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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros MACRAE, E. A construção da igualdade-política e identidade homossexual no Brasil da “abertura” [online]. Salvador: EDUFBA, 2018, 377 p. ISBN 978-85-232-1998-7. https://doi.org/10.7476/9788523219987. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. A construção da igualdade-política e identidade homossexual no Brasil da “abertura” Edward MacRae https://doi.org/10.7476/9788523219987 http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ A construção da Igualdade Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura” a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 1 21/05/18 10:16 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira Assessor do Reitor Paulo Costa Lima EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Ângelo SzanieckiPerret Serpa Caiuby Alves da Costa CharbelNiño El Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares de Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 2 21/05/18 10:16 EDWARD MACRAE A construção da Igualdade Política e identidade homossexual no Brasil da “abertura” Salvador EDUFBA 2018 a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 3 21/05/18 10:16 Autores, 2018. Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Ideia original de capa Sandro Pimentel Projeto Gráfico Gabriel Cayres Revisão Elber de Oliveira Lima Normalização Carina dos Santos SISTEMA DE BIBLIOTECAS – UFBA Editora afiliada à Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo s/n – Campus de Ondina 40170-115 – Salvador – Bahia Tel.: +55 71 3283-6164 Fax: +55 71 3283-6160 www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br M174 Macrae, Edward. A construção da igualdade- política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. / Edward MacRae. – Salvador: EDUFBA, 2018. 377 p.: il. ISBN: 978-85-232-1717-4 1. Identidade homossexual. 2. Lésbica. 3.Homossexualidade - aspetos antropológicos. 4.Homossexual - identidade. I. Título. CDD 306.766 a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 4 21/05/18 10:16 In memoriam Meu irmão e grande companheiro Alan Godfrey Gonçalves McRae, meu pai Alan McRae e minha mãe Dulce Baptista das Neves McRae (Dolly), que muito me estimularam e apoiaram, enquanto preparava este trabalho. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 5 21/05/18 10:16 Sumário 9 Prefácio da primeira edição de A construção da igualdade Peter Fry 15 Apresentação e agradecimentos PARTE I – ESCRITOS AVULSOS 21 Revendo Velhos Escritos 37 Os respeitáveis militantes e as bichas loucas 51 Em defesa do gueto 67 Afirmação da identidade homossexual: seus perigos e sua importância 77 AIDS: prevenção ou novo tipo de segregacionismo? PARTE II – A CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE 93 A contestação cultural e a “abertura democrática” a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 7 21/05/18 10:16 107 O antropólogo pode dar voz aos oprimidos sem virar nativo? 119 Identidade homossexual e política 137 O jornal “Lampião de esquina” 165 A fundação do Grupo Somos 189 O “casamento” com o grupo 215 As crises do Somos e a defesa do Lampião 249 Diferenças irreconciliáveis entre os “iguais” 283 A campanha contra a violência policial 305 Dupla discriminação e dupla militância, o caso das lésbicas e dos negros dentro do movimento homossexual 341 A construção da igualdade: movimento, comunidade e identidade 367 Epílogo 371 Referências a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 8 21/05/18 10:16 Prefácio da primeira edição de A construção da igualdade A beleza está no olhar de quem vê. Da mesma forma, os textos per- dem sua objetividade para o olhar histórico de quem os lê. Assim, as etnografias, tantas vezes escritas no “presente etnográfico”, se- rão sempre textos históricos, cujo significado será dado pela pers- pectiva social, cultural e historicamente distante dos seus leitores. A leitura deste livro, que trata de eventos que ocorreram há me- nos de uma década atrás, provoca intensa emoção e uma nostalgia até dolorosa. O apagar das luzes da ditadura militar coincidia com um otimismo cultural e social bastante generalizado, e os rapazes e mo- ças que fizeram acontecer o movimento homossexual sonhavam com uma sociedade mais justa e igualitária e, sobretudo, uma sociedade em que sua homossexualidade, liberta de todos os tabus, poderia ser celebrada sem restrição. Agora, os tempos são radicalmente outros: vivemos uma conjuntura política e econômica que frustra a todos, e a libertação da homossexualidade está sediada por um vírus miste- rioso e mortífero. A história é contada admirável e detalhadamente por Edward Ma- cRae, que, nas melhores tradições da antropologia, se dedicou a com- binar os papéis de observador e participante, narrando e vivenciando a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 9 21/05/18 10:16 10 | EDWARD MCRAE os eventos que descreve e analisa. Com simpatia para com seus ami- gos e o máximo de objetividade – um ideal, por definição, nunca rea- lizado mas, mesmo assim, guia indispensável para qualquer trabalho sociológico honesto –, Edward MacRae relata os triunfos e desapon- tamentos, as felicidades e tristezas, e os momentos de união eufórica e cisão amarga do movimento homossexual brasileiro. Como muitos movimentos de libertação, o movimento homos- sexual brasileiro esposou um ideal antiautoritário, pressupondo a igualdade de todos seus membros. Este mesmo ideal supõe também uma semelhança fundamental e como que essencial entre os mili- tantes. Na sua análise do nascimento, organização, cisão e relativo desfalecimento do movimento, MacRae mostra como esse ideal es- barrava constantemente contra outros menos explícitos. Os militan- tes não eram tão iguais assim: uns falavam melhor do que outros, assim dominando as reuniões e influindo mais na tomada de deci- são. As mulheres e os negros homossexuais logo se sentiram sufi- cientemente diferentes para formar seus próprios grupos, buscan- do escapar do machismo e racismo dos outros para poder melhor “trabalhar suas condições específicas”. Havia também uma intensa disputa entre aqueles ligados aos partidos políticos e aqueles que acreditavam na necessidade de manter, a todo custo, a autonomia do movimento homossexual. Esta última tensão, especificamente centrada em acusações contra manobras escusas da Convergência Socialista, levou a uma grande e irreparável cisão – o “racha” – no grupo originário do Somos – SP. Embora centrado no movimento homossexual, o livro tece cons- tantes comparações com outros movimentos sociais da época, sobre- tudo o movimento feminista, cujas ideias e práticas em muito inspi- raram os jovens militantes homossexuais. Assim, creio que o trabalho de Edward MacRae será leitura essencial para todos aqueles que pro- curam entender melhor o crescimento dos movimentos sociais brasi- leiros no passado recente e, por conseguinte, sua fase atual. Uma das coisas que mais me chamou atenção ao ler de novo este livro – fiz parte da banca que examinou uma versão anterior que foi a tese de doutorado do autor – foi uma defasagem bastante grande entre as expectativas dos membros do movimentoe a realidade da a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 10 21/05/18 10:16 PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE A CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE | 11 reação pública às reivindicações libertárias. As comemorações do dia primeiro de maio de 1980, programadas pelos metalúrgicos grevistas de São Bernardo do Campo, suscitaram acalorados debates entre os militantes paulistas. Finalmente, uma parte do Somos – aquela que adotava uma posição menos radicalmente autonomista do movimento homossexual – resolveu participar do evento, mas não sem bastante trepidação. Afinal, os sindicatos eram vistos como epicentro do ma- chismo e bastião dos defensores da “luta maior” que privilegiavam a luta de classe e acusavam todos os demais movimentos de serem “diversionistas”. Para espanto de todos, porém, os militantes homos- sexuais foram recebidos com aplausos entusiastas pelos operários. Numa outra ocasião, o pessoal do Somos participou de uma passeata pelo centro de São Paulo, em protesto contra a ação da polícia que perseguia prostitutas e pessoas acusadas de serem homossexuais. Mais uma vez a apreensão. Mais uma vez a ovação. O único caso cita- do de reprovação concreta foi o de um grampeador lançado da janela de um prédio na rota da passeata. Com muita razão, o autor considera essa falta de repressão visível ou legal – o Brasil é um caso raro por nunca ter tido nenhuma legisla- ção homofóbica – um dos grandes entraves à organização e à disse- minação do movimento homossexual no Brasil. Afinal, nos Estados Unidos havia leis draconianas – ainda há em alguns estados – contra a homossexualidade e, lá, o movimento homossexual teve que en- frentar uma oposição forte e violência. Haja visto o famoso Stonewall Riot, em 1969. Na ausência de um inimigo identificável e tangível, o movimento teve que “inventá-lo”, seja ele na Convergência Socialis- ta e nos outros partidos de esquerda – os defensores de “luta maior” –, seja ele dentro do próprio movimento. Correlatas são as cisões e disputas pelo minipoder que o movimento gera. Correlata também – creio eu – é a canalização da energia militante, às vezes, longe do objetivo de eliminar o preconceito contra a homossexualidade para a construção de uma ordem burocrática às alturas da paixão cartorial nacional. Horas e horas são dedicadas à tarefa de esmiuçar a forma que o movimento deve tomar, de definir normas de comportamento nas reuniões, de controlar excessos de autoridade – acusações de “ma- chismo” valem para este movimento o que acusações de “comunista” a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 11 21/05/18 10:16 12 | EDWARD MCRAE ou reacionário” valem para outros – e de criar fronteiras claras entre homossexuais e heterossexuais. Esta importante percepção do autor cria ecos em muitos cantos. Penso, de imediato, no movimento negro no Brasil. Ele também en- frenta dificuldades em se organizar, problemas na identificação de um inimigo tangível e uma notável tendência à cisão. A República não produziu legislação explicitamente racista. Esta constatação suscita velhos fantasmas sobre a constituição e reprodução das desigualdades sociais no Brasil, evocando inevitavel- mente surrados argumentos chavões acerca da cordialidade do brasi- leiro. Mas representa ainda um desafio para quem quer entender uma sociedade que exibe o maior despeito pelas leis que tem – sobretudo quando os ricos as burlam – e uma estranha mas eficiente capacidade de impor leis que não têm. Senão, como explicar a perpetuação das desigualdades raciais? Como entender que as mulheres e homosse- xuais sentem a necessidade de pôr fim à repressão que sentem? Estas reflexões são provavelmente parecidas com aquelas feitas pelos próprios militantes. Mas não sei se surtiram o efeito que me- recem. Se o movimento negro e o movimento homossexual têm as dificuldades que têm, talvez esteja faltando um conhecimento mais apurado das formas de controle social que caracterizam a socieda- de brasileira. As palavras de ordem de ambos os movimentos lem- bram muito as palavras de ordem dos Estados Unidos e da Europa. E, às vezes, penso que uma das razões de ser destes movimentos é a vontade de compartilhar a modernidade com os países do Primeiro Mundo, seguindo a mesma lógica das modas literárias. Mais um sinal do atrelamento cultural e econômico em geral. Certamente penso – e menos cinicamente – que estas palavras de ordem carregam visões sociais que podem distorcer a visão de uma realidade social bastan- te diversa daquela que as produziu ou, no mínimo, criar a ilusão de que a construção social das diferenças e desigualdades não difere significativamente de um país para outro; de uma cultura para outra. E não são apenas as formas de controle que variam. As próprias formas de classificar o que será controlado também divergem, às vezes radicalmente. Para produzir um movimento negro, os seus militantes têm primeiro de convencer muita gente de que o a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 12 21/05/18 10:16 PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE A CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE | 13 Brasil é composto de negros e brancos e não de pretos, sararás, cafu- zos, mamelucos, mulatos, etc. Da mesma forma, os militantes homos- sexuais tiveram que convencer o Brasil de que aqui há homossexuais, bissexuais e heterossexuais, e que esta forma de definir os persona- gens do cenário sexual amoroso é mais verdadeira do que aquela que tradicionalmente fala de bichas, sapatões, homens, mulheres, viados, giletes, bofes... Ou seja, o alvo dos movimentos negros e homossexuais não é a “re- pressão” pura e simples, identificável e tangível; é a cultura brasileira como um todo. Não surpreende tanto, então, suas dificuldades. Por mais que se tente acreditar que transformações sociais podem ocor- rer a partir das transformações individuais, o fato é que as estruturas profundas de pensamento social mudam com muito vagar. É segura- mente por isso que o movimento homossexual gerou tanta frustração. Mas, como bem aponta Edward MacRae, o movimento homosse- xual não foi um fracasso. Tanto assim que membros dele agora parti- cipam na luta contra os efeitos sociais mais perversos da aids. Tanto assim que o assunto da discriminação em base da orientação sexual está firmemente colocado na pauta nacional. Se não entrou nesta Constituição, entrará na próxima. Peter Fry Rio de Janeiro, 13 janeiro 1989 a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 13 21/05/18 10:16 Apresentação e agradecimentos Este livro é o resultado da pesquisa bibliográfica e de campo, que realizei entre 1978 e 1985, para minha tese de doutorado em antro- pologia: O militante homossexual no Brasil da “abertura”, apresen- tada em janeiro de 1986 ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Foi reescrita para publicação em 1988 e finalmente teve sua primeira edição, pela Editora da Unicamp, em 1990. Durante esses anos, e, também, enquanto reordenava o material para publicação, contei com a orientação, apoio e amizade de um nú- mero muito grande de pessoas, cuja contribuição foi crucial. É impossível agradecer nominalmente a todos os meus interlo- cutores, integrantes dos grupos e partidos Somos-SP, GALF, Outra Coisa, Eros, Libertos, Lampião, Somos-RJ, Auê, Grupo Gay da Bahia, Adé Dudu, GATHO, Beijo Livre, Dialogay, Bando de Cá, Coletivo Ale- gria Alegria, Moléculas Malucas, Terra Maria, Triângulo Rosa, Nós Mulheres, Brasil Mulher, SOS Mulher, Movimento Negro Unificado, PT, PMDB, Convergência Socialista, ao lado de quem tive a oportuni- dade de discutir a militância política sexual. O contato com todos esses pontos de vista diferentes e conflitivos, naturalmente resultou num emaranhado de ideias difícil de organizar. A ordem que aparece aqui só pôde surgir graças à cuidadosa orientação a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 15 21/05/18 10:16 16 | EDWARD MCRAE de meus mestres, Peter Fry e Eunice R. Durham, a quem, além da orien- tação teórica, devotambém muitos dos insights deste trabalho. Não posso esquecer outros que também me ajudaram a pensar mais teoricamente sobre o assunto lendo trechos de minha tese, dando suges- tões ou permitindo-me usar seu próprio material de pesquisa. Agradeço aos professores Luis Mott, Mariza Correa, Verena Stolke, Ruth Cardoso, Oraci Nogueira, Lux Vidal, J. A. Guilhon de Albuquerque, Maria Moraes, Ulisses Ferraz de Oliveira, Júlio Simões, Jorge Beloqui, Pedro Sousa, Ma- theus Rogatto, Heloísa Pontes, Maria Filomena Gregori, Nestor Perlon- gher, Vic Seidler, Ernani Pinheiro Chaves, Cláudio P. Coelho, Carmen D. Guimarães, Eduardo Guimarães, Wilson Santos, Richard Parker, Osvaldo Fernandez, Jean Claude Bernardet, Leila Micolis, João Antônio Mascare- nhas, Paulo Ottoni, Ricardo C. Pereira, Roseli Roth, Antônio Carlos Tosta, Theodoro Pluciennik, Paulo César Bonfim, Darcy Penteado, João Silvério Trevisan, Glauco Mattoso, Jimmy Green e Severino do Ramo. Num nível mais informal, mas igualmente importante, devo muito aos meus papos com tantos bons amigos, que têm convivido comigo nestes últimos anos: Ulisses, Ricardo A., Eduardo T., Edson, Marqui- nhos, Luiz A., Milton, Marcelo, Vilma, Pitú, Teca, Paulo Afonso, Jacira, Mariza, Silas, Zezé, Shuma, Evaristo, Míriam, Hélinho, João Luiz, Lu- zenário, Ricardo V., Sisi, Israel, Cláudio Motoqueiro, Alexandre, Arol- do, Marivaldo, Wilson D., Amauri, Jerson, Rocha, Juba, Denise, Dilza, Cristiano e Cláudia Wonder. Um grupo de amigos muito especial foi aquele com quem comparti- lhei morada nestes últimos anos. Além de dar novas ideias, foram espe- cialmente tolerantes em momentos em que nossa residência foi usada para movimentadas reuniões políticas: Neide Duarte, Anita Jorge, Jus- sara Amoroso Dias, Júlio Dias Gaspar, Silvana Issa Afram, Fernando de Almeida, Marcos Rogatto e Beto Ronchezel. Nos traumáticos momentos de elaboração de relatório de pesquisa, contei com a companhia de Jú- lio Assis Simões, para “retiros acadêmicos”, altamente produtivos, em Campos de Jordão e Caraguatatuba. Seu conhecimento antropológico e sua biblioteca de ciências sociais, às vezes, me pareciam inesgotáveis. Durante um período crucial do meu trabalho de campo, fui aco- metido de hepatite quando pude contar com devotados enfermeiros: meus irmãos Alan e Marina e o amigo Laerth Pedrosa. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 16 21/05/18 10:16 APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS | 17 Minhas pesquisas levaram-me também a realizar agradabilíssimas viagens a Salvador, onde o Grupo Gay da Bahia e Luiz Mott puseram à minha disposição os seus riquíssimos arquivos. Também desenvol- vi duradouras amizades com Harley Henriques do GAPA-BA, Jerson Matos, Antonio Rocha e Amauri. Nessas, como em outras ocasiões, contei com a maravilhosa hospitalidade de Sofia Olszewski, que me ensinou a ver e amar aquela terra. Reescrevi a tese para publicação enquanto trabalhava como pesqui- sador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló- gico (CNPq) sediado no Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (IMESC). Lá fui muito ajudado pelo superintendente Car- los Vicari Jr., além de Maria Etelvina Reis de Toledo Barros, a querida Telva, que tem sido uma amiga de toda hora, dentro e fora do IMESC. Para o complicado trabalho de datilografia do meu manuscrito, con- tei com a paciência e o bom humor de Naira N. Ciotti e Milton Filippetti Filho e da militante lésbica feminista Alice, laboriosos críticos e revisores. A pesquisa começada na Unicamp e terminada na Universidade de São Paulo (USP) foi financiada com bolsas da Coordenação de Aper- feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A tese original foi transformada em livro enquanto eu era bolsista recém-doutor do Con- selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Passados vinte e sete anos da edição original do livro, alguns orien- tandos e outros amigos instaram-me a republicar o material. Argumen- ta-se que a edição original teve uma pequena tiragem, que há muito se esgotou, e que o texto, o primeiro estudo acadêmico do movimento homossexual no Brasil, continua a ser de interesse de pesquisadores do tema, agora acrescido de significado como registro histórico de um determinado momento. Revendo o material que produzi naqueles anos, decidi adicionar mais três artigos que versavam sobre questões identitárias e políticas enfrentadas pelos homossexuais, militantes ou não, na virada das décadas de 1970 e 1980, durante o período em que se convencionou chamar de “abertura democrática”, quando a ditadura civil-militar começava a dar sinais de fadiga. Também achei importante submeter meu texto original a uma rigorosa e necessá- ria copidescagem, usufruindo do maior desembaraço com a língua a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 17 21/05/18 10:16 18 | EDWARD MCRAE portuguesa, adquirido durante anos de trabalho na Universidade Fe- deral da Bahia, onde me ingressei como professor em 1995. Neste novo momento, volto a contar com o auxílio de outros amigos que muito me têm ajudado, nesta e em outras tarefas de cunho profis- sional e pessoal. Lembro aqui de meu assistente de pesquisa e grande amigo Wagner Coutinho Alves, o Joey, que passou muitas horas com a reorganização do material, de Flávia Goulart Mota Garcia Rosa, diretora da Editora da Universidade Federal da Bahia e de Susane Barros, da sua coordenação editorial. Também tenho recebido importante apoio afetivo do meu companheiro Sandro Pimentel, idealizador do projeto original da capa deste livro. Não posso deixar de mencionar também os velhos amigos Ulisses Ferraz de Oliveira e Mauro Monti, assim como meu sobri- nho João Leal MacRae e Isaias Santos, que sempre me brindam com suas agradabilíssimas companhias durante minhas idas a São Paulo. Importan- tes também foram os incentivos de meus amigos James Green, Leandro Colling, Tedson Sousa e Vinícius Alves que, em diferentes momentos, apontaram a continuada relevância, para os tempos atuais, destes tex- tos sobre a identidade, o movimento e a “movimentação” homossexuais. Meu pai, Alan MacRae, esteve presente na defesa de minha tese e generosamente me premiou com uma longa viagem. Sua orgulhosa reação ao meu sucesso acadêmico foi muito importante para mim. Fizemos a viagem algum tempo depois, na companhia de minha mãe, mas poucos dias após sua volta, quando eu ainda estava fora, veio a falecer repentinamente. Durante aquela viagem tivemos a possibi- lidade de estabelecer uma definitiva reconciliação, encerrando um período de rusgas, típicas da minha fase de vida de adolescente e de jovem ainda em amadurecimento. Quatro anos depois, meu queridís- simo irmão Alan também partiu, vítima da aids, três dias após minha família ter todas as suas reservas financeiras congeladas pelo sinistro Plano Collor. Minha mãe, Dulce Baptista das Neves Gonçalves Ma- cRae (Dolly), foi meu esteio emocional durante vários anos difíceis que se seguiram. Sua força, inteligência e carinho pareciam inesgo- táveis. Afortunadamente, pude contar com sua companhia por mais um bom tempo. Ao partir, por sua vez, em 2011, deixou maravilhosas lembranças para todos que a conheceram e especialmente para mim, meus irmãos, Marina e Alexander, sua nora Claudia, e seu neto, João. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 18 21/05/18 10:16 PARTE I Escritos avulsos a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 19 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 21 Revendo velhos escritos Mais de 30 anos após defender, na Universidade de São Paulo, em 1985, a minha tese de antropologia O militante homossexual no Brasil da abertura1, sobre o Grupo Somos de Afirmação Homossexual, vol- to a rever o trabalho, pensando em uma nova publicação do mate- rial. A primeira ocorreu em 1990, incorporando algumas referências adicionais, basicamente sobre movimentos sociais, então, um tema relativamente novo na antropologia e na sociologia.O livro A cons- trução da igualdade identidade sexual no Brasil da abertura editado pela Editora Unicamp, teve uma tiragem pequena que logo se esgo- tou, mas exemplares continuaram a circular entre os interessados e posteriormente uma fotocópia foi colocada na internet. Ao terminar minha tese, meus interesses de pesquisa se transferi- ram para o tema do uso de drogas, no qual eu detectava uma situação em que certas noções de saúde vinham mescladas com preconceitos e hipocrisia de maneira similar à que eu havia encontrado ao discutir a questão homossexual. Mas, antes mesmo de terminar a tese, minha atenção já havia sido chamada para os perigos apresentados pelo 1 Tese de doutoramento em Antropologia apresentada, em 1985, ao Departamento de Ci- ências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profª. Eunice Ribeiro Durham.ah a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 21 21/05/18 10:16 22 | EDWARD MCRAE advento da pandemia de aids que começava a se espalhar pelo glo- bo. Além das ameaças que representava à saúde geral, a aids também parecia colocar em risco muito dos recentes ganhos conquistados em relação ao combate à discriminação contra os homossexuais. Cuba e alguns outros países davam um péssimo exemplo ao resto do mundo, adotando políticas de internação forçada para os doentes de aids ou soropositivos. No Brasil, locais onde a população gay costumava se reunir voltaram a ser alvo de preocupação para as autoridades. Sau- nas e outros estabelecimentos, onde eram permitidas relações homos- sexuais fugazes, viviam sob a ameaça de fechamento, como de fato ocorreu nos Estados Unidos. Apesar das brigas pessoais e políticas que haviam cindido o movimento gay, conforme eu demonstrava em minha tese, perante as novas ameaças, muitos dos militantes voltaram a se reunir para monitorar e criticar os órgãos oficiais de saúde e suas políticas. Os resultados de suas atuações foram de grande importân- cia em assegurar uma abordagem respeitosa dos direitos humanos e uma adequada divulgação de modos de prevenção da doença. (LAU- RINDO-TEODORESCU; TEIXEIRA, 2015) Em 1986, procurando um lugar onde pudesse realizar pesquisas sobre o uso de drogas, acabei conseguindo a posição de diretor do centro de estudos do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (IMESC), uma autarquia da Secretaria de Justiça do Esta- do. Esse era o único órgão do estado de São Paulo onde se dava aten- ção ao uso de drogas ilícitas e à sua prevenção. A questão era vista sob o enfoque de séria ameaça à saúde e à segurança da população e qualquer questionamento das disposições da Lei de Entorpecentes, então em vigor, era vista como inadmissível. Mas o agravamento da pandemia no Brasil levou as autoridades a se preocuparem mais com a população usuária de drogas ilícitas, então concebida como uma das principais vias de disseminação do HIV entre a população em geral. Assim, mais uma vez fui instado a encarar a questão da aids, atuan- do como especialista de um órgão governamental. Minhas atenções acadêmicas e profissionais passaram então a enfocar questões rela- cionadas à redução de danos no uso de drogas injetáveis e de crack. Após a promulgação da Lei de Drogas 11343, em 2006, tornou- -se mais fácil questionar a legislação em vigor sem a ameaça de ser a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 22 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 23 acusado de fazer apologia ao uso e ao crime, delito previsto na le- gislação anterior. Começou-se então a constituir o movimento an- tiproibicionista ao qual me juntei, falando e escrevendo cada vez mais sobre a necessidade de se descriminalizar o uso, a produção e o comercio tanto da maconha quanto das outras drogas considera- das ilícitas. Por essas alturas já ocupava os cargos de professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e de pesquisador associado do Centro de Estudos e Tratamento do Abuso de Drogas (CETAD/UFBA). Fiquei conhecido por minhas atividades no âmbito da redução de danos, do antiproibicionismo e do uso religioso da ayahuasca. Este último tema, além de responder a anseios espirituais meus, também me parecia um ótimo exemplo do uso controlado de uma substância psicoativa cuja molécula era bastante similar à do LSD, assim como seus efeitos farmacológicos. Durante vários anos pesquisei e militei nessa área, tendo realiza- do numerosas palestras e escrito vários textos a respeito da redução de danos e da política de drogas. Meu nome tornou-se bastante co- nhecido entre os pesquisadores desses temas. Apesar disso, registros informáticos mostram que uma parte considerável das referências acadêmicas à minha produção científica continuam a priorizar meus trabalhos iniciais sobre a militância e identidade gay. Essa constatação me levou a revisitar textos antigos que, mesmo após várias décadas, me parecem continuar pertinentes. Assim, resolvi reedita-los para facilitar seu acesso a uma nova ge- ração, que atualmente se apresenta como especialmente interessada na discussão de identidades de gênero e sua politização. Nesta reedi- ção ampliada, ao lado de outros textos meus da época e sobre a mesma temática, um lugar especial é ocupado pelo livro resultante da minha tese, submetido a uma revisão de cunho estilístico. Não houve, po- rém, nenhuma tentativa de atualização nas referências bibliográficas, apesar da considerável produção acadêmica sobre o tema ocorrida nos anos decorridos entre a publicação original e a sua reedição. Isso exigiria uma nova pesquisa, o que fugia da minha proposta de simples republicação. Os outros textos necessitaram de menos alterações. Embora acredite que esses meus escritos da década de 1980 ain- da levantem questões pertinentes, não há como ignorar as muitas a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 23 21/05/18 10:16 24 | EDWARD MCRAE mudanças sociais e culturais ocorridas nesse meio tempo e talvez valha a pena elencar algumas delas, para contextualizar melhor a minha ideia de então. Talvez a principal mudança tenha ocorrido com o advento da tera- pia retroviral, com o decorrente declínio do estigma da infecção pelo HIV, que deixava de significar para o paciente uma sentença de morte certa em pouco tempo e adquiria a natureza de uma doença crônica, mas com a qual é possível viver de maneira bastante normal. O co- mercio voltado para o mercado gay continuou a se mostrar lucrativo e retomou seu ímpeto, promovendo em seu rastro o fortalecimento de novas afirmações identitárias pouco lembradas originalmente, como o das mulheres lésbicas, das travestis e dos/das transexuais, por exem- plo. Movimentos e paradas LGBT cresceram e puderam contar com o beneplácito das autoridades que viam neles agentes importantes de prevenção à aids e outras infecções de transmissão sexual, como as hepatites virais. Onde o legislativo se mostrava lento em reconhecer os novos direitos reivindicados, o judiciário avançou, como no caso do reconhecimento oficial das uniões homoafetivas. A estranheza causada por projetos acadêmicos voltados para o estudo de temas relacionados à homossexualidade aos poucos foi se dissipando devi- do ao surgimento em várias universidades de cursos e linhas de pes- quisas voltadas para a diversidade sexual. No novo clima de relativa tolerância, tornou-se comum ver casais do mesmo sexo expressando suas afetuosidades em público e, em metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador já se pode ver com frequência dois homens ou duas mulheres de mãos dadas, caminhando pelas ruas. Em certos casos, podem até se beijar em público, da mesma maneira que os ca- sais heterossexuais. Tais mudanças, juntamente com o final da ditadura civil-militar, configuram uma situação bastante diversa daquela existente quando realizava as minhas pesquisas. No final da década de 1970, quando as iniciei, vivíamos ainda sob o regime ditatorial. Este, apesar de já haver derrotado a luta armada, empreendida por movimentosguer- rilheiros no final da década de 1960 e no início da seguinte, estendia o seu enfoque para o campo dos costumes, sob a alegação de pro- teger os valores tradicionais da família brasileira. O comportamento a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 24 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 25 homossexual, assim como a crescente presença de travestis nas ruas, tornou-se alvo de perseguições policiais, conforme relatado no livro Homossexualidades e ditadura, de Green e Quinalha, 2014. Nessa co- letânea, o artigo de Cowan (2014) é especialmente interessante ao re- velar o embasamento ideológico e legal dessas medidas repressivas. A derrota frente às forças da ditadura, juntamente com a crise mundial enfrentada pelas agremiações esquerdistas tradicionais com suas ideias e métodos ainda influenciados pelo stalinismo, havia le- vado ao descrédito as antigas posições políticas baseadas na noção de luta de classes. A propaganda governamental, aliada à rigorosa censura às produções artísticas e jornalísticas, permitiu um deslum- bramento popular com o suposto “milagre econômico”, em vigência durante um curto prazo de tempo. Assim como ocorreu recentemen- te durante a campanha pelo impeachment da Presidenta Dilma Rous- sef, amplos setores conservadores da sociedade apoiavam as forças antidemocráticas e até setores da classe estudantil ocasionalmente ridicularizavam slogans como “Abaixo a ditadura”. Conforme se ve- ria durante as discussões internas que levaram ao “racha” do Grupo Somos-SP, mesmo intelectuais de passado fortemente contestatório rechaçavam violentamente qualquer aproximação a grupos voltados para a militância política nos moldes mais clássicos. Mas isso não significava necessariamente uma acomodação aos valores do sistema vigente. Perante a impossibilidade de se organizar “politicamente”, uma nova geração de jovens passou a fazer “contes- tação cultural”, buscando minar a “moral burguesa”, na direção do sexo, drogas e rock´n roll . A contestação de costumes, que explodiu nos EUA e em diversos países da Europa no final dos anos 1960, fi- nalmente chegava de maneira importante ao Brasil. Durante a década de 1970, artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Hollanda, a trupe Dzi Croquettes, a banda Secos e Molhados e o cantor Ney Matogrosso, entre outros, fizeram apresentações que pu- nham em questão os papeis de gênero vigentes e as ordens erigidas em seu torno. O termo androginia se popularizou mesmo entre seto- res mais conservadores. O poder subversivo dessas posições parecia ser confirmado pe- las medidas repressivas adotadas pelo sistema ditatorial, como as a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 25 21/05/18 10:16 26 | EDWARD MCRAE frequentes censuras a publicações, peças teatrais ou músicas que ousavam tratar desses temas. Apesar da repressão, um forte espirito de contestação aos costumes se espalhava pela sociedade. Assim, quando, em 1977, o editor da revista americana Gay sunshine, Winston Leyland, veio ao Brasil para contatar escritores e jornalistas brasilei- ros que escrevessem sobre a cena homossexual no Brasil, sua visita causou grande repercussão. Serviu também de estopim para que intelectuais gays brasileiros se organizassem para produzir o jornal Lampião da Esquina, original- mente voltado para as chamadas “minorias” formadas pelas feminis- tas, militantes das causas negras e indígenas e, primordialmente para os homossexuais. O jornal, cujo número zero saiu em abril 1978, teve grande sucesso e, graças ao profissionalismo de seus editores, em grande parte experientes jornalistas, conseguiu-se uma ampla dis- tribuição que cobria o país “do Oiapoque ao Chuí”, conforme alarde- avam seus editoriais. Logo, porém, a ambição de ser um “jornal das minorias” mostrou-se inviável e o Lampião passou a se restringir em grande parte à discussão de questões gays. Nisso teve um papel de grande importância, divulgando por todo o Brasil conceitos e ações antes restritos a pequenos grupos vanguardistas em algumas capi- tais. Também foi um grande propulsor da visibilidade lésbica, com matérias de capa sobre mulheres homossexuais, um setor até então completamente desconhecido e ignorado, mesmo pelas feministas. Em decorrência da nova publicização em nível nacional do debate sobre questões relacionadas à homossexualidade, logo se formaram grupos pretendendo fazer militância gay e lésbica. O engajamento na produção do jornal de Peter Fry, meu orientador no curso de mestrado em Antropologia na Unicamp, levou-me a procurar e juntar-me aos militantes que começavam a se organizar em São Paulo sob o nome de Grupo Somos de Afirmação Homossexual. Assim como vários outros integrantes do grupo, logo me encontrei completamente envolvido na militância, participando de eventos públicos onde expúnhamos nos- sas experiências e anseios enquanto homossexuais. O grande público que afluía a essas palestras nos dava indicação do grau de interesse despertado por discussões sobre sexualidade, apesar da censura e do clima repressivo reinante. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 26 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 27 Outras atividades importantes eram as chamadas “reuniões de identificação” onde os participantes do grupo relatavam aos outros militantes suas histórias, prazeres e frustrações com suas orientações sexuais. No decorrer dessas reuniões ficavam evidentes os diferentes significados que cada um atribuía às suas práticas sexuais, tornando necessárias numerosas reuniões para se construir objetivos comuns. A própria vivência da sexualidade se mostrava bastante diversa e um dos poucos elementos que unia a maioria era a auto identificação como homossexual e, mesmo assim, esta vinha matizada por diferen- tes termos como: “bicha”, “viado”, “bofe”, “passivo”, “ativo”, “enten- dido”, “gay”, etc. Aparecia, assim, uma primeira crise de identidade e para conviver com ela foram adotadas posturas bastante rígidas de exclusão daqueles que se consideravam bissexuais ou que mostra- vam outras ambiguidades em sua auto identificação sexual. Até os membros do grupo teatral “Oficina”, conhecidos por seus corajosos desafios aos padrões sexuais costumeiros, foram rechaçados devido à sua recusa em se classificarem simplesmente como “homossexuais”. Suas propostas identitárias mais fluidas eram consideradas como um temor de “se assumirem”. Para combater o estigma sentido pela grande maioria, adotou-se como postura política esvaziar o termo “bicha” de suas conotações negativas. Para tanto, todos passaram a usar essa palavra para se autodesignarem. Inicialmente, até as pou- cas mulheres que participavam do grupo eram assim chamadas pelos homens. Porém, logo reivindicaram o reconhecimento de suas especi- ficidades, constituindo um subgrupo próprio que eventualmente veio a se declarar completamente autônomo dos homens. Os militantes homossexuais masculinos do Somos editavam um jornal artesanal O corpo e as lésbicas do GALF (Grupo de Atuação Lesbico Feminista) produziam outro, inicialmente chamado Chanacomchana, mas pos- teriormente rebatizado de Outro olhar. Estes eram distribuídos pelos ativistas nas áreas de concentração homossexual da cidade. As atividades do Somos levavam a um profundo engajamento pessoal dos seus participantes, cujas vidas passaram a girar em torno do grupo. Além de seus aspectos mais claramente políticos, a nova vida militante se apresentava para muitos como primordialmente uma maneira de socializar, para muitos que até então mantinham a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 27 21/05/18 10:16 28 | EDWARD MCRAE suas vidas sexuais furtivas e isoladas. No grupo, aprendiam sobre o mundo gay, até então grandemente vivido na clandestinidade e mar- ginalidade, mas no qual começavam a proliferar novos pontos de encontro, principalmente bares e boates. Com o Somos aprendiam a revelar sua homossexualidade em público, seja em confrontos pes- soais diretos, seja de maneira mais engajada politicamente.Velhas amizades eram trocadas pelos novos companheiros de militância, e muitos agora procuravam, a partir disso, seus novos namorados. Foi um período em que as pessoas se diziam “casadas com o grupo”. Mesmo os estabelecimentos do incipiente mercado voltado para os homossexuais eram desprezados e rotulados de “gueto”, por uns. Outros simplesmente chamavam atenção para as naturezas diferen- tes entre o chamado “movimento”, com seus interesses políticos e a “movimentação” mais descompromissada e voltada exclusivamente para a diversão e sociabilidade. Eu também me senti afetado pelo clima contestatório e militante, decidindo tomar o Somos como tema da minha dissertação de mestrado na Unicamp2. Minha “observação participante” rapidamente virou uma “participação observante”. Isso porque meu engajamento tornou-se, de certa forma, profissional, já que eu recebia uma bolsa de estudos para financiar minha pesquisa. Devido à minha consequente maior dispo- nibilidade de tempo, eu era um dos frequentadores mais assíduos das atividades do grupo, tornando-me, assim, uma das suas lideranças in- formais. Dessa maneira passei a integrar o rol daqueles conhecidos no grupo como “bichas históricas”, termo aplicado tanto aos primeiros integrantes do grupo, quanto aos membros de sua liderança informal. Nessa época, era muito escassa a literatura sobre a homossexu- alidade, que não se restringisse a uma visão médica e patologizante. Lembremos que a homossexualidade era ainda tratada oficialmente pela medicina como “desvio e transtorno mental”. Não se encontrava 2 Posteriormente, transferi-me para a Universidade de São Paulo (USP) onde terminei minha pesquisa, cujo resultado apresentei como tese de doutorado. Tive então a orientação de Eunice Durham, que me ajudou muito a pensar sobre o Somos enquanto um movimento social, assunto então bastante em voga. Nesse período, contei também com grande auxílio de Ruth Cardoso, que introduzia naquele momento os estudos feministas na universidade. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 28 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 29 nada a respeito na antropologia ou sociologia brasileiras, onde o tema era considerado de pouca importância, quando não objeto de escár- nio ou zombaria. Naquele momento, é provável que meu interesse acadêmico pelo assunto foi considerado legítimo somente devido ao prestígio acadêmico do meu orientador Peter Fry. O único texto sócio antropológico anterior que se sabia haver sido escrito no Brasil era uma monografia de especialização que havia sido realizada na USP por Barbosa da Silva, sob a orientação de Florestan Fernandes e defendida em 1958. Mas não havia um exemplar na biblioteca da universidade. A única notícia que se tinha a respeito era um resumo publicado sob o nome Homossexualidade masculina em São Paulo, editada em 1959 pela Revista de sociologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo de Silva, 1959.3 Mais uma vez o auxílio de Peter Fry foi fundamental e ele me fran- queou o acesso à sua ampla biblioteca, onde havia vários textos em inglês sobre a homossexualidade da perspectiva das ciências sociais. Através de meu orientador, conheci duas dissertações de mestrado em antropologia orientadas por ele, defendidas por Carmem Dora Guimarães, em 1977, sobre um grupo de “entendidos” cariocas de classe média, e Rosemary Lobert, em 1979, sobre a trupe teatral Dzi Croquettes. Também tive acesso a dois textos seus, que mais tarde viriam a ser editados na coletânea de sua autoria chamada Para inglês ver do autor Fry (1982a, 1982b). Assim meus referenciais teóricos iniciais eram da autoria de Mary McIntosh, Evelyn Hooker, Jeffrey Weeks e Peter Fry, onde se discutia “o papel social do homossexual”. Posteriormente travaria contato com o pensamento foucaultiano, principalmente aquele exposto no primeiro volume da sua História da sexualidade. Em maio 1980, ocorriam graves tensões internas no grupo Somos. De um lado, estavam aqueles que propunham um engajamento mais amplo, junto a setores da classe operária e agremiações de esquerda, visando contribuir para a mudança do regime ditatorial. De outro, estavam aqueles que achavam necessário priorizar as reivindicações 3 Posteriormente este texto foi encontrado e publicado no livro de Green e Trindade (2005). a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 29 21/05/18 10:16 30 | EDWARD MCRAE relacionadas à opressão sofrida pelos homossexuais e que não es- tavam dispostos a confiar nos atores políticos ligados à esquerda tradicional, acreditando que todos seriam machistas e homofóbicos. O grupo lésbico GALF, ficou numa posição intermediária. Conforme relato em minha tese, essas tensões internas levaram a uma divisão do grupo, o “racha”, dando início a um doloroso período de acusações e desencontros afetivos e ao enfraquecimento dos dois grupos masculinos formados agora a partir do antigo Somos. Nesse período, começava a vigorar a chamada “abertura democrática” do regime, abrandando a censura e possibilitando o ressurgimento das organizações político-partidárias, assim como o desenvolvimento de atividades comerciais voltadas especificamente para o mercado homossexual. Nesse novo ambiente, o próprio Lampião começava a perder leitores, perante outras publicações de cunho mais comercial, muitas vezes pornográfico. Igualmente, os numerosos grupos de mi- litância homossexual, perdiam sua exclusividade como locais onde a sociabilidade e a “paquera” gay era viável. Bares, boates e saunas surgiam onde era possível se divertir sem as preocupações e compro- missos da militância homossexual, que perdia seu antigo prestígio. Apesar desse refluxo da militância e das relações conflituosas que se estabeleceram no movimento homossexual como um todo, em 13 de junho conseguiu-se arregimentar, na capital paulista, entre quinhentas e mil pessoas, para a primeira manifestação pública de envergadura do movimento. Essa passeata circulou pela zona central da cidade, protestando contra uma campanha policial que, sob o co- mando do delegado Wilson Richetti, visava limpar a cidade de gays, travestis e prostitutas. Nesse novo clima político mais tolerante, começaram a sair tam- bém publicações, cientificas ou de não ficção, que tratavam da ho- mossexualidade de forma não patologizante, geralmente a partir de um viés sócio antropológico ou literário. Desse modo, foram publicados os livros Para inglês ver, coletânea de artigos de Peter Fry (1982); Caminhos cruzados outra coleção que trazia dois textos de Fry e um meu, abordando temas relacionados à homossexualidade (1982); “O que é homossexualidade”, de autoria do Peter e minha (1983); um número da revista Novos estudos CEBRAP, a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 30 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 31 veiculando a um artigo meu (1983); o livro Devassos no Paraíso de João Silvério Trevisan (1986). Em 1987, surgia a obra seminal de Nestor Per- longher O Negócio do Michê: prostituição viril em São Paulo”. No ano de 1986, defendi na Universidade de São Paulo (USP) a minha tese, O militante homossexual no Brasil da “abertura”, que posteriormente foi reescrita e editada sob o nome A construção da igualdade: identidade e política no Brasil da “abertura” (1990). A partir de então, rompido o tabu, surgiram vários outros trabalhos sobre o tema. A manifestação pública contra as atividades repressivas do de- legado Richetti não conseguiram reunificar os/as militantes e os vá- rios grupos começaram a se dissolver em todo o país. Uma exceção foi o Grupo Gay da Bahia, fundado pelo antropólogo Luis Mott em Salvador. Este, juntamente com o grupo carioca Triangulo Rosa en- cabeçou uma importante e vitoriosa campanha contra a classificação patologizante até então adotada pelos médicos. Assim, apesar das desavenças surgidas entre os militantes do Movimento Homossexu- al, a chamada “movimentação gay”, de natureza lúdica e comercial, parecia ganhar cada vez mais espaço e imperavaum grande otimis- mo entre essa parcela da população residente nas grandes cidades, que cada vez mais se mostrava disposta a “sair do armário”. Dos Es- tados Unidos e de alguns países da Europa Ocidental vinham gran- des exemplos de liberação sexual, que eram tomados como modelo pelos brasileiros. Porém outras notícias começaram a chegar, a partir de 1983, dos Estados Unidos e de outros lugares onde havia grandes comunidades homossexuais. Uma doença misteriosa começava a atacar principal- mente homens gays, levando-os rapidamente a uma morte dolorosa e ignóbil. Ícones gays do mundo das artes e da moda começaram a morrer em grande quantidade, sem que se entendesse o modo de in- fecção. A aids, ainda não identificada como tal, rapidamente chegou a São Paulo, matando numerosos militantes gays e frequentadores do chamado “gueto”. Logo rotulada de “câncer gay”, a doença levou a um rápido retrocesso no progresso emancipatório homossexual e os próprios estabelecimentos comerciais voltados a essa população se sentiram ameaçados. Notícias chegavam a respeito do fechamen- to de numerosas saunas gays americanas e alguns países, adotavam a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 31 21/05/18 10:16 32 | EDWARD MCRAE políticas de internação compulsória dos infectados, à maneira dos antigos leprosários ou dos campos de concentração. Novamente, os antigos militantes deixaram de lado suas desaven- ças e se organizaram para fazer frente à pandemia, formando grupos como o GAPA-SP, o GAPA-BA, o GAPA-RJ, a ABIA e outras organiza- ções em diversas regiões do país. Tinham o propósito inicial de pres- tar assistência e solidariedade aos pacientes, mas não abandonavam suas posturas militantes e aguerridas ao cobrar medidas efetivas do governo. Suas atividades foram bastante bem-sucedidas, servindo de importantes propulsoras dos programas nacionais e regionais de atenção à aids, exigindo a construção de serviços dignos e eficazes para a prevenção e tratamento da moléstia. Enfatizavam sobretudo a importância de preservar os direitos dos pacientes e de suas comuni- dades. Logo ficou clara a importância dessas organizações para uma resposta adequada à situação e as autoridades nacionais e interna- cionais começaram a encorajar o surgimento de novos grupos ho- mossexuais militantes e a financiar as suas atividades, especialmente aquelas voltadas para a prevenção, conforme nos relatam Teodorescu e Teixeira (2015). Começou então um novo período de crescimento da militância, embora, com o passar do tempo, suas conexões oficiais e o ingresso de novos agentes, mais familiarizados com os meandros da burocracia oficial, tenham levado a uma redução de seu ímpeto contestatório inicial. Durante o período em que pesquisei e militei junto ao movimento homossexual, fui frequentemente impactado pelas diferenças entre os variados estilos de militância que encontrava. As diferenças tor- navam-se especialmente visíveis nas relações com que os militantes gays travavam participantes de agremiações políticas mais voltadas à luta classista. Enquanto estes primavam por suas aparências sérias e comedidas em termos corporais, os membros do Somos frequen- temente recorriam à brincadeira e à “fechação”. Mas, mesmo entre os membros dos grupos homossexuais, havia aqueles que preferiam uma apresentação sóbria, voltada fundamentalmente a mostrar que o homossexual podia ser tão “normal” quanto os outros. Em alguns casos, os homossexuais masculinos se esforçavam para mostrar que podiam ser tão “homens” quanto os heterossexuais. Mas a eles se a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 32 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 33 contrapunham outros que adotavam posturas mais transgressivas ou caricaturais. Aproveitei então de um honroso convite para parti- cipar de uma coletânea com eminentes professores, onde publiquei um artigo, sobre os diferentes tipos de militância, que chamei de “Os respeitáveis militantes e as bichas loucas”. Relendo atualmente esse texto, editado originalmente em 1982, achei importante resgata-lo aqui. Considero que continua interessante para aqueles que procu- ram entender o clima reinante entre os que se opunham ao sistema ditatorial então vigente, atuando de diferentes maneiras. Também me parece que seja de interesse para os membros dos crescentes grupos de jovens, como os que hoje se denominam “não binários”, que vol- tam a transgredir, com intenções políticas, os papeis tradicionalmente atribuídos aos dois sexos, através da vestimenta e de outras formas de comportamento. Um tema que me chamou muito à atenção durante essa época foi a da importância do então chamado “gueto” para a construção de uma identidade homossexual, algo ainda pouco definido e inconstante. A questão era muito discutida entre os militantes, vários dos quais ex- pressavam um certo desprezo pelos frequentadores dos ambientes gays comerciais, a quem chamavam de “bichas desorganizadas”. Mi- nha própria experiência me apontava o quanto se aprende a ser ho- mossexual naqueles ambientes e o quanto isso era importante para a autoestima do indivíduo. Novamente, encontrei diversas divisões entre os frequentadores do “gueto”, em termos de classe social, idade e estilo, mas era inegável a importância da maneira como lá se punha em questão a “normalidade”, afugentando sentimentos de pecado e doença, que viessem assombrar o indivíduo. Sob o incentivo de Flávio Pierucci, publiquei algumas reflexões a respeito da importância des- se espaço lúdico na revista Novos estudos CEBRAP em 1983, no artigo “Em defesa do gueto”, também incluído aqui. Outro texto, “Afirmação de identidade homossexual: seus perigos e sua importância”, um artigo escrito enquanto ainda preparava mi- nha tese, mas somente publicado em 1987, voltava-se mais especifi- camente para a discussão da identidade homossexual. Numa época em que ainda não se tinha notícia das contribuições da teoria queer para o debate, embasei minha argumentação nas propostas de Michel a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 33 21/05/18 10:16 34 | EDWARD MCRAE Foucault. Seguindo seu exemplo, discutia os perigos de uma natura- lização da identidade homossexual, porém, sem deixar de lembrar de sua importância tática na conquista de direitos. O artigo seguinte foi escrito para a revista Temas IMESC-Sociedade, direito e saúde, após completar meu doutorado, quando já me encon- trava profundamente envolvido com a luta contra a aids. Devido à pou- ca compreensão de seus mecanismos de disseminação, a prevenção à moléstia era baseada em certos elementos do senso comum então reinante, com toda a sua carga de preconceitos. Assim, a forma mais óbvia de prevenção parecia ser a total evitação das práticas homosse- xuais e o isolamento dos infectados. Este último recurso era discutido em vários lugares e, em alguns casos, chegou a ser posto em prática. Já a prescrição de abstinência sexual ou de monogamia exclusiva, ia contra as práticas costumeiras de grande parte da população homos- sexual masculina. Para muitos a alternância constante de parceiros era uma parte constitutiva da identidade gay. As propostas de sexo segu- ro, apresentadas como alternativa, evitavam a ênfase dada à questão de números de parceiros, para priorizar a adoção de técnicas sexuais capazes de diminuir os riscos de contágio. Mas várias condições pa- reciam impossibilitar esse recurso no Brasil, como a falta de costume dos homossexuais de se prevenirem usando camisinha. Afinal, diferen- temente dos heterossexuais, nunca haviam tido de se prevenir contra o risco de gravidez em suas relações e as doenças sexualmente trans- missíveis até então conhecidas, que os acometiam frequentemente, eram facilmente superadas com algumas doses de antibiótico. Outro sério empecilho era a relutância de fundo moralista das autoridades sanitárias e dos meios de comunicação, em difundirem orientações de sexo seguro, que alegadamente encorajariam a promiscuidade. Este texto foi incluído por forneceruma ideia do clima ameaça- dor, quando não havia nenhum tratamento mais eficaz para a doença e que era percebido pelos homossexuais como colocando em risco muitas das conquistas obtidas até então. Atualmente afortunadamente, parece um tanto defasado, até em termos linguísticos. Conseguiu-se evitar os temidos retrocessos de direitos e ocorreu um radical desvelamento público das práticas sexu- ais em geral, devido à necessidade de discutir as suas minúcias para a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 34 21/05/18 10:16 EM DEFESA DO GUETO | 35 fazer frente à aids de modo mais efetivo. Um exemplo do anacronismo desse texto é o uso que faço do termo “camisa de vênus”, que parecia mais sério e respeitável do que a palavra “camisinha”, na época ain- da considerada de baixo calão. Essa conotação negativa era normal- mente atribuída à natureza supostamente nojenta do contraceptivo e somente alguns mais audaciosos opinavam que seria possível rea- lizar campanhas publicitarias que levassem a uma erotização e maior aceitação desse objeto. Minha razão para incluir aqui o artigo é para que possa servir como registro histórico das preocupações do perío- do. Receava-se que detectar pessoas soropositivas somente servisse para criar uma nova classe de párias sociais, num período em que não se poderia oferecer nenhum tipo de tratamento mais resolutivo capaz de afastar a inevitabilidade de morte a curto prazo. Finalmente, na última se não mais longa secção desta obra, apre- sento a versão revisada do livro que escrevi a partir de minha tese A construção da igualdade. Esse texto foi submetido a uma cuidado- sa releitura de natureza basicamente estilística, mas sem nenhuma alteração fundamental. Talvez a mais importante e reveladora das mudanças ocorridas no campo, desde a escrita da tese e da primeira edição do livro, seja a maneira como inicialmente, em consonância com o linguajar corrente entre os militantes homossexuais, as traves- tis eram referidas no masculino. Em respeito às sensibilidades atu- ais desse segmento da população, fiz as necessárias alterações para trata-las no feminino. Outro ponto que atualmente parece afrontar a correção política foi meu uso ocasional do termo “homossexualismo”, que encontrei em alguns dos artigos. Na época era uma expressão de uso corrente, mesmo entre os militantes. Encontrá-lo nesses textos serviu para me lembrar que a conotação patologizante atualmente atribuída ao termo é relativamente recente. Afinal, o sufixo “ismo” nem sempre se refere a doença, como no caso de “socialismo”, ” em- preendedorismo” ou “lesbianismo”, por exemplo. Reconheço, porém a importância da discussão sobre essa forma de expressão, pois tem se mostrado uma boa oportunidade de se levantar a questão da “nor- malidade” dessa orientação sexual. Afinal, o título do livro que Peter Fry e eu publicamos em 1983, O que é a homossexualidade, foi cuida- dosamente escolhido para marcar uma nova e positiva maneira de a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 35 21/05/18 10:16 36 | EDWARD MCRAE encarar essa orientação sexual. Para tanto, nada melhor do que um nome que fugisse do usual. Referências COWAN, B. Homossexualidade, ideologia e “subversão” no regime militar. In: GREEN, J. N.; QUINALHA, R. (Org.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2014. p. 27-52. FRY, P. Da hierarquia à igualdade: a construção da homossexualidade no Brasil. In: FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 87-115. FRY, P. Homossexualidade masculina e cultos afro-brasileiros. In: FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 54-86. GREEN, J.; TRINDADE, R. (Org.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. GREEN, J. N.; QUINALHA, R. (Org.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2014. LAURINDO-TEODORESCU, L. L.; TEIXEIRA, P. R. Histórias da AIDS no Brasil, 1983-2003: as respostas governamentais à epidemia de aids. Brasília, DF: Ministério da Saúde Secretaria de Vigilância em Saúde: Departamento de DST, Aids e hepatites virais, 2015. v. 1 MACRAE, E. O militante homossexual no Brasil da Abertura. 1985. 218 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985. MACRAE, E. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 1990. MACRAE, E. Afirmação de identidade homossexual: seus perigos e sua importância. In: TRONCA, Í. A. (Org.). Foucault vivo. Campinas, SP: Pontes, 1987a. p. 81-88. MACRAE, E. AIDS: prevenção ou nevo tipo de segregacionismo? Tema IMESC- Sociedade, Direito e Saúde, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 73-81, 1987b. MACRAE, E. Em defesa do gueto. NOVOS ESTUDOS – CEBRAP, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 53-60, abr. 1983. SILVA, J. F. B. da. Aspectos sociológicos do homossexualismo em São Paulo. Sociologia, v. XXI, n. 4, p. 350 – 360, out. 1959. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 36 21/05/18 10:16 Os respeitáveis militantes e as bichas loucas1 Durante alguns meses nos anos de 1980 e 1981, um jornal alternati- vo editado em São Paulo resolveu, por conta própria, convidar al- guns militantes do Movimento Homossexual para formarem uma editoria homossexual, prometendo-lhes um espaço mais ou menos regular na sua publicação. Apesar de não terem uma ideia muito clara sobre o que era o Movimento Homossexual no Brasil, os edito- res daquele periódico procuravam ser coerentes com o seu princí- pio de apoio às reivindicações das chamadas “minorias” e estavam dispostos a dar bastante respaldo aos seus novos companheiros. Obviamente surgiram vários problemas, principalmente devido a diferenças nas escalas de prioridades. O jornal, apesar de preten- der ocasionalmente ceder espaço para matérias sobre os homosse- xuais, não era o Lampião e tinha como um de seus objetivos princi- pais a construção do então recém-criado Partido dos Trabalhadores. Além disso, há indícios que sua direção não era totalmente autônoma, 1 Texto publicado originalmente em EULÁLIO, A. (Org.). Caminhos Cruzados: linguagem, antropologia, ciências naturais. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 99 - 111. Posteriormente, voltou a ser publicado em: COLLING, L. (Org.). Stonewall 40 + o que no Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011. p. 21-35. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 37 21/05/18 10:16 38 | EDWARD MCRAE devendo prestar contas a uma organização de inspiração trotskista, com ramificações em várias regiões do país, para a qual o jornal ser- via como uma espécie de porta-voz. Por outro lado, no seio do Movi- mento Homossexual, acabava de ocorrer uma série de incidentes ex- tremamente penosos e algo decepcionante. Esses haviam resultado do esfacelamento do Grupo Somos-SP, pelo qual muitos, com maior ou menor razão, culpavam a atuação de integrantes de outra entida- de trotskista; a Convergência Socialista que, segundo se afirmava na época, teria tentado “atrelar” o grupo à sua organização. Como con- sequência, instaurou-se no Movimento Homossexual uma profunda suspeita de qualquer tipo de atividade político-partidária. Os novos responsáveis pela editoria homossexual nem mesmo estavam inscritos no Partido dos Trabalhadores, então em campanha para conseguir o número mínimo de filiados que lhe possibilitasse uma existência le- gal. Mas, apesar de sua posição herética no jornal, eram convidados a participar de todas as reuniões de pauta, onde suas opiniões eram devidamente ouvidas e discutidas. Todo esse relato está aqui para caracterizar o inusitado grau de boa vontade estendida ao Movimento Homossexual e para carac- terizar as divergências que surgiram, não como resultado de mero preconceito heterossexual, mas das dificuldades tanto a nível táticoquanto estratégico de um entrosamento da luta dos homossexuais organizados com a militância socialista. Durante algumas semanas conseguiu-se estabelecer um modus vivendi razoavelmente satisfatório e chegou-se a publicar artigos questionando os papéis sexuais e até a forma tradicional de militân- cia esquerdista. Por exemplo, uma manchete encimando um artigo de página inteira sobre a atuação política das lésbicas organizadas, proclamava: “Chanacomchana”, o primeiro jornal lésbico do Brasil, declara: “Por uma prática de erotizar a subversão”. Porém, as dificuldades ficaram explícitas quando se quis publicar um artigo enviado pelo Grupo Gay da Bahia, a respeito do 1º Encontro de Homossexuais Organizados do Nordeste. Este artigo, escrito na linguagem comumente usada pelos integrantes do Movimento Ho- mossexual, procurava transmitir não só as reivindicações levantadas, mas também o clima da reunião. A certa altura, eram transcritas as a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 38 21/05/18 10:16 OS RESPEITÁVEIS MILITANTES E AS BICHAS LOUCAS | 39 palavras de ordem que haviam sido gritadas durante uma pequena passeata promovida pelos participantes do encontro. Estas eram frequentemente escandalosas ou aparentemente le- vianas, como se pode ver pelos seguintes exemplos. Au, au, au, é legal ser homossexual. Éte, éte, éte, é gostoso ser gilete. Ado, ado, ado, ser viado não é pecado. U, u, u, é gostoso dar o cu. Ona, ona, ona, é legal ser sapatona. O coito anal derruba o capital. Algumas das opiniões dos participantes que foram transcritas pareciam especialmente provocativas às pessoas engajadas em uma militância ortodoxa esquerdista, como a que dizia: Diversidade não é divisão. É pluralismo, é criatividade. Quanto mais diferente, melhor. Somos pelo show pirotécnico! Pela escu- lhambação organizada! Logo de início, ao receberem o artigo, os responsáveis pela edito- ria homossexual constataram que seria impossível a sua publicação em versão integral devido a problemas de espaço, mas no resumo que fizeram mantiveram algumas das palavras de ordem, como as que diziam que é legal ser homossexual e que é gostoso ser gilete, que consideraram as menos escandalosas. Mesmo assim, os resulta- dos desta autocensura levantaram inúmeras dúvidas entre os outros membros do corpo editorial. Estes, embora dispostos a publicar o artigo por uma questão de democracia interna, não deixaram de dar vários conselhos a respeito da matéria da orientação que estava sen- do dada àquela editoria em geral. Alegava-se que a linguagem usada era apropriada a uma publicação voltada a um mercado gay, mas que naquele jornal ela serviria somente para confirmar preconceitos, re- forçando a imagem caricatural do homossexual como palhaço e ridí- culo. Também foi lembrado que alguns leitores já haviam reclamado do espaço excessivo que estaria sendo reservado a essas matérias de importância considerada secundária. Nesta ocasião, o resumo do artigo acabou sendo publicado, mas provavelmente só porque seu conteúdo tratava de uma importante a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 39 21/05/18 10:16 40 | EDWARD MCRAE reunião dos grupos homossexuais do Nordeste, caindo, portanto, na categoria de “militância”, tão cara à direção do jornal. Tivesse ele uma natureza mais reflexiva, discutindo em mais profundidade a questão homossexual, suas dificuldades de aceitação certamente seriam maio- res, se persistisse em empregar tal linguagem. Ficou então colocado para os editores homossexuais, de forma bastante clara, as contra- dições que defrontavam na sua tentativa de levar a discussão da ho- mossexualidade para um campo dominado por uma concepção de política como relacionada primária e quase exclusivamente à luta de classes. Para serem ouvidos e entendidos, pediam-lhes que higieni- zassem a homossexualidade, reduzindo seus praticantes à categoria mais facilmente assimilável de “grupo oprimido lutando por seus di- reitos”, conceptualmente não muito diferente de uma associação de favelados talvez lutando pela abertura de uma escola em seu bairro para possibilitar a integração de seus filhos na estrutura social em uma posição mais vantajosa. Não se deve criticar demasiado o corpo editorial do jornal por isso, pois a atitude que recomendavam foi adotada durante muito tempo pelos próprios batalhadores pelos direitos dos homossexuais. Desde os primórdios daquela campanha, tentou-se mostrar que eles pode- riam ser cidadãos tão bons, decentes e integrados quanto os heteros- sexuais. No século passado chegou-se ao ponto de inventar a ideia de um “terceiro sexo” para o qual a homossexualidade seria “natural”, por ser uma tendência congênita. Mas, ao lado desta aristocracia, homossexual por nascimento, haveria um bando desclassificado de parvenus degenerados, os “pervertidos”, cuja homossexualidade era “adquirida” e, portanto, ilegítima e passível a todo tipo de repressão. Os militantes homossexuais de então eram realmente bastante respeitáveis, frequentemente escudando suas reivindicações atrás de títulos médicos e quase invariavelmente procurando angariar as simpatias do establishment. Em seu livro de memorias Christopher and his kind, o romancista inglês Christopher Isherwood descreve o contato que ele teve com Magnus Hirschfeld, provavelmente o mais importante dos primeiros militantes homossexuais. Em 1929, visitando o Instituto de Ciência Sexual, alojado em um belo palá- cio da antiga Berlim, ele se surpreendeu com o clima de seriedade a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 40 21/05/18 10:16 OS RESPEITÁVEIS MILITANTES E AS BICHAS LOUCAS | 41 e respeitabilidade do que era então uma espécie de quartel general do movimento homossexual. O mobiliário era clássico, com pilares e guirlandas, mármores pe- sados, cortinas solenemente esculturais e gravuras sóbrias. O almoço era uma refeição de decoro e sorrisos graciosos, presidida por uma senhora grisalha de amável dignidade: uma garantia viva de que o sexo naquele santuário era tratado com seriedade. Como não seria? Sobre a entrada do Instituto havia uma inscrição em latim com os dizeres: “Sa- grado ao Amor e à Mágoa”. (ISHERWOOD, 1977, p. 15, tradução nossa) Mas, apesar de toda a sua dignidade, o Instituto não resistiu à ascensão de Hitler e foi o primeiro alvo da campanha nazista contra livros “pouco germânicos” e, já em maio de 1933, foi saqueado e sua biblioteca de 10.000 volumes incinerada em uma fogueira pública junto com um busto do próprio Hirschfeld. O advento do nazismo e do stalinismo significou o fim de toda militância homossexual até a conclusão da II Guerra Mundial e foi somente em 1948 que se voltou a retomar a campanha por direitos para os homossexuais. Nos Estados Unidos formou-se o Mattachine Society, inicialmente uma organização semiclandestina que, adotando uma linha de moderação e cautela, visava a integração dos homosse- xuais na sociedade. Seus associados muitas vezes aceitavam a noção da homossexualidade ser uma doença, frequentemente adotavam pseudônimos e enfatizavam a sua respeitabilidade. A própria palavra “homossexual” era rejeitada devido à sua ênfase no “sexual” e outros neologismos eram adotados como “homófilo” e “homoerótico”. Esta postura aparentemente tímida pelos padrões atuais é bastante com- preensível, se levarmos em conta a natureza repressiva da sociedade americana de então, e a ameaça constante que o macartismo repre- sentava para qualquer atuação política mais radical. Em outros paí- ses também começaram a surgir grupos similares, como o Arcadie da Franca, o Forbundet 48 da Dinamarca, o COC da Holanda, etc. Porém, no final da década de 60, depois do aparecimento do mo- vimento hippie e da contracultura, após os eventos de maio-junho de 68 em Paris, surgiu o Gay Liberation Front, nos EUA, advogando uma postura muito mais radical e questionadora da sociedade. Para carac- terizar a ruptura que ele representou com os métodos tradicionais de a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb41 21/05/18 10:16 42 | EDWARD MCRAE militância; basta lembrar que o marco simbólico de seu aparecimento foi uma batalha de três noites, travada por homossexuais, incluindo muitos travestis e prostitutos, contra a polícia no gueto gay de Nova York em junho de 1969. A luta foi bastante violenta e os homossexu- ais, além de evidenciar uma fúria inusitada contra seus tradicionais repressores, também gritaram palavras de ordem insólitas para a época, como: Poder Gay Sou bicha e me orgulho disso Eu gosto de rapazes, etc. Poucos meses depois, o Gay Liberation Front, já mais estruturado, lançaria seu próprio jornal, chamado Come Out – que pode ser tradu- zido como Assuma-se – e consagraria o dia 28 de junho como o “Dia de Orgulho Gay”. O exemplo de Nova Iorque logo foi seguido em outras partes dos Estados Unidos, e também na Europa, onde surgiram grupos radicais que, além de adotarem táticas de luta muito mais diretas e às vezes violentas, tinham reivindicações qualitativamente dife- rentes. Indo muito além de uma exigência por direitos civis, despre- zavam os “homófilos” por desejarem uma integração à sociedade existente. Eles exigiam uma mudança radical na própria sociedade, preconizando a abolição das diferenças entre os papéis sexuais de- sempenhados pelo homem e pela mulher, juntamente com os pa- drões estereotipados de masculinidade e feminilidade. Até mesmo a dicotomia hetero/homossexual foi criticada, advogando-se a bis- sexualização da sociedade. Procurava-se acabar com a sociedade dos “normais”, incorporando às táticas de agressão e aos padrões e valores estabelecidos a desmunhecação e outros comportamen- tos homossexuais extremamente estereotipados, em alguns casos, adotando o travestismo. O uso da desmunhecação e do escândalo, por parte de militantes homossexuais, é suscetível de várias abordagens e, dada a frequên- cia de sua recorrência, não pode ser ignorado em qualquer aborda- gem mais aprofundada do tema da militância homossexual. Uma das a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 42 21/05/18 10:16 OS RESPEITÁVEIS MILITANTES E AS BICHAS LOUCAS | 43 formas interessantes e produtivas de encarar o fenômeno é vê-lo à maneira de Goffman (1968), como uma tática para lidar com uma iden- tidade estigmatizada. Como ele nos mostra, o indivíduo estigmatizado, além das outras dificuldades inerentes à sua condição específica, ainda está sujeito a um permanente bombardeio de “conselhos” sobre como portar-se e como encarar a sua identidade. Porém, esses conselhos, parecidos com os dados aos responsáveis pela editoria homossexual do jornal esquerdista mencionado anteriormente, são geralmente contraditó- rios, enfatizando, ao mesmo tempo, a necessidade do estigmatizado se integrar na sociedade tão bem quanto possível e a importância dele não tentar negar o seu estigma e o grupo de estigmatizados ao qual pertence. Dependendo da forma como ele resolve esta charada o indivíduo será então julgado “alienado” ou “autêntico”. (GOFFMAN, 1968, p. 135) Mesmo que ele queira ignorar o seu estigma, sempre lhe é cobrado um posicionamento e, portanto, torna-se compreensível, especialmente da parte de indivíduos mais auto afirmativos, um com- portamento que, ao menos ocasionalmente, enfatize a condição es- tigmatizada. Outros indivíduos poderão optar por um modo de ação contrário, adotando uma prática de camuflagem de sua condição es- tigmatizada. Mas Goffman (1968) nos chama a atenção para o fato de que muitas vezes se espera que o indivíduo se identifique com o agre- gado de seus companheiros de infortúnio porque este é considerado o seu grupo verdadeiro, aquele ao qual ele pertence naturalmente. Todas as outras categorias ou grupos, aos quais o indivíduo também pertence, não são considerados como realmente seus. Ele não é um deles. Portanto em termos de sua identidade de ego, ou seja, a forma como ele deveria se avaliar, a posição da camuflagem pode ser dema- siadamente penosa. (GOFFMAN, 1968, p. 139) Já vimos como os participantes do Encontro de Homossexuais Organizados do Nordeste, de 1981, adotaram atitudes estereotipa- das como maneira de marcar sua presença. Essa prática está também presente em todos os grupos de militância homossexual que eu já tive a oportunidade de ver atuando no Brasil. A propósito, durante uma passeata promovida em 1980 para protestar contra a repressão policial em São Paulo, um dos slogans mais repetidos era: “Agora, já, a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 43 21/05/18 10:16 44 | EDWARD MCRAE queremos é fechar”.2 Igualmente, durante bastante tempo entre os grupos de São Paulo, discutiu-se o esvaziamento da conotação pe- jorativa da palavra “bicha” que passou a ser usada pelos militantes para se referirem uns aos outros. O que estaria ocorrendo aqui é a recuperação, por parte de mi- litantes, das práticas e de uma linguagem corrente em certos meios homossexuais mais imediatamente visíveis. Sua negação ou reprova- ção seriam mais uma forma de reprimir os gays mais arrojados e “es- candalosos” que, embora de modo até agora desorganizado e pouco teorizado, representariam a ponta de lança da afirmação homossexual. Essa política, porém, é alvo de muitas críticas por parte daqueles que receiam uma nova normatização da homossexualidade. Mas Foucault pode ser invocado aqui para nos ajudar a clarear nossos pensamentos sobre o assunto quando ele discute a polivalência tática dos discursos que, segundo ele, devem ser entendidos como uma multiplicidade de elementos discursivos capazes de entrar em estratégias diferentes. Como ele diz: “É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito do poder, e também escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma es- tratégia oposta”. (FOUCAULT, 1979, p. 96) Portanto, seguindo sua lógica, reforçar novas categorias ou iden- tidades não é simplesmente normatizar, mas também pode ser uma tática inteligente de resistência para fazer valer as reivindicações de um discurso geralmente desqualificado. Existe também uma outra discussão possível da questão, infor- mada em parte pela releitura de Freud como a feita por Guattari. Ele fala sobre uma trupe teatral francesa As Mirabelles (GUATTARI, 1981, p. 43), bastante semelhante aos Dzi Croquetes brasileiros. Usavam o travestismo não somente para imitar mulheres mas para perturbar o espectador, questionando suas ideias recebidas a respeito da femini- lidade e da masculinidade de uma forma análoga, embora talvez, mais trabalhada, à “fechação” de alguns militantes homossexuais. Segundo ele, aquela trupe de travestis coloca uma nova questão que não é mais 2 Fechar: uma expressão de gíria homossexual que se refere a um comportamento caricato, desmunhecado e escandaloso. a-construicao-da-igualdade-MIOLO.indb 44 21/05/18 10:16 OS RESPEITÁVEIS MILITANTES E AS BICHAS LOUCAS | 45 a de saber se vamos desempenhar o papel feminino contra o mascu- lino, ou o contrário, e sim fazer com que os corpos, todos os corpos, consigam se livrar das representações e dos constrangimentos do “corpo social”, bem como das posturas, atitudes e comportamentos estereotipados, da “couraça” de que falava Wilhelm Reich. Para Guattari (1981) o movimento operário e revolucionário esta- ria atualmente esclerosado, devido à sua postura de surdez perante os verdadeiros desejos do povo e esta situação só poderia ser reme- diada se nós pudermos nos colocar à escuta de nosso próprio desejo e daquele de nosso entorno mais imediato. O efeito da atuação das Mirabelles como também o da “fechação” seria então o de explorar, impulsionados pelo nosso desejo, o caminho que nos remete a nos- sos corpos, um devir-OUTRO, um tornar-se diferente daquilo que o corpo social repressivo nos destinou autoritariamente. Guattari vai mais além na sua formulação e levanta também a ideia de que, em- bora não se pretenda substituir a luta de classe pelas lutas do dese- jo, mesmo assim os pontos de junção entre
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