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Mapa sobre O Banquete de Platão [As duas molduras antes do início dos discursos] 1. A primeira coisa a se marcar é que toda a discussão de O Banquete se dá a dois passos de distância. Não se trata simplesmente de uma narração direta, mas de alguém relatando o que outra pessoa relatou para ela. Quem esteve no Banquete foi Aristodemo, e este contou para Apolodoro a história que ele irá recontar. a. Acredito que em parte o que está aí é uma certa ideia de memória, do que deve ser lembrado. Ao longo do diálogo de fato nem tudo do banquete vai ser lembrado, nem todos os discursos serão repetidos. O que pode querer dizer que talvez aqueles que chegaram até nós sejam memoráveis também pelo que tocam na verdade, pelo que ajudam a iluminar o problema do amor. (O que talvez nos direcione a ler os discursos não como competindo, mas se complementando). 2. Interessante marcar também como nas descrições iniciais, no retrato de Sócrates, nas falas iniciais, há um certo ambiente amigável que se desenha. Isso não parece ser um acaso. O cuidado de Sócrates de se banhar e calçar sandálias (algo raro) parece marcar justamente a sua reverência com esse grupo de amigos. a. Um detalhe que pode ser interessante marcar é o momento em que Sócrates fica parado [na esquina?], já que essa sua estranheza talvez não seja mais que o momento em que “ocupa seu espírito consigo mesmo”. Isso pode ser um detalhe, claro, mas podemos talvez pensar aqui como uma das características distintivas de Sócrates o fato de que ele não existe apenas em suas interações sociais, mas que o pensamento depende também de uma interioridade (o que não exclui seu comércio necessário com seu fora). b. Outro detalhe é o comentário de Sócrates sobre a ideia de Agatão. Este ao pedir que Sócrates sente ao lado dele, brinca com a ideia de um saber que seria como um vinho, que escorreria do sábio para o não-sábio, como de uma garrafa para um copo vazio. Sócrates brinca como seria bom se fosse verdade. i. Sabemos que não é, já vimos como a sabedoria socrática não é um “saber externo”, não pode ser. O próprio Sócrates marca que mesmo que fosse ele não possuiria esse saber. O que ele possui é uma sabedoria “um tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho”. Ou seja, trata-se de uma espécie de sabedoria medíocre? A própria capacidade de saber os limites entre o saber e o não saber. 3. Decidem então em vez de encher a cara (como na noite anterior), beber de modo mais parcimonioso e substituirem o vinho pelos discursos sobre o amor. Alguns comentários podem ser feitos. a. O primeiro é que há uma espécie de oposição implícita entre o beber e o falar, entre o vinho e o lógos (discurso). Já que um não pode ser feito simultaneamente com o outro pelo fato de ambos dependerem dos usos da boca. É curioso também, como se verá no final do diálogo, como a própria filosofia também tem seu potencial inebriante. b. Além disso, é curioso que o tema do amor apareça justamente quando se levou os prazeres do vinho até os limites. c. Por fim, é importante se perguntar sobre o comentário de que o amor é um tema não elaborado. Será isso por conta da sua confusão com o prazer? É curioso que haja esse espaço para pensar o amor quando o prazer foi levado aos limites, quando se está de ressaca. i. Também interessante lembrar que ainda que o tema seja escolhido em virtude de seu esquecimento, parece que isso torna a posição do diálogo O Banquete ainda mais esquisita não apenas no pensamento platônico, como na filosofia como um todo. Pois mesmo sendo um texto central na obra platônica, mesmo sendo inequivocamente reconhecido como um dos textos mais importantes da história da filosofia, ainda assim seu objeto de pesquisa não deixa de ter sido deixado em segundo plano ao longo do resto da história da filosofia. É como se à despeito da importância e da centralidade do amor em nossas vidas mas também na filosofia platônica, ainda assim ele sempre parece ser deixado de lado. 1. Uma impressão que tenho é que isso tem a ver com o caráter “pessoal” do amor. Todo mundo sabe que ao se falar de amor as vezes acaba-se falando sobre os seus amores. Há um nível de intimidade que rapidamente se expõe quando tentamos falar de algo tão forte como o amor. E o fato de Platão nunca falar em seu nome talvez o permita se sentir mais a vontade para falar desse tema? Fica aí a possibilidade. d. Um último detalhe a se comentar é quando se diz que o tema seria bom até Sócrates, que não sabe de nada, se diz entendedor nas questões do amor. i. O fato de Sócrates incluir o amor entre as coisas que ele se diz entendido parece deixar claro que o amor não é nenhum saber “dogmático”. O que implica (como veremos) que o seu conceito de amor também tem uma relação muito forte com a experiência do conhecimento (e de um conhecimento não dogmático). ii. Também cabe mencionar os rumores sobre os amores de Sócrates, visto que quando ele fala do amor ele fala sobre como aprendeu tudo o que sabe sobre ele com Diotima. Uma das hipóteses que é levantada pelo classicista Armand D’Angour é que Sócrates teria se apaixonado por Aspasia (que seria Diotima). Ter aprendido o que sabe de Diotima não é portanto apenas no sentido de uma relação mestre-discípulo, mas como uma espécie de prática (o amor se aprende amando — mesmo quando não correspondido?). No caso, claro, sabemos que Aspásia acabou preferindo Péricles (como não?), mas ainda assim. Ainda que sejam especulações, a ideia de D’Angour é que tudo no contexto que sabemos das figuras em questão (Sócrates e Aspásia) é que eles teriam frequentado os mesmos circuitos e que de fato Aspásia teria algumas das características atribuídas à Diotima. 4. Após essa introdução, temos os discursos propriamente dito. Serão 6 discursos, cada um com um certo ponto de vista — além da intervenção de Alcebíades. O que é importante repetir, porém, é que esses discursos não devem ser visto apenas como competições pela definição mais adequada do amor. A forma mais interessante de lê-los é como diferentes aspectos do amor que podem se complementar mas que em momento algum do diálogo são sintetizados [embora o amor retratado por Sócrates parece acolher diversas partes dos discursos que aparecem ao longo do diálogo]. Os discursos serão tais: a. Fedro (aristocrata): o amor como aquilo que nos leva à virtude. b. Pausânias (advogado/antropólogo): o amor como algo que pode variar segundo as culturas, como algo que tem várias faces (algo que se vê na ambivalência ateniense com relação ao amor, que distingue entre o amor sexual e o amor “filial”). c. Erixímaco (médico/filósofo natural): o amor como dinâmica natural (e não apenas humana/espiritual). d. Aristófanes (comediógrafo): o amor como falta melancólica e. Agatão (tragediógrafo): o amor do ponto de vista do amante (contendo todos os predicados. f. Sócrates (filósofo): o amor como saída de si. [Discurso de Fedro] 5. A primeira coisa que é importante falar sobre o discurso de Fedro é que ele é todopensado a partir de um ponto de vista militar. Ainda que não saibamos qual a posição social dele, não parece forçação supor que ele é algum tipo de aristocrata guerreiro. O que significa que o tipo de amor que ele vai descrever terá a ver com esse contexto. 6. Fedro começa seu discurso com uma menção ao que Hesíodo e Parmênides disseram sobre amor: como sendo o deus mais antigo. Nesse sentido o amor seria algo primeiro, sem origem. a. Vê-se nesse primeiro ponto como se procura construir um argumento a partir de um apelo a uma legitimidade consolidada (se apoiando na reputação de Hesíodo e Parmênides. b. Além disso, não há nenhum argumento elaborado por Fedro, ele apenas se apoia na posição genealógica para afirmar seu valor. 7. Passando então para a descrição dos seus efeitos, Fedro irá dizer que o amor é um incentivo à virtude por meio da vergonha. O amor seria uma experiência na qual não iríamos querer fazer feio diante dos amados. O efeito do amor (e por isso ele mereceria ser elogiado) seria a maneira como eles nos conduz para a virtude. a. Importante marcar aqui que Fedro é um dos poucos em O Banquete a marcar uma simetria entre os amantes. Como se verá (e isso não é tematizado por ser uma espécie de saber comum), a posição usual é pensar na relação do amor como uma experiência assimétrica entre amante e amado, que não deixa de ecoar nas formas de relações amorosas entre homens na grécia ática (em que os mais velhos eram amantes e os mais novos eram amados). b. Quebrando também com a tradição, Fedro também irá considerar o amor que inspira a virtude como algo que ocorre com mulheres, como ele comenta no caso de Alceste. Esta estaria tão envolta no amor por seu marido, a ponto de se sacrificar por ele, que os deuses permitem que ela retorne. Ela consegue nesse gesto, portanto, transcender a sua finitude (ao fazer até os deuses admirarem ela). i. Algo bem diferente do que aconteceria com Orfeu, que recebe uma interpretação diferente na boca de Fedro. Se ele não conseguiu trazer sua amada de volta de Hades, teria sido pelo fato de que ele nunca de fato a amou de maneira suficiente, não estando disposto a descer ao Hades morto, mas apenas vivo. Dando provas de um amor insuficiente. 1. Não à toa que, no epílogo de sua história, ele teria sido assassinado por mulheres pela sua covardia. 8. O amor que Fedro descreve, pelo menos em seus efeitos, pode então ser pensado como aquilo que produz gestos que apontam para uma transcendência/superação da nossa finitude (como nos casos em que literalmente se arrisca a vida). [Discurso de Pausânias] 9. Pausânias fará um discurso que em tese é de um conhecedor do direito, mas que acredito que seja também o de um antropólog, visto que um dos principais elementos da sua descrição do amor é a percepção da sua variação cultural (a maneira como se vive e pensa o amor variando de cidade em cidade). 10. Ele vai começar seu discurso, porém, comentando como na verdade há dois tipos de amor, como haveria também duas Afrodites. a. O primeiro tipo de amor seria aquele da Afrodite sem mãe, que seria chamada de celstial. b. O segundo amor seria ligado à filha de Zeus e de Dione, que seria o amor popular. 11. Essa distinção é importante pois para Pausânias é ela que permitirá entender que o amor em si não é nada, pois ele pode ser realizado de forma bela ou não. Dessa forma, não basta louvar o amor, mas é preciso louvar o amor que é belo. 12. O amor pode então ser compreendido a partir das duas figuras mitológicas referenciadas que acabam implicando numa divisão do eros em sexo e amor. a. O amor popular, o amor ligado à Afrodite Pandêmia, privilegia relações heterossexuais e corporais (o sexo) [ainda mais visto que essa própria Afrodite é fruto de uma relação sexual hetera). Ficamos com a impressão que trata-se portanto de um tipo de amor que tem o prazer como meta. b. O amor celestial é pensado a partir das relações entre homens, sem violência (sem paixão), tendo como alvo a inteligência e a virtude. Vê-se que está em jogo algo da ordem da amizade (tanto que é desse amor que surgiriam longas amizades que duram quando o amor já acabou). 13. Por conta dessa dualidade do amor, porém, é que o amor é algo perigoso a ponto de ser objeto de preocupação das cidades. Se algumas cidades legislam sobre o amor (como Pausânias analisa), isso tem a ver com o fato de que há riscos no amor que podem fazer ele transitar de um amor louvável (o celestial) para um que rapidamente conduza à vícios (como o amor popular, pautado pelo prazer). 14. Pausânias marcará sua preferência pelo amor celestial por ter como objeto do amor não um corpo (que pode decair, que pode se desgastar, que é inconstante), mas a alma (que seria constante). Ou seja, vemos que a diferença entre o amor celestial e o popular não é apenas à respeito da sua forma de amar, mas ao que é amado no amante. 15. Ainda que o amor seja, portanto, visto como algo que conduz à virtude (como Fedro também enxerga), ele é pensado como algo que deve ser regrado para evitar seus riscos. Vê-se portanto como na própria análise de Pausânias vemos uma aceitação do caráter multifacetado do amor. E ainda que ele pese os tipos e avalie eles, ainda assim há um esforço por compreender que acaba também encenando em miniatura a própria lógica do diálogo platônico, em que se procura navegar entre os equívocos. [Discurso de Erixímaco] 16. Após o discurso de pausânias, teremos a fala do médico e/ou filósofo natural Erixímaco. Sua fala pode ser compreendida, portanto, como a perspectiva dos filósofos naturais [pre-socráticos] da tradição jônica. O que significa que ele vai considerar sobretudo os aspectos naturais e físicos do amor, e não apenas a sua experiência do ponto de vista do humano. 17. Exirímaco começa retomando a divisão do amor em dois que Pausânias fez, mas estendendo-a aos corpos. Nesse sentido, assim como o amor é duplo, os corpos também comportariam essa duplicidade em seus elementos sadios e mórbidos. 18. Nesse sentido ele descreve a saúde como a conciliação entre elementos inicialmente hostis entre si, algo que seria facilitado ou realizado pela prática médica. a. Enquanto por sua vez, a morbidez aconteceria a partir da discordância e da não-conciliação de elementos estranhos (ou dos elementos amigáveis?) 19. Essa dinâmica, como ele marca, não é restrita aos corpos. Ao comentar Heráclito, Erixímaco irá dizer que essa ideia da conciliação está presente em outros campos e outras artes (como no caso da música, em que a harmonia é uma certa consonância). A saúde é então suscitado não apenas pela arte médica, mas pela produção da concórdia (seja em qual campo for). 20. Retornando ao problema do amor, ele dirá então que há uma espécie de divergência dependendo do ponto de vista que se adota. Do ponto de vista da harmonia em si, só haveria de fato um amor como concórdia. A ideia dos dois amores apareceria nos efeitos dessa harmonia no homem. É nesse momento que ele reintroduz o amor populare o amor celestial. Enquanto o primeiro seria a própria harmonia, ou seja, seria a própria reprodução da harmonia em nossos corpos, o amor popular acabaria sendo as instâncias em que somos afetados de algum modo divergente, em que somos tomados por alguma diferença, alguma sensação diferenciada e destoante — no caso, não deixa de ser o prazer. a. Isso não significa, porém, que Erixímaco é contra o amor popular, ele apenas defende a sua moderação pelos riscos e perigos viciantes que a vida a partir do prazer pode gerar. 21. Note que ao terminar seu discurso, ao recapitular sua imagem do amor como o movimento de conciliação, Erixímaco marca que sua posição não esgota o problema, podendo ser complementada. [Discurso de Aristófanes] 22. Aristófanes aparece como comediógrafo. É importante lembrar que não apenas ele fazia comédias, como as suas comédias eram espécies de comentário sobre as formas de viver em sua Atenas. Ou seja, haveria algo de filosófico já na sua forma de pensar e articular suas comédias. Importante lembrar também que Aristófanes, como comediante, era um pensador conservador. Além disso, como cabe apontar, se antes as pessoas estão preocupadas em descrever o amor a partir de uma certa referência a uma mitologia mais ou menos compartilhada (a partir de fontes como Hesíodo), com Aristófanes a gente vê um tipo de explicação que é muito parecida com a criação de mitos de Platão. É verdade que Aristófanes não procura construir argumentos e dar conta de modo explícito do conceito de amor. Mas ainda assim ele mesmo inventa um mito que serve de explicação (ele mesmo fala de uma “iniciação”). 23. O mito de Aristófanes é bem conhecido, ainda que nem sempre em seus termos mais exatos. Ele procura marcar o evento fundante que foi a gênese do amor, que implicou numa transformação da nossa natureza. Basicamente a gente tem uma história da origem do amor a partir de um gesto de húbris (ousadia?) dos seres humanos, que aspiraram ser mais, serem de fato deuses. a. No início o ser humano seria um ser duplicado (com quatro braços, quatro pernas, duas cabeças) e teria três generos, o masculino, o femino e o andrógino. Ou seja, temos corpos que seriam de certa forma dobrados e que comportam 3 combinações diferentes (mulher com mulher, homem com homem e mulher com homem). Há também uma circularidade nesses corpos que não deixa de remeter para uma certa ideal de perfeição. b. Pelo fato de que eram corpos muito fortes, eles aspiraram subir ao Olimpo e substituir os próprios deuses. Voltaram-se contra os deuses, mas pelo fato de eles serem inferiores, acabaram sendo facilmente derrotados. c. Os deuses, por conta dessa ousadia, queriam punir os seres humanos. Não queriam, porém, simplesmente destruí-los (pois quem seria devotado a eles nesse caso?). Zeus resolveu então partir os seres humanos em dois, dando a eles a forma que tem atualmente. Eles ficariam mais fracos (apresentando menos riscos) e mais numerosos (mais pessoas devotas). i. Essa partilha, porém, não se deu de modo perfeito. Há alguns detalhes que são relevantes para entender o amor aristofânico. Em primeiro lugar os rostos eram voltados para a direção do corte, para que se contemplasse a própria mutilação e sentisse vergonha diante das suas limitações (ou seja, de sua finitude). ii. Também é digno de nota que o próprio corte é irregular em algum ponto, para que ficasse de lembrança da condição passada. d. Após o corte, o efeito foi que os seres humanos começaram a passar as suas vidas procurando suas metades, procurando restituir sua unidade — o que certamente significa que as ameaças aos deuses ficam temporariamente suspensas. i. O problema é que diante desse impulso, os seres humanos acabavam abdicando de tudo em nome de ficar um próximo do outro, a ponto de pôr sua vida em risco. Não parece muito diferente de certos impulsos que sentimos em situações amorosas, em que tudo que queremos apenas é ficar o tempo inteiro com a pessoa amada. ii. Como, porém, isso apresentava problemas (a possível destruição da humanidade), Zeus é tomado de compaixão e cria um artifício para diminuir esse impulso. Ele cria justamente o sexo (no caso ao mudar o sexo para a frente nos corpos) e a reprodução entre seres humanos. O sexo é uma solução pois durante a sua realização, acaba-se realizando uma espécie de união (objetivo do impulso mortífero) que, porém, é imediatamente interrompida pelo gozo, pela liberação de prazer e o cansaço subsequente. Essa interrupção que o sexo produzia no amor (em que voltamos à nossa individualidade) acabaria dando condições para os homens terem seus desejos temporariamente saciados, interrompendo a pulsão do encontro amoroso, e permitindo que se retorne aos cuidados da vida prática. iii. Nesse sentido vê-se que há uma natureza complementar nos corpos, mas essa complementariedade não pode ser vivida plenamente, absolutamente (pelos riscos que apresenta). 1. Inclusive, como se marca pelo fato de haver três gêneros inicialmente, o que Aristófanes faz é explicar as diferentes horientações sexuais a partir dos diferentes gêneros que existiam antes da punição divina. 2. Nota-se também uma certa ironia e conservadorismo de Aristófanes ao zombar dos homens que entram na política que seriam justamente aqueles que seriam gays. Ainda que esteja muito sutil, é possível especular que por ser conservador, Aristófanes privilegiasse as relações heterossexuais. iv. O amor, portanto, é pensado como a busca pelo semelhante, busca pela parte de você que lhe foi retirada. v. E esse encontro gerá inúmeras sensações e emoções intensas e incríveis. Aristófanes inclusive marca como o efeito do amor é justamente uma incapacidade de dar razões para a atração, e um tipo de atração que certamente não se reduz à união sexual (até porque, em sua narrativa, a união sexual é justamente a sua suspensão temporária). 1. O amor tem portanto algo de inteligível no Aristófanes, algo que talvez por sua natureza de faltante acaba sendo sempre algo que no fim das contas nos escapa fora a ideia — essa sim bem clara — de que se quer tornar um com o amante (a ponto de até desejar permanecer junto no Hades). 2. Como porém isso é impossível, como a reunião final é não apenas fisicamente impossível, mas também em termos mitológicos bem perigosa (pelo perigo dos deuses), a ideia de amor de Aristófanes não deixa de ter um ar melancólico, uma espécie de fracasso embutido de antemão. a. E por isso talvez que ele termine seu discurso pedindo por uma espécie de temperança no amor, para evitar que soframos de novo nas mãos dos deuses. [Discurso de Agatão] 24. Agatão é um tragediógrafo, mas como uma espécie de avesso de Aristófanes, quem fará um discurso cômico será ele. 25. O discurso de Agatão é precedido de comentários sobre a capacidade de falar, visto que Agatão faz um charme sobre a sua capacidade de falar. Sócrates retruca que já viu Agatão falando inúmeras vezes diante de multidões. Aqui aparece a diferença entre ser capaz de falar para muitas pessoas(como um retórico) e para poucas (como um filósofo). Isso é relevante pois a retórica é definida por Górgias justamente como a capacidade de falar para muitas. Se Agatão é capaz de falar diante de muitas, porque não conseguiria falar para poucas? Isso parece adiantar o teor retórico e espalhafatoso de seu discurso. a. Aqui porém, como vê-se no final, não é um problema. Estão entre amigos e o próprio Agatão parece ir perdendo a linha e tornando seu discurso sobre o amor cada vez mais barro e cada vez menos conceitual. 26. Ainda assim, o discurso de Agatão apresenta uma virada no diálogo. Pois diferente dos outros, ele irá procurar falar “em virtude de uqe natureza vem a ser causa de tais efeitos”. Ainda que Agatão fracasse em certa medida (pelo menos aos olhos de Sócrates), ele teria o mérito de procurar entender as coisas a partir de suas causas (pois só isso pode nos conduzir de fato para um saber seguro, um em que encadeamos corretamente nossas opiniões). 27. Ainda assim, o discurso de Agatão apresenta uma virada no diálogo. Pois diferente dos outros, ele irá procurar falar “em virtude de uqe natureza vem a ser causa de tais efeitos”. Ainda que Agatão fracasse em certa medida (pelo menos aos olhos de Sócrates), ele teria o mérito de procurar entender as coisas a partir de suas causas (pois só isso pode nos conduzir de fato para um saber seguro, um em que encadeamos corretamente nossas opiniões). 28. Seu amor, porém, não será qualquer amor, mas será também apenas mais um aspecto. Se Aristófanes descreveu o amor do ponto de vista de seu fracasso, Agatão irá tomá-lo do ponto de vista do amantes. Por isso ele descreverá o amor como o mais belo dos deuses. Trata-se então, se a ideia é explicar a beleza do amor, sua perfeição, as causas dessa beleza. 29. É aqui, porém, que Agatão irá derrapar, pois tudo o que ele faz é justificar a beleza do amor a partir de imagens. Trata-se de coisas que parecem argumentos mas não são. Como quando ele diz que o amor deve ser um deus tardio pois caso contrário, em sua natureza violenta, nenhuma das intrigas entre os deuses teriam acontecido. E o fato de o amor ser o mais jovem também faz Agatão emendar e dizer que isso significa que ele é delicado. Ou seja, são coisas que parecem concatenações de ideias, mas que parecem estar lastreadas apenas em imagens que por sua vez sequer foram analisadas adequadamente. 30. O amor acabará aparecendo no discurso de Agatão, portanto, como aquilo que (sendo do ponto de vista do amado, de quem é alvo de adoração) é perfeito, que recolhe em si os melhores predicados possíveis. Essa imagem até é admitida como jocosa pelo próprio Agatão no final do discurso. O que parece que deve nos fazer tomar a sério não apenas as ideias de Agatão sobre o amor, mas a sua representação brincalhona. Como essa capacidade de tecer elogios infindáveis fosse ela mesma já um dos aspectos do amor. [Discurso de Sócrates] [pre-âmbulo do discurso de Sócrates] 31. Chegando a vez de Sócrates, este comenta a sua incapacidade de fazer algo tão “belo” [retoricamente elaborado] quanto o discuro de Agatão. Mais uma vez, porém, trata-se de uma espécie de crítica, já que ele associa-o ao Górgias, sofista encantador de massas. 32. Sócrates se mostra então arrependido de ter entrado nessa brincadeira dos discursos, pois acreditava que se procuraria a verdade e não simplesmente ajeitar o discurso da forma mais elaborada possível. Haveria uma falta de cuidado que ele observa nos discursos que preterem a verdade em nome do estilo, algo que se veria sobretudo no discurso de Agatão que vai simplesmente adicionando o máximo de predicados positivos ao amor [algo que convence só quem é de fato ignorante]. 33. Sócrates se dispõe então a discursar sobre o amor, mas com a verdade dele em foco, e não a beleza. Por isso pede licença para proceder de uma forma diferente em seu discurso, começando a partir de perguntas e respostas sobre o próprio discurso de Agatão. a. O que é importante marcar aqui é que vemos o já comentado procedimento de Sócrates de partindo sempre de uma posição já formada, uma opinião, uma ideia de outra pessoa etc. Ou seja, um tipo de procedimento que, ao meu ver, marca a possibilidade de partir de qualquer ponto para se chegar ao verdadeiro (pois o verdadeiro no pensamento não diz respeito às premissas). [Interrogação de Agatão] 34. Sócrates elogia o princípio metodológico mencionado por Agatão (entender a natureza do amor, para então avaliar seus efeitos), ainda que ele não tenha conseguido levar ele ao cabo. Sócrates começa então a interrogar Agatão sobre o que ele fala. a. A primeira pergunta que se faz é se o amor é amor de algo ou de nada (ou seja, ,se quando se ama, esse amor é a respeito de algo — e não se ele “vem” de algo). i. Estabelece-se que o amor é amor de algo. Isso funcionará como uma premissa mais adiante. b. Segunda pergunta: Quando se ama algo, essa coisa amada é desejada? i. Responde-se que sim. Essa pergunta é então emendada: deseja-se o que não se tem ou o que se tem? 1. Deseja-se o que não se tem, o que falta (que pode faltar espacialmente ou temporalmente — como no risco de que algo falte no futuro). 2. O desejo é portanto constituído a partir de algo que falta em nós. c. Com essas duas perguntas respondidas, Sócrates definirá o amor como o desejo de que aquilo que não se tem ou que não lhe é próprio. i. Isso significa que podemos desejar mesmo algo que >contingencialmente< está conosco mas que pode no futuro não estar. 35. Após essa definição do amor provisória (o amor como o desejo do que nos falta, que não é nosso), Sócrates retoma a ideia de Agatão de que o amor está associado ao belo, que ama-se o belo e não o feio. Isso estabelece uma premissa que será ligada à definição do amor que Sócrates elaborou agora pouco: a. Premissa 1: O amor é amor do belo. b. Premissa 2: O amor ama o que falta. c. Conclusão: A beleza, sendo amada, falta no amante. 36. A conclusão, contra a ideia de Agatão, é que se o amor tem como objeto a beleza, então o próprio amor em si não pode ser belo. a. E como poderia? O amor, em sua vida prática, é cheio de problemas, cheio de dificuldades, ainda que sempre mire uma espécie de beleza/felicidade. 37. O amor, portanto, carecendo do belo, carece do bem também (já que haveria uma certa associação na cultura grega entre o belo e o bom). [Discurso de Diotima] [O amor como intermediário] 38. Após esse ponto, Sócrates interrompe o diálogo com Agatão para contar o discurso do amor que escutou de Diotima. Ele faz essa interrupção pois seu diálogo com Diotima parecia ser parecido com o de Agatão com Sócrates. No caso então quando chegaram a conclusão que o amor não é nem belo nem bom (pois isso que o aspira), resta saber então o que ele é. a. Diotima, é preciso dizer, pode ter sido uma pessoa real, a figura história Aspásia, que foi amante de Péricles, como especula o classicista Ardmand D’Angour. 39. O discurso de Diotima começa com a pergunta sobre a necessidadedo amor ser feio caso ele não seja belo, ou ser ignorante caso não seja sábio. a. Para ela alguns predicados opostos admitem intermediários: como por exemplo quem tem a opinião correta mas de modo não justificada. Ainda que não seja ciência nesse caso (por não se saber arrazoar), também não se pode afirmar que é ignorância pois é correto. 40. O amor, portanto, será tomado como algo que está entre os extremos da beleza e da feiura. a. Mas esse caráter intermediário também se encontra na ideia de que o amor é um deus. Pois se ele também não é plenamente feliz (para ser mais preciso ele carece do próprio bom e do belo), também não pode ser pensado como integralmente um deus. 41. Diotima vai dizer então que o amor é uma espécie de demônio [daimon], entre mortal e imortal. a. Interessante marcar que ele recebe a mesma denominação que o espírito que “assombra” Sócrates. É quase como se nesse ponto já estivesse sendo trabalhado e especificando retroativamente o que é o daimon socrático. b. Além disso, ser um demônio que está entre os mortais e os deuses significa que ele é justamente o movimento de transporte entre as súplicas e sacrifícios dos homens para os deuses e as ordens e recompensas e punições dos deuses para os humanos. i. O amor é portanto aquilo uqe transporta, mas não qualquer coisa, e sim aquilo que se passa entre o que é finito e infinito. Ou seja, o amor não é simplesmente algo entre duas coisas finitas, mas é algo que sempre é intermediado ou interrompido por um ponto infinito. [Genealogia do amor] 42. Diotima faz então uma reconstrução da genealogia do amor, ou seja, de quem ele seria filho. Para ela trata-se de um filho de Poros (Recurso) com Pênia (Pobreza). No caso, Pênia se aproveitou que Poros estava dormindo embriagado na festa de nascimento de Afrodite para ter um filho com ele. a. O que é interessante aí marcar é que há uma certa inversão nos predicados. Poros, o recurso, é quem dorme, quem é tomado por uma falta [de vigilância?], enquanto Pênia, que é pobre, é quem acaba tendo recursos, tramando e engravidando de Poros. 43. Sendo filho de Poros, Eros vai herdar várias das suas características, a coragem, a inteligência, a energia, etc. Enquanto de Pênia herda a dureza, a secura, a pobreza e o fato de que sempre lhe falta algo. Por fim, sendo gerado no nascimento de Afrodite, o amor nasce como servo da beleza. 44. Além de tudo, como já foi falado, Eros não é exatamente deus. Ele não é nem mortal nem imortal, nascendo e renascendo (graças ao pai), ainda que sempre o que ele consegue conquistar com seu recurso acaba escapando. a. Além disso, como está envolto nessa dinâmica de buscar o que lhe falta, não pode ser deus, pois no caso seria sábio ou belo e não precisaria buscar o que lhe falta. Por outro lado, porém, não se é ignorante, caso contrario sequer desejaria o que deseja (pois nem saberia que falta algo). b. Importante marcar, porém, que essa “falta”, essa “pobreza”, de Pênia que Eros herda, não é como a falta de Aristófanes, visto que a dele é originária. A falta de Eros para Diotima — como veremos — é algo que sempre lhe escapa, algo constitutivo mas como excesso. c. Como a sabedoria é bela, uma das coisas mais belas. Ela será um dos objetos do amor. E por isso será possível dizer que o eros tem como natureza ser filósofo (já que o filósofo é justamente quem está entre o sábio e o ignorante). i. Aqui vemos o erro de Agatão, pois ele pensou o amor a partir do amado e não do amante. Claro que o amado é belo e bom, mas o amante tem que carecer dessas coisas para ir atrás delas. [Investigação dos efeitos do amor] 45. Após explicar qual a natureza do amor, sua origem, passa-se finalmente à pergunta dos efeitos do amor (ou seja, seu proveito). O que está em jogo aqui é entender qual o benefício de ter ou amar o belo (ou ao bom). a. A resposta primeira e imediata é que ao se estar junto do belo/bom fica-se feliz. A aquisição do belo e do bom leva, portanto à felicidade que é um fim em si mesmo. 46. Pergunta-se então se o amor é algo que visa à felicidade, porque apenas algumas pessoas amam? a. Isso leva Diotima a fazer uma distinção que está presente na palavra amor. Para ela há um equívoco, pois quando se costuma falar de amor, fala-se apenas de um dos seus aspectos (que é o amor entre humanos). Isso não significa que outros aspectos não existam, mas que eles recebem outros nomes. 47. Ainda que haja esse equívoco, nesse caso de amor específico (o amor entre humanos), isso ajuda a diferenciar o tipo de amor que Diotima fala e a ideia de Aristófanes do amor como falta. Pois o que se busca com amor, o que se falta, não é nenhuma metade originária, mas sim simplesmente o bem (e o bem em sua integralidade) — e tê-lo sempre consigo [visto que é ele que faz as pessoas felizes]. 48. Diotima pergunta então o que é propriamente o amor enquanto atividade. Não apenas sua finalidade (seus efeitos nos amantes, as razões de se buscar ele), mas o que ele é enquanto uma prática. 49. A resposta a essa pergunta será um pouco misteriosa, pois ela dirá que ele é um parto em beleza, tanto no corpo como na alma. a. Para ela explicar isso ela começa a falar da união entre homem e mulher e o nascimento que vem daí, que só pode ser belo e divino b. A impressão é que a união amorosa teria algo de um parto (mesmo que não se nasça um bebê) por trazer algo divino ao mundo, por transportar algo de divino. Ainda não está claro o que há de divino nessa situação. c. Assume-se, ainda assim, que o amor seria, portanto, o amor do nascimento do que é belo. 50. A coisa começa a se esclarecer quando se explica o que se quer dizer com geração. A geração é singular pois ao mesmo tempo que vem de um ser mortal, tem em seu movimento uma certa aspiração ao que é imortal, ao que excede o ser finito (pois a vida continua para além dele, mesmo que tenha sido criada por um ser finito). a. O amor aparece então como uma aspiração ao eterno e imortal por meio de uma obra (que pode ser um ser vivo ou não, podendo ser, como por exemplo se fala, uma obra de arte ou mesmo uma vida virtuosa). b. E mesmo que se aspire a esse imortal, como a própria Diotima marca, isso não é algo inequivocamente bom, já que não deixa de ter dor e dificuldades envolvidas no processo de geração. i. O que isso parece significar é que a geração (e o comportamento amoroso) não pode ser explicado portanto por um simples cálculo utilitário (até porque isso só nos permite entender coisas finitas). 51. O que passa a impressão é que o amor tem essa geração da beleza por ser o momento em que somos tocados por algo divino, por algo fora de nós (e que portanto nos retira da nossa finitude e nos põe em contato com o infinito, com o que é da ordem divina). a. O que é transmitido, portanto, parece ser a própria possibilidade das coisas serem diferentes, de serem mais do que são atualmente. 52. De novo, como se trata de algo que transcende a nossa finitude, o desejo de imortalidade, departicipar no bem, não deixa de ter algo de insensato. [A ascenção no amor] 53. Após apresentar o que é o amor, seus efeitos, sua finalidade e sua forma de se realizar, resta apenas elaborar o desenvolvimento interno ao amor. Ele será compostos de algumas etapas e é possível ler elas de duas formas: a. Uma delas é entendendo o processo do amor como um processo de ascenção que vai negando as formas superadas. Nessa leitura termina-se por negar o corpo. Não acredito que isso seja uma boa leitura (ainda mais que a própria Diotima comenta que nem todos chegam à perfeita contemplação). b. A outra forma de entender é como se fosse um processo de composição, em que as formas vão se somando. Como se o desenvolvimento do amor intelectual e o amor ao belo em si não negasse o amor corporal. 54. As etapas são a seguinte: a. Em primeiro lugar alguém é atraído por belos corpos. Ou seja, pela exterioridade. b. Depois percebe-se que essa atração não é por um corpo específico, mas que o belo pode existir em mais de um corpo (ou seja, o amor não aponta para dentro de alguém especificamente). c. Em seguida, ao prestar atenção na beleza que compõem um determinado corpo belo, começa-se a reparar na alma, na beleza própria da alma. i. E a alma tem um valor a mais que é que ela é mais durável que o corpo, ou seja, aspirar o bem que tem nela é mais promissor que no corpo que definha. d. Esse amor da alma acaba inspirando a se prestar atenção nos mais diversos campos, que vai permitindo reparar a belza que atravessa não apenas a alma que amamos, mas as coisas que se relacionam ao lado belo da nossa alma (como o exercício ideal das artes, da política, da ciência ou da virtude). e. Ao se envolver nesse processo de ascenção, ao se desenvolver um amor pelos diversos campos de saber (ou seja, na medida que a contemplação leva à produção do belo), passa a se vislumbrar a própria possibilidade do belo sim si (“contemple ele uma certa ciência, única, tal que seu objetoi é o belo seguinte.”). i. Trata-se então de uma ciência que se alcança na medida em que se passa a produzir coisas belas que em sua variedade mantém sempre algo que permanece — o próprio belo. f. Em seguida Diotima descreve o belo de maneira negativa, como algo que sempre é, sem nascer ou perecer, que nem cresce nem cresce, que não é de nenhuma forma específica e assim por diante. O que está em jogo aí é a ideia de que não há predicado positivo para o belo, mas também não é possível predicar relativamente o belo (ou seja, compará-lo). Ele é em certo sentido um universal, mas universal no sentido de que ele é aquilo que atravessa as diferenças sem por isso poder ser explicitado (pois justamente, seu sentido não é desse mundo). i. E é importante lembrar aqui que o próprio belo foi entendido como alguma espécie de “parto na beleza”, de modo que esse universal não é nunca da ordem de uma identidade, mas uma espécie de diferença (ou princípio de diferença — ainda no que consista essa diferença seja objeto de outros diálogos). g. Mas aqui nesse ponto vemos que o belo se ele é impredicável, ainda assim ele não é invisível. Pois na medida em que contemplamos ele não se fica inerte. A ideia de que o belo deixa as pessoas letárgicas é falsa. Ele leva as pessoas a se moverem, a produzir “não sombras de virtude, porque não é em sombra que estarás tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estea tocando.” i. Virtudes reais então são a forma que o belo se encarna e que mostra seu caráter não-lertárgico. É por isso que se pode dizer que o belo ainda que impredicável, pode ser pensado indiretamente quando nossas próprias ações se transformam e procuram ser virtuosas. ii. Isso é importante para pensar a filosofia platônica como um todo, pois nela nunca encontraremos nenhum conceito final de qualquer uma das ideias. É como se a sua possibilidade de “verificar” sua adequação dependesse sempre da prática que se instaura a partir do processo de reflexão. 1. Mesmo que este não chegue a nenhuma conclusão derradeira, seu ponto derradeiro é sempre nossa ação ser transformada a partir das considerações. 55. Após esses comentários, Diotima encerra o discurso e Sócrates termina sua participação. [A entrada de Alcebíades] 56. A parte final do diálogo se inicia com a interrupção de Alcebíades. A impressão que dá é que o amor entra aqui como uma espécie de evento que não pede licença. Além disso, vemos nesse momento também, um tipo de discurso diferente. Se os outros discursos que aconteceram falaram do amor de um ponto de vista “teórico”, Alcebíades fala do ponto de vista do amor particular e concreto. 57. Chega então bêbado, gritando e sem reparar que Sócrates está ali. É convidado a se juntar aos convivas. Sócrates nesse ponto expressa sua irritação com a situação, já que desde que Sócrates seduziu/amou Alcebíades, os únicos efeitos produzidos foram o ciúme. Alcabíades recebe esse comentário de modo ambíguo. Promete castigar Sócrates mas faz um pequeno agrado com a coroa de fitas. a. É interessante, portanto, que sabendo tanto de amor (como Sócrates mesmo reconhece), que quem ele amou tenha acabado como Alcebíades. 58. Pedem então que Alcebíades faça ele também um elogio ao amor. Mas, como dito, Alcabíades fará um elogio que irá misturar o pessoal com o filosófico ao elogiar o próprio Sócrates na hora de elogiar o amor (o que revela a maneira como no amor, ao falar dele, acabamos nos implicando também). a. Vê-se, além da confusão (pela embriaguez?) do amor com o objeto amado, que vemos aqui involuntariamente a identificação do próprio Sócrates (que tem um daimon) com o amor. [O discurso de Alcebíades] 59. Alcebíades começa seu discurso comparando Sócrates com um sileno. Os silenos são sátiros, figuras divinas com cauda e cascas de boi e um rosto humano e bastante feio. Sócrates seria um sileno que nos daria a impressão de conter em seu interior deuses. Ou seja, se os silenos seriam figuras que tem um certo poder na sua boca de encantar os outros com suas músicas divinas, Sócrates teria essa capacidade de deixar os outros completamente enfeitiçados com as suas palavras. 60. Os discursos de Sócrates, porém, tem um efeito muito específico (que parecem inclusive combinar com o que Diotima, via Sócrates falou): eles intoxicam, aturdem, empolgam. Eles deixam as pessoas animadas (em muitos sentidos) a um ponto de quererem mudar suas vidas (ou seja, de quererem ir para o caminho da virtude). a. Alcebíades, portanto, a partir do contato com Sócrates se torna envergonhado de si mesmo. Trata-se claro de um efeito do amor, se sentir insuficiente diante do amado. Ao mesmo tempo parece uma etapa, um momento do caminho que Sócrates parece propor ao longo de todas as suas aparições como caminho para a vida boa. A vergonha, nesse caso, não sendo entendida aqui como simplesmente achar que fizemos algo de errado, mas com a percepção de que os limites que encontramos em parte são limites que nós mesmos botamos e que precisamos desfazer (como o escravofaz no Mênon quando entra em aporia na lição de geometria). 61. Alcebíades, porém, apesar de sentir a vergonha, prefere evitá-la, prefere fugir de Sócrates. 62. Nesse ponto começa um comentário ambíguo sobre a duplicidade de Sócrates. Ele é descrito como alguém que se comporta de modo amável e sempre afirmando a sua ignorância. Porém, sugere Alcebíades, como os Silenos, haveria em seu interior uma certa sabedoria (mas de que tipo, caberia perguntar aqui à Alcebíades?). a. Além disso, porém, ele rejeita todos os bens exteriores (riquezas, a beleza, o poder), e se satisfaz apenas com estar junto à outras pessoas, brincando e ironizando para cima delas (ou seja, “filosofando”). b. Alcebíades comenta então que essa rejeição a esses bens está ligada ao fato que em seu interior há algo de divino, um tipo de sabedoria que é impossível não se submeter (tanto que Alcebíades se envergonha diante de Sócrates). i. Mas que tipo de saber é esse? Sabemos que não é nenhum saber dogmático, que só pode ser lógos como alguma espécie de atividade. c. Mas Alcebíades comenta isso apenas após ter se frustrado e sentido na pele que Sócrates não dá valor para nenhum desses bens exteriores. Pois ele achava que era a sua beleza física que fazia Sócrates se aproximar dele. Ele então cedeu aos encantos do seu lógos, dos seus discursos, acreditando que haveria algo ali que pudesse ser acessado de modo positivo. i. E o sinal de que deveria haver algo ali seria a própria qualidade inebriante, tóxica (“delírio”, “báquico”), “que tem mais virulência que a víbura”. d. Acontece o óbvio. Alcebíades não encontra nada, nada acontece entre Sócrates e Alcebíades. E é interessante aqui que há uma ambiguidade no nada. Pois mesmo se mistura na arapuca armada por Alcebíades para os dois tanto o desejo de acessar a sabedoria socrática (o elemento divino no seu interior), como também o desejo de possuir sexualmente Sócrates. i. Alcebíades se declara para Sócrates — o que parece ser o mais privado dos mistérios — e marca mais uma vez como Sócrates faz ele aspirar ser outra pessoa (o que não deixa de ser um dos sinais do amor). ii. Mas nesse ponto vemos que a troca que Sócrates tinha a oferecer nunca foi essa que o Alcebíades esperava (e isso é justamente um sinal de como elae ainda está aquém no desenvolvimento filosófico). Pois caso a situação fosse como Alcebíades imagina, seria uma troca injusta, já que a beleza que Alcebíades oferece é contingente (pois relativa ao corpo), enquanto a dele seria duradoura. iii. Mas nem isso é o caso, pois como ele marca, ele não é nada, ele não tem nada dentro dele. Isso não deixa de ser um sinal, acredito, que o amor também não pode ser encarado nos termos de uma simples troca de posses. O amor talvez esteja mais próximo da experiência de sair de si que Alcebíades chegou a dizer que sentia. 63. Alcebíades passa então, para explicar seu fracasso (para si mesmo?) passa a descrever as grandes virtudes de Sócrates (e que acabamos associando a ele). Sua capacidade de resistir (tanto à bebida, como aos perigos na guerra, quando marchava descalço no gelo). Também é extremamente corajoso mas sempre de um modo bastante discreto. Há, portanto, uma imensa capacidade de avaliar as situações de maneira precisa, mesmo diante das maiores tensões. a. Sócrates, portanto, é objeto de amor por sua singularidade, por ser único (mas ele é único para Alcebíades, que foi afetado por Sócrates de tal maneira que este passou a reparar, prestar atenção etc). b. Ao fim do discurso, porém, parece cair de novo no ressentimento, no ciúmes, ao marcar que ele não foi o único com quem algo parecido aconteceu (mas é curioso que as pessoas que dois que ele nomeia que sofreram desse mal [Cármides e Eutidemo] também participam de diálogos platônicos e não tem comportamentos virtuosos). 64. Há uma certa melancolia agridoce aqui em Alcebíades. Ele parece amar Sócrates o suficiente para prestar atenção nele, para entender os caminhos que ele lhe está sugerindo e chegar perto da sua verdade. Nesse sentido ele consegue pintar uma imagem extremamente fiel de Sócrates. 65. Ainda assim, ele não parece disposto a percorrer completamente esse caminho de mudança da vida — pois isso implica levar radicalmente a sério o vazio que compõem Sócrates, entender que a sua sabedoria interna não é um “algo”, mas é justamente a sua mobilização da sua própria ignorância. Isso parece sugerir que ainda tem algo que lhe escapa, algo que o faz ficar ainda nessa posição de amante perdido, pois ele não consegue entender o que o objeto amado dele valoriza. a. Mas não seria inevitável, em certa medida, estar assim como Alcebíades enquanto amamos? Não seriam os outros discursos apenas discursos confortáveis pois estão sempre falando fora do amor?. 66. No fim de seu discurso, o diálogo termina com Sócrates reclamando que Alcebíades conseguiu desfazer de sua imagem diante de Agatão, mas também virando o jogo, pois Agatão acaba se aproximando ainda mais dele. Nesse ponto, porém, foliões invadem o encontro e forçam todos começam a beber e dando início a uma grande festa. a. Nas últimas linhas a única coisa que sabemos é que antes de Sócrates partir do banquete, quando já estavam todos sonolentos, que ele tentava convencer Aristófanes (comediógrafo) e Agatão (tragediógrafo) que um mesmo homem era responsável pelas duas artes. i. Isso pode ser uma referência ao fato de que em seus discursos, Agatão e Aristófanes invertem posições (discurso trágico para Aristófanes e discurso cômico para Agatão), mas parece um pouco distante. ii. O que parece fazer mais sentido é que algo está sendo dito sobre o próprio Sócrates e o filósofo, que acabariam combinando elementos da tragédia (talvez o apreço à questões universais, fundamentais) e da comédia (talvez a perspicácia reflexiva, a capacidade de ajuizar situações) em uma só atividade.
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