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Introdução às Sagradas Escrituras Professor Me. Flávio Donizete Batista Reitor Prof. Ms. Gilmar de Oliveira Diretor de Ensino Prof. Ms. Daniel de Lima Diretor Financeiro Prof. Eduardo Luiz Campano Santini Diretor Administrativo Prof. Ms. Renato Valença Correia Secretário Acadêmico Tiago Pereira da Silva Coord. de Ensino, Pesquisa e Extensão - CONPEX Prof. Dr. Hudson Sérgio de Souza Coordenação Adjunta de Ensino Profa. Dra. Nelma Sgarbosa Roman de Araújo Coordenação Adjunta de Pesquisa Prof. Dr. Flávio Ricardo Guilherme Coordenação Adjunta de Extensão Prof. Esp. Heider Jeferson Gonçalves Coordenador NEAD - Núcleo de Educação à Distância Prof. Me. Jorge Luiz Garcia Van Dal Web Designer Thiago Azenha Revisão Textual Kauê Berto Projeto Gráfico, Design e Diagramação Carlos Eduardo Firmino de Oliveira 2021 by Editora Edufatecie Copyright do Texto C 2021 Os autores Copyright C Edição 2021 Editora Edufatecie O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correçao e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam necessariamente a posição oficial da Editora Edufatecie. Permi- tidoo download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP B333i Batista, Flávio Donizete Introdução às sagradas escrituras / Flávio Donizete BatistaDal. Paranavaí: EduFatecie, 2022. 99 p. : il. Color. 1. Biblía – Estudo e ensino. I. Centro Universitário UniFatecie. II. Núcleo de Educação a Distância. III. Título. CDD : 23 ed. 220.7 Catalogação na publicação: Zineide Pereira dos Santos – CRB 9/1577 UNIFATECIE Unidade 1 Rua Getúlio Vargas, 333 Centro, Paranavaí, PR (44) 3045-9898 UNIFATECIE Unidade 2 Rua Cândido Bertier Fortes, 2178, Centro, Paranavaí, PR (44) 3045-9898 UNIFATECIE Unidade 3 Rodovia BR - 376, KM 102, nº 1000 - Chácara Jaraguá , Paranavaí, PR (44) 3045-9898 www.unifatecie.edu.br/site As imagens utilizadas neste livro foram obtidas a partir do site Shutterstock. AUTOR Professor Me. Flávio Donizete Batista O Professor Flávio Donizete Batista possui graduação em Filosofia pela Universidade do Sagrado Coração (1999), graduação em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (2017), e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (2003). Atualmente é professor na área de Filosofia nos cursos de Pedagogia, Psicologia, e também na área de Teologia. Professor efetivo da Secretaria de Estado da Educação do Estado do Paraná, tendo aprovação em dois concursos públicos. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, ética, docência, ensino-aprendizagem e relação pedagógica. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/4266799322940706 APRESENTAÇÃO DO MATERIAL Olá, Prezado Acadêmico. Prezada Acadêmica. Sejam todos bem-vindos a esse nosso estudo que agora iniciamos, e que nos ajudará a fazer uma grande introdução às Sagradas Escrituras. Não queremos esgotar nenhum assunto, ou apresentá-lo de modo exaustivo. Mas queremos ajudar a cada um que reconhece a importância do estudo da Bíblia, e sua necessidade, para quem estuda a Teologia. Quando a Bíblia é o assunto, palavras não faltam para expressar os diferentes modos como cada um a entende ou dela se aproxima: respeito, simpatia, paixão, veneração, Palavra de Deus, inspiração, religião, Igreja, manual de ética e preceitos morais. Há também outras palavras que não soam tão amistosas, indicando certa distância e suspeição: livro complicado, manipulado, objeto de poder e da transmissão de valores morais por parte das igrejas e religiões contrárias à mentalidade racional e científica de nosso tempo; repertório de lendas, cujo valor não ultrapassa os limites da literatura mítica e utópica. Tais sentimentos, às vezes contraditórios, quase sempre equivocados e reducionistas, não podem ser ignorados quando se pretende oferecer ao público um trabalho de caráter introdutório à Bíblia. Nenhum sentimento positivo ou negativo em relação à Bíblia está imune dos históricos mal-entendidos que herdamos da sociedade e da cultura. Um deles é opor Bíblia e ciência e outro é considerá-la simplesmente como objeto de propriedade exclusiva das igrejas. Diferentes igrejas tomaram a Bíblia como alicerce de suas doutrinas, de seus trabalhos pastorais e relações de poder; justificaram com ela o modo como administraram as coisas sagradas, ministram os sacramentos e celebram o culto religioso. Isso tudo é legítimo, mas não retira da Bíblia o seu caráter literário, aberto e universal a quem dela queira aproximar-se. Quem disse ser preciso apresentar carteira de identidade ou vinculação religiosa para ler a Bíblia ou atestado ideológico de compatibilidade com as ideias pretensamente nela veiculadas? Nosso estudo nessa disciplina que ora iniciamos, pretende atingir aqueles que sentem necessidade de compreender melhor o texto segundo o contexto que lhe deu origem: estudantes do curso de Teologia, que são líderes de igreja e pessoas curiosas, jovens iniciantes engajados no trabalho pastoral e talvez alguém sem religião, mas que se autodefinem como tendo fé em Deus. Independentemente do uso que se possa fazer da abordagem sociológica da Bíblia, nosso objetivo é tentar desfazer preconceitos que a interpretação dogmática produziu ao ler os textos sem considerar as intenções originais de seus autores. Não se trata de negar os dogmas, mas de compreendê-los segundo a necessária consciência histórica e sociológica que lhes deu origem, considerando-os como frutos de tudo aquilo que é produzido pela vida na História. Desse modo, não precisamos negar os dogmas, mas reinterpretá-los, atualizando seu sentido e valor diante das novas circunstâncias do mundo contemporâneo. Chega de perseguição e discriminação àqueles que pensam de modo diferente e interpretam a Bíblia de maneira aparentemente estranha. Infelizmente estamos longe de superar esse preconceito. Aqueles que produzem opinião e interpretação discordantes daquelas declaradas oficiais ainda hoje sofrem discriminação e perseguição, e são chamados a prestar contar ao poder que julga ser guardião da “reta verdade” ou da “sagrada” doutrina. Nosso estudo está estruturado em quatro grandes partes: Na primeira parte, a palavra escrita, com a discussão sobre o ambiente e a estrutura dos livros, formando as duas grandes partes da Bíblia cristã: O Antigo e o Novo Testamento. Na segunda parte, uma abordagem sobre o cânon das escrituras, com se deu a fixação dos livros em uma lista que teve seu processo de definição, de questionamento e de aceitação, até chegar à estrutura atual da Bíblia. A terceira, sobre a inspiração e a revelação, no aspecto que faz entendermos que não são “somente” livros, mas que fazem parte de um grupo especial de livros reconhe- cidos como Palavra de Deus. Por fim, na quarta parte, vamos apresentar sobre a palavra escrita, um pouco de seus processos de fixação e formação do texto escrito da Bíblia. Desejo a todos um estudo que realmente ajude na realização de uma grande introdução às Sagradas Escrituras. Isso não significa que tudo será novidade para todos, mas que trata-se de uma forma organizada para ajudar cada um a começar e a dar continuidade a este estudo tão importante para a Teologia e para a experiência pessoal e comunitária da fé. Estamos juntos nessa jornada. Grande abraço. SUMÁRIO UNIDADE I ...................................................................................................... 4 A Palavra Escrita UNIDADE II ...................................................................................................27 O Cânon das Escrituras UNIDADE III .................................................................................................. 49 A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica UNIDADE IV .................................................................................................. 69 O Texto da Bíblia 4 Plano de Estudo: ● Materiais e línguas bíblicas; ● Crescente fértil: onde tudo começou; ● Os livros da Bíblia; ● A Formação da Bíblia. Objetivos da Aprendizagem: ● Introduzir o estudante no estudo das Sagradas Escrituras; ● Ajudar na compreensão da estrutura básica da Bíblia Sagrada; ● Contribuir para o entendimento dos processos de escrita e formação dos livros que compõem a Bíblia Sagrada. UNIDADE I A Palavra Escrita Professor Me. Flávio Donizete Batista 5UNIDADE I A Palavra Escrita INTRODUÇÃO Olá, Prezado (a) Estudante. Estamos iniciando nosso estudo de Introdução às Sagradas Escrituras. Podemos dizer que é uma das partes mais encantadoras do estudo da Teologia, e responsável por ajudar na leitura e compreensão da mensagem que está presente nos livros, escritos em um longo processo de formação e maturação de sua própria identidade de Palavra de Deus. Vamos abordar, inicialmente, o tema da Palavra Escrita, mostrando sua estrutura mais básica: Antigo Testamento e Novo Testamento. Serão apresentados alguns aspectos históricos do Povo de Israel e da Igreja cristã nascente, que ajudarão na compreensão dos processos de formação do livro. Não podemos esquecer que há um caráter introdutório no estudo das Sagradas Escrituras. Outros elementos serão aprofundados no decorrer de nossos estudos, quando os livros serão apresentados e analisados dentro de disciplinas específicas, a partir de seus gêneros e tipos próprios. Que todos tenham uma excelente oportunidade de iniciar o estudo das Sagradas Escrituras, com a fé e a razão plenamente sintonizadas, para que a construção de um sólido conhecimento teológico seja uma realidade para todos. Ótimos estudos e uma frutuosa caminhada acadêmica para todos nós. Grande abraço. 6UNIDADE I A Palavra Escrita 1. MATERIAIS E LÍNGUAS BÍBLICAS A Bíblia é a Palavra de Deus, revelada a nós em linguagem humana. faremos uma breve apresentação sobre os materiais em que ela foi escrita e em quais línguas sua redação foi feita. 1.1 Materiais utilizados na escrita da Bíblia A escrita não era uma atividade simples no tempo bíblico. Não era qualquer pessoa que escrevia, e esta precisava estar dedicada exclusivamente à escrita, aprendendo a escrever e a trabalhar como um copista. Somente uma sociedade estruturada de maneira a ter uma mínima estrutura de governo poderia ter o grupo que se dedicasse à atividade redacional. No entanto, há registros de escritos rudimentares em períodos muito antigos da história da humanidade. Além de registros pictóricos (pintura rupestre), que datam mais de 40 mil anos a.C., há indícios na Europa e na Ásia de uma escrita que datam do sétimo milênio a.C., com sistemas linguísticos ainda muito rudimentares. (CATENASSI, 2018, p. 60-61). Na Palestina, assim como no Antigo Oriente, as formas menos correntes de escrita estão as feitas em pedras e em metal. Nas construções de templos e tumbas, era comum que espaços nas paredes fossem preenchidos com inscrições. Em caso de vitórias militares ou da publicação de documentos oficiais, podia-se recorrer à construção de uma estela. A narrativa bíblica da construção das tábuas da Lei conserva a escrita em pedra (Ex 24,12; Dt 4,13). Inscrições em metal são mais raras, geralmente utilizadas para textos de grande importância. O texto bíblico guarda testemunhos de registros em bronze (1Mc 8,22; 14,18.27.48) (CATENASSI, 2018, p. 61). 7UNIDADE I A Palavra Escrita No Vale do Tigre e do Eufrates, na região mesopotâmica, a terra de aluvião fazia ser típica a escrita em tabuinhas de argila, feita com um estilete de bambu ou metal, que depois secavam ao sol ou eram cozidas. Foram encontradas muitas dessas tabuinhas em várias regiões do antigo Oriente, sendo muitas delas conhecidas no campo de estudo bíblico. Outra forma corrente e barata de escrita era a óstraca, ou seja, fragmentos de algum artefato de cerâmica que se havia quebrado. Foram encontrados vestígios antigos na Samaria e na cidade de Laquis (CATENASSI, 2018, p. 63). Na escrita bíblica, dois materiais ocuparam lugar central: o papiro e o pergaminho. O primeiro foi desenvolvido no antigo Egito, em 3000 a.C.; a partir de uma planta de caule bastante fibroso, cortado em pequenas tiras. Catenassi descreve com detalhes: Essas lascas eram entrelaçadas formando uma lâmina grande, na forma do pergaminho como o conhecemos, que então era prensada, alisada com um tipo de martelo e, ao final, polida. As folhas formadas eram unidas, coladas ou costuradas, formando um rolo de muitos metros, como aparece em Jr 36. Os papiros foram comercializados em grande escala pelo Egito, chegando à Palestina pela Fenícia, mas as condições de umidade em geral colaboraram para sua degradação e difícil conservação (CATENASSI, 2018, p. 63). Perto do ano 100 a.C., na cidade de Pérgamo (na Ásia Menor) foi aperfeiçoada uma técnica de preparação do couro de carneiros e cabras para a escrita. Esse material resultante foi conhecido como pergaminho. Contudo, o uso da pele de animais para a escrita é muito antigo, sendo atestado no Egito dois mil anos antes de Cristo. Também o pergaminho era costurado em forma de rolo, como o papiro. Continuamos com Catenassi: Com o tempo, diante da dificuldade de manusear os rolos, os papiros e os pergaminhos foram organizados e costurados na forma de um caderno e com capas de madeira ou de couro, formando os chamados códices, facilitando a leitura. Essa técnica começou a ser usada no século I d.C., e foi bem assimilada no mundo cristão. Para os judeus, os livros sagrados só podiam aparecer no formato de rolo (CATENASSI, 2018, p. 65). Depois de conhecer os materiais que receberam os textos bíblicos, vamos estudar as três línguas nas quais a Bíblia foi escrita. 1.2 As línguas bíblicas Todo trabalho de pesquisa teológico em Sagrada Escritura exige um tempo de dedicação para as línguas bíblicas, já que o exegeta tem que partir dos textos em sua língua original e propor uma tradução. Vamos conhecer algumas características das línguas que integram a Bíblia: o hebraico, o aramaico e o grego. O hebraico é chamado na Bíblia de “língua de Canaã” (Is 19,18) ou o “judaico” (Is 36,11; 2Cr 32,18). 8UNIDADE I A Palavra Escrita Quase a totalidade do AT foi escrita nesse idioma - adiante veremos as exceções. Trata-se de uma língua semita, que nasceu no Antigo Oriente Próximo e Médio, derivada do alfabeto fenício, o primeiro a ser construído, entre os séculos XVIII e XVII a.C. O hebraico começou a aparecer próximo de 1200 a.C. na Palestina, e o documento mais antigo que temos é um calendário encontrado em Gazer por volta de 925 a.C. Assim como o fenício, heraico é escrito da direita para a esquerda (CATENASSI, 2018, p. 66-67). O hebraico foi a língua escrita e falada na Palestina até a época romana. Temos o testemunho das cartas do judeu Bar Kokba, por ocasião das revoltas contra Roma (132-135 d.C.), que atesta o uso dela. Próximo do ano 200 d.C. e, posteriormente, com o avanço do mundo árabe, outras línguas foram sendo utilizadas na região por aproximadamente 16 séculos até o hebraico começar a ser ensinado nas escolas de Israel na segunda metade do século XX, ainda que nunca tenha caído em desuso completo, pois continuava sendo a língua oficial da Bíblia judaica, usada nas sinagogas (CATENASSI, 2018, p. 68). O aramaico é uma língua muito parecida com o hebraico - tendo inclusive as mesmas consoantes em seus alfabetos. Ambos são derivações e adaptações do alfabeto fenício, acrescentando mais sons que esse primeiro alfabeto. O aramaico foi usado pelas tribos nômades que invadiram aMesopotâmia e a Síria no decorrer do segundo e do pri- meiro milênio a.C., que, com o tempo, intermediaram o comércio entre a Mesopotâmia, a Ásia Menor e a costa mediterrânea. Dessa forma, funcionava como língua comercial (CATENASSI, 2018, p. 69-70). Nosso autor continua: A partir do exílio da babilônia, os judeus falavam essa língua junto com o hebraico e, depois do exílio, o aramaico tornou-se a língua cotidiana de fala, ao passo que o hebraico era reservado à literatura sagrada e à liturgia, típico do mundo sinagogal (CATENASSI, 2018, p. 70). Partes do livro de Esdras refletem a documentação persa e são escritas no aramaico oficial: Esd 4,8-6,18). Algumas passagens do Antigo Testamento aparecem, sem explicação aparente, em dialetos aramaicos que surgiram após a dominação grega (século IV a.C.): Jr 10,11 e Dn 2,4b-7,28. Testemunhos eclesiásticos antigos de Eusébio de Cesareia afirmam que o Evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico ou hebraico (CATENASSI, 2018, p. 70). 9UNIDADE I A Palavra Escrita A terceira língua em que a Bíblia foi escrita é o grego, que difere do modelo dos clássicos gregos, refletindo uma forma popularmente falada e escrita na bacia oriental do Mediterrâneo a partir de Alexandre Magno (século IV a.C. - conhecido como a koiné. Explica Catenassi: As conquistas de Alexandre levavam não só a dominação política sobre as regiões submetidas ao Império, como também a ampla disseminação da cultura grega, em um processo chamado de helenização. Com isso, a língua grega também foi sendo assimilada pelas colônias; no Novo Testamento, era certamente uma “língua universal” das grandes cidades, que conectava o mundo do Antigo Oriente e a Europa. Nos centros urbanos do Novo Testamento, o povo falava o heraico nas sinagogas, o aramaico em casa e o grego no comércio (CATENASSI, 2018, p. 70). No Novo Testamento, os textos que chegaram até nós foram todos escritos em grego. Porém, também textos sagrados do Antigo Testamento foram produzidos nesta língua, provavelmente por sua origem em ambientes de fora da Palestina - é o caso de Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Baruc e Sabedoria. Os livros de Daniel e Ester contêm algumas seções em grego. O livro do Eclesiástico chegou a nós somente por sua tradução grega, mas originalmente estava escrito em hebraico. Pode ser que o mesmo tenha acontecido com alguns dos outros livros em grego citados anteriormente. Abordaremos esse assunto novamente em nosso estudo. 10UNIDADE I A Palavra Escrita 2. CRESCENTE FÉRTIL: ONDE TUDO COMEÇOU A geografia bíblica é uma ciência de suma importância para conhecermos a Bíblia pois, a partir do “pano de fundo” geográfico, vamos percebendo melhor seu processo de formação. O tema geografia bíblica está sempre sendo aprimorado - e as novas descobertas e ferramentas de análise contribuem para o aprimoramento dessa ciência. Na primeira fase da formação da Bíblia, temos um arco que pode ser chamado de Meia-Lua Fértil ou Crescente Fértil, que circunscreve as regiões do Egito (com o rio Nilo), da Palestina (como um corredor de passagem entre o Ocidente e o Oriente) e do Oriente (a Assíria, a Babilônia, a Pérsia, especialmente a região entre os rios Tigre e Eufrates). Para percorrer o caminho entre o Egito e a Mesopotâmia era obrigatório passar pela Palestina, quer no caminho de ida ou mesmo no caminho de volta. O deserto da Arábia era praticamente intransponível com os recursos e meios da época e, por isso, o caminho era sempre pela costa ocidental da Palestina e depois a travessia das montanhas em direção à Mesopotâmia e vice-versa. A “Meia-Lua Fértil” abrange todo o mundo antigo da Bíblia. O povo de Israel, nos seus primórdios, possui uma história que se relaciona com os povos vizinhos e antecessores dele. As dificuldades de locomoção eram grandes, os recursos de viagem muito parcos e a segurança das caravanas estava sempre ameaçada. Desta forma, as viagens se limitavam ao caminho que, geração após geração, costumava-se fazer. 11UNIDADE I A Palavra Escrita Carlos Frederico descreve bem esse ambiente: A “Meia-Lua Fértil” era o caminho destes povos nômades ou seminômades entre o Egito e a Mesopotâmia, compreendendo também a Pérsia. Nesta região, os impérios se sucediam nas conquistas, no domínio e na influência de uma cultura sobre a outra ao longo dos séculos. Por outro lado, antes mesmo de o ser humano começar a cultivar a terra, o Egito e a Mesopotâmia se constituíam em celeiros naturais, quer naquilo que a própria natureza oferecia através da fertilidade do solo, quer através dos animais e peixes que viviam nos rios e lagos formados pelo Nilo (Egito) e Tigre e Eufrates (Mesopotâmia) (SCHLAEPFER, 2019, p. 15). É dentro dessa circunscrição geográfica que encontramos os primeiros relatos da criação, do dilúvio, das histórias de personagens importantes, de heróis invencíveis e da presença da divindade como aliada às situações humanas, particularmente quanto ao sofrimento e à dor (cf. Gn 1-11). A caminhada dos patriarcas bíblicos também está dentro desse quadro: Nacor, pai de Taré, vivia na Mesopotâmia (Gn 11,24). Taré se tornou o pai de Abraão e um dia decidiu tomar o caminho para Canaã, mas ao chegar em Harã, estabeleceu-se ali (Gn 11,31). Abraão, casado com Sara, recebeu uma visão de Deus que lhe pediu para ir para Canaã, com sua mulher e seus servos, aos setenta e cinco anos de idade (Gn 12,1-9). Ao chegar a Canaã, houve uma grande fome e, então, Abraão teve que ir até o Egito para procurar alimentos e sobrevivência (Gn 12,10). Mais tarde, são os descendentes de Abraão que retornam ao Egito para providenciar víveres com a família de Jacó e seus filhos (Gn 42-50). No Egito inicia-se uma nova etapa do povo da Bíblia com o êxodo (Ex3, 1ss). 12UNIDADE I A Palavra Escrita 3. OS LIVROS DA BÍBLIA A Bíblia pode ser descrita como a coleção de escritos reconhecidos como inspirados; frequentemente, essa coleção também é chamada de Escrituras, Escritura Sagrada, os Livros Sagrados e, especialmente, o Testamento. A palavra “Bíblia” veio até nós do grego através do latim. A expressão grega ta biblia (“os livros”); no latim tardio, a palavra tomada por empréstimo bíblia (plural neutro em grego) foi considerada como um substantivo latino, feminino, singular, significando “o livro”. Por isso, para nós, a Bíblia é o Livro por excelência (HARRINGTON, 1985, p. 09). Embora haja um sentido verdadeiro em que a Bíblia pode ser considerada como uma grande obra – a obra de um divino Autor – contudo, do ponto de vista humano, ela não é um livro; não é mesmo o livro; é uma biblioteca ou, melhor ainda, é a literatura de um povo, o povo escolhido, o povo de Deus. Esta é uma observação importante, um fato que deve ser aceito de pronto, se quisermos ter uma compreensão adequada da Bíblia. Observamos que a Escritura está dividida em duas partes: falamos do Antigo Testamento e do Novo Testamento. A palavra “testamento” é uma tradução aproximada do grego diatheke; indica uma característica fundamental da revelação, isto é, o pacto ou aliança que Deus contraiu com um povo, a quem ele tinha escolhido, o povo de Israel. Essa aliança (berith em hebraico), que foi renovada mais uma vez, era também um contrato, visto que o povo também, por seu lado, aceitou certas condições, especialmente, a obrigação de ser fiel a ele, o único Deus verdadeiro. O Antigo Testamento é a história desse povo à luz do Pacto, história de grande infidelidade de sua parte – trazendo, inevitavelmente, merecido castigo em sua sucessão – e de constante fidelidade da parte de Deus (HARRINGTON, 1985, p. 10). 13UNIDADE I A Palavra Escrita O propósito de Deus, isto é, a redenção da humanidade, devia ser alcançado pelo envio de seu Filho ao mundo. A vinda do Filho de Deus naturalmente marcou o começo de uma nova era. Deus contraiu uma nova e final aliança, selada com o sangue de Cristo, com um novo povo – contudo,descendente diretamente do antigo – a Igreja. O Novo Testamento relata o cumprimento do plano de Deus. Contudo, esse plano estava ali desde o começo, pois os Testamentos, embora distintos, estão estreitamente ligados. O Antigo Testamento conduz e é a preparação, a preparação de Deus, para o Novo. Na verdade, o Antigo Testamento só pode ser totalmente compreendido à luz do seu cumprimento, que é o Novo Testamento (HARRINGTON, 1985, p. 10). 3.1 Estrutura da Bíblia Os judeus, muito sabidamente, fizeram uma divisão flexível de sua Bíblia; eles falavam da Lei, dos Profetas e dos (outros) escritos. A Lei, na avaliação deles tinha o lugar de maior destaque, consistia dos cinco livros de Moisés, o Pentateuco. Entre os profetas, eles catalogavam não apenas os livros que nos classificamos como proféticos, mas também Josué, Juízes, Samuel e Reis, chamados por eles de Profetas Anteriores. Significativamente, não colocavam Daniel entre os Profetas (como fazemos), mas o punham na terceira divisão, os Escritos, que agrupavam os livros restantes. A divisão hebraica tem muito a recomendá-la, especialmente o fato de que (isto é particularmente verdadeiro com respeito aos Escritos) não procura ajustar os vários livros dentro de predeterminadas categorias. Podemos indicá-la assim: QUADRO 1 - ESTRUTURA DA BÍBLIA HEBRAICA Fonte: (HARRINGTON, 1985, p. 11). Desde o século XIII, os católicos dividem o Antigo Testamento em livros históricos, didáticos e proféticos. A divisão fornece uma boa indicação do caráter geral dos diferentes livros; mas não deve ser supervalorizada, porque, em certos casos, pode ser bem equivocada. Contudo, será útil dar uma lista dos livros bíblicos de acordo com essa divisão. A Lei (torah) O Pentateuco Os Profetas (nebiim) Anteriores: Josué a Reis Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os 12 profetas menores. Os Escritos (Kethubim) 1) Salmos, Provérbios, Jó – os “grandes” escritos. 2) Cânticos dos Cânticos, Rute, Lamentações; Eclesiastes 3) Daniel, Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas 14UNIDADE I A Palavra Escrita QUADRO 2 - ESTRUTURA DO ANTIGO TESTAMENTO FEITA PELOS CRISTÃOS NO SÉCULO XIII Fonte: (HARRINGTON, 1985, p. 11). Nas versões usadas pela Igreja Católica, muitos desses nomes comumente são grafados de modo diferente, e o mesmo acontece com respeito à maioria de outros nomes próprios. A razão disto é simples. Os nomes próprios são baseados na Vulgata, que, por sua vez, adotou as formas gregas dos nomes como eles ocorrem na versão do Antigo Testamento conhecida como Setenta (Septuaginta). Nessa matéria, a conformidade seria muito bem recebida, e há um crescente movimento entre os católicos para aceitar as formas hebraicas. O Novo Testamento é, algumas vezes, dividido com base no modelo do Antigo, em livros históricos, didáticos e proféticos. QUADRO 3 - ESTRUTURA DO NOVO TESTAMENTO Fonte: (HARRINGTON, 1985, p. 12). Históricos O Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio) O Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio); Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester, 1 e 2 Macabeus. Didáticos (e poéticos) Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes (Coélet), Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico (Sirácida). Proféticos Quatro profetas maiores: Isaías, Jeremias (mais Lamentações e Baruc), Ezequiel, Daniel. Doze profetas menores: Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. Históricos Os quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos. Didáticos Epístolas de São Paulo: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filemon; a Epístola aos Hebreus; as Epístolas Católicas: Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2 e 3 João; Judas. Profético O Apocalipse. 15UNIDADE I A Palavra Escrita 4. A FORMAÇÃO DA BÍBLIA 4.1 O Antigo Testamento A formação do Antigo Testamento foi um longo processo. A história sagrada começa com a escolha de Abraão feita por Deus em alguma data durante o século XIX a.C; e as origens do Antigo Testamento, as tradições formadas em torno dos patriarcas, remontam, em germe, a Abraão, o homem das promessas divinas, e a seus descendentes imediatos. Contudo, foi com Moisés, o líder natural e o legislador, quem, no século XIII, de uma variegada multidão de refugiados forjou uma nação, iniciou um poderoso movimento religioso e deu o impulso para a grande obra literária que é a dádiva de Israel – e, em última análise, de Deus – à humanidade (HARRINGTON, 1985, p. 13). O Pentateuco traz a marca de Moisés, mas a obra, como nós a conhecemos, recebeu sua forma final muitos séculos depois de Moisés: no século VI ou, mais provavelmente, no século V a.C. A literatura profética teve início com Amós e Oséias no século VIII e foi completada com Joel e Zacarias 9-14 no século IV a.C. Os livros históricos se estendem de Josué (baseados em tradições que remontam ao século XIII a.C.) a 1 Macabeus, escrito por volta do começo do século I a.C. O século VI a.C., que viu a forma final dos Provérbios e o aparecimento de Jó, foi a época áurea da literatura sapiencial, mas o movimento tinha começado sob Salomão no século X a.C., enquanto o livro da Sabedoria surgiu mal começava a metade do século antes de Cristo. Isso é suficiente – mesmo quando nada tenha sido dito da gênese complexa de cada livro – para assinalar que a formação do Antigo Testamento foi lenta e complexa. 16UNIDADE I A Palavra Escrita Devemos estar conscientes de que a maior parte dos livros do Antigo Testamento é obra de muitas mãos, obra que se desenvolveu através de um longo período, talvez séculos. Todos aqueles que colaboraram na produção de cada livro, quer tenham escrito a substância dele, quer tenham simplesmente acrescentado alguns detalhes, foram inspirados. A maioria deles não tinha consciência de estar sendo movidos por Deus; daqui em diante, nós também consideraremos apenas o lado humano da Bíblia e a consideraremos como um empreendimento coletivo, a obra de todo um povo que depositou na Bíblia, através dos séculos, os tesouros de sua tradição. Ela é a literatura de um povo, entrelaçada na história desse povo. Esboçaremos essa atividade literária desde os seus começos e a colocaremos contra o seu fundo; desta maneira, obteremos uma visão do Antigo Testamento que facilitará grandemente a nossa compreensão dele (HARRINGTON, 1985, p. 13). Muito do Antigo Testamento está baseado na tradição oral. A parte que vem no início de nossa Bíblia – do Pentateuco a Samuel – se baseia em muitas tradições orais centradas principalmente em torno dos patriarcas, Moisés, Josué, os Juízes, Samuel, Davi e, posteriormente, numa seção dos Reis, Elias e Eliseu. Essas tradições, mesmo antes que fossem colocadas na forma escrita, formavam uma verdadeira literatura. “Literatura” é, primariamente, uma forma de arte; em certo sentido, é acidental que a maior parte da literatura tenha recebido a forma escrita, porque se trata principalmente de palavras e de linguagem (quer escritas quer não). Embora os livros bíblicos, como os conhecemos, tenham se formado numa data relativamente tardia, isso assinala apenas o registro por escrito das tradições que tinham começado, e em muitos casos tinha alcançado completo desenvolvimento, muitos séculos antes. Frequentemente, a data de um livro bíblico não é indicação da data do material contido no livro; e, quando falamos de “tradições”, não excluímos a possibilidade – na verdade, a certeza – de que muitas delas podem ter sido redigidas bem cedo. De fato, a atividade literária tardia em Israel estava relacionada, em larga medida, com a reedição de antigos escritos. Então, não ignorarmos ou subestimamos, de maneira alguma, a contribuição dos séculos anteriores, quando estabelecemos o começo da literatura bíblica, estritamente compreendida, no reinado de Salomão (HARRINGTON,1985, p. 14). Em face da agressão filisteia, que, na metade do século XI tinha derrotado a anfictionia israelita (isto é, a confederação dos doze clãs unidos em aliança com Iahweh), Israel fez a sua primeira proposta para organizar-se como monarquia. A despeito da promessa inicial, Saul fracassou, mas a ideia da monarquia não foi abandonada. Foi feito um novo começo com Davi, que teve êxito em estabelecer um reino e mesmo um modesto império; tal situação foi mantida e explorada por seu filho, Salomão. 17UNIDADE I A Palavra Escrita A fim de conduzir a administração do reino e império, surgiu uma classe de escribas, homens cultos. Os anais reais foram guardados e os assuntos do Estado registrados e arquivados. Esse expediente forneceu a matéria-prima para os escritos de natureza histórica. Muito cedo, no tranquilo reinado de Salomão (cerca de 970-931 a.C.) um escritor de dotes excepcionais produziu a primeira obra do Antigo Testamento, a história da corte de Davi: 2Sm 9-20 e 1Rs 1-2. Um escritor contemporâneo, de não menor capacidade literária e dotado de uma mente mais aguda, operando antigas tradições, escreveu uma teologia da história que forma um dos quatro principais fios do Pentateuco. Davi (cerca de 1010-970 a.C), cuja habilidade poética é abundantemente testemunhada, foi o autor de alguns dos Salmos. Estes foram o núcleo do Saltério. A obra toda, que recebeu dele o seu impulso original, foi tradicionalmente atribuída a ele. Quase da mesma maneira, a literatura sapiencial, que se desenvolveu nos séculos seguintes, foi atribuída a Salomão, o proverbial homem sábio, que começara o movimento entre os hebreus ou, pelo menos, forneceu a atmosfera para o seu início. Depois da morte de Salomão, o reino, unido por Davi, dividiu-se e Israel (ou o Reino do Norte) e Judá, dali em diante, seguiram rumos separados. Uma cisma religiosa seguiu a divisão política, e só Judá permaneceu fiel, não apenas à dinastia de Davi, mas também a uma forma mais pura de religião autêntica. Em Israel, um gole de estado seguiu-se a outro, e a adoração de Lahweh – nos santuários cismáticos de Betel e Dã – foi muito afetada por influências estrangeiras. O livro dos Reis nos dá a história religiosa paralela dos dois reinos. Foi em Israel que Elias e Eliseu, os defensores de Lahweh, apareceram; em torno deles, desenvolveram-se as tradições que encontramos em 1RS 17-2Rs 1 (Elias) e em 2Rs 2-13 (Eliseu). Foi em Israel também, durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.) que os primeiros dos assim chamados profetas “escritores”, Amós e Oséias, levaram a cabo sua missão, ainda que Amós não fosse judaíta. Por volta da mesma época, outro fio da tradição do Pentateuco, paralelo à tradição javista que se desenvolveu em Judá, tomou forma definida. Essa tradição do norte – em sua forma final obra do Eloísta, como agora nomeamos esse autor – confrontada com os abusos na adoração de Lahweh correntes em Israel, foi compreensivelmente mais conservadora que a outra, colocando como seu ideal a religião do êxodo e do deserto. Logo depois de Amós e Oséias, os profetas Isaías e Miquéias surgiram em Judá. Contudo, apenas a primeira parte do livro de Isaías (isto é, os capítulos 1-39) – e não ele todo – pode ser atribuída a esse grande profeta do século VIII. O próprio Isaías nos fala acerca dos discípulos que se reuniram em torno de si (8,16). Esse é que publicaram as profecias dele; os escritores inspirados que, mais tarde, fizeram acréscimos à obra de seu mestre vieram daquela mesma escola, que continuou através dos séculos (HARRINGTON, 1985, p. 15). 18UNIDADE I A Palavra Escrita Entrementes, o terrível flagelo da Assíria tinha começado a fazer-se sentir e os dias do Reino do Norte estavam contados. Samaria, sua capital, sucumbiu diante de Sar- gão II em 721 a.C.; a população da terra, de acordo com a política assíria, foi deportada; e Israel, como uma entidade separada, desapareceu da história. Antes da tragédia final, alguns refugiados, homens religiosos que tinha interpretado a situação, fugiram para Judá, trazendo consigo suas tradições sagradas. Como resultado disso, sob Ezequias (716-687 a.C.), foram combinados os dois mais antigos fios do Pentateuco (as tradições do Javista e do Eloísta). Outra herança do norte, levada para Jerusalém na mesma época, foi a parte legislativa do Deuteronômio (o código deuteronômico, Dt 12-26). Este mais tarde iria ter um efeito poderoso e de longo alcance. O grande poder que tinha destruído Israel ameaçava Judá também, mas este, graças em grande medida aos esforços de Isaías, conseguiu sobreviver. Um século mais tarde, a Assíria, embora aparentemente em seu apogeu, sucumbiu e desapareceu com dramática rapidez. No curto período que cobriu o declínio da Assíria, antes que seu suces- sor, o império neo-babilônico pudesse afirmar-se, a Judá foi concedida uma breve trégua e o jovem e piedoso rei, Josias (640-609 a.C.), pode começar uma reforma religiosa. Uma das primeiras obras a serem empreendidas foi a restauração do Templo – que tinha sido melancolicamente negligenciada – e durante o trabalho de renovação o “livro da Lei” foi descoberto (2Rs 22,8-10). Tratava-se do código deuteronômico que tinha sido levado para Jerusalém pelos refugiados de Israel e eventualmente esquecido. Providencialmente vindo agora à luz outra vez, ele se tornou a constituição da reforma e foi publicado na estrutura de um discurso de Moisés; essa primeira edição corresponde aos capítulos 5-28 do nosso Deuteronômio. Mais tarde, ela foi reeditada durante o Exílio, quando os outros discursos de Moisés foram acrescentados, um no começo e o outro no fim (HARRINGTON, 1985, p. 16). O Deuteronômio (ou, mais precisamente, a primeira edição dele) deu o impulso para uma obra literária muito importante. A perspectiva deuteronômica era profundamente religiosa e notável em seu singular objetivo: a nação permanecia ou caía respectivamente por sua fidelidade ou infidelidade a Lahweh e à sua Lei. A história do Povo Escolhido foi medida por esse padrão e o resultado forneceu a resposta a um embaraçante problema. O problema era este: de um lado, estavam as promessas divinas, que não podiam falhar, e, de outro lado, uma catástrofe após a outra tinham sucedido à nação – Israel tinha desaparecido e Judá mal tinha sobrevivido. Os deuteronomistas (como podemos convencionalmente designá-los) viram muito claramente que todos aqueles males tinham sobrevindo a eles, porque o povo tinha sido constantemente infiel ao seu Deus; esta foi a lição evidente que tiraram de sua história. 19UNIDADE I A Palavra Escrita Esses homens começaram a editar as mais antigas tradições históricas, no processo de dar àquela história a especial perspectiva religiosa deles. Contudo, eles tiveram o cuidado de não fazer violência ao material, atingindo o seu objetivo ou por meio de modestas inserções ou por fornecer uma estrutura característica. Por exemplo, no Livro dos Juízes, o ciclo de infidelidade, punição, arrependimento e libertação, no qual a história de cada um dos grandes Juízes é colocada, é obra desses editores. Durante o reinado de Josias, os livros de Josué-Juízes-Samuel-Reis foram editados, com o Deuteronômio (capítulos 5-28) como introdução. 2Rs e Dt foram completados durante o Exílio (587-538 a.C.) e, no começo desse período, a história de Josué-Reis foi editada pela segunda (e última) vez. Os profetas Sofonias e Naum surgiram durante o reinado de Josias; Habacuc surgiu um pouco mais tarde que Naum: ambos foram contemporâneos de Jeremias (HARRINGTON, 1985, p. 17). Depois da morte prematura de Josias (609 a.C.), o Reino de Judá caminhou rapidamente para a destruição; seus últimos e trágicos anos estão refletidos na vida e pessoa de Jeremias. A pregação deste grande profeta não foi considerada – exceto na medida em que ele foi perseguido por causa dela – mas, depois da sua morte, ela exerceuuma profunda influência. Sua mensagem foi escrita e publicada por seu fiel discípulo, Baruc. Em 587 a.C., Jerusalém caiu diante de Nabucodonosor, como Jeremias tinha enfaticamente declarado, e seus habitantes foram deportados para a Babilônia. Isto deve ter parecido o fim, mas no insondável desígnio de Deus o Exílio devia ser o cadinho no qual a religião de Lahweh seria purificada de toda a escória; ele marca, também, um momento decisivo na formação da Bíblia. Lado a lado com o movimento deuteronômico, havia outro, do qual a Lei de Santidade (Lv 17-26) é representante. Esse movimento foi inspirado pela perspectiva da classe sacerdotal, que insistia na santidade de Lahweh e que pintava a nação como um povo sacerdotal, cuja vida toda era uma liturgia. Ezequiel, que tinha sido transportado para a Babilônia com outros judaítas, em algum tempo antes da queda de Jerusalém, provavelmente em 598 a.C., foi um produto dessa escola, ao passo que seu contemporâneo, Jeremias, estava na linha do Deuteronômio. Durante o exílio, os sacerdotes, agora separados do Templo e de seu culto, voltaram-se para as antigas tradições, especialmente para a legislação mosaica, e as editaram e apresentaram com um ponto claro de vista cúltico. Quase toda a legislação encontrada de Gênesis a Números pertence a essa tradição, embora inclua muita narrativa além dela; e, depois do Exílio, foram os sacerdotes que deram ao Pentateuco a sua forma atual (HARRINGTON, 1985, p. 18). Nem todos os judaítas tinham sido deportados; uns poucos permaneceram e, de certo tempo em tempo, eles iam chorar diante das ruínas do Templo. 20UNIDADE I A Palavra Escrita Foi nessas circunstâncias que se formou o livro das Lamentações. É universalmen- te admitido que esse livro não é obra de Jeremias, embora o escrito seja atribuído a ele pela Vulgata – mas não na Bíblia Hebraica. Baruc, colocado imediatamente após Lamentações na Vulgata, é de data incerta. Em Babilônia os exilados foram confortados por um profeta anônimo, um tardio, mas autêntico discípulo de Isaías; sua obra, contida em Is 40-55, foi composta nos anos anteriores a 538 a.C. (quando Ciro, o Grande, tendo conquistado Babilônia, permitiu que os judeus retornassem à Palestina). Esses capítulos marcam um clímax teológico (e poético) do Antigo Testamento. Logo depois do retorno a Jerusalém, os capítulos 55-66 foram acrescentados a Isaías por outros membros da escola isaiana. Não era isso o fim, porque, no século V, os capítulos 34-35 e 24-25, finalmente, completaram a obra que tinha começado no século VIII. Contudo, com o Segundo Isaías (como nomeamos o desconhecido autor de Is 40-55), a profecia tinha atingido o seu clímax; pouco a pouco, ela declinaria, para desaparecer no século IV, até o tempo do cumprimento. Os primeiros exilados retornaram da Babilônia para Jerusalém em 538 a.C.; final- mente, o Templo e a cidade foram reconstruídos. A obra de restauração foi encorajada e apoiada pelos profetas Ageu e Zacarias (apenas Zc 1-8 pertencem a este período). No começo deste período - o mais tardar no começo do século V – a Torah foi finalmente completada. O Deuteronômio, porque completava a história de Moisés, foi separada da grande obra histórica (Josué-Reis) e unido aos primeiros quatro livros da Bíblia. Assim se formou o Pentateuco. O pequeno Livro de Rute, provavelmente foi escrito logo depois do retorno (embora possa ter aparecido, possivelmente, antes do Exílio). Os últimos profetas apareceram nos séculos V e IV: o autor ou autores de Is 34-35; 24-27; Malaquias; Abdias; Joel e o autor de Zc 9-14 (HARRINGTON, 1985, p. 19). Nesse tempo também, especialmente no século V, floresceu outro tipo de literatura: a literatura sapiencial. Contudo, não era absolutamente novo, porque já sob Salomão uma perspectiva prática encontrou expressão em ditos e máximas de orientação para o dia a dia. Pelo termo ‘sabedoria’ deve-se entender não apenas um conhecimento enciclopédico de todas as coisas sob o sol, mas também a concisa definição de todas as formas de conduta humana, particularmente a arte de ser perfeito cavalheiro. Essa arte, tão indispensável para se atingir uma carreira bem-sucedida, tinha sido praticada durante séculos no Egito. Em Israel, contudo, essa sabedoria prática era sempre inspirada, pelo menos em certa medida, pela fé em Lahweh, tendência muito marcante depois do Exílio. No século V, o livro dos Provérbios (parte do qual remontam ao tempo de Salomão) tomou forma final e, um pouco depois, surgiu a obra-prima poética da Bíblia: Jó. 21UNIDADE I A Palavra Escrita O livro de Jó não é absolutamente a única obra poética da Bíblia. Em primeiro lugar, há os Salmos: sem dúvida, Davi compôs alguns deles e o seu número continuou a aumentar ininterruptamente. A construção do Segundo Templo (depois da volta do Exílio) e o restabelecimento do culto do Templo deram um novo impulso à composição desses poemas litúrgicos e à adaptação dos antigos Salmos. Pelo fim do século V, é muito provável que o Saltério, como o conhecemos, estivesse completo. Naquele mesmo século, apareceu o Cântico dos Cânticos. A redação da história não terminou como Exílio, e a restauração, dominada pela figura de Esdras e Neemias, teve também seu historiador. Os livros de 1, 2 Crônicas, Esdras e Neemias, (quatro livros em nossa Bíblia) realmente formam um único volume, obra de um único autor, a quem convencionamos chamar de Cronista. Na primeira parte de seu escrito (1, 2Cr), o autor segue, em larga medida, os livros de Samuel e Reis. Na segunda parte, ele depende das memórias de Esdras e Neemias e de outros documentos do mesmo período. As diferenças entre 1, 2 Cr e Sm-Rs são notáveis, porque, enquanto as últimas constituem uma história religiosa, o Cronista escreveu uma teologia da história. Como os deuteronomistas, ele extraiu uma mensagem religiosa da história de seu povo; mas ele usa o material muito mais livremente do que aqueles. ele escreveu para os seus contemporâneos e mostrou-lhes, uma vez mais, que a existência da nação dependia de sua fidelidade ao seu Deus; ele teria seu povo como uma comunidade santa na qual as promessas feitas a Davi podiam, por fim, ser cumpridas. A obra foi escrita no século IV, antes do advento de Alexandre, o Grande. Um pouco mais cedo, nos dias de Esdras, e em oposição a uma estreita perspectiva nacionalista, o autor de Jonas, um brilhante escritor satírico, acentuou a universal providência de Deus. E, por volta do mesmo tempo, o livro de Tobias, em forma não diferente de uma novela moderna, exaltou a providência diária de Deus (HARRINGTON, 1985, p. 20). Em 333 a.C., com a conquista da Síria e Palestina por Alexandre, começou, em Judá, o período grego. Para os judeus ou pelo menos para aqueles que eram fiéis a suas tradições, isso significava não a assimilação da cultura grega, como ocorreu em outros tempos, mas resistência ao modo grego de vida. Uma indicação disso talvez possa ser vista no surgimento de uma forma literária tipicamente hebraica, o midrash1 . Essa forma já havia influenciado a obra do Cronista, mas é no começo do período grego que encontramos o primeiro midrash bíblico desenvolvido. Nesse período também (por volta da metade do século III), podemos datar o Qoheleth (Eclesiastes) e, algum tempo depois, por volta de 180 a.C., outro escritor de literatura sapiencial Ben Sirac, escreveu o Sirácida (Eclesiástico). 1Midrash é um método de exegese que se desenvolveu tardiamente no Judaísmo. 22UNIDADE I A Palavra Escrita Logo os judeus tiveram de enfrentar uma grande crise. Quando Antíoco (175-163 a.C.) foi elevado ao trono da Síria, determinou que seus súditos judeus fossem forçados a adotar o modo grego de vida. A consequente perseguição religiosa provocou a revolta dos Macabeus, que começou em 167 a.C. Quase no fim da primeira parte da luta (167-164 a.C.), o autor de Daniel publicou sua obra a fim deencorajar seus compatriotas. A primeira parte da obra (Dn 1-6) é um midraxe; e em Dn 7-12 encontramos um exemplo perfeito de uma forma literária judaica então em voga: o apocalipse. Daniel apareceu antes de 164 a.C. (numa data mais tardia, o livro foi suplementado pela adição de 3,24-90 e os capítulos 13-14). O livro de Esdras foi escrito um pouco depois de Daniel. As últimas obras históricas da Bíblia apreendem o espírito dos agitados tempos de Macabeus. Por volta do ano 100 a.C., 1 Macabeus foi publicado. 2 Macabeus composto em grego e adaptado da obra de um certo Jason de Cirene, surgiu um pouco mais cedo, por volta de 120 a.C. Ele cobre muito do mesmo terreno de 1 Mc e, como este, é um escrito de natureza histórica, mas num estilo de oratória e tende a usar detalhes com certa liberdade. O livro de Judite, um midraxe, apareceu no começo do século I. Se os judeus palestinenses resistiram efetivamente à helenização, alguns judeus do importante centro de Alexandria assimilaram com sucesso o pensamento grego, sem sacrificar a herança judaica. A última obra do Antigo Testamento, o livro da Sabedoria, foi escrita por um desses. Contudo, embora seja um produto da escola alexandrina e tenha sido escrito em grego, a influência grega não deveria ser exagerada; seu autor não foi filósofo, mas um autêntico “homem sábio” de Israel (HARRINGTON, 1985, p. 21). 4.2 O Novo Testamento O Novo Testamento difere do Antigo em muitos aspectos importantes, mas, como o Antigo Testamento, está estreitamente ligado à vida e desenvolvimento de um povo, o novo povo de Deus: a Igreja Primitiva. Semelhantemente, embora todo o Novo Testamento tenha se formado dentro do século I da era cristã, contudo, sua gênese também é complexa. E exatamente como os judeus consideram os cinco livros de Moisés, a Lei, como a primeira e mais importante parte do Antigo Testamento, também os cristãos consideram os quatro Evangelhos como o centro do Novo Testamento. Eles têm a sua origem na pregação apostólica, mas os primeiros três Evangelhos, como nós os conhecemos, não apareceram antes de uma geração ou mais depois da ressurreição: Marcos é datado de 64-65 d.C. e Mateus e Lucas de um tempo imediatamente antes (ou, talvez, logo depois) de 70 d.C. - data da destruição de Jerusalém pelos romanos. Lucas escreveu os Atos dos Apóstolos logo depois de seu Evangelho (HARRINGTON, 1985, p. 22). 23UNIDADE I A Palavra Escrita No ínterim, entre os anos 51 e 67, Paulo tinha escrito suas epístolas, ou cartas, a várias igrejas, frequentemente tratando de problemas especiais. Nessas epístolas, encontramos o começo e o primeiro desenvolvimento de nossa teologia especificamente cristã; lendo nas entrelinhas, aprendemos acerca da vida cristã e das dificuldades que a Igreja primitiva enfrentou. A epístola aos Hebreus foi escrita um pouco antes de 70 d.C. por um discípulo de Paulo. Tiago apareceu no ano 50 d.C. ou, mais provavelmente, em 58 d.C.; Pedro escreveu sua epístola (1Pd) por volta de 64 d.C. Das outras epístolas “católicas” (assim chamadas porque, em geral, elas são endereçadas aos cristãos em geral), Judas e 2 Pd foram escritas na década de 70/80 d.C. e 2, 3 Jo, seguidas por 1Jo, foram escritas na última década do século. O Apocalipse, livro que não é tão misterioso quanto parece, em sua forma final, data de cerca do ano 95 d.C. O século mais cheio de eventos da história tinha finalizado aproximadamente quando o Quarto Evangelho foi publicado. Tudo o que tem sido dito acerca da formação de ambos os Testamentos não é, de forma alguma, irrelevante, mas tem uma dependência prática de nosso estudo da inspiração. Não é sem importância (especialmente no tocante ao Antigo Testamento) o não podermos nomear os autores da maioria dos livros; se o problema fosse simplesmente esse, não nos atrapalharia, porque podemos dizer que o eventual autor – quem quer ele possa ter sido – era inspirado. Contudo, na prática, raramente podemos indicar um único indivíduo como autor de um livro todo. Assinalamos, por exemplo, que Isaías contém material que se estende do século VIII ao século V. nossa noção de inspiração deve ser bastante flexível para se ajustar a essa situação e outras semelhantes. Deve ficar bem claro por ora que o Antigo Testamento é o resultado de um esforço coletivo. O mesmo é proporcionalmente verdadeiro acerca do Novo Testamento, especialmente dos Evangelhos. A obra de um evangelista não era uma responsabilidade privada; na realidade, ele era o último liame de uma cadeia. O Evangelho, construído sobre as obras e palavras de Cristo, existiu primeiro na Igreja; e o evangelista, embora ele próprio diretamente inspirado por Deus, era também o porta-voz de uma Igreja guiada pelo Espírito de Deus. Assim, o Novo Testamento, não menos que o Antigo, testemunha a verdade de que a palavra escrita de Deus, como a sua Palavra Encarnada, veio serenamente até nós, crescendo e desenvolvendo-se até o momento de sua manifestação aos homens. Os escritores sagrados eram movidos pelo Espírito de maneira especial, mas a longa preparação que seus labores coroaram foi parte do plano salvífico de Deus, de sua solicitude por seu Povo Escolhido, o antigo e o novo Israel (HARRINGTON, 1985, p. 23). 24UNIDADE I A Palavra Escrita SAIBA MAIS A diferença entre protestantes e católicos, no que se refere à Bíblia, surgiu no século XVI com a reforma luterana. Lutero, no intuito de garantir um retorno às fontes mais antigas e originais da religião, resolveu substituir a Bíblia cristã em voga, cuja tradução era baseada na versão latina de São Jerônimo, feita no século IV, mais conhecida como Vulgata, pela versão hebraica da Bíblia, considerada por ele mais original e autêntica. A Vulgata tinha como base duas versões: a hebraica e a grega, esta por sua vez, traduzida do hebraico para o grego no século III a.C. Essa famosa tradução ficou conhecida como Septuaginta, assim chamada por ser a Bíblia que a tradição considerou ter sido traduzida por setenta anciãos judeus reunidos em Alexandria. Essa versão grega foi de fato a Bíblia utilizada pelos judeus da diáspora e mais tarde tornou-se a versão que serviu de base para a composição da maior parte dos livros do Antigo Testamento (alguns preferem chamar de Primeiro Testamento, por questões ecumênicas), além de ser a Bíblia usada pelos primeiros cristãos de língua grega. Fonte: LARA, Valter Luiz. A Bíblia e o desafio da interpretação sociológica. São Paulo: Paulus, 2009, p. 26. SAIBA MAIS Nenhum sentimento positivo ou negativo em relação à Bíblia está imune dos históricos mal-entendidos que herdamos da sociedade e da cultura. Um deles é opor Bíblia e ciência e outro é considerá-la simplesmente como objeto de propriedade exclusiva das igrejas. Fonte: O Autor (2022). 25UNIDADE I A Palavra Escrita CONSIDERAÇÕES FINAIS Prezado Acadêmico(a)! Chegamos ao final de nossa primeira unidade. Espero que ela tenha ajudado a apresentar alguns elementos que nos ajudarão a entender mais as Sagradas Escrituras, construindo nossos conhecimentos bíblicos. Foi importante estudar alguns elementos iniciais do mundo bíblico e do processo de estruturação dessa obra que tem despertado tanto interesse e profunda transformação na vida de quem a estuda, independente de qual seja a intenção que tenha ao estudá-la. Mas lembre-se que nunca queremos esgotar o assunto. Mas despertar o interesse e a busca por novos conhecimentos. Espero que você continue animado em nosso estudo. Até a próxima unidade. Grande abraço. 26UNIDADE I A Palavra Escrita MATERIAL COMPLEMENTAR LIVRO Título: Introdução às Sagradas Escrituras Católicas Autor: Cristiane Aleixo Simões. Editora: Contentus. Sinopse: Este livro trata de questões específicas do estudo da Bíblia, seu contexto, geografia do mundo bíblico, formação do seu povo e a experiência de um Deus único. Desenvolve discussões sobre a influência de determinadasculturas, autoria e linguagem dos textos. Reflete também acerca de diferentes questões sobre a tradição, sua importância e papel em diferentes contextos. A obra também promove um pensamento sobre a leitura e releitura bíblica, historicamente e nos dias atuais. FILME/VÍDEO Título: Lutero Ano: 2003. Sinopse: Retrata a vida de Martim Lutero, que desafiou todas as autoridades políticas e religiosas de seu tempo, pois acreditava que algumas atividades praticadas pela Igreja Católica eram imorais. O filme também evidencia conflitos religiosos que permanecem atuais até os dias de hoje. 27 Plano de Estudo: ● Protocanônicos, Deuterocanônicos e Apócrifos; ● A Formação do Cânon Bíblico; ● Dois testamentos e um livro único: a Bíblia; ● O cânon das Escrituras: o sentido de um fato; ● A forma canônica. Objetivos da Aprendizagem: ● Saber o significado do cânon bíblico; ● Entender um pouco de seu processo de formação; ● Conhecer a importância de se ter um cânon no processo de definição das Sagradas Escrituras. UNIDADE II O Cânon das Escrituras Professor Me. Flávio Donizete Batista 28UNIDADE I A Palavra Escrita 28UNIDADE II O Cânon das Escrituras INTRODUÇÃO Olá, Prezado Acadêmico. Olá, Prezada Acadêmica. Vamos dar prosseguimento ao nosso estudo de Introdução às Sagradas Escrituras. Esperamos que sua experiência de aprendizagem esteja sendo válida, de maneira a conhecer um pouco mais da Bíblia e de sua importância no estudo teológico. Nesta unidade, vamos estudar o Cânon Bíblico. Vamos saber sobre seu significado e seu processo de definição. Trata-se de um tema importante, pois é necessário saber quais os critérios usados para chegar à lista de livros que consideramos canônicos hoje, entendendo um pouco como tudo aconteceu. Estudaremos a definição do cânon no Antigo Testamento e no Novo Testamento, mostrando como o processo foi decisivo para que tivéssemos hoje uma coleção de livros que não são considerados quaisquer livros, mas como aqueles que fazer parte de um grupo especial: o de inspirados pelo próprio Deus. Um excelente estudo para todos. Grande abraço. 29UNIDADE I A Palavra Escrita 29UNIDADE II O Cânon das Escrituras 1. PROTOCANÔNICOS, DEUTEROCANÔNICOS E APÓCRIFOS O termo grego kanon significava originalmente uma “vara de medir” e, mais tarde, num sentido derivado, uma “regra” ou “norma”. Desde o século II, recebe o significado de “norma de fé”. A partir do século IV, o adjetivo “canônico” é aplicado aos livros bíblicos, enquanto o termo “cânon” inicia a ser utilizado na Igreja Latina no sentido de catálogo dos livros bíblicos reconhecidos. Portanto, o termo “cânon” aplicado à Bíblia significa primeiramente norma de fé e em sentido derivado o elenco dos livros bíblicos que contêm essa norma de fé (PRIOTTO, 2019, p. 30). Há também o termo canonicidade, que significa que um livro inspirado, destinado à Igreja, foi recebido como tal por ela. Embora todos os livros canônicos sejam inspirados e nenhum livro inspirado exista fora do cânon, contudo, as noções de canonicidade e inspiração não são as mesmas. Os livros são inspirados porque Deus é seu autor; eles são canônicos porque a Igreja os reconheceu e os admitiu como inspirados, pois só a Igreja, por meio da revelação, pode reconhecer o fato sobrenatural da inspiração. O reconhecimento pela Igreja não acrescenta nada à inspiração de um livro, mas reveste o livro de uma autoridade absoluta do ponto de vista da fé e, ao mesmo tempo, é o sinal e garantia da inspiração (HARRINGTON, 1985, p. 51). A determinação dos livros canônicos não aconteceu de maneira fácil e automática, mas exigiu uma longa caminhada e, por vezes, difícil; a terminologia é variada. 30UNIDADE I A Palavra Escrita 30UNIDADE II O Cânon das Escrituras Quando comparamos as versões católicas e protestantes do Antigo Testamento, verificamos que as últimas enumeram 39 livros – como a Bíblia hebraica – enquanto as católicas aceitam 45 livros. Priotto (2019) lembra que alguns livros foram reconhecidos normativos desde o início (por exemplo, os cinco livros do Pentateuco ou os Evangelhos); daí a denominação de “protocanônicos” para os livros bíblicos sempre e sem discussão reconhecidos como normativos. Ao invés, são denominados “deuterocanônicos” os livros bíblicos cuja canonicidade foi objeto de contestação e reconhecida mais tarde. Os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento são sete: Tobias, Judite, Baruc, Sabedoria, Eclesiástico, 1-2 Macabeus; a eles acrescentam-se algumas seções escritas em grego do Livro de Daniel (3,24-90; 13-14) e do livro de Ester (1,1a-r; 3,13a-g; 4,17a-z; 5,1a-f.2a-b; 8,12a-x; 10,3a-k). Os livros deuterocanônicos do Novo Testamento são Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2-3 João, Apocalipse e as perícopes de Mc 16,9-20 e Jo 7,53-8,11 (PRIOTTO, 2019, p. 31). Harrington escreve o seguinte: Os católicos chamam estes livros de deuterocanônicos – uma infeliz desig- nação, visto que parece implicar que eles não têm a mesma autoridade que os outros livros. O que realmente significa é que houve uma certa hesitação acerca de tê-los universalmente aceitos como canônicos, isto é, Escrituras. Por contraste, os livros protocanônicos são aqueles sobre os quais nunca houve dúvidas na Igreja (HARRINGTON, 1985, p. 51). A respeito do cânon do Novo Testamento, houve muita discussão no início da Reforma: Lutero e outros reformadores alemães rejeitaram as cartas de Tiago, de Judas, a Carta aos hebreus e o Apocalipse; outras Igrejas reformadas, embora não os rejeitassem, consideraram os deuterocanônicos do Novo Testamento como livros “de segunda classe”; outras Igrejas ainda não puseram em discussão o cânon do Novo Testamento. No século XVII, os próprios luteranos voltaram ao cânon tradicional do Novo Testamento. No protestantismo hodierno, os deuterocanônicos do Antigo Testamento continuam a ser excluídos do cânon, embora comecem a ser mais apreciados e lidos, e a ser trazidos no fim da Bíblia; os deuterocanônicos do Novo Testamento, porém, são aceitos e trazidos na ordem tradicional (PRIOTTO, 2019, p. 31). Uma palavra sobre os livros apócrifos. O nome apócrifo é aplicado pelos católicos a certos escritos judaicos e cristãos que tiveram a pretensão à autoridade divina, mas que, de fato, não são Escrituras inspiradas. Os apócrifos do Antigo Testamento, produto do judaísmo, são atribuídos a vários patriarcas e profetas e refletem as ideias religiosas e morais do mundo judaico do século II a.C. ao século I d.C. Os apócrifos do Novo Testamento são obras de origem cristã. Atribuídos, em geral, a apóstolos, eles refletem as crenças, doutrinas e tradições de certos círculos, tanto ortodoxos como heréticos dos primeiros séculos da Igreja. 31UNIDADE I A Palavra Escrita 31UNIDADE II O Cânon das Escrituras 2. A FORMAÇÃO DO CÂNON BÍBLICO Vamos percorrer, mesmo que sucintamente, as etapas que historicamente levaram à determinação dos vários livros bíblicos e à sua composição num único livro, a Bíblia. As etapas desse processo são três: a formação do cânon do Antigo Testamento, a formação do cânon do Novo Testamento e a união dos dois cânones numa única escritura. 2.1 A formação do cânon do Antigo Testamento No seio do judaísmo, um dos primeiros atestados da existência de uma “Bíblia”, isto é, de uma coleção de livros sagrados, aparece no prólogo do Eclesiástico (138 a.C.); ali se mencionam a Lei, os Profetas e um terceiro grupo ainda não bem definido (“os outros livros”, “os livros que seguem”) que corresponde, provavelmente, aos Escritos. A versão dos LXX oferece certamente um princípio de seleção, mas num quadro aberto, como é demonstrado pela presença dos sete livros deuterocanônicos (TB, Jt, Br, Sb, Eclo, 1-2 Mc) e dos acréscimos gregos aos livros de Daniel e de Ester; de fato, trata-se de uma tradução ocorrida no curso de dois ou três séculos, atestado só por códices cristãos, com divergências sobre a presença de determinados livros(PRIOTTO, 2019, p. 35). Também a biblioteca de Qumran, mesmo atestando um princípio de seleção, não comporta um cânon fechado, mas mais propriamente o testemunho de uma praxe exegética e litúrgica. Seja como for, embora num quadro fragmentário, falta o Livro de Ester; são, porém, conhecidos alguns livros deuterocanônicos, como a Carta de Jeremias (Br 6), Tobias e Eclesiástico; por fim, estão presentes também livros apócrifos, como Jubileus, Henoc e os Testamentos do Doze Patriarcas, além, naturalmente, dos textos próprios da comunidade. 32UNIDADE I A Palavra Escrita 32UNIDADE II O Cânon das Escrituras Também o testemunho do Novo Testamento, embora importante, não faz referência a um cânon preciso e refere-se essencialmente à Lei e aos Profetas; sobre os Escritos, em Lc 24,44, ao lado da Lei e dos Profetas, sobressai a menção dos Salmos, que corresponde provavelmente ao terceiro grupo dos Escritos. Dos deuterocanônicos são citados Eclesiástico, Sabedoria, 1-2 Macabeus, Tobias, aos quais se acrescentam alguns livros populares como os Salmos de Salomão, 1-2 Esdras, 4 Macabeus, a Assunção de Moisés e Henoc (PRIOTTO, 2019, p. 35-36). Um primeiro testemunho explícito sobre o cânon bíblico aparece no escritor hebreu Flávio Josefo (37-107 d.C.), em sua obra Contra Apionem: “Não existe entre nós uma infinidade de livros discutidos e contraditórios, mas apenas vinte e dois, que abraçam a história de todos os tempos e que são justamente considerados divinos” (PRIOTTO, 2019, p. 36). Se para os cinco livros de Moisés trata-se evidentemente do Pentateuco, para os treze livros dos Profetas e os quatro livros dos Hinos não há especificação alguma; todavia, pelas indicações presentes nos outros escritos de Flávio Josefo, o elenco pode facilmente ser deduzido: os treze livros dos profetas correspondem a Josué, Juízes + Rute, 1-2 Samuel, 1-2 Reis, Isaías, Jeremias + Lamentações, Ezequiel, os doze profetas menores, Jó, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, 1-2 Crônicas; e os quatro Livros dos Hinos correspondem a Salmos, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes. Trata-se de vinte e dois livros, correspondentes às letras do alfabeto hebraico: uma cifra altamente simbólica para definir a plenitude da revelação. Pouco mais tarde, o apócrifo 4Esd 14,18-47 elenca vinte e quatro livros sagrados dos hebreus; trata-se da mesma lista de Flávio Josefo, porque Rute e Lamentações são computados à parte (PRIOTTO, 2019, p. 36). No tempo de Cristo, havia ainda alguma incerteza acerca do cânon e da canonicidade de certos livros. Só foi depois da destruição de Jerusalém (70 d.C.) que um grupo de doutores judeus, que procurava preservar aquilo que restava do passado, se reuniu em Jâmnia, por volta do ano 90 d.C., e aceitaram formalmente o restrito cânon dos fariseus. Por várias razões, incluindo o fato de que a Bíblia grega tinha sido adotada pelos cristãos, certos livros que faziam parte daquela Bíblia (isto é, nossos livros deuterocanônicos) foram rejeitados. A decisão do Sínodo de Jâmnia foi apenas para os judeus – e dali em diante eles aceitaram a lista menor. Ela não podia ser de importância universal, porque agora a sinagoga tinha sido substituída pela Igreja. No tempo da Reforma, os protestantes, desejando fazer traduções diretamente do hebraico, tomaram plena consciência dessa discrepância; eles terminaram por considerar o cânon judaico como o cânon autêntico (HARRINGTON, 1985, p. 54). 33UNIDADE I A Palavra Escrita 33UNIDADE II O Cânon das Escrituras Com a destruição do Templo em 70 d.C. e o consequente desaparecimento da liturgia sacrifical, o judaísmo palestinense configura-se sempre mais como uma religião do Livro, sobretudo, graças à contribuição da corrente farisaica, que, pondo ao centro o livro, salva o judaísmo, tornando-se sua expressão mais significativa; daí os esforços para definir com exatidão as componentes do Livro Sagrado. As discussões concentram-se especialmente sobre o terceiro grupo dos Escritos, em particular sobre a canonicidade de Eclesiastes e do Cântico dos Cânticos, como demonstram as discussões de Jâmnia; também a ordem dos livros é ainda flexível. Trata-se, porém, de um debate que interessa um círculo restrito de especialistas, porque, na realidade, esses livros são largamente difundidos e aceitos pelos fiéis. Embora na ausência de um pronunciamento oficial sobre uma definição propriamente dita do cânon, pode-se afirmar que, com o início do século III d.C., o judaísmo já definiu o próprio cânon, como atesta a afirmação do Talmude (PRIOTTO, 2019, p. 36-37). A Igreja Cristã se desenvolveu no ambiente da Diáspora. Na prática, a Bíblia da Igreja foi a Bíblia grega. Da parte cristã, o acolhimento e o reconhecimento dos livros daquele que já é chamado de Antigo Testamento passa através da mediação da LXX; com efeito, o cristianismo se desenvolve muito cedo, prevalentemente no mundo de língua grega e, por isso, foi natural da parte da Igreja o uso da Bíblia grega, que, como já se viu, contém também os assim chamados livros deuterocanônicos e alguns acréscimos a Daniel e Ester. Com isso, é promovido um cânon mais longo em relação ao da tradição de língua hebraica. Todavia, as razões dessa opção não são simplesmente de ordem linguística, porque a aceitação desses livros permite aos cristãos ligar melhor o Antigo Testamento ao Novo Testamento; a aceitação de livros como Tobias, Judite e 1-2 Macabeus cria uma ponte narrativa entre a história de Israel e o nascimento de Jesus; a recepção de livros recentes, como o Eclesiástico e a Sabedoria, permite afirmar que a revelação não terminará com a reforma de Esdras; por sua vez, a presença de livros escritos originalmente em grego, como 2 Macabeus, Sabedoria e os acréscimos a Daniel e Ester, consentem que o cristianismo primitivo saia do mundo restrito de língua hebraica para o mundo helenista e pagão (PRIOTTO, 2019, p. 37). Na realidade, a aceitação desses livros deuterocanônicos não foi pacífica e imediata, como mostra um debate que se prolonga até quase o século VIII. Se, no Oriente, Orígenes, Atanásio e Cirilo de Jerusalém optam pelo cânon breve dos hebreus, no Ocidente, Agostinho defende valorosamente o cânon longo, contra um Jerônimo defensor da veritas hebraica. 34UNIDADE I A Palavra Escrita 34UNIDADE II O Cânon das Escrituras Se, no Oriente, o Concílio de Laodicéia, na Frígia (360), defende o cânon breve, no Ocidente, os Concílios de Hipona (393) e de Cartago (397 e 419) e a Carta de Inocêncio I a Exupério de Tolosa (405) defendem o cânon longo; mas ainda em 692, o Concílio Quinissexto, em Trullo, testemunha uma certa ambiguidade ratificando ao mesmo tempo os diversos cânones do Concílio de Laodicéia e de Cartago. Somente o Concílio de Florença (1442) e, depois, o de Trento (1546) dissiparam qualquer dúvida, enumerando e definindo solenemente o cânon longo (PRIOTTO, 2019, p. 37-38). Harrington (1985, p. 55) afirma que no Concílio de Laodicéia, o cânon defendido favorece a impressão de que a atitude do Oriente, de um modo geral, era desfavorável aos livros deuterocanônicos; para o Antigo Testamento, ele enumera apenas os livros da Bíblia hebraica. Contudo, deve ser observado que os Padres admitiam que esses livros podiam ser lidos para a edificação do fiel e eram úteis para a instrução dos catecúmenos. Além disso, eles frequentemente expressavam grande estima pelos livros, admitindo-os na adoração litúrgica lado a lado com os outros, e até os citaram com as fórmulas “Está escrito” e “Deus diz nas Escrituras”. A atitude dos Padres Orientais pode ser explicada por dois fatores principais: 1) Na controvérsia com os judeus, a fim de ter uma base comum de argumentação, os Padres se restringiram ao cânon judaico aceito; 2) Os apócrifos judaicos, reivindicando canonicidade, estavam em circulação; assim, todos os livros tinham de ser cuidadosamente examinados, e as credenciais dos livrosdeuterocanônicos não pareciam ser tão convincentes quanto as dos outros (HARRINGTON, 1985, p. 55). Ao aceitar as Escrituras hebraicas, a Igreja primitiva não só aceita os livros deuterocanônicos, mas opta por uma estrutura nova no elenco dos livros; de fato, dissocia os assim chamados Livros Históricos (Js, Jt, 1-2 Sm, 1-2 Rs) dos Livros Proféticos e coloca estes últimos no fim do Antigo Testamento, acentuando assim seu caráter de profecia cristológica e de Introdução ao evento Jesus. Veremos que o mesmo vale para a nova denominação de “Antigo Testamento”, expressão que pressupõe necessariamente o Novo Testamento. 2.2 A Formação do Cânon do Novo Testamento A Igreja cristã possuía, desde o princípio de sua existência, um cânon das Escrituras inspiradas: o Antigo Testamento. Contudo, para a Igreja primitiva, este Antigo Testamento era, em seu sentido mais profundo, profecia de Cristo – um reconhecimento de que, mesmo aqui, a autoridade última era o próprio Cristo. Cristo tinha comissionado os seus apóstolos para proclamar a boa nova e edificar a comunidade cristã e os tinha enchido do poder do Espírito Santo. 35UNIDADE I A Palavra Escrita 35UNIDADE II O Cânon das Escrituras Eles tinham sido testemunhas oculares de sua obra e ouvintes de suas palavras; e a importância deles foi ainda maior nos tempos apostólicos. Portanto, a Igreja primitiva tinha três autoridades: o Antigo Testamento, o Senhor e os Apóstolos. Contudo, a autoridade última, decisiva era Cristo, o Senhor, que falou imediatamente em suas palavras e obras e mediatamente no testemunho de suas testemunhas (HARRINGTON, 1985, p. 55-56). Sobre a formação do cânon, também para o Novo Testamento o processo é longo e complexo. Embora no tempo da atividade de Jesus o cânon da Escritura hebraica não estivesse ainda definido em todo o seu rigor, sua autoridade era indiscutida, como aparece nas expressões “a Lei e os profetas” (Mt 5,17; 7,12; 22,40), “a Escritura” (Mc 12,10; Jo 2,22), “as Escrituras” (Mt 21,42; At 17,2), “as Sagradas Escrituras” (Rm 1,2), “a Lei de Moisés, os profetas e os salmos (Lc, 24,44), “está escrito” (Mt 2,5; Mc 1,2; Lc 2,3). Mas essa autoridade da Escritura hebraica está intimamente conexa com a autoridade da palavra de Jesus; de fato, no seu ministério, Ele oferece uma palavra que se coloca como o próprio cumprimento da Escritura (Mt 5,17), radicalizando-a (Mt 5,21-28) e, ao mesmo tempo, relativizando-a (Mc 10,2-9); essa autoridade das palavras de Jesus aparece particularmente em Paulo (1Cor 7,10-11; 9,14; 11,23-25; 1Ts 4,15; At 20,35). A palavra de Jesus, porém, não é uma palavra autoritária que se acrescenta à precedente da tradição hebraica, mas forma com ela um todo único, definindo-a como autoridade definitiva (PRIOTTO, 2019, p. 38). No começo, as palavras do Senhor e o relato de seus feitos eram repetidos e relatados oralmente, mas logo eles começaram a ser redigidos. Em sua obra missionária, os apóstolos tiveram a necessidade de escrever a certas comunidades. Pelo menos alguns desses escritos eram trocados entre as igrejas e logo ganharam a mesma autoridade dos escritos do Antigo Testamento. Contudo, é compreensível que tenha decorrido algum tempo antes que a coleção desses escritos do tempo dos apóstolos tivesse tomado o seu lugar, com inquestionável autori- dade, ao lado dos livros do Antigo Testamento, especialmente quando se considera que muitos eram escritos ocasionais endereçadas às igrejas individuais (HARRINGTON, 1985, p. 56). O conhecimento da palavra de Jesus nas comunidades cristãs primitivas, porém, passa pelo anúncio, pela interpretação e pelo testemunho dos apóstolos, de Paulo e de seus estreitos colaboradores. Enquanto testemunhas do Ressuscitado, eles são os verdadeiros depositários da palavra de Jesus e os intérpretes fiéis: daí a importância de sua palavra. Dessa forma, antes mesmo de se constituírem escritos, emerge uma palavra oral, o querigma apostólico, cuja indiscutível e última autoridade faz referência à própria pessoa de Jesus vivo e operante em sua Igreja. É unicamente essa Palavra que fundamenta e constitui a comunidade cristã e é unicamente essa Palavra que preside a formação do Novo Testamento, embora sua articulação histórica seja lenta, complexa e, com frequência, já não plenamente atingível (PRIOTTO, 2019, p. 38-39). 36UNIDADE I A Palavra Escrita 36UNIDADE II O Cânon das Escrituras As palavras escritas do Senhor, embora não sejam os escritos mais antigos do Novo Testamento foram os primeiros a serem colocados em pé de igualdade com o Antigo Testamento e reconhecidos como canônicos. Harrington (1985, p. 56) escreve que por volta de 140, Pápias, bispo de Hierápolis, na Frígia, conhece Marcos e Mateus. Justino (c. 150) cita os Evangelhos com autoridade. Hegésipo (c.180) fala da “Lei e Profetas do Senhor”. Os mártires de Scilla, na Numídia (180), têm, como escritos sagrados, “os livros e as epístolas de Paulo, homem justo”; somente os Antigo Testamento e os Evangelhos eram chamados de “Livros”, isto é, Escrituras. Harrington (1985, p. 56) acrescenta que os escritos dos Padres Apostólicos fornecem certa prova de que, desde as primeiras décadas do século II, as grandes igrejas possuíam um livro ou grupo de livros que eram comumente conhecidos como “Evangelho” e a que se fazia referência como a um documento que tinha autoridade e era universalmente conhecido. O primeiro grupo dos escritos é constituído pelas cartas paulinas; trata-se de cartas destinadas a várias comunidades, mas também às comunidades de toda uma região (2Cor 1,1; Gl, 1,2) ou cartas que deveriam ser idas a outras comunidades (1Ts 5,27). Isso implica a necessidade de conservá-las e recolhê-las, como aparece em 2Pd 3,15-16. Por volta da metade do século II d.C., Marcião conhece um grupo de dez cartas (Rm, 1-2Cor; Gl; Ef; Fl; Cl; 1-2Ts; Fm), em que faltam ainda as três cartas pastorais (1-2Tm; Tt); pouco depois, pelo fim do século II, o célebre Fragmento Muratoriano, que provavelmente representa a tradição da Igreja de Roma, recenseia treze cartas paulinas, com a exclusão da Carta aos Hebreus; a aceitação desta última é mais penosa no Ocidente, no qual se imporá mais tarde graças à autoridade de Hilário de Poitiers, de Jerônimo e de Agostinho, enquanto no Oriente aparece desde o século III ao lado das outras cartas paulinas, seja em Clemente de Alexandria, seja em Orígenes (PRIOTTO, 2029, p. 39). Por volta da metade do século II, aparece o testemunho de um segundo grupo de escritos, constituído pelos quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João), escrito na segunda metade do século I d.C. Justino os cita com o nome de “memórias dos apóstolos”, atestando sua leitura, ao lado dos escritos proféticos do Antigo Testamento, na liturgia eucarística. Seu uso litúrgico ao lado das Escrituras hebraicas manifesta sua importância e autoridade (PRIOTTO, 2019, p. 39). Essas duas primeiras coleções de escritos constituem o núcleo original do Novo Testamento e testemunham a comum tradição apostólica da palavra de Jesus. Entre o século II e III, a eles se acrescentam os Atos dos Apóstolos, cuja autoridade é claramente reconhecida, porque ilustram admiravelmente a continuidade entre a obra de Jesus e a da Igreja. 37UNIDADE I A Palavra Escrita 37UNIDADE II O Cânon das Escrituras As sete cartas restantes (Tg; 1-2Pd; 1-2-3Jo; Jd), à parte 1 Pedro e 1 João, constituem o grupo mais instável da coleção neotestamentária. Com efeito, se a 1 Pedro é já conhecida por Policarpo de Esmirna, citada como petrina por Irineu e Tertuliano e comentada por Clemente de Alexandria e Orígenes, e se, igualmente a 1 João é conhecida e aceita desde a metade do século II d.C., não é assim para as restantes cinco cartas. A 2 Pedro, sobretudo por causa de sua duvidosa atribuição a Pedro, será aceita somente no fim do século IV; igualmente a 2 e 3 João, atribuídas ao “presbítero”, serão reconhecidas
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