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METODOLOGIA DO ENSINO DE SOCIOLOGIA UNIASSELVI-PÓS Autoria: Marcone Costa Cerqueira Indaial - 2020 2ª Edição CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Jóice Gadotti Consatti Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2019 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: C416m Cerqueira, Marcone Costa Metodologia do ensino de sociologia. / Marcone Costa Cerqueira. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 169 p.; il. ISBN 978-65-5646-045-1 ISBN Digital 978-65-5646-046-8 1. Sociologia - Estudo e ensino. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 301.07 Sumário APRESENTAÇÃO ............................................................................5 CAPÍTULO 1 Fundamentos Teóricos da Sociologia ........................................7 CAPÍTULO 2 Questões De Método no Ensino de Sociologia ......................63 CAPÍTULO 3 Metodologia e Ensino de Sociologia no Brasil ....................109 APRESENTAÇÃO Prezado acadêmico, bem-vindo à disciplina de Metodologia do Ensino de Sociologia. No decorrer desta disciplina, abordaremos pontos-chave para a discussão da disciplina de sociologia, tendo em vista seus aspectos pedagógico, teórico e prático, buscando compreender o quadro brasileiro e suas peculiaridades. Em vista destes propósitos amplos e complexamente articulados, devemos partir de uma análise bem direcionada, que aborde os aspectos aludidos de forma esmiuçada, mas aproximada, sem perder a visão de integralidade que nos possibilitará uma opinião crítica sobre os temas a serem tratados. O ensino de sociologia perpassa duas bases fundamentais de constituição das ciências sociais como um todo, a primeira, uma base teórica que se fundamenta em conceitos, pressupostos e teorias bem articuladas. No entanto, tais construções teóricas não surgem de um conhecimento puramente abstrato ou apartado da realidade social, ao contrário, parte de uma sistemática, ampla e crítica reflexão sobre as relações humanas dentro da sociedade em suas diversas expressões. Desta forma, sua segunda base fundamental é a prática, que além de embasar a própria construção teórica, impulsiona também sua atuação direta nas relações sociais, possibilitando uma aplicabilidade própria das ciências sociais. Partindo dessa perspectiva, iniciaremos nosso trajeto crítico nesta disciplina através dos fundamentos teóricos da sociologia, seus contextos de surgimento e desenvolvimento, os aportes históricos e sociais. Em vista disso, no primeiro capítulo, nos voltaremos para o contexto histórico de surgimento dos movimentos teóricos, que levaram a humanidade a uma virada em sua busca pelo conhecimento, a fundamentação de um método baseado em pressupostos científicos utilizados na própria compreensão da realidade social. Este movimento nos coloca em confronto com os primeiros teóricos da sociologia, centralmente aqueles que se tornaram os pilares clássicos da disciplina. O segundo passo será dado no sentido de compreender e delimitar os aspectos metodológicos da disciplina, tendo em mente os pontos nevrálgicos que nos permitem vislumbrar sua base conceitual, a constituição de suas principais correntes. No entanto, neste segundo capítulo, partiremos desta base conceitual para a crítica reflexiva sobre a metodologia de ensino de sociologia, suas particularidades e a própria realidade da disciplina no quadro geral da educação. Por fim, no terceiro capítulo, nos deteremos na discussão sobre a realidade brasileira, suas idiossincrasias sociais, históricas e principalmente ideológicas. Desta maneira, esperamos demonstrar e compreender os aspectos próprios, tanto teóricos quanto práticos, da Metodologia do Ensino de Sociologia na sociedade brasileira. Ao fim deste estudo, acreditamos que você estará apto a desenvolver sua própria visão crítica sobre o tema da Metodologia do Ensino de Sociologia, aplicando de forma independente em sua prática profissional o conhecimento aqui adquirido. Bons estudos! CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: • Conhecer e compreender os fundamentos teóricos que lastreiam o surgimento e a estruturação da sociologia enquanto ciência humana crítica e dinâmica. • Analisar de maneira crítica e independente as relações teóricas e práticas no surgimento da sociologia, embasando, assim, uma visão ampla dos processos de conceitualização, prática e ensino da disciplina. 8 Metodologia do Ensino de Sociologia 9 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Caro acadêmico, a sociologia surge em um período histórico bem defi nido, a chamada Contemporaneidade, no entanto, pode-se afi rmar que os fundamentos que lhe deram embasamento são fruto de um movimento que vem se gestando lentamente desde a chamada Modernidade. Assim, pode-se dizer que a sociologia é uma ciência da Modernidade, ou uma ciência moderna, indicando que suas bases teóricas se estendem desde os primeiros movimentos de busca de um conhecimento mais objetivo, centrado em traços que defi nem praticamente todas as ciências modernas, seja na área da natureza ou da sociedade. Diante dessas alegações é preciso compreender como se deu esse processo de formação de uma ciência que se volta para o campo social, mas que tem suas raízes ancoradas em pressupostos teóricos e práticos compartilhados com praticamente todas as ciências naturais. Não é à toa que a sociologia é tida como uma disciplina que une as características centrais dos dois ramos, tanto o aporte teórico das ciências humanas, tais como a fi losofi a, bem como o aporte prático das ciências da natureza, tais como a física, a biologia e a matemática. O que você pensa dessa aproximação, ela é realmente perceptível na sociologia ou não? Para esmiuçarmos juntos essas questões, começaremos por compreender a complexa relação entre os fundamentos da sociologia como premente ciência social e as ciências da natureza, a forma como um ideal de conhecimento se diversifi ca e se estabelece como parâmetro para tais construções. Após esse passo, é necessário conhecer os principais autores deste movimento de adensamento da sociologia enquanto área de conhecimento, primeiro por seu fundador, depois por seus principais, e mais infl uenciadores, pensadores. Os chamados clássicos da sociologia são aqueles autores que deram destaque e profundidade teórica à disciplina desde o seu alvorecer. Este longo trajeto nos conduzirá a uma problematização da própria sociologia no século XX, diante de todas as contradições, tensões e avanços sociais e científi cos que marcaram esse período recente da história. Tal itinerário nos possibilitará uma visão ampla da sociologia como resultado de um movimento cultural, científi co, histórico e social que surge em determinado momento da história do conhecimento humano, indo de encontro as suas principais temáticas e seus primeiros pensadores-chave. 10 Metodologia do Ensino de Sociologia 2 A SOCIOLOGIA COMO UMA MODERNA CIÊNCIA A primeira questão que se coloca diante da tentativa de postular a sociologia como uma ciência moderna é aquela que direciona ao próprio entendimento do que venha a ser uma disciplina científi ca. Ao pensarmos o que seja a concepção de ciência nos tempos atuais, somoslevados a acreditar que todo tipo de conhecimento científi co deva ser objetivo, mensurável e aplicável. No entanto, quando aludimos ao termo ‘ciência’, estamos nos voltando para um entendimento mais amplo, que pode ser compreendido como a busca de um conhecimento específi co, delineado e claramente demonstrável. É bastante interessante e instrutivo saber como as diversas ciências, naturais, exatas e humanas, são divididas, subdivididas e classifi cadas de acordo com suas áreas de conhecimento. Para ter um conhecimento maior sobre o tema, acesse o link da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Disponível em: https://www.capes.gov.br/avaliacao/instrumentos-de- apoio/tabela-de-areas-do-conhecimento-avaliacao. Assim, pode-se entender que a ideia de ciência é mais antiga do que aquela que estamos acostumados a vislumbrar na moderna sociedade tecnológica. Os gregos chamavam a metafísica de ‘ciência primeira’, ou seja, a base de todos os conhecimentos, que nos remete à própria essência das coisas. Essa é uma questão que deve ser levada em consideração quando se quer estabelecer o que seja uma ciência moderna, ou pelo menos, a percepção moderna de um conhecimento específi co, delineado e claramente demonstrável, como dito anteriormente. O movimento que deu ensejo ao surgimento da concepção de ciência que temos nos dias atuais surgiu ainda no alvorecer da chamada Idade Moderna, pondo termo a um paradigma que perdurou por mais de mil anos e que esteve associado às ‘trevas intelectuais’. Este dito período de trevas, compreendido como Idade Medieval, foi nomeado exatamente por aqueles indivíduos que viam em si mesmos o alvorecer de uma nova era, os modernos, que buscaram na razão humana a resposta para todas as coisas. 11 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 O processo de mudança em um paradigma que perdura por tanto tempo e tem suas raízes presas a tradições tanto sociais quanto religiosas, não pode ser superado de uma única vez, muito menos pode ser substituído por outro paradigma que não supra a lacuna por ele deixado. É preciso o assentamento de pilares que suportem a constituição de novas bases para o conhecimento, para a compreensão das relações sociais e para a objetivação do mundo e sua representatividade para os indivíduos. Tais assentamentos foram buscados nas ‘luzes da razão’, direcionadas para o próprio mundo, ou seja, a natureza e sua relação com o ser humano, bem como para o mundo social, aquele que é criado pelos indivíduos em suas relações como uma segunda natureza. As perspectivas inseridas por esta mudança na forma de se compreender o mundo e a relação do ser humano com ele, trouxeram a crítica a várias verdades tidas como perenes e inquestionáveis, rompendo assim, como mencionado, com fortes tradições sociais e, principalmente, religiosas. No entanto, a questão que se coloca como mais proeminente neste cenário é a irreversível construção de uma nova relação entre o indivíduo que conhece e o objeto, ou realidade, a ser conhecido. Neste sentido, há uma profunda inversão no caminho a ser percorrido, não é mais possível entender o conhecimento como algo partindo de dentro do indivíduo, como acreditava Platão (2016) e seus seguidores, bem como sustentava também Santo Agostinho (2009). Essa inversão no caminho de busca do conhecimento, que pode ser vista como o divisor de águas entre o paradigma antigo e o paradigma moderno, está marcada pelo profundo apreço à observação prática, à compreensão dos mecanismos de causa e efeito, bem como à imprescindível comprovabilidade dos conhecimentos obtidos no processo. Pode-se afi rmar que é difícil elencar e analisar todos os processos que deram surgimento a essa mudança de paradigma, no entanto, é possível compreender que não ocorreram em apenas um âmbito do conhecimento. Como já indicado, todas as áreas do saber passaram por essa profunda cisão, podemos especifi car o campo das artes, o campo do conhecimento, bem como o campo da política. A Modernidade surge com movimentos culturais, intelectuais e sociais marcantes, desde o chamado Renascimento, passando pelo Iluminismo, até chegarmos às profundas convulsões sociais, tais como a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Losurdo (2015) corrobora com essa percepção, entendendo que as agitações sociais, políticas e intelectuais dos séculos XVIII e XIX são frutos maduros das mudanças acumuladas pelas revoltas intelectuais capitaneadas pelo Renascimento e Iluminismo. Essa pista possibilita o vislumbre de uma seara que se fará pouco a pouco mais fértil para o surgimento de uma ciência social pautada nos ideais levantados 12 Metodologia do Ensino de Sociologia por todos esses acontecimentos de ruptura, porém, é necessário aproximar um pouco mais a lente pela qual pretendemos compreender as implicações deste cenário para o surgimento da sociologia enquanto disciplina e ciência social prática e teoricamente fundamentada. Para tanto, é extremamente importante esclarecer a intrínseca relação entre os processos surgidos e adotados pelas ciências naturais e sua apropriação pela sociologia em seu surgimento e seu desenvolvimento. O passo seguinte será a compreensão dos princípios constitutivos, surgidos da relação entre as ciências naturais e sociais, na formulação do pensamento de Auguste Comte, fundador da sociologia moderna. 2.1 CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS NO SURGIMENTO DA SOCIOLOGIA Então, você pensa que a sociologia pode ser aproximada de forma satisfatória da moderna noção de ciência? Buscaremos traçar uma distinção entre um ramo de ciências naturais e outro de ciências humanas, refl exo da evolução da própria forma de se compreender a relação do ser humano com o mundo a sua volta e com sua própria realidade social. É preciso mapear o movimento do estabelecimento das fronteiras que delimitam os dois terrenos, mas sem perder uma percepção crítica que possibilite entender o processo que está baseando este movimento. É preciso voltar aos séculos que viram surgir a chamada Modernidade. Já no século XV viu-se nascer uma nova forma de concepção do conhecimento e do mundo, que se inicia primeiro como movimento cultural e social de contestação e questionamento. Este movimento, conhecido como Renascimento, busca retomar os ideais empregados pelos antigos, tanto em relação ao mundo natural quanto em relação à própria constituição do ser humano. Mesmo partindo do campo artístico e intelectual, esse movimento foi primordial para a preparação do que viria a ser o campo das ciências naturais, ou ciências da natureza. Três aspectos são centrais neste processo, primeiro, a valorização do conhecimento prático, surgido da observação e do estudo dos elementos naturais, segundo, a contestação de verdades universais sobre o mundo e sobre a natureza humana, questionamentos que levaram a uma nova forma de se perceber a importância do conhecimento objetivo, por último, a centralidade da técnica e de todos os aparatos que lhe dão suporte. Faz-se necessário compreender como cada um desses processos, fortalecidos e adensados pelo movimento cultural e 13 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 1 Faça uma pesquisa em sítios da internet sobre o chamado “Código Atlântico” de Leonardo da Vinci, busque informações sobre seu conteúdo, as áreas abrangidas nesta obra, a forma como o autor desenvolve suas ideias e as proeminentes contribuições para o surgimento de um pensamento científi co no alvorecer da Modernidade. Em seguida, produza uma apresentação de slides, ou fi chamentos, nesta sequência indicada: conteúdo; áreas dos conhecimentos abrangidos; método de exposição e análise usado pelo autor; por fi m, sua opinião sobre como esse trabalho pode ser visto como uma peça no movimento de surgimento à ciência moderna. R.:____________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ___________________________________________________. intelectual do Renascimento, contribuiu para o surgimento de novas ciências e formas de conhecimento. Como dito, nosso interesse está em compreender como se dá a constituição da fronteira limítrofe entre as ciências da natureza e as ciências sociais, buscando estabelecer não uma simples leitura histórica, mas uma tese de que tal assentamento se dá em vista da inserção de novas concepções do conhecimento e da técnica. O Renascimento é o ponto de lançamento dessa inserção de novas concepções e técnicas. Artistas, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, entre outros, trouxeram à tona os ideais de conhecimento que os antigos haviam estabelecido. Um conhecimento que surge não apenas da simples abstração, mas principalmente da análise cuidadosa e técnica da natureza, suas relações de causa e efeito e a maneira como o ser humano pode manipulá-la. 14 Metodologia do Ensino de Sociologia A arte como refl exo da perfeição da natureza não tem mais o objetivo de simples imitação ou captação de uma essência aparente, a questão passa a ser a compreensão do processo natural em seu curso próprio, regido por normas próprias e que apresenta uma extensão em direção à realidade de existência do ser humano enquanto parte desta natureza. Esse primeiro impulso rompe com uma visão medieval, de infl uência cristã, na qual o ser humano é visto como distinto da natureza, como especial, não tendo a mesma origem e muito menos a mesma suscetibilidade que os demais animais e componentes naturais. Neste cenário surge uma interação importante para o desenvolvimento das ciências naturais modernas, a união entre as disciplinas matemáticas e as disciplinas artísticas, além de um intenso estudo das relações de forma com os elementos da natureza. Vejamos o que nos instrui Byington (2009, p. 26): Leonardo havia adotado o princípio das proporções matemáticas para o corpo humano e da rigorosa base geométrica para a representação tridimensional dos corpos. Para ele, a ideia de imitação da natureza e a incansável exploração de seus segredos permanecem uma doutrina absoluta à qual se dedica por meio do desenho; um exercício constante que essa singular fi gura do Renascimento leva muito além do âmbito artístico. Leonardo acreditava na possibilidade de a pintura igualar e superar a natureza por sua capacidade de ir além da matéria, representar fenômenos imateriais, como o vento e a bruma, criar um ilusionismo metamórfi co que não é mais imitação, mas restituição do real. Michelangelo também defendia o estudo profundo da natureza, que, em sua concepção, signifi cava sobretudo o estudo da anatomia, ao qual se dedicava por meio da dissecação de cadáveres. Esse processo de busca sistemática de um conhecimento obtido diretamente da análise da natureza a partir de meios confi áveis, mensuráveis e, ao mesmo tempo, críticos e criativos pode ser tomado como um dos principais propulsores do surgimento da ciência da natureza moderna. Um dos mais centrais resultados deste processo de análise sistemática e crítica do mundo natural é a contestação de verdades tidas como imutáveis, perenes, principalmente com relação ao ser humano e sua inserção na natureza. A obra “História da Sociologia: antes de 1918”, por Charles- Henry Cuin e François Gresle, busca analisar os processos de tensão e revolução pelos quais passou o Ocidente no século XIX e que, segundo os autores, são fundamentais para se compreender como a sociologia desenvolve-se e adensa-se enquanto ciência. Vale a pena a leitura. 15 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 O Renascimento trouxe consigo um profundo apreço pelo conhecimento herdado das tradições clássicas antigas, conhecimento que fi cou obliterado pelo processo de cristianização da cultura e da construção intelectual. Assim, para se estabelecer os parâmetros que os renascentistas precisavam para desenvolver seus trabalhos, era necessário aproximar-se da tradição clássica e rever, mesmo que às custas de muita polêmica, os dogmas e as verdades perenes surgidas na cristandade. Não é de se estranhar que esse processo tenha sido lento e cheio de contrapartidas por parte da Igreja e dos defensores das verdades religiosas. Mesmo alguns artistas renascentistas tinham difi culdade em deixar de lado os ensinamentos cristãos, o que fez surgir uma crítica sincera, mas ao mesmo tempo contumaz, que não visava apenas solapar as bases do pensamento cristão- medieval, mas rever de forma sistemática sua validade. Para possibilitar o desenvolvimento de uma nova forma de compreender a realidade natural do mundo, a partir de bases racionais, técnicas e mensuráveis, foi preciso a formulação de diversos aparatos que permitiam manipular, medir, experimentar e analisar os elementos naturais e as próprias teorias e ideias que surgiam dos estudos dos renascentistas. Esse processo trouxe à tona uma prática que fi cou relegada ao segundo plano durante a Idade Média. A construção de máquinas e aparatos manuais era tida como uma subatividade, menos importante do que o estudo abstrato e a pura utilização da lógica racional. No Renascimento, vê-se uma crescente valorização destas práticas mecânicas relacionadas à construção de máquinas, aparatos para experimentação e todo tipo de dispositivos que permitissem uma aplicabilidade do conhecimento produzido. Essa característica dos renascentistas será extremamente importante para o próximo passo do surgimento das modernas ciências naturais. Ao se adiantar até os séculos XVI e XVII, vê-se o adensamento de novas perspectivas de construção do conhecimento a partir da análise crítica e prática dos elementos naturais e de suas relações com o ser humano. Um movimento intelectual que pode ser associado à discussão empreendida desde o Renascimento surge no Ocidente como fruto de questionamentos ainda mais profundos e críticos do que aqueles até então empreendidos. Este movimento, que pode ser denominado como ‘revolução científi ca’, aprofunda e expande os ideais de conhecimento objetivo e verifi cação de uma verdade que é buscada a partir do lançamento da razão humana sobre o mundo natural. Tomemos a indicação de Reale e Antiseri (1990, p. 185) sobre esta questão: O período de tempo que vai mais ou menos da data de publicação do De revolutionibus, de Nicolau Copérnico, isto é, de 1543, à obra de Isaac Newton, Philosophiae naturalis 16 Metodologia do Ensino de Sociologia principia mathematica, que foi publicada pela primeira vez em 1687, hoje é comumente apontado como o período da ‘revolução científi ca’. Trata-se de um poderoso movimento de ideias que adquire no século XVII as suas características determinantes na obra de Galileu, que encontra os seus fi lósofos – em aspectos diferentes – nas ideias de Bacon e Descartes e que depois iria encontrar a sua expressão, agora clássica, na imagem newtoniana do universo concebido como uma máquina, ou seja, como um relógio. Por esse esclarecedor trajeto traçado pelos autores, pode-se perceber que o paradigma fundante da nova ciência é a compreensão mecanicista da natureza, bem como a busca de sua compreensão a partir da ideia de causa e efeito, ação e reação, teoria e experimento. Como já aludido, esse novo paradigma põe abaixo o paradigma dominante no medievo, o qual previa que o conhecimento surge da contemplação, da busca interior e da refl exão sobre as verdades divinas reveladas. Este claro predomínio do mecanicismo leva a uma inabalável confi ança nas leis da natureza que podem ser descobertas. Ao contrário das ciências humanas, até então reclusas no âmbito da abstração, da contemplação e das teorias universalistas, as nascentes ciências naturais respondem a leis bem claras, rígidas, mensuráveis e observáveis.No entanto, leis que precisam ser descobertas pelo ser humano, apreendidas por meio da razão, teorizadas através dos conceitos e fórmulas, mas também comprovadas por meio de experiências bem delimitadas, analisadas e descritas. Pode-se levar essa discussão a diversas ramifi cações que tomariam um livro inteiro, no entanto, o que nos interessa neste momento, dentro deste tópico de estudo, é compreender que o processo que culmina com esse novo paradigma mecanicista, próprio das ciências naturais, é fruto de um longo processo de questionamentos, contestações e análise curiosa da natureza. A partir da revolução científi ca, surge um aprofundamento das fronteiras que separam os conhecimentos próprios das ciências naturais daqueles próprios das ciências humanas. A fi losofi a, a política, a metafísica, a lógica, a teologia etc. continuam sendo vistas como áreas do conhecimento ancoradas em conceitos, preceitos e verdades universais, perenes, estabelecidas por tradição e concebidas no campo da abstração e da refl exão. Em contrapartida, as ciências naturais, principalmente a partir do século XVIII, tornam-se referência na busca de um conhecimento objetivo e efetivo com relação à natureza e seus fenômenos, bem como a respeito do próprio ser humano. Essa realidade fez aumentar o prestígio das disciplinas que se tornavam independentes da própria fi losofi a, que era até então o tronco do qual surgiam 17 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 as teorias de conhecimentos mais aceitas. Não é à toa que o título da obra de Newton traz ainda o nome de “princípios matemáticos de fi losofi a natural”, remetendo-se assim à disciplina que dominou toda a Idade Média. Autores, como Francis Bacon, John Locke, David Hume e Descartes, foram fundamentais no processo de transformação da fi losofi a medieval, estritamente escolástica, em uma fi losofi a mais aberta, preocupada com a busca do conhecimento objetivo e com a compreensão do mundo natural. No entanto, disciplinas, como a física, a biologia, a química etc., começavam a se fortalecer, ganhando a confi ança do público esclarecido e a desconfi ança das instituições religiosas, que se viam preteridas nesse processo. Concomitantemente a toda essa efervescência intelectual surgida a partir da revolução científi ca, vê- se fortalecer também o movimento que via na razão as “luzes” para vencer as trevas da superstição e da ignorância, lançando a humanidade em uma era de luz e entendimento. O chamado Iluminismo traz consigo a marca dos avanços conseguidos até então pelos esforços de pensadores ligados às nascentes disciplinas científi cas e principalmente dos fi lósofos e pensadores políticos voltados para a questão do conhecimento objetivo. O século XVIII é conhecido como o Século das Luzes exatamente por ser repleto de efervescente produção intelectual baseada nos suportes iluministas, desde as artes até a política, passando pela Enciclopédia, até o surgimento de revoluções sociais complexas, como as já aludidas Revolução Americana e Revolução Francesa. Esmiuçar todo esse processo é extremamente demorado, no entanto, interessa-nos a perspectiva de que o mundo ocidental não é mais o mesmo de dois séculos antes, a busca do conhecimento não se dá pelas tradicionais vias da escolástica ou das verdades eternas. Esse alvorecer de uma nova era baseado na razão e nas leis da natureza e do intelecto humano, inaugura também uma nova era na compreensão da estrutura social. A sociologia surge como soma de toda essa convulsão social, intelectual e científi ca, no entanto, não apenas reproduzindo o que até então estava posto como diretriz padrão. Conhecer as leis que direcionam e regem as relações sociais é uma pretensão que surge com os iluministas, expressa-se em autores como Montesquieu, em sua obra o Espírito das Leis, além de pensadores, como Rousseau e Kant, porém, a sociologia, enquanto ciência da sociedade, inicia-se já em um século no qual a técnica, principalmente a produtiva, tem seu estado de maior desenvolvimento até então. As críticas aos modelos religiosos e tradicionais estabelecem uma tensão maior sobre as pretensões de conhecimento estabelecidos. Assim, os parâmetros objetivos estabelecidos pelas ciências da natureza são tomados como bitolas para a construção de um saber mais sólido, confi ável. 18 Metodologia do Ensino de Sociologia A maior expressão da apropriação dos pressupostos, regras e parâmetros advindos das ciências da natureza, serão vistos no pensamento de Auguste Comte, o fundador da ciência da sociedade, ou sociologia. Sua fundamentação teórica parte da própria crítica da história humana em vista da busca do conhecimento, ou melhor, dos processos pelos quais o ser humano passou em vista do conhecimento, do domínio da natureza e do domínio de si mesmo. A base do edifício teórico erigido por Comte, do qual emerge a própria sociologia, é o pensamento ‘positivista’, ou a doutrina ‘positivista’, que, segundo ele, expressa a fase fi nal da busca do conhecimento pelo ser humano, nomeado como estado ‘positivo’. Caro acadêmico, serão estas considerações que procuraremos desenvolver no próximo tópico ao perscrutarmos os processos pelos quais Comte estabelece seu pensamento. 2.2 AUGUSTE COMTE E OS PRINCÍPIOS CONSTITUTIVOS DA SOCIOLOGIA Isidore Auguste François Marie Xavier Comte, ou apenas Auguste Comte, como é mais conhecido, nasceu em Paris em 1798, fi lho de uma família católica simpatizante da monarquia. No entanto, Comte não seguiu por muito tempo os ensinamentos recebidos em família, não se alinhando aos monarquistas, declarando ainda jovem sua adesão ao republicanismo e defendendo-o abertamente. Algo que o indispõe junto à família e se tornará uma inicial indicação de suas pretensões intelectuais como livre pensador. O século XIX, principalmente em suas primeiras décadas, será o palco da crescente crença do ser humano no poder da razão, da ciência e da incipiente industrialização. Novas formas de energia estão sendo exploradas, a já conhecida e amplamente utilizada energia a vapor e a recém-descoberta energia elétrica. Este século é o resultado de todo o acúmulo de conhecimento que vem se formando desde o século XVI, tanto no campo da ciência, quanto no campo da política. As revoluções ocorridas na América do Norte e na França, ancoradas nos ideais iluministas, convulsionaram as organizações sociais, colocando em descrédito as bases do “ancien regime”, ou seja, o velho modo de governo aristocrático que a família de Comte tanto prezava. A Europa do início do século XIX é ainda um campo de guerra assolado pelo exército francês e pela sanha imperialista de Napoleão Bonaparte, criando um cenário ainda mais complexo e polarizado. O maior inimigo da França bonapartista 19 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 é também a nação mais industrializada desse período e o será até praticamente o fi nal do século. O império inglês trava com Napoleão a hegemonia no território europeu e a supremacia nos territórios coloniais. Essa agitação política, que pode ser entendida como um divisor de águas no paradigma de civilização que se formará para os séculos seguintes, é extremamente estimulante para uma mente crítica e independente como a de Auguste Comte. Estes dois temas dominantes do ambiente político-econômico com o qual Comte tem contato, o tema da ciência e do desenvolvimento industrial, bem como o tema social dos confl itos e mudanças, serão também os temas centrais de seu pensamento e a pedra angular do que virá a ser sua ‘doutrina positiva’. Ao se voltar para as questões políticas e sociais, Comte não as vê dentro de um arcabouço puramente conceitual, buscando apenas teorizar o cenário a sua volta ou simplesmente se apoiando nas já desenvolvidas teorias republicanas de matriz iluminista. Sua formação intelectual é marcada pela euforia das novas ciências, o culto ao conhecimento técnicotoma conta de toda a Europa e principalmente de Paris, o centro cultural desde o Iluminismo. Comte começa seus estudos aos 16 anos na Escola Politécnica de Paris, centro do conhecimento científi co da França e um dos centros mais fervorosamente devotados ao culto ao conhecimento científi co. Essa imersão ainda jovem no incipiente mundo das ciências naturais e físicas, bem como todo o conhecimento técnico, o marcará por toda a sua vida intelectual, sendo de profunda importância para toda a sua produção. As diretrizes e os parâmetros advindos dessas ciências serão infl uenciadores de toda a construção do edifício positivista que ele erigirá, no entanto, tendo como matéria de trabalho as questões sociais e a postulação de uma necessária evolução social que irromperá da união desses dois campos. É preciso entender que o encantamento causado pelas ciências físicas e naturais, assim como todo o conhecimento técnico, terá forte infl uência no pensamento comtiano, mas não será engessador de sua percepção das limitações e necessidades de ajustamentos dos parâmetros científi cos aplicados no estudo da sociedade. Como indica Comte (1972) em seu Opúsculo de fi losofi a social, de 1822, ao aludir o uso da matemática no estudo da ciência social, ele afi rma que somente o posterior desenvolvimento desta ciência social poderia apresentar a aplicabilidade da análise matemática. 20 Metodologia do Ensino de Sociologia 1 Atualmente, os dados coletados em diversas pesquisas sociais por amostragem, principalmente por meio dos indicadores sociais, têm fomentado inúmeras pesquisas na área das ciências humanas, principalmente nas ciências sociais. Tais pesquisas se valem de dados estatísticos, coletados diretamente junto à população ou grupo social do qual se quer ter um conhecimento. Faça a seguinte atividade: acesse a página do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE, escolha uma tabela de dados, por exemplo, a situação das mulheres no mercado de trabalho. Em seguida, tente fazer uma análise crítica desses dados e construa um texto de até duas páginas sobre as implicações sociais da realidade estatística mostrada pela pesquisa. Juntamente à análise crítica, construa um gráfi co que possa ser utilizado em uma apresentação para seu texto crítico. R.:____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ________________________. Não se pode simploriamente afi rmar que Comte plasma o modelo científi co vindo das ciências naturais e físicas em uma análise social descuidada e totalmente dependente de tais modelos. Seu contato inicial com as ciências físicas desperta um desejo pela objetivação, pela sistematização e pela aplicabilidade de conceitos e teorias que, extraídos da realidade empírica da sociedade, permitiriam compreender a organização social em suas particularidades. Esta perspectiva é bem diferente de afi rmar que ele desejava submeter a ciência social a uma predominância das ciências naturais e físicas, tornando-a uma subciência. Para se ter clara essa distinção de perspectivas, é preciso compreender como Comte via a própria evolução da busca do conhecimento na história humana. Assim, primeiro é necessário compreender sua postulação dos três estágios pelos quais passou a humanidade até chegar ao conhecimento científi co, ou positivo. Segundo, é importante entender a forma como ele propunha a relação entre os indivíduos e as instituições socais, postulando que uma revolução é a alteração 21 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 conjunta e completa destas instituições. Por fi m, é preciso ainda compreender sua proposta de reorganização da sociedade, tendo como base um plano de trabalhos científi cos. Esse itinerário deve permitir-nos compreender os princípios constitutivos da sociologia como uma ciência social moderna, positiva, demonstrando o ideal de objetivação e sistematização proposto por Comte para o estudo da sociedade e da organização política do ser humano. Löwy (1988) nos esclarece que as pressuposições fundantes do positivismo são exatamente de que a sociedade possui leis que a regulam em seu funcionamento, tanto social quanto político e econômico, leis naturais como as próprias leis da natureza. O fundamento da compreensão de um sistema ordenado possibilita se pensar a sociologia, ou ciência social, como passível de se valer dos parâmetros das ciências físicas e naturais. Ao iniciar o estudo da fi losofi a social de Auguste Comte, vê-se de início uma predileção pelas normas propostas pelo empirismo para se chegar ao conhecimento. Desde David Hume, a relação entre fi losofi a empírica, ou seja, aquela que defende a construção do conhecimento a partir das impressões dos sentidos diante dos objetos, e o estudo da sociedade e da ética humana tem sido correlatamente aprofundada. Esse movimento reverbera na própria construção fi losófi ca de Comte, sua adesão à perspectiva empírica parece natural diante do próprio predomínio das ciências físicas, que também se dirigem pelos fundamentos propostos pelo empirismo. Vejamos a divisão do curso de fi losofi a positiva formulado por Comte (1972) entre os anos de 1826 e 1827, programado para 72 aulas: Preliminares gerais (2 aulas), exposição do objeto do curso; Matemática (16 aulas), Cálculo (7 aulas), Geometria (5 aulas), Mecânica (4 aulas); Ciências dos Corpos Brutos: Astronomia (10 aulas), Física (10 aulas), Química (10 aulas); Ciências dos Corpos Organizados: Fisiologia (10 aulas), Física Social (14 aulas). Este programa dá um vislumbre da forma como Comte previa estabelecer sua fi losofi a positiva, bem como o projeto de uma ciência social, ou como ele denomina, Física Social. No entanto, não é Hume, ou a física de Newton, que tem maior infl uência sobre a construção teórica empreendida por Comte, sua maior infl uência veio de um autor francês também muito importante na formação de um pensamento social pautado na aproximação com as ciências naturais e físicas. Saint-Simon é considerado um dos maiores expoentes do chamado ‘socialismo utópico’, corrente de pensamento de esquerda que no início do século XIX propunha uma ‘comunização’ da sociedade. Baseando-se em um modelo de comunismo idealizado, os socialistas utópicos pensavam na formação de grupos comunitários, por meio de pequenas indústrias, agricultura e artesanato. Essa corrente não via 22 Metodologia do Ensino de Sociologia ainda na industrialização da produção o grande divisor social de classes que mais tarde seria teorizado por Marx e Engels. Com relação a Saint-Simon e sua importância no início do século XVIII, Plekhanov (1977, p. 22) afi rma que: Saint-Simon, um dos cérebros mais enciclopédicos e menos metódicos da primeira metade desse século, esforçou-se por assentar as bases de uma ciência social. A ciência social, a ciência da sociedade humana, a física social, como a chama por vezes, pode e deve, segundo ele, transformar-se em uma ciência exata tanto quanto as ciências naturais. Esta seminal ideia de transformar as ciências humanas e sociais em uma ciência exata, ou pelo menos, tão sistematizada e objetiva quanto as ciências naturais e físicas, teve intensa e profunda infl uência na formação intelectual de Comte. Ainda jovem, em 1817, Comte se torna secretário de Saint-Simon e se aproxima bastante de seu escopo teórico, tendo-o auxiliado na organização de várias obras, tais como “L’organisateur” (1819-1820), “Du système industriel” (1821) e “Catéchisme des industriels” (1823-1824). No entanto, em 1824, depois de praticamente sete anos juntos, Comte rompe suas relações com Saint-Simon por começar a terdivergências profundas. Esses anos de parceria foram essenciais para a formação teórica de Comte, principalmente no que diz respeito à consolidação de sua visão sobre a relação entre as ciências naturais e humanas, bem como a respeito de sua concepção de uma fi losofi a social pautada na compreensão da evolução do conhecimento humano. Vejamos o que argumenta Schilling (1974, p. 318) sobre este ponto: Mais tarde, Comte, dando forma aos pensamentos de Saint- Simon, classifi cou as ciências, em relação à técnica, na seguinte ordem: Matemática, Astronomia, Química, Biologia, Sociologia. O saber mais antigo e mais geral mantém-se aqui em primeiro lugar, o mais recente e o mais especializado no fi m, mas a sociologia, que, enquanto ciência, é criação de Comte, já é na ideia social de Saint-Simon esse saber novo que deve organizar tecnicamente as relações dos homens e integrá-las da mesma forma que as ciências naturais, na indústria e na técnica, submetem a natureza ao homem tornando-a utilizável. Como dito, a infl uência de Saint-Simon sobre os fundamentos do pensamento comtiano pode ser tomada como a mais marcante em sua trajetória, todavia, não foi engessante, muito menos limitou a produção de uma fi losofi a social positiva e, por fi m, uma ciência social. Comte avança no caminho inicialmente inaugurado por Saint-Simon, aprofundando e dando novas interpretações ao estudo da história do conhecimento humano, da interação entre os estudos sociais e os parâmetros advindos das ciências naturais. Tal aprofundamento se dá, principalmente, na formação de uma fi losofi a positiva, a partir da base teórica erigida por sua defi nição da “lei dos três estados”. Essa teoria já havia sido esboçada por Saint- 23 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 Simon, mas Comte a aprofunda e a aplica na compreensão da evolução do conhecimento e na constituição de uma ciência social pautada na sistematização e na objetivação. Tendo em vista a discussão já empreendida nos tópicos anteriores, pode-se compreender que a ideia da existência de uma ‘lei’ dos estados do conhecimento humano alude à infl uência dos métodos iluministas, principalmente nas ciências naturais, em determinar leis que regem os fenômenos da natureza, mas que também podem ser formuladas com relação aos fenômenos sociais humanos. Ao estabelecer sua lei de estados do conhecimento humano, Comte traça uma linha ascendente de evolução que trouxe o ser humano da época das trevas à época da razão, da fi rme certeza do conhecimento científi co e da possível certeza do conhecimento social e político. Tomemos as palavras de Comte para compreendermos sua proposição da “lei dos três estados”: Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente sujeito, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fi ctício, o metafísico ou abstrato, e, enfi m, o científi co ou positivo. No primeiro, ideias sobrenaturais servem para ligar o pequeno número de observações isoladas de que se compõe então a ciência. Em outros termos, os fatos observados são explicados, isto é, vistos a priori de conformidade com fatos inventados. […] O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de transição do primeiro para o terceiro. Seu caráter é bastardo, liga os fatos segundo ideias que não são mais de todo sobrenaturais, mas não são ainda inteiramente naturais. […] O terceiro é o modo defi nitivo de qualquer ciência, não se destinando os dois primeiros senão a prepará-lo gradualmente. Os fatos se ligam então segundo ideias ou leis gerais de ordem inteiramente positiva, sugeridas ou confi rmadas pelos próprios fatos [...] (COMTE, 1972, p. 82). Ao propor a confi guração de desenvolvimento do conhecimento humano em cada ramo do saber, Comte prevê que a humanidade chegou ao seu ápice nas principais ciências, tanto naturais quanto humanas. Firme nesta compreensão, o autor entende que a ciência social, ou sociologia, surge como resultado da evolução pela qual passou a ciência humana no decorrer de séculos. Cabe aos indivíduos utilizarem os meios disponíveis para empreender o conhecimento necessário da realidade social, bem como a proposição das necessárias mudanças. A primeira base de compreensão da evolução do saber humano é o fundamento de todo o edifício teórico de Comte, formulado em vista de uma fi losofi a social, posteriormente, uma ciência social madura. Sua aplicação na compreensão e na proposta de reorganização da sociedade é o segundo ponto que nos interessa para compreender os fundamentos constitutivos da sociologia 24 Metodologia do Ensino de Sociologia no pensamento comtiano. Ao se voltar para a tarefa de organização social, Comte estabelece os caminhos necessários para se vencer uma dicotomia que, segundo ele, marca as disputas políticas dos dois primeiros estados. Uma disputa entre os representantes do estado teológico da política, os reis e seus interesses sempre contrários à sociedade, e os representantes do estado metafísico, o povo e suas aspirações sempre hostis com relação ao governo. O primeiro representa uma forma de governo ultrapassada, baseada numa legitimação religiosa mantida pelo medo e pela servidão. No entanto, o segundo representa uma forma de governo desordenada, anárquica, ancorada em idealizações críticas de hostilidade. Para Comte, a única forma de sanar o problema cíclico que fomenta as revoluções e as desordens sociais é o avanço da política para o terceiro estado, o positivo. Esse processo, segundo ele, é marcado pela formulação da própria ciência social, uma construção que se estabelece no estado mais evoluído da história humana. Vejamos novamente as palavras do autor: Todas as considerações precedentes expostas provam que o meio de sair, afi nal, deste deplorável círculo vicioso, origem inesgotável das revoluções, não consiste no triunfo da opinião dos reis, nem no da opinião dos povos, tais como se manifestam atualmente. Não há outro meio senão a formação e a adoção geral, pelos povos e pelos reis, da doutrina orgânica, única em condições de tirar os reis a direção retrógrada, e os povos a direção crítica (COMTE, 1972, p. 63). Esta visão da perspectiva de Comte sobre o círculo vicioso, que segundo ele escraviza a sociedade humana entre as falhas dos dois primeiros estados políticos, nos remete diretamente à própria situação da França de seu tempo. O fi m da era aristocrática e as convulsões sociais causadas pelas revoluções, são para Comte sintomas claros e inequívocos da necessidade de um novo sistema de organização social, agora baseado no sistema que é o ápice da história humana, o sistema positivista. As instituições sociais devem refl etir esse processo e serem construídas em vista do equilíbrio conquistado por meio da análise sistemática e objetiva da ‘física social’, a sociologia, em seus fundamentos positivos. O processo de construção social de uma realidade política equilibrada, sem os vícios das opiniões dos reis ou dos povos, deve seguir um rigoroso modelo positivo e científi co para realizar na mesma medida o que o ser humano conseguiu nas ciências naturais para alcançar o ápice de seu conhecimento. De modo geral, Comte (1972, p. 86) propõe: Conclui-se das considerações precedentemente indicadas, 25 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 que a verdadeira política, a política positiva, não deve mais pretender governar seus fenômenos, como as outras ciências não dirigem os que lhes são próprios. Elas renunciaram a esta ambiciosa quimera, que lhes caracterizou a infância, para se limitarem a observar os seus fenômenos e a ligá-los. A política deve fazer o mesmo. Deve preocupar-se unicamente em coordenar todos os fatos particulares, relativos à marcha da civilização, reduzi-los ao menor número possível de fatos gerais, cujo encadeamento deve pôr em evidênciaa lei natural dessa marcha, apreciando em seguida a infl uência das diversas causas que podem modifi car a velocidade. O intuito de Comte ao estabelecer esses parâmetros para a construção de uma ciência social objetiva e sistemática, pautada na observação das leis próprias da organização social e na minuciosa análise de suas interligações, como visto, é cessar com as constantes revoluções, disputas e confl itos sociais. Essa perspectiva será duramente criticada por autores de esquerda que virão após ele, principalmente a partir do chamado “socialismo científi co”, inaugurado por Marx e Engels. No entanto, as bases que ele lançou se tornaram o fundamento da ciência social, ou sociologia, abrindo um novo caminho em direção à crítica da sociedade e à discussão de seus problemas de forma objetiva e sistemática. Certamente que a obra comtiana se desdobra em diversas outras implicações, tornando-se uma obra densa e profundamente sistematizada a partir das bases aqui expostas, mas como você pode perceber, é preciso avançar em nossa discussão e buscar compreender quais eram os contextos histórico, político e econômico, refl etidos na própria construção comtiana, e que deram palco ao surgimento da sociologia. 3 OS CONTEXTOS DE SURGIMENTO DA SOCIOLOGIA A formação de um novo paradigma em torno da forma como o ser humano busca o conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo a sua volta é o substrato epistemológico sobre o qual se erige o edifício teórico da sociologia. Como você pôde ver até o momento, esse movimento se delongou por mais de um século e envolveu diversas áreas do conhecimento, desde a arte até as incipientes ciências naturais e físicas. No pensamento de Auguste Comte, refl etindo a própria realidade social de sua época, bem como a euforia pelo avanço científi co, a ciência social, ou sociologia, toma forma e fundamentos ancorados na busca de objetivação, sistematização e num projeto de organização da sociedade. 26 Metodologia do Ensino de Sociologia Esse quadro demonstra como a sociologia pode ser tomada como uma ciência moderna, ou seja, fruto da intensa e profunda discussão acerca do avanço do conhecimento humano em suas bases objetivas. No entanto, como não poderia deixar de ser, faz parte do fundamento da sociologia a observação e a prática empírica do pesquisador frente a seu objeto de estudo, neste caso, a sociedade e sua complexa organização. Diante dessa afi rmação, é necessário compreender qual o estado social do cenário no qual a sociologia emerge, sendo por isso fundamental perscrutar os contextos históricos, bem como o político e o econômico. Durante o século XIX, pano de fundo da formação da sociologia e de diversos movimentos intelectuais e científi cos, viu-se uma intensa dinâmica social, tanto no que se refere ao desenvolvimento das ciências, da indústria, bem como de mudanças no quadro político da Europa. Os três âmbitos elencados neste cenário, o político, o histórico e o econômico, passaram por profundas mudanças, rupturas e renovações, trazendo nova base de elementos para a discussão sociológica e seu avanço. Assim, neste tópico, partiremos da análise do contexto histórico, buscando compreender os principais movimentos sociais, políticos e intelectuais, que direcionaram os acontecimentos em diversos países europeus e americanos. Além disso, nos debruçaremos sobre os contextos político e econômico, entendendo que eles estiveram profundamente interligados durante todo o século XIX, moldando o que seria a discussão política dominante no século XX. Essa discussão gravitava em torno do problema do controle de um âmbito, ou esfera, sobre o outro, ou seja, a esfera política sobre a esfera econômica. Diversas correntes sociológicas, políticas e econômicas surgem a partir dessa discussão. Dentro do agitado e revolucionário, em todos os sentidos, século XIX, as nações que mais se destacaram foram, sem dúvida, na Europa, França, Inglaterra e Alemanha, já na América, os Estados Unidos da América também passavam por profundas e importantes mudanças. Compreender esse cenário é extremamente importante para se compreender o contexto histórico, político e econômico no qual a sociologia surge e se consolida como ciência. Dentre esses países, certamente a Inglaterra será o mais industrializado e a referência de crescimento econômico idealizado a partir da Revolução Industrial. No entanto, isso não a torna a mais justa e igualitária, pelo contrário, como aponta Schilling (1974, p. 306), “a Inglaterra era, já na época de Thomas More, um país de contrastes prementes entre ricos e pobres, que se agravaram mais no século XIX com a industrialização”. Já no contexto político, pode-se afi rmar que a França é o país, desde o 27 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 século XVIII, que apresenta maior turbulência social, principalmente em suas recorrentes rupturas e tensões com relação ao tipo de governo adotado. Como já aludido, essa realidade é uma das propulsoras da ânsia comtiana em acabar com a desordem político-social e construir um projeto ‘positivo’, científi co, de organização social orgânica, sanando tal oscilação. Por fi m, as tensões existentes do outro lado do Atlântico impactaram severamente as relações entre essas duas grandes nações europeias, a Revolução Americana será um campo de batalha estendido até os ‘portões da Europa’. Começaremos nosso itinerário pelo contexto histórico, avançando em seguida para os contextos político e econômico. 3.1 O CONTEXTO HISTÓRICO Para se compreender o contexto histórico do século XIX na Europa é necessário retroceder até o século XVI, revendo de forma crítica o próprio processo de organização e expansão das nações europeias e suas conquistas. Se tomarmos como referência apenas o processo de mercantilização e colonialismo, poderemos compreender parte do intricado processo histórico que culmina no século XIX. É necessário compreender como esse fenômeno da mercantilização e do colonialismo refl etiu um direcionamento que já vinha se construindo nos países europeus. Ao se analisar o século XVI, vê-se um forte avanço das nações ibéricas, principalmente a Espanha, dentro do próprio território europeu. Felipe II, rei da Espanha e ferrenho aliado do Papa, acossava constantemente a Itália, ao mesmo tempo em que desafi ava a Inglaterra de Elisabeth I. Essa posição espanhola foi impulsionada principalmente pela união do país, que antes se via dividido entre as regiões de Castela e Aragão, mas principalmente pelos fartos recursos em metais preciosos vindos das recém-colônias, o que permitia manter um grande exército ocioso, utilizando-o quando preciso e suplantando as nações e repúblicas que dependiam de exércitos mercenários para se defenderem. A França contava com uma monarquia até então não absolutista, na qual as províncias e os nobres gozavam de participação nas decisões importantes para o país e o rei mantinha em equilíbrio as forças políticas importantes. Esse cenário será modifi cado apenas com Luís XIV, o chamado “Rei Sol”, que se tornou um dos principais monarcas absolutistas da Europa no século XVII. Esses dois países apresentam características distintas daquelas que estavam se assentando na Inglaterra já desde o fi m do reinado de Henrique VIII. 28 Metodologia do Ensino de Sociologia No desenrolar desses movimentos e na sequência das sucessões monárquicas após a morte de Henrique, vê-se Eduardo VI assumir o trono, como infante, tendo um Conselho Regencial como tutor. Nesse período fortaleceu-se a Igreja Anglicana, principalmente pela ação de Tomás Cranmer, o que deu as feições próprias de um cristianismo protestante e afastou ainda mais a Inglaterra da Igreja Romana. No entanto, após a morte prematura de Eduardo, ascende ao trono sua meia-irmã, Maria Tudor, a qual restabeleceu a primazia do catolicismo na Inglaterra e reverteu o processo de fortalecimento do protestantismo anglicano.Como aludido, essas alterações abruptas, feitas mais por motivos políticos que realmente teológicos ou de fé no âmbito religioso, levaram à criação de um estado de instabilidade no corpo social inglês após a morte de Henrique VIII. A pressão exercida pela Igreja Romana e pelo Sacro Império Germânico levou a um aumento da situação de instabilidade e fomentou o cenário no qual emergirá Elisabeth I e o fortalecimento do pensamento republicano na Inglaterra. Elizabeth I era protestante, promovendo um fortalecimento da Igreja que Henrique havia criado, no entanto, não fomentando uma perseguição muito forte ao catolicismo, como aquela feita no período de regência de Eduardo VI. Todavia, em 1570, ela é excomungada pela Igreja Romana, o que levou a um crescente medo de atentados contra a sua vida, principalmente pela difusão da teoria do tiranicídio benéfi co. A Igreja Romana tinha imenso interesse em fomentar tal clima de animosidade contra a rainha e, após sua excomunhão, decretou que seria um ato de fé o assassinato de um tirano, ou tirana, no caso de Elizabeth, que oprimisse o verdadeiro “corpo de Cristo”. A inserção de uma infl uência republicana na Inglaterra e a instabilidade na sucessão do trono, trouxeram uma condição de diminuição do poder monárquico e ao mesmo tempo uma ânsia de maior participação por parte de burgueses e aristocratas, como argumenta Hadfi eld (2005, p. 17): Se o republicanismo foi tomado de alguma maneira como clara e coerente doutrina nos meados do século XVI na Inglaterra, isso se deu à convicção intelectual de que era necessário controlar o poder da Coroa estabelecendo meios de assegurar que um conjunto de conselheiros virtuosos e servis poderiam sempre ter o direito constitucional para aconselhar o monarca, e também a infl uenciar e controlar suas ações dentro dos limites da lei. Esse cenário inglês será determinante para a formação do quadro geral do país até o século XIX, tornando-se a pedra angular da formação de uma constituição econômica e política própria, porém, isso não acontecia com a Espanha, que acabará por perder seu poderio marítimo, bem como sua força 29 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 militar na Europa, passando a se concentrar em suas colônias e mantendo um forte sistema monárquico alinhado à Igreja Católica. A França, por sua vez, vê avançar o absolutismo de seus reis até a execução de Luís XVI por conta da Revolução Francesa. A reverberação dessas disposições iniciadas ainda no século XVI poderá ser percebida na constituição desses países no século XIX. Ao se analisar qual foi o desdobramento das políticas e dos movimentos econômicos empreendidos, percebe-se que o quadro histórico oitocentista é refl exo da maior ou menor construção de um cenário propício para o surgimento da indústria e dos governos republicanos em cada nação. O século XIX será o preâmbulo para a formação econômica e política da Europa do século XX, mas pode ser tido também como ponto de transição entre um modelo produtivo e político falido, baseado no latifúndio, no capitalismo mercantil e na monarquia, e um modelo que se tornaria hegemônico, baseado na industrialização e no republicanismo. A Inglaterra oitocentista é o puro exemplo dessa dinâmica que começou a ser forjada, como dito, no século XVI, estando suas organizações políticas e econômicas propícias ao surgimento desse novo modelo. Por outro lado, a França, a Espanha e outros países europeus não apresentavam tal cenário, e amargaram na verdade um quadro social conturbado e cheio de instabilidades políticas e econômicas, como se verá mais à frente. Tente pensar sobre o quadro histórico e econômico da Europa e América do Norte em comparação ao mesmo quadro nas Américas do Sul e Central no século XIX. Pode-se dizer que a diferença percebida nesta comparação tem refl exos na forma de organização produtiva que se tem nos dias atuais nas mesmas regiões? Se sim, qual seria a forma ideal de sanar tal diferença e suas implicações sociais? Dessa forma, o cenário histórico do século XIX no qual Comte estabelece as bases para o surgimento e a consolidação da sociologia, é fruto de um longo período de formação que não pode ser entendido sem se analisar o quadro europeu desde o século XVI. Essa análise, como já apontado, é o substrato que fomenta uma visão objetiva, sistemática, da organização da sociedade, uma ideia 30 Metodologia do Ensino de Sociologia de encadeamento e de processo histórico que pode ser mensurado, analisado e criticado de maneira clara. Tanto a Inglaterra quanto a França serão os dois principais países no cenário mundial do século XIX, tendo em vista a ocorrência de amplo avanço nas ciências nesses dois países, bem como a ocorrência de revoluções sociais e econômicas. A polarização entre essas duas forças europeias será perpassada pela ascensão dos Estados Unidos da América, principalmente após a instauração de uma revolução ainda no século XVIII e uma guerra civil no século XIX. Esse cenário servirá de objeto de análise não só para Comte, mas ainda para autores, como Marx e Engels. Assim, é necessário aprofundar um pouco mais os aspectos político e econômico, buscando uma composição mais acurada do quadro geral que se estabeleceu durante todo o século XIX, palco de surgimento e consolidação da sociologia. 3.2 O CONTEXTO POLÍTICO E ECONÔMICO Ao analisarmos o processo de formação histórica que culminou com a confi guração própria do século XIX europeu, percebemos que há um inegável avanço econômico, tendo em vista a transformação ocorrida desde o mercantilismo até o início da industrialização, bem como um direcionamento político, estabelecido pelas mudanças ocorridas no decorrer de três séculos. Esses movimentos convergiram para um cenário oitocentista bastante complexo e instável, sendo por isso o substrato perfeito para o surgimento de uma ciência social direcionada pela busca objetiva e sistemática dos mecanismos e leis que ‘regem’ o mundo social. O contexto histórico é direcionador do entendimento sobre o processo mais amplo de formação do quadro geral da sociedade europeia entre os séculos XVI e XIX, porém, é necessário compreender um pouco mais acuradamente os contextos econômico e político. Começando pela questão do contexto econômico, como bem apontam Hunt e Sherman (1995), pode-se afi rmar que a partir de 1500, com o início do mercantilismo, estabelecem-se as bases para a formação do sistema capitalista. No entanto, esse capitalismo mercantilista está voltado para o acúmulo de capital, ou seja, a acumulação de dinheiro através da comercialização. A incipiente produção manufatureira é expandida pelo processo de acumulação de capital por meio do comércio, uma vez que o benefi ciamento 31 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 das matérias-primas vindas das colônias é um fator de aumento do capital. Nos sistemas mercantilistas do século XVI até o século XVIII, o principal personagem da atividade econômica é o comerciante, sobretudo o comerciante exportador e “aventureiro”. É ele quem negocia, empresta, organiza sociedades e expedições, sendo encontrado nas mais diversas organizações econômicas: empréstimo para as grandes aventuras, sociedades por ações, sociedades privadas, mistas ou estatais, bancos, esses bancos que desde o século XV subvencionam o comércio colonial, as monarquias nascentes, bancos que se tornam poderosas dinastias, tais como as do Thurzo, dos Fugger, na Áustria, dos Médicis, em Florença, dos Hochstetter, em Franqueforte. […] Essa atividade econômica que se desenvolve ao redor do comerciante imprime a característica essencial do regime capitalista da época, mas ao lado dela persistem atividades corporativas e artesanais. As corporativas, fortemente regulamentadas, perdem progressivamente sua força: fecham suas portas a elementos humanos jovens e dinâmicos, a fi m de conservar os privilégiosadquiridos dos mestres; fecham ainda suas portas aos progressos técnicos, tornando-se pesadas, esclerosadas, estáticas, pelos excessos de regulamentação. As atividades artesanais, livres, também perdem aos poucos sua importância: o desenvolvimento do setor capitalista dominado pelos comerciantes vem procurar empregados e operários na massa de artesãos que se tornam, assim, progressivamente, uma massa de salariados. Este sistema do capitalismo comercial e regulamentar, que se desenvolve no decorrer do longo período mercantilista, prepara o advento do capitalismo industrial – que aparecerá com a revolução técnica do último terço do século XVIII e se generalizará no século XX (HUGON, 1962, p. 97-98). Esse cenário é um preparativo para a futura hegemonia do capitalismo industrial, como se verá mais à frente, porém, é preciso compreender que o processo de fundação do capitalismo mercantilista fi cou direcionado pelos rumos tomados pelas nações europeias no âmbito político, como se buscou indicar, de forma geral, na apreciação do contexto histórico. Ao chegarem ao século XIX, os países europeus não desenvolveram igual avanço de amadurecimento do processo capitalista de comercialização, ou mais ainda de produção. A Inglaterra e a França tornaram-se as nações mais infl uentes no cenário europeu e no quadro geral mundial. No entanto, a primeira apresentou muito mais estabilidade e direcionamento político, enquanto a segunda não conseguiu tal êxito. O processo de industrialização na Inglaterra seguiu a passos largos a demanda de mercadorias que se tornava crescente durante o século XVIII, o que impulsionou o acúmulo de capital nesse país e, consequentemente, propiciou o avanço para a nova fase industrial do capitalismo, como nos instruem novamente Hunt e Sherman (1995, p. 53): 32 Metodologia do Ensino de Sociologia 1 A história humana esteve sempre atrelada ao processo de busca de sobrevivência e construção de possibilidades para se ter uma vida mais confortável e segura, constituindo essa história em uma luta constante para superar os desafi os impostos pelo meio natural. Ao se pensar nos diversos momentos de evolução dessa busca, seria correto dizer: a) Toda a história humana foi marcada por ‘revoluções tecnológicas’, desde a evolução do nomadismo para a agricultura e criação de animais, bem como cada nova ferramenta e aparato produtivo. b) A história produtiva só teve início quando a tecnologia pôde contar com fontes de energia que potencializaram a produção e permitiram o surgimento de diversos tipos de máquinas e aparatos. c) A sobrevivência foi o objetivo primário dos primeiros modos de produção, no entanto, com o advento da tecnologia, o foco passa a ser apenas o conforto e o desenvolvimento de novas formas de satisfação. Entre 1700 e 1770, os mercados estrangeiros disponíveis para os produtos fabricados na Inglaterra cresceram muito mais rapidamente que os mercados domésticos. No período compreendido entre 1700 e 1750, a produção das indústrias que atendiam o mercado doméstico cresceu 7% e a das indústrias de exportação, 76%. No período entre 1750-1770, esses índices foram de 7% e 80%, respectivamente. O rápido crescimento das exportações de produtos manufaturados ingleses foi a causa mais importante de uma transformação decisiva na história do homem: a Revolução Industrial. A Revolução Industrial pode ser tida como o marco que separa o esgotamento do capitalismo mercantilista, a primeira fase do capitalismo, do capitalismo industrial, sua fase mais madura. De acordo com Watkins e Kramnick (1981), a expressão “Revolução Industrial” é um erro se pensada a forma como se gesta tal processo, ou seja, as bases que lhe deram sustentação e o cenário que lhe proporcionou o surgimento. Pode-se pensar que a própria euforia dos defensores da tecnologia produtiva como ápice da capacidade humana, levou-os a classifi car a incrementação da produção industrial como uma revolução que modifi caria toda a história da humanidade e traria uma situação de fartura e igualdade nunca experimentadas. 33 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 d) Toda a história produtiva do ser humano está baseada na produção de tecnologias que se tornaram necessárias para a formação de comunidades específi cas, sendo este um diferencial entre as primeiras comunidades e se constitui como um defi nidor de nível evolutivo das sociedades até hoje. Se a Revolução Industrial trouxe um novo incremento, exponencial, na forma de se produzir bens de consumo, o pensamento econômico já vinha amadurecendo desde o século XVIII no cenário inglês. O surgimento do liberalismo econômico, cuja principal voz ecoa da obra de Adam Smith, teoriza que o Estado, como ente político não envolvido no processo produtivo, não pode interferir nas relações econômicas dos indivíduos, existindo uma espécie de ‘mão invisível’ que regula essas relações, além dos interesses desses mesmos indivíduos em sustentar essa relação, ou seja, um quer comprar algo e o outro quer vender algo (SMITH, 1996). Existe assim um câmbio livre, uma livre troca a partir de interesses econômicos entre os indivíduos, sendo essa a base do mercado. O Estado não pode intervir nessa relação, sendo direcionado a ele apenas a tarefa de proteger a posse privada e regulamentar, através de leis, a validade das relações econômicas entre os indivíduos para que não haja prejuízos ou crimes fi nanceiros. Estes dois fatores juntos, a expansão industrial a partir da Revolução Industrial, bem como o assentamento de um pensamento político-econômico, deram à Inglaterra a dianteira durante praticamente todo o século XIX. O mesmo não se percebe na França dos séculos XVIII e XIX, apesar de gozar de grande produção intelectual e científi ca, principalmente por conta de sua herança iluminista propagada em toda a Europa. O processo de industrialização foi muito mais lento e difícil na França, principalmente em vista de sua política centralizada na monarquia e trucada pela já adiantada disputa entre a nobreza, que se esvaía, e a crescente burguesia capitalista. Essa instabilidade política e o atraso industrial deram à França um quadro político-econômico bastante distinto daquele da Inglaterra. Para se compreender essa gritante diferença, é preciso focar no século XVIII, principalmente em suas décadas fi nais. Como já discutido no tópico sobre o contexto histórico, a Revolução Americana, ocorrida ainda na década de 1770, trouxe um esgotamento dos cofres franceses, isso porque a França apoiou substancialmente essa revolução, tendo em vista a busca do enfraquecimento de seu principal inimigo, a Inglaterra. No entanto, a perda da colônia americana não 34 Metodologia do Ensino de Sociologia impactou a Inglaterra a ponto de torná-la arrasada, ao contrário, o fortalecimento da industrialização ia mais forte no fi nal desse século. No entanto, o quadro francês era bastante preocupante, com uma base industrial ainda incipiente, principalmente em vista do poderio ainda existente de uma nobreza, mesmo que decadente, a desigualdade social era alarmante. A política se restringia à centralização monárquica, com extrema distância do rei e a nobreza com relação ao povo e à burguesia capitalista. Esse quadro culmina com a insurgência popular, seguindo a infl uência iluminista e a própria base da Revolução Americana apoiada pela França, em 1789. A Revolução Francesa atinge de morte o decrépito sistema monárquico, junto à própria nobreza latifundiária. Esses acontecimentos franceses marcam o fi nal do século XVIII com profundas rupturas políticas, sociais e econômicas. A essa agitação, seguem-se acontecimentos ainda mais tenebrosos e marcantes, em 1792, ainda dentro dos desdobramentos da Revolução de 1789, o monarca Luís XVI é executado juntamente a sua esposa. O ‘período do terror’, que leva a França à total instabilidade, faz vítimas em diversos ramos, atémesmo na ciência, como foi o caso de Lavoisier, que foi executado por ser o responsável pela coleta de imposto do rei. No entanto, após o fracasso da Revolução, vê-se a ascensão de Napoleão, sua sanha imperialista que varre a Europa, a derrota para a Inglaterra, o retorno da monarquia, posteriormente o retorno de um Bonaparte ao poder. Já em meados do século XIX, outra revolução, essa menos duradoura promovida pelo proletariado, assola Paris. Segundo Losurdo (2015), o biênio revolucionário de 1848-1849, mesmo que rapidamente sufocado pelo poder do capital e pela burguesia dominante, representou uma base sólida para o fortalecimento do espírito revolucionário que continuaria a crescer até as primeiras décadas do século XX. O próprio Marx assiste a essa insurreição proletária em meados do século XIX e prevê o avolumamento das revoluções em toda a Europa, como segue: O húngaro não será livre, nem o polonês nem o italiano, enquanto os trabalhadores permanecerem escravos! Por fi m, em virtude da vitória da Santa Aliança, a Europa assumiu uma forma que fazia cada novo levante proletário na França coincidir diretamente com uma guerra mundial. A nova revolução francesa é obrigada a abandonar imediatamente o território nacional e a conquistar o terreno europeu, o único em que será possível realizar a revolução social do século XIX (MARX, 2012, p. 65). Esse quadro político reverberará na obra de praticamente todos os pensadores que se voltaram para a questão social nesse período e no século posterior. Não esqueçamos que o próprio Comte vê essas agitações e fortalece ainda mais sua percepção de que é necessário pensar uma organização social 35 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 A obra “A riqueza das nações: investigações sobre sua natureza e suas causas”, por Adam Smith, é tida como a peça fundamental de estabelecimento da moderna economia política. Nessa obra, o autor aborda o tema da geração de riqueza, os processos de livre comércio e o estabelecimento do chamado liberalismo econômico. É uma leitura fundamental para se entender o pensamento econômico liberal dominante nos séculos XIX e XX (SMITH, 1996). que supere esse dualismo de classes, principalmente em vista de uma união da sociedade como um todo. Comte será, para os pensadores sociológicos de esquerda, o arauto de uma visão conciliatória, reacionária, diante da efervescência revolucionária desse período, mas como já se discutiu, sua visão era a de que a opinião do povo, sempre crítica e anárquica, fazia parte ainda de um estado metafísico da ciência política, assim como a opinião do rei (nobreza) representava o estado teológico. Ao fi nal do século XIX, olhando para todo o quadro político da França oitocentista, alguns autores viram a marca do atraso e da insanidade, caso de Gustave LeBon (2008), que em 1895 publica sua obra “Psicologia das multidões”, na qual ele cria uma explicação psicopatológica sobre os processos revolucionários, afi rmando ser fruto da insanidade mental e da barbárie. Ele refere-se ao período que vai de 1789 a 1871, desde a Revolução Francesa até a Comuna de Paris. No entanto, esse importante período da história europeia e mundial, que compreende o fi m do século XVIII e todo o desenrolar do século XIX, será o nascedouro das principais correntes sociológicas, assim como o nascimento da própria sociologia enquanto ciência social a partir do pensamento de Comte. O papel da Inglaterra será central ao ditar o andamento da evolução econômica e ao prover o mundo com o pensamento dos economistas clássicos, como já mencionado, Adam Smith, David Ricardo, entre outros. A França será o berço do fervor jacobino e da evolução do pensamento socialista utópico, culminando no socialismo científi co de Marx e Engels e dando as bases empíricas para a avaliação social dos pensadores de esquerda. O intricado e volúvel contexto político-econômico da Europa o século XIX, principalmente na França e Inglaterra, é bastante difícil de ser resumido e analisado, no entanto, é primordial entendermos que ele foi o divisor de águas para a construção de uma 36 Metodologia do Ensino de Sociologia nova ciência moderna, a sociologia, sendo também o ‘laboratório’ para formulação e desenvolvimento de suas principais linhas de pensamento. No próximo tópico, analisaremos as principais linhas de pensamento a partir dos chamados clássicos da sociologia. 4 OS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA Caro acadêmico, assim como em todas as demais ciências, naturais ou humanas, a sociologia passou por um período de fundamentação e consolidação de suas bases teóricas e práticas. Esse processo de amadurecimento e delimitação dos diversos ramos de abrangência da discussão sociológica foi fomentado por pensadores de extrema agudeza teórica e ampla infl uência prática. Nomes, como o de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, tornaram-se clássicos dentro da disciplina da sociologia. Quando nos referimos a esses pensadores como clássicos, ressaltamos a importância deles na construção teórica da sociologia, mas também indicamos que eles se tornaram catalisadores do pensamento sociológico. Praticamente todas as correntes sociológicas surgidas nos séculos XIX e XX tiveram infl uência do pensamento desses autores, na concórdia ou na discórdia. Assim, ao buscarmos demonstrar o cerne teórico da obra desses pensadores, abrimos um amplo e profícuo caminho para a discussão da sociologia enquanto disciplina e sua importância na construção das ciências humanas a partir do século XIX. Mesmo divergindo em diversos pontos nevrálgicos, estes três autores, Marx, Durkheim e Weber, comungam de diversos pontos em comum, principalmente com relação às investigações que eles empreenderam sobre a realidade industrial capitalista e sua infl uência na organização social da sociedade contemporânea. Além disso, refl etiam também o ideal científi co que deu surgimento à própria sociologia e a impulsionou a partir da obra de Comte. Cada qual terá sua construção teórica impulsionada pelas prementes necessidades de se discutir a realidade social surgida a partir da Revolução Industrial, as ressonâncias das diversas revoluções ocorridas entre os séculos XVIII e XIX, bem como as aparentemente insuperáveis questões do futuro da organização social no nascente século XX. Diante dessas colocações, parece bastante prudente delimitar os pontos centrais do pensamento de cada um desses três autores, tendo a consciência de que esse movimento é apenas sintético, dada a enormidade da obra de cada um deles e a ressonância que tiveram na construção de várias correntes teóricas dentro da sociologia e do pensamento político ocidental. 37 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA Capítulo 1 4.1 ÉMILE DURKHEIM O pensamento de Émile Durkheim (1858-1917) é caracterizado pela preocupação em se formular uma compreensão dos fenômenos sociais e suas diversas abordagens, partindo para a construção de sua própria teoria sobre a formação de tais fenômenos e a maneira como eles infl uenciam a organização social. Sua obra refl ete a centralidade da discussão sobre o processo de industrialização pelo qual a sociedade ocidental passava desde o século XVII, marcadamente o século XIX, pode-se dizer que Durkheim viu surgir o capitalismo industrial e com ele todas as mazelas trazidas para o convívio social. O cerne de suas primeiras pesquisas está centrado na demonstração de que os fatos sociais são os meios pelos quais a sociologia pode vislumbrar os caminhos traçados pela confi guração social na história do homem, sendo eles a causa dos fenômenos sociais. “A concepção da sociologia de Durkheim se baseia em uma teoria do fato social. Seu objetivo é demonstrar que pode e deve existir uma sociologia objetiva e científi ca, conforme o modelo das outras ciências, tendo por objeto o fato social” (ARON, 1987, p. 336). Essa clara infl uência cientifi cista, baseada na busca empírica
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