de grande utilidade pode ser encontrado em R. A. Cowley “The Biblical Canon of the Ethiopian Orthodox Church Today”, in Ost 23 (1974): 318-23. 3 O que nós queremos dizer com Cânon? Perguntas antigas e modernas. Antigo ou Primeiro Testamento que continham os assim-chamados livros apócrifos eram mais comuns nas igrejas primitivas e no Judaísmo do Segundo Templo do que as coleções mais limitadas de livros bíblicos na Bíblia Judaico- Hebraica que veio depois e o Velho/Primeiro Testamento Protestante. A diversidade de opiniões sobre a abrangência do cânon bíblico sem dúvida tem raízes na complexidade das tradições periféricas às origens da Bíblia, e o que torna estas matérias ainda mais desafiadoras é o fato de que não há documentos antigos que relatem quando oprocesso de canonização começou, ou quando terminou, nem mesmo o que um cânon bíblico vem a ser. A maior parte das conclusões dos estudiosos sobre este processo depende de provas inferidas, que se ramificam a partir de textos antigos muito bem conhecidos, em vez de frases explícitas ou discussões na antiguidade. Porque é difícil definir o que era o cânon bíblico sem primeiro saber o que era considerado ortodoxo e o que era considerado heresia, nós devemos considerar a prevalência tanto da ortodoxia quanto do que hoje se chama “heresia” nas igrejas que surgiam no segundo e terceiro séculos. Em seu livro altamente influente e muitas vezes controverso, Walter Bauer afirmou que as comunidades heterodoxas, na verdade, ultrapassavam em número as comunidades ortodoxas no segundo século e até mesmo produziam textos que se opunham aos ensinamentos “heréticos” daquelas igrejas que, hoje em dia, nós consideramos ortodoxos!7 Bart Ehrman, que concorda com Bauer, também disputa o ponto de que a “ortodoxia” tinha sua influência mais limitada no segundo século do que se pensava anteriormente – e ele pode estar certo, mas ele provavelmente está exagerando em seu argumento ao afirmar que a ortodoxia no sentido de um “grupo unificado promovendo uma doutrina apostólica aceita pela maioria dos Cristãos em toda parte não era algo que existisse no segundo e terceiro séculos.”8 Nem a riqueza nem o 7Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity (ed. R. Kraft and G. Krodel; trans. G. Strecker; Philadelphia: Fortress, 1972); trans. of Rechtglaubichkeit and Ketzerei im altesten Christentum (BHT 10; Tubingen: Mohr Siebeck, 1934). 8B. D. Ehrman, The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Chris- tological Controversies on the Text of the New Testment (New York: Oxford University Press, 1993), p. 7. Certamente houve uma considerável diversidade de igrejas durante estes dois séculos e até mesmo depois, e parece que uma maioria ortodoxa começou a surgir ao final do segundo século, mesmo que isto não tenha significado que eles fossem unânimes 4 Lee Martin McDonald poder político de Roma conseguem explicar todos os fatores que levaram ao assim-chamado triunfo da ortodoxia na maior igreja da antigüidade. Ehrman não dá o peso adequado à antiguidade da tradição ortodoxa nas igrejas (isto remete às epístolas Paulinas e aos Evangelhos canônicos, os primeiros escritos Cristãos conhecidos, e à força da lição de Irineu sobre a sucessão apostólica na igreja) e ao fato de que a ortodoxia surgiu e floresceu quando ela não detinha nem poder nem riqueza para apoiá-la.9 Contudo, nós precisamos reconhecer que se tolerava consideravalmente mais diversidade no Cristianismo primitivo do que o que passou a existir depois do quarto século, mas, repita-se, no final do segundo século, uma proto-ortodoxia parece ter tido uma ampla vitória na batalha teológica que se apresentava às igrejas e, além do mais, enraizou sua herança teológica nas primeiras tradições da igreja, nomeadamente, aquilo que nós agora chamamos de Evangelhos canônicos e cartas de Paulo. Neste sentido, a ortodoxia possui raízes nos primeiros escritos e tradições da igreja, e seu triunfo já estava bem encaminhado antes do tempo de Constantino, mas não se pode negar que, a convocação de Constantino e que, por meio de sua insistência sobre a unidade tanto na igreja quanto no império, o movimento em direção à ortodoxia se tornou mais contundente do que era antes.10 No que tange as escrituras dos Judeus, por tempo demais se partiu do princípio de que os Judeus da antiguidade fossem unânimes sobre a abrangência e o conteúdo de sua Bíblia, como se ela fosse uma entidade que se fixou desde o fim do primeiro século da Era Cristã, ou até mesmo antes. Os estudos dos Pergaminhos do Mar Morto nos mostram não apenas ter sido de outro modo,11 mas que as diferenças a que pouco se percebe entre os Judeus no pensamento teológico daquele tempo. Os debates contínuos entre as variadas vertentes do Cristianismo primitivo nos sugere isto, mas não nos permite negar à ortodoxia em desenvolvimento um papel proeminente. Não fica claro se a ortodoxia apenas conquistou a todos por causa do poder das igrejas Romanas, sua riqueza e influência no quarto século. Isto já foi devidamente demonstrado. Os documentos do primeiro século a que esta se reportava, especialmente os Evangelhos, certamente pesaram muito em favor da ortodoxia. 9Isto não afasta o argumento de Ehrman em seu Orthodox Corruption of Scripture de que a ortodoxia Cristã influenciou variada e significativamente a transmissão do texto bíblico. Isto parece ser incontroverso. 10Eu discuti este ponto em The Biblical Canon: Its Origin, Transmission, and Authority (Peabody, Mass: Hendrickson, 2007, pp. 314-20). 11Ver especialmente a impressionante coleção de ensaios do Segundo Simpósio de Princeton sobre as origens do Judaísmo e Cristianismo, The Bible and the Dead Sea Scrolls 5 O que nós queremos dizer com Cânon? Perguntas antigas e modernas. do oriente e os da diáspora do ocidente indicam uma significante distinção nas expressões do Judaísmo a respeito deste tema. Mais especificamente, nós não temos nenhuma evidência de que as decisões rabínicas do oriente tenham tido inicialmente qualquer impacto significativo sobre os Judeus do ocidente, tanto na sua forma de vida quanto nas suas visões sobre a escritura. Efetivamente, é o oposto que parece ser verdade. Recentemente, dois estudiosos argumentaram de maneira convincente que os Judeus da Diáspora do ocidente continuaram a usar em sua devoção religiosa os livros sagrados da Septuaginta, incluindo-se aí os livros apócrifos e pseudoepígrafos. Em razão de, em sua maioria, não conseguirem falar ou ler em Hebraico ou Aramaico, eles consistentemente deixaram de ser afetados pelas decisões rabínicas do oriente e pela literatura que lá se produzia (Mishnah, Tosefta e as duas Talmudes).12 Havia então apenas uma compreensão Judaica do que seria a escritura e o cânon ao tempo de Jesus? De jeito nenhum! Mas esta percepção foi deixada de lado faz muito tempo, e a confiança na unidade do Judaísmo durante e depois o segundo século seguiram adiante. Isto, é claro, não passa de má-compreensão a respeito do Judaísmo antigo. Pois, bem no centro da Idade Média havia seitas Judaicas diversificadas ainda debatendo a abrangência de suas escrituras. Os Karaites e os Samaritanos, por exemplo, censuravam Judeus Rabinitas por usarem os Profetas e terem outras escrituras de autoridade13 além da Lei de Moisés. O quão representativo era, por exemplo, o Judaísmo rabínico (ed. J. H. Charlesworth; 3 vols.; Waco, Tex.: Baylor University Press, 2006), mas também P. R. Davies, Scribes and Schools: The Canonization of the Hebrew Scriptures (LAI 3; Louisville, Ky.: Westminster John Knox, 1998), pp. 152-69; A. J. Avery-Peck, J. Neusner, and B. Chilton, ed., Judaism in Late Antiquity, Part Five, Vol. 1: The Judaism of Qumran: A Systematic Reading of the Dead Sea Scrolls, Theory of Israel (HO 56; Leiden: Brill, 2001); também o segundo volume, World View, Comparing Judaisms (HO 57; Leiden: Brill, 2002); e o muito útil capítulo introdutório de J. C. VanderKam, From Revelation to Canon: Studies in the Hebrew Bible and Second Temple Literature (JSJSup 62; Leiden: Brill, 2002). Estas significantes obras representam apenas uma pequena quantidade da literatura publicada neste campo nos anos recentes, e muito mais ainda está a caminho! 12A questão desta diversidade entre os Judeus do oriente e os do ocidente na Terra de Israel é racionalmente argumentada por A. Edrei and D. Mendels, “A Split Jewish Diaspora: Its Dramatic Consequences” JSP 16.2 (2007): 91-137. 13A. Wasserstein and D. J. Wasserstein, The Legend of the Septuagint: From Classical Antiquity to Today (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), pp. 217-37, descreve as diferenças entre os Karaites, Samaritanos e os Judeus Rabinitas em relação a suas escrituras sagradas. 6 Lee Martin McDonald entre os Judeus? Seriam eles consistentes naquilo que tinham a dizersobre a abrangência das escrituras Judaicas? Eu argumentarei que, assim como os Cristãos primitivos, um tempo considerável se passou até que houvesse uma concordância geral nas áreas à margem do cânon bíblico. 7
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