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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ (UECE) FACULDADE DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA DISCIPLINA: Filosofia das Ciências DOCENTE: Michael Bocadio DISCENTE: David Rocha Vasconcelos OS FUNDAMENTOS DE UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS CIÊNCIAS: DAS RAÍZES ILUMINISTAS DA CIÊNCIA MODERNA AO MATERIALISMO HISTÓRICO COMO FERRAMENTA DE CRÍTICA Resumo O principal objetivo do trabalho que se segue é oferecer aos leitores alguns aspectos metodológicos presentes na obra de Marx que podem nos ajudar a ter uma visão mais crítica do surgimento e do desenvolvimento da ciência moderna tal como conhecemos. Para isto, partiremos de uma breve análise do contexto histórico, social e político burguês/iluminista, onde surgiu esse método. Em seguida, pretendemos elencar como alguns conceitos que compõem a obra marxiana como ‘’crítica’’, ‘’objetividade’’, ‘’materialismo’’ e ‘’dialética’’ podem nos ajudar a compreender melhor não só a formação do atual método científico, mas, também, as relações de sociabilidade que permeiam a sociedade moderna. Palavras-chave: Marx. Crítica. Objetividade. Materialismo. Dialética Introdução Nos últimos meses, devido à grave crise sanitária que assola todo o planeta, muito se tem discutido sobre a importância da pesquisa científica e dos métodos que nela são aplicados, se realmente existe eficácia e efetividade para com os objetivos estabelecidos e se, de fato, podemos confiar nos resultados obtidos pela comunidade científica. Apesar desta discussão ter tomado conta dos noticiários nos últimos meses, ela não é um tema recente, muito pelo contrário, a análise e a crítica do método científico, principalmente em tempos de crise, é algo que vem sendo debatido por especialistas e intelectuais desde o surgimento da ciência moderna. Nosso estudo tem como principal objetivo analisar alguns aspectos fundamentais que podem servir como ferramenta para uma análise crítica do método científico moderno e do seu desenvolvimento. Para isso, levando em conta que pretendemos fornecer meios para analisar não só o método das ciências de forma crítica, mas também o contexto histórico e político1 onde este método surgiu e se desenvolveu, usaremos como embasamento teórico alguns escritos do filósofo, sociólogo e economista alemão Karl Marx. Marx ficou conhecido mundialmente graças a sua análise crítica de como surgem, se organizam e deixam de existir os modos de produção, principalmente o modo de operar capitalista. Tal análise, que abrange todos os setores de sociabilidade, incluindo o âmbito científico, fez-se necessária devido ao grande número de contradições apontadas pelo nosso autor nos discursos dos teóricos iluministas liberais, que naturalizaram grande parte das relações sociais econômicas, transformando-as em leis naturais presentes em todos os modos de produção desenvolvidos pela humanidade. Além do fato de que eles vendiam suas ideias como uma promessa de progresso e prosperidade. Contudo, como podemos notar, principalmente em momentos de crise como o que vivemos, as contradições que envolvem esse sistema tornam-se cada vez mais evidentes. A influência direta que tais autores da classe dominante (burguesia) obtiveram sobre as camadas do setor científico (por meio da ideologia) e, consequentemente, sobre todo o setor de desenvolvimento tecnológico, se tornou um dos principais motivos que levaram nosso autor a demonstrar a necessidade de um método de pesquisa e exposição que capte o objeto de estudo em seu movimento real, tanto em sua objetividade material como em toda dinâmica histórica, social e política que também constituem o objeto pesquisado, seja ele qual for. O método desenvolvido pelo autor ficou conhecido como materialismo histórico-dialético. Temos como pretensão nesta pesquisa fazer uma breve análise de cada termo que constitui o nome deste método e, posteriormente, tecer algumas considerações sobre como esta perspectiva de compreensão do movimento histórico pode nos ajudar a compreender as relações em torno da construção do conhecimento e da própria dinâmica do meio científico, como um setor situado historicamente dentro de uma sociedade separada por classes. Para que o nosso caminho se torne mais claro, e para que melhor possamos compreender a relação de identidade existente entre uma sociedade de classes e a forma como o conhecimento é construído e aceito dentro desta sociedade, partiremos de uma exposição de como o movimento iluminista, junto da ascensão burguesa, tiveram uma influência ideológica direta no desenvolvimento do projeto científico moderno, para que, só então, possamos demonstrar como a forma marxiana de compreensão da realidade, situada historicamente, pode nos ajudar a adquirir uma perspectiva crítica não só do âmbito científico, mas também das diversas formas de relações que permeiam a sociedade moderna. Iluminismo e burguesia: o suposto naturalismo nas relações de produção e a sua influência nas ciências A queda do sistema feudal de produção no final do século XV se tornou um grande divisor de águas para a história da humanidade, a duplicação da população europeia e os avanços tecnológicos fizeram com que o feudalismo se tornasse um sistema obsoleto e, consequentemente, deram espaço para o surgimento de um novo modo de produção, o sistema capitalista. Com o surgimento de uma nova forma de organizar a produção, surgiu também uma nova classe social, que pregava uma sociedade livre das amarras das tradições construídas pela igreja durante toda a idade média. A burguesia, classe formada inicialmente por pequenos comerciantes, deu início a um movimento cultural e histórico que revolucionou o modo de organização da sociedade, o iluminismo. Tal perspectiva que pregava o progresso e a autonomia da humanidade por meio da razão, negou todo o mundo antigo/medieval e, junto do capitalismo, se tornou sua negação direta. Atribuindo a razão a tarefa de iluminar os caminhos para um novo mundo repleto de prosperidade, o movimento iluminista junto dos seus teóricos foram responsáveis pela criação de um projeto para o futuro, projeto esse que, fundamentado no progresso, prometia um futuro melhor com o avanço da ciência em prol do bem estar dos indivíduos. Contudo, podemos nos perguntar, esse projeto realmente deu certo? Houve, claro, diversos avanços que facilitam a vida da humanidade em diversos aspectos, porém, também não precisamos ir muito longe para compreender que os avanços também nos trouxeram uma nova ordem de problemas, como por exemplo o uso da ciência em prol do desenvolvimento bélico (com nenhuma ou pouquíssimas restrições) para o uso em guerras. Não pretendemos aqui elencar todos os aspectos positivos e negativos do projeto iluminista, nosso principal objetivo neste tópico é justamente analisar de forma crítica, com o auxílio dos escritos marxianos, as consequências das influências teóricas dos autores iluministas no âmbito político-científico. Quando a sociedade burguesa começou a dar largos passos no seu desenvolvimento, Marx notou que houve uma mudança na perspectiva do desenvolvimento científico. Segundo nosso autor, com o avanço das conquistas políticas burguesas a luta de classes tomou proporções mais evidentes e fez com que houvesse uma influência direta da classe dominante nos meios de pesquisa. Nas palavras de Marx: A burguesia tinha conquistado poder político na França e na Inglaterra. A partir de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrou a má consciência e a má intenção da apologética.(MARX, Karl, O capital: crítica da economia política, volume 1. 1996.) Marx fez sua crítica do ponto de vista da ciência econômica (seu principal objeto de estudo), direcionando-a principalmente a autores como Locke e Rousseau, que naturalizam certas relações dentro da sociedade burguesa que, para o nosso autor, são frutos de processos históricos e não imanentes à natureza humana. Além das relações sociais, o próprio indivíduo moderno é posto como um ideal almejado por toda a história humana, as ideias de autonomia e progresso baseadas na razão, tão enfatizadas pelos teóricos iluministas, põem o indivíduo iluminista como ponto de partida da história, como se fosse natural a sua posição. Marx também nos alerta sobre tal pretensão: Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam inteiramente Smith e Ricardo, imaginam esse indivíduo do século XVIII - produto, por um lado, da decomposição das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças que se desenvolvem a partir do século XVI- como um ideal, que teria existido no passado. Vêem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da história, porque o consideravam como um indivíduo conforme à natureza - dentro da representação que tinham da natureza humana- que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. (MARX, Karl, Para a crítica da economia política. 1982.) Podemos notar que a prioridade do iluminismo, segundo Marx, não era exclusivamente dar um novo rumo para a humanidade baseado no desenvolvimento racional em detrimento da fé religiosa, que predominou o período medieval, mas também justificar certas relações sociais específicas da sociedade burguesa em ascensão, pondo-as como relações naturais em vez de reconhecê-las como fruto do desenvolvimento histórico. A naturalização dessas relações serve como ferramenta ideológica para a perpetuação das relações burguesas de produção, consequentemente, uma vez reconhecida a intenção de determinada classe de não só manter, mas universalizar o seu modo de produção, grande parte da produção intelectual e científica neste período passou a ter a finalidade não só de contribuir para o avanço do conhecimento humano sobre o mundo, mas também serviu como aparato político para o estabelecimento da burguesia e do capitalismo. O materialismo histórico dialético como ferramenta para a análise crítica da formação da ciência moderna Tendo em vista os aspectos históricos e políticos destacados acima, que influenciaram diretamente o desenvolvimento da ciência moderna, podemos finalmente elencar alguns aspectos do método marxiano de análise que podem nos ajudar a compreender de forma mais acertada a dinâmica do desenvolvimento do método científico moderno. Para que possamos realizar tal empreitada de forma clara e objetiva, enumeramos as características mais relevantes do método de Marx que podem nos auxiliar em um processo de análise crítica, na seguinte ordem: 1) Crítica do conhecimento acumulado; (2 materialismos; (3 dialéticas. É importante ressaltar que, apesar da numeração a título metodológico, os conceitos estão em constante associação. O primeiro aspecto que iremos discorrer é um dos cernes principais da obra marxiana, a crítica. Como a grande maioria dos filósofos, Marx é herdeiro de toda uma produção intelectual filosófica e científica, tal produção serviu ao nosso autor não só como base bibliográfica, mas também como ponto de partida para o desenvolvimento de sua obra. Podemos compreender isso de forma clara quando recorremos ao comentarista marxista José Paulo Netto, que diz: Com efeito, a estruturação da teoria marxiana socorreuse especialmente de três linhas- de-força do pensamento moderno: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês. Numa palavra, Marx não fez tábula rasa do conhecimento existente, mas partiu dele. (PAULO NETTO, José, Introdução ao estudo do método de Marx. 2011.) Como já explicitado na citação, podemos notar que Marx não teve como pretensão construir algum tipo de conhecimento do nada, mas sim partir da produção literária e científica que o precedeu, de modo que, com a análise de autores como Adam Smith, Ricardo, Hegel, etc, o filósofo alemão pôde trazer ao exame racional os aspectos essenciais de cada teoria, distinguindo os aspectos objetivos dos subjetivos, ou seja, separando aquilo que de fato tem existência ,independente da vontade do pesquisador, e o que não tem. Podemos notar as vantagens deste aspecto quando atentamos para a própria obra de Marx, apesar de fazer bastante uso dos termos ‘’dialética’’, ‘’valor’’, ‘’materialismo’’ etc, estes não são conceitos criados originalmente por ele, muito pelo contrário, são elementos encontrados em outras obras que foram não só adotados, mas desenvolvidos e aperfeiçoados por Marx. A importância desse modo de proceder se dá justamente porque: Em Marx, a crítica do conhecimento acumulado consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus limites - ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos reais. É assim que ele trata a filosofia de Hegel, os economistas políticos ingleses e os socialistas que o precederam. (PAULO NETTO, José, Introdução ao estudo do método de Marx. 2011.) É notável que há uma grande preocupação de Karl com os fatores históricos e políticos em suas investigações, não é à toa que o seu método é chamado de materialismo histórico dialético. Além do aspecto histórico, faz-se necessário explicar o porquê da sua obra ser considerada uma obra materialista e dialética. Ora, a teoria marxiana é materialista porque o seu objeto de estudo é a produção material. Para Marx, a pesquisa tem de captar o movimento da matéria em todos os seus detalhes e formas, em seu movimento real, para isso é necessário o desenvolvimento da consciência de que as coisas estão em constante movimento e que, para se chegar a essência de um objeto, é necessário rastrear todas as suas formas e a lei que rege toda essa mudança. Ora, para o nosso autor a lei que rege esse movimento é identificada como a dialética. No prefácio da segunda edição do capital alemã, Marx descreve um pouco de como se dá sua dinâmica dialética e a diferencia da de Hegel: Em sua forma mistificada, a dialética foi moda alemã porque ela parecia tornar sublime o existente. Em sua configuração racional, é um incômodo e um horror para a burguesia e os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendimento positivo do existente ela inclui ao mesmo tempo o entendimento da sua negação, da sua desaparição inevitável; porque apreende cada forma existente no fluxo do movimento, portanto também com seu lado transitório; porque não se deixa impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária. (MARX, Karl, O capital: crítica da economia política, volume 1. 1996.) Considerações finais O caminho percorrido até aqui com certeza foi muito breve e pouco desenvolvido, levando em conta a magnitude do conteúdo, contudo, esperamos ter esclarecido alguns aspectos do surgimento da ciência moderna, junto da ascensão burguesa e do movimento iluminista, até a crítica feita por Marx do modo como os teóricos liberais tratavam seu objeto de estudo. Recapitulando rapidamente, vimos que os teóricos burgueses chegaram a disseminar explicações naturais para fenômenos que foram construídos historicamente, como por exemplo a naturalização e universalização das leis econômicas burguesas, como se estivessem presentes em todos os momentos da história humana. Graças aos recursos oferecidos por Marx, partindo da crítica do conhecimento acumulado, levando em conta os aspectos materiais e a dinâmica histórica na qual circunda a transformação dos modos de produção, podemos notar que a origem desses fenômenos ésocial e que, o desenvolvimento das relações de produção é fruto de um movimento histórico. Os conceitos de crítica e dialética nos dão uma visão mais ampla dos desdobramentos históricos, incluindo o desenvolvimento do próprio método científico, com esses recursos podemos compreender onde surgiu a ciência moderna, como o seu método se desenvolveu e para que finalidades foi desenvolvido. A partir destes elementos podemos ter uma compreensão mais crítica do que é o método científico moderno. Referências bibliográficas PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. 1° Ed. São Paulo: Expressão popular, 2011. MARX, Karl. Para a crítica da economia política: salário, preço e lucro; o rendimento e suas fontes: a economia vulgar. Trad. Edgar Malagodi. São Paulo: Abril cultural, 1982. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política vol.1. Ed. Nova cultural LTDA, 1996.
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