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A Escravidão e suas Representações 02 1. A Escravidão e as Suas Representações 4 2. O Tráfico Negreiro 9 Senzalas, Quilombos, Castigos, Violência 13 3. A Memória dos Negros Escravizados: o Banzo 22 As Imagens e a Memória: os Abolicionistas 25 A Imagem Oficial 33 4. Referências Bibliográficas 43 03 4 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES 1. A Escravidão e as Suas Representações Fonte: Portal da Cidade1 egundo Di Giulio (2003, s/p) Iorubás, haussás, bornos, bari- bas. Para quem ouve pela primeira vez, essas palavras podem soar es- tranhas e sem importância, mas, desde o século XVII, elas estão estri- tamente ligadas à história do Brasil e, de algum modo, contribuíram for- temente para moldar o país como o conhecemos atualmente. Se, para a maioria dos brasileiros, essas pala- vras não fazem parte do vocabulário, na África elas são sinônimos de dife- 1 Retirado em https://lucasdorioverde.portaldacidade.com/ renças: cada uma delas designa um povo com língua e costumes diferen- tes. Povos que, durante o período de escravidão, deixaram forçosamente o continente africano para fincar ra- ízes em solo brasileiro. “Povos diver- sos que foram se formando ao longo de milhares de anos. Múltiplos po- vos com culturas diferentes”, explica o pesquisador Valdemir Zamparoni, do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) e professor da Universidade Federal da Bahia. S 5 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES Com a escravização, milhares de negros das mais variadas culturas acabaram se misturando e tiveram de passar a conviver juntos, criando laços de comunicação e de socializa- ção. A historiadora Marina de Mello e Souza, em seu artigo Destino im- presso na cor da pele, relata que “ao serem arrancados de suas aldeias e transportados pelo continente afri- cano rumo às feiras regionais e aos portos costeiros, os escravos de dife- rentes etnias misturaram-se, apren- deram a se comunicar, criaram no- vos laços de sociabilidade que se consolidaram durante os horrores da travessia atlântica, e se instituci- onalizaram no seio da sociedade es- cravista colonial, à qual foram inse- ridos à força, acabando por encon- trar formas de integração”. Mas, para o pesquisador Hen- rique Cunha Júnior, que faz parte do Núcleo de Estudos Interdisciplina- res sobre o Negro Brasileiro (NEINB - USP), esses povos já mantinham contato intenso antes do comércio e do escravismo no Brasil. “Os africa- nos tinham e têm imenso trânsito no interior do continente e externo a ele. Antes da vinda para o Brasil, eles já haviam navegado no Atlântico e no Pacífico. Tinham comércio com o Caribe e a China”, diz. (DI GIULIO, 2003, s/p) Ainda de acordo com Di Giulio (2003, s/p) se já tinham contatos antes ou se intensificaram esses la- ços durante a viagem nos navios ne- greiros e aqui, não é o mais rele- vante. O fato é que milhares de ne- gros vindos de várias partes da Áfri- ca aportaram em terras brasileiras - principalmente na Bahia e, como ex- plica o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia, o maior número desses escravos per- tencia a grupos do tronco linguístico banto da África Centro- Ocidental, que inclui as regiões do Congo, An- gola e Moçambique. “No interior de cada uma dessas grandes regiões contam-se dezenas de grupos étni- cos que vieram para o Brasil no perí- odo colonial e imperial, até o fim do tráfico, em 1850”, diz. Segundo Reis, como esses escravos estavam con- centrados na Bahia, identidades es- pecíficas foram reconstituídas ou construídas novamente. “Os falantes do iorubá viraram nagôs os do grupo gbe (fon, mahi e ewe, por exemplo) viraram jejes”, compara. Na opinião do pesquisador, o reagrupamento dos negros no Brasil seguiu, sobre- tudo, a lógica do parentesco linguís- tico. Para Zamparoni - que traba- lhou no Centro de Estudos Africa- nos, em Moçambique, durante três anos -, a primeira geração de negros vindos para cá guardou elementos de sua origem, mas as outras gera- 6 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES ções já eram a síntese das várias cul- turas. “O candomblé praticado no Brasil é diferente dos cultos aos ori- xás que acontecem na Nigéria. Ele é fruto das criações culturais daqui”, explica. Mas, não foi somente no Brasil que diferentes povos tiveram de conviver. Por causa do processo de colonização do continente africano, que teve início no século XIX, gru- pos étnicos diferentes tiveram de vi- ver no mesmo país, contribuindo para uma enorme diversidade cultu- ral em cada Estado africano. “O de- senho político dos países africanos foi feito seguindo a geografia do co- lonialismo, daí que grupos étnicos historicamente rivais foram coloca- dos no interior de fronteiras cultu- ralmente artificiais, assim como gru- pos mais ou menos homogêneos fo- ram divididos por essas fronteiras”, afirma Reis. “Populações que, mui- tas vezes, não eram amigas no pas- sado, acabaram obrigadas a convi- ver dentro do mesmo Estado. O re- sultado disso é a instabilidade polí- tica de muitos países”, acrescenta Zamparoni. Se tanto no Brasil como em cada Estado africano há tamanha di- ferença cultural, porque muitos veem a cultura africana como homo- gênea e têm a visão de uma só África? Parte dessa visão equivocada é decorrente do próprio sistema educacional brasileiro, que não in- clui estudos sobre a África e os es- cravos que vieram para o Brasil. “Esse processo de exclusão da histó- ria africana da cultura nacional faz parte das políticas de desigualdades de classes produzidas pelo escravis- mo e pelo capitalismo racista”, ex- plica o pesquisador Cunha, em seu artigo A inclusão da história africana no tempo dos parâmetros curricula- res nacionais. Segundo o pesquisa- dor, “as percepções sobre o passado africano são desinformadas e racis- tas, e associadas às noções de raça, tanto no cotidiano da sociedade co- mo na educação, produzem um pro- cesso de representações desfavorá- veis à percepção igualitária e cidadã dos afrodescendentes”. (DI GIULIO, 2003, s/p) Para Zamparoni, de acordo com Di Giulio (2003, s/p) esse pro- cesso de homogeneização da cultura africana está relacionado a outros mais antigos. Segundo ele, nos pri- meiros contatos, os europeus já pu- deram perceber que os africanos pertenciam a povos diferentes, com culturas e hábitos diversos. “Mesmo assim, nada impedia os europeus de falarem sobre os hábitos dos negros, usando julgamentos depreciativos”, diz. Quando começa o tráfico de es- cravos, que se torna mais forte a par- tir do século XVII acontece um pro- cesso de desumanização, na opinião 7 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES do pesquisador. “Havia aqueles se- nhores de escravos e os traficantes que conheciam as características de cada povo. Mas, o negro passou a ser tratado como unidade. Não se fala- vam mais de pessoas, mas de peças”, afirma. No século XIX, com o dis- curso do racismo científico, esse processo se acelera ainda mais. “A tese de raça abstrai as diferenças culturais e busca denominadores co- muns”, diz Zamparoni. Os traços culturais são deixados de lado e o que pesa é apenas o fundamento bi- ológico. “Esse é o grande discurso homogeneizador e desumanizador”, ressalta ele. Em outras palavras, os escra- vos eram vistos como “peças” iguais. Com a tese do racismo científico, to- dos os negros passam também a ser vistos como iguais. “E passa, então, a existir a ideia de que existe uma África só.” A imagem de um conti- nente africano semelhante a que é mostrada em filmes como Tarzan e a ideia da uniformidade cultural são, na opinião de Zamparoni, fruto do desconhecimento, racismo e de “uma própria ignorância”. Paraesses pesquisadores, as diferentes culturas africanas não apenas influenciaram, mas foram parte integrante daquilo que hoje definimos como cultura brasileira. “Os escravos foram 'os pés e as mãos' não só dos senhores, mas do Brasil. Do ponto de vista da cultura, deixa- ram a marca por toda a parte porque a escravidão existia por toda parte. É difícil encontrar um setor da cultura em que a mão e o pensamento afri- cano não tenham tocado”, diz Reis. (DI GIULIO, 2003, s/p) Cunha segundo Di Giulio (20 03, s/p) vai mais além. “Tudo, abso- lutamente tudo que é cultura brasi- leira durante o escravismo crimi- noso foi fruto de africanos afrodes- cendentes. As tecnologias, todas”, diz. Como exemplo, ele cita as agri- culturas comerciais tropicais, que eram conhecidas dos africanos, e as fundações de ferro, geridas com o conhecimento africano. “Mesmo a fauna e flora brasileira foram modi- ficadas pelos africanos. Temos ani- mais e plantas trazidos por eles. A bagagem africana é muito rica”, completa. “É impossível pensar como in- fluência, mas sim como fundamento da cultura brasileira”, explica Zam- paroni. “Somos herdeiros das várias culturas africanas”, diz. Nesse sen- tido, ele destaca a importância de es- tar consciente disso. “O Brasil não vai se conhecer enquanto não estu- dar as culturas africanas e não as tratar com respeito.” (DI GIULIO, 2003, s/p) 9 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES 2. O Tráfico Negreiro Fonte: Conhecimento Cientifico2 ara Silva (s/d, s/p) o tráfico transatlântico de escravos de- senvolveu-se em parte graças à par- ticipação dos próprios africanos. Apesar de o tráfico negreiro ser ge- ralmente caracterizado como obra dos países europeus e americanos, os africanos também participaram ativamente dessa atividade. O tráfi- co exigia uma organização comercial complexa para a venda e o transpor- te dos escravos. Essa organização encontrava-se baseada nos três con- tinentes do Atlântico. Na África ela concentrava-se nas mãos dos pró- prios africanos, que determinavam quem embarcava ou não para o No- 2 Retirado em https://conhecimentocientifico.r7.com/ vo Mundo. Isso em nada diminui o envolvimento dos países europeus e americanos no tráfico de escravos, mas revela um lado pouco conhecido da participação africana nessa ativi- dade. Os africanos escravizavam-se uns aos outros por uma questão de identidade cultural. Ao contrário dos europeus, no princípio do tráfico negreiro, e ainda bem depois disso, os africanos não se reconheciam co- mo africanos. Eles se identificavam de diversas maneiras, como pela sua família, clã, tribo, etnia, língua, reli- gião, país ou Estado. Essa diversida- de sugere uma sociedade bem mais P 10 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES complexa do que aquela a que esta- mos acostumados e designamos por “africana” Pouco vale distingui-las neste momento. Contudo, deve-se atentar para essa diferença, uma vez que ela ajuda a entender a origem do tráfico de escravos e da escravidão no Novo Mundo. (SILVA, s/d, s/p) Ainda para Silva (s/d, s/p) a escravidão foi uma instituição pre- sente na maior parte do mundo. Na África, ela surgiu antes mesmo da era dos descobrimentos marítimos dos europeus. Desde a antiguidade clássica, escravos negros eram ven- didos para os mercados da Europa e da Ásia através do Deserto do Saara, do Mar Vermelho e do Oceano Ín- dico. Eles eram vendidos entre os egípcios, os romanos e os muçulma- nos, mas há notícias de escravos ne- gros vendidos em mercados ainda mais distantes, como a Pérsia e a China, onde eram recebidos como mercadorias exóticas. Na própria África, os africanos serviam como escravos em diversas funções, desde simples trabalhadores até coman- dantes ou altos funcionários de Es- tado. Portanto, tanto a escravidão como o comércio africano de escra- vos precedeu à chegada dos euro- peus e à abertura do comércio marí- timo com o Novo Mundo. Com a colonização das Améri- cas, um novo mercado surgiu para o comércio africano de escravos. As plantações de açúcar do Brasil e do Caribe expandiam progressivamen- te, demandando cada vez mais mão de obra. Contudo, as populações na- tivas do Novo Mundo, dizimadas em grande parte pelas doenças trazidas pelos europeus, mal podiam atender essa demanda. Os europeus, por ou- tro lado, viam poucos motivos para trabalharem voluntariamente nas plantações de açúcar. As condições de trabalho eram geralmente precá- rias e pouco gratificantes, de manei- ra que mesmo prisioneiros ou indi- víduos obrigados a um termo de tra- balho raramente se sujeitavam a tra- balhar nas plantações de açúcar do Novo Mundo. O problema da escas- sez de mão de obra foi solucionado com o tráfico transatlântico de es- cravos. A escravidão na África serviu de base para o desenvolvimento do tráfico transatlântico de escravos. Inicialmente, os europeus organiza- ram expedições marítimas para cap- turar e transportar escravos pelo Atlântico. Contudo, os riscos e os custos dessas expedições eram mui- to altos em comparação aos ganhos. Por isso, decidiram por um método menos agressivo para a obtenção de escravos, adotando o comércio no lugar da força bruta. Os africanos responderam positivamente a essa decisão, uma vez que já estavam lon- 11 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES gamente familiarizados com o co- mércio de escravos. A abertura do comércio transatlântico com os eu- ropeus proporcionou aos africanos acesso a objetos que eles considera- vam como de luxo, e não quinquilha- rias como geralmente se anuncia. Os africanos rarissimamente venderam escravos por bens de primeira ne- cessidade. A maioria dos objetos im- portados pelos africanos consistia em bens supérfluos como panos asi- áticos e europeus, bebidas alcoóli- cas, tabaco, armas de fogo e pólvora. (SILVA, s/d, s/p) Continuando Silva (s/d, s/p) aponta que havia várias maneiras de um indivíduo se tornar escravo na África. O mais comum, e talvez mais eficiente, era a guerra. Guerras entre vizinhos geralmente produzia um número de indivíduos capturados que poderia ser facilmente vendido na costa como escravo. No entanto, as guerras eram um método de es- cravização caro, que somente socie- dades centralizadas ou estatais po- deriam sustentar. Outros métodos de escravização menos dispendiosos e abertos às sociedades africanas descentralizadas incluíam as razias, o endividamento, e o julgamento por crimes ou heresias. Finalmente, em tempos de carestia, havia ainda a possibilidade de escravização volun- tária, na qual indivíduos livres en- tregavam-se à escravidão movidos pela fome, pelo abandono ou por ou- tras ameaças. O tráfico transatlântico consu- miu mais escravos do que qualquer outro mercado da África. Contudo, a demanda por escravos do comércio transatlântico pouco alterou a ma- neira como os africanos concebiam a escravidão na África. Em geral, os africanos preferiam mulheres como escravas por dois motivos. Primeiro porque as mulheres eram responsá- veis pelo trabalho agrícola na maio- ria das sociedades africanas, e se- gundo porque eles poderiam tomar essas mulheres por esposas, aumen- tando assim a sua família e a sua in- fluência política na comunidade lo- cal. As crianças também eram consi- deradas escravos ideais pelos africa- nos, uma vez que poderiam ser facil- mente assimiladas pela comunidade dos seus senhores. Ao contrário, os africanos procuravam se desfazer logo de escravos homens, que pode- riam representar um perigo para a sociedade, especialmente em se tra- tando de soldados capturados em guerras. Nesse sentido, o tráfico transatlântico de escravos contri- buiu para aliviar os senhores africa- nosdesse tipo de escravo, já que as plantações do Novo Mundo deman- davam mais homens do que mulhe- res e crianças como escravos. (SIL- VA, s/d, s/p) 12 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES O tráfico negreiro de acordo com Silva (s/d, s/p) atuou diferente- mente em várias partes da costa afri- cana. Por isso, torna-se difícil de cal- cular o impacto dessa atividade no continente. Na Baía de Benin e na costa do Congo e Angola, onde o trá- fico foi especialmente ativo, o seu impacto é geralmente associado à vi- olência comercializada, a crises de- mográficas, e à expansão da escravi- dão na própria África. Em outras partes do continente, as consequên- cias devem ter sido menos severas, apesar de a economia externa afri- cana viver hoje profundamente vol- tada para fora do continente. De to- da maneira, o tráfico transatlântico de escravos foi uma atividade na qual os africanos atuaram tanto co- mo vítimas quanto agentes. Talvez, o primeiro passo para se compreender a história dessa tragédia seja reco- nhecer que até pouco tempo a escra- vidão era aceita pela maior parte do mundo. Uma prova disso está na ocasião em que se celebra o fim da escravidão. O 13 de Maio de 1888 re- presentou o fim da escravidão no Brasil. O último país a abolir a escra- vidão nas Américas, apenas cerca de dois séculos atrás. Portanto, seja en- tre europeus, seja entre africanos, havia poucos fatores que pudessem inibir o desenvolvimento do tráfico transatlântico de escravos. (SILVA, s/d, s/p) Trazendo mais informações sobre o assunto trazemos o parecer de Sento Sé (s/d, s/p) que aponta que o tráfico negreiro no Brasil per- durou do século XVI ao XIX. Nosso país recebeu a maior parte de africa- nos escravizados no período (quase 40% do total) e foi a nação da Amé- rica a mais tardar a abolição do cati- veiro (1888). Era uma atividade lu- crativa e praticada pelos portugue- ses antes do descobrimento do Bra- sil. As embarcações utilizadas para o transporte desses escravos da África para o Brasil eram as mesmas anteriormente usadas para o trans- porte de mercadorias da Índia. As- sim, podemos levantar dúvidas so- bre o estado de conservação e a se- gurança dos navios negreiros. No início desse “comércio” eram utilizadas para o tráfico ne- greiro desde as charruas até as cara- velas, com arqueações que variavam entre 100 e 1000 toneladas. Mas com o passar do tempo os navios negreiros começaram a ser escolhi- dos com mais especificidade, indo de naus com apenas uma cobertura (os escravos eram transportados sem distinção nos porões) a naus com três coberturas (separando-se homens, mulheres, crianças e mu- lheres grávidas). Àquela época, esses navios eram apelidados de “tumbei- 13 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES ros”, pois devido às condições precá- rias muitos escravos morriam. Os negros que não sobreviviam à via- gem tinham seus corpos jogados ao mar. (SENTO SÉ, s/d, s/p) Ainda de acordo com Sento Sé (s/d, s/p) os negros que aqui chega- vam pertenciam, grosso modo, a dois grupos étnicos: os bantos, vin- dos do Congo, da Angola e de Mo- çambique (distribuídos em Pernam- buco, Minas Gerais e no Rio de Ja- neiro) e os sudaneses, da Nigéria, Daomé e Costa do Marfim (cuja mão de obra era utilizada no Nordeste, principalmente na Bahia). (...) O motivo para o início do tráfico ne- greiro no Brasil foi a produção de cana-de-açúcar. Os escravos eram utilizados como mão de obra no Nordeste. Comercializados, escra- vos jovens e saudáveis eram vendi- dos pelo dobro do preço de escravos mais velhos ou de saúde frágil. Vis- tos como um bem material, eles po- diam ser trocados, leiloados ou ven- didos em caso de necessidade. O Tráfico Negreiro foi extinto pela Lei Eusébio de Queirós, em 1850. (SEN- TO SÉ, s/d, s/p) Senzalas, Quilombos, Cas- tigos, Violência Conforme Santos (2009, s/p) durante o longo período escravista ocorrido no Brasil, a violência foi uma das características marcantes desse sistema socioeconômico. Na violência implícita à escravidão tem- se uma parte importante e impres- cindível da dominação dos senhores sobre seus escravos no interior das unidades produtivas, ou seja, a vio- lência foi imposta pela sociedade es- cravista objetivando submeter e controlar as ações de negação dos cativos contra as empresas de base escravista. O castigo do escravo infrator apresentava-se como parte do “go- verno econômico dos senhores”, ali- ados ao trabalho excessivo e ao ali- mento insuficiente. Mas o poder do senhor sobre o escravo não visava destruí-lo, mas, sim, otimizar sua produção econômica e diminuir sua força política. É justamente o perigo da perda de funcionalidade do sis- tema de dominação do senhor sobre o escravo que fez com que a punição senhorial fosse agente político, ma- nifestando-se e se reativando na pu- nição do escravo faltoso (LARA, 1988, p.116, apud SANTOS, 2009, s/p). O reconhecimento social da prática dos castigos de escravos, no entanto, esbarrava na questão da justiça e da moderação, pois somen- te aplicado nessas condições corres- ponderia ao que dele se esperava: a disciplina e a educação. A punição injusta e excessiva provocava, por 14 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES seu turno, descontentamento e re- volta. Punir o escravo que houvesse cometido uma falta, não só era um direito, mas uma obrigação do se- nhor. Isso era reconhecido pelos próprios escravos, mas não quer di- zer que os castigos eram aceitos, ou seja, por intermédio dos castigos, caberia a tarefa de educar seus cati- vos para o trabalho e para a socie- dade (LARA, 1988, p. 60-61, apud SANTOS, 2009, s/p). Para a repreensão dos escra- vos considerados criminosos, havia duas justiças paralelas: a oficial, re- presentada pela máquina judiciária, baseada no livro das Ordenações Fi- lipinas, que previa duras penas co- mo morte e degredo e a privada, pra- ticada pelos senhores (APOLINÁ- RIO, 2000, p. 103, apud SANTOS, 2009, s/p). Um departamento da Casa de Correção era apropriado ao castigo dos escravos, que para lá eram man- dados a fim de serem punidos por desobediência ou por faltas peque- nas. Os escravos eram recebidos a qualquer hora do dia ou da noite e retidos em livro de despesas o tempo que os senhores desejassem (KID- DER e FLETCHER, 1941, p. 173, apud SANTOS, 2009, s/p). Segundo a autora Emilia Viotti da Costa, (1998), nas fazendas o pro- gresso era muito mais lento do que nas cidades. Os conselhos reiterados aos fazendeiros para que fossem be- nevolentes e moderados nas penas aplicadas aos escravos sugerem os excessos cometidos na solidão das fazendas e que a crônica do tempo confirma. Nas cidades a lei intervi- nha, regulava e fiscalizava já nas fa- zendas, porém, a vontade do senhor decidia e os feitores executavam. Não que a maioria dos feitores fosse necessariamente recrutada entre os que gostavam de “dar pancadas”. Os critérios de avaliação das penas e de aplicação dos castigos ficavam quase sempre ao arbítrio do senhor, mas sua execução dependia da índole dos feitores e estes, não raro, se exce- diam ao aplicá-los. (SANTOS, 2009, s/p) Como espetáculo, o castigo fa- zia parte de um ritual e era um ele- mento de liturgia punitiva que dei- xava a vítima infame de si e osten- tava a todos o triunfo do poder se- nhorial visando simbolizar no mo- mento de sua execução, a lembrança da natureza do crime. Estabelecen- do entre o suplício e o crime relações decifráveis na certeza de anular o crime junto com o culpado (FOU- CAULT, 1987, p. 31, apud SANTOS, 2009, s/p). Artur Ramos, num artigo pio- neiro publicado em 1938 e posteri- ormente analisado e publicado por Silvia Hunold Lara (1988), empre- 15 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES endeuuma classificação dos instru- mentos de castigo e suplício dos es- cravos, dividindo-os em instrumen- tos de captura e contenção, instru- mentos de suplício e instrumentos de aviltamento para prender o escra- vo. Vários foram as formas e os ins- trumentos utilizados para castigar os escravos faltosos e mantê-los obe- diente e temerosos. Como instru- mentos destinados à captura e con- tenção de cativos havia as correntes, (dentre as correntes estão a gonilha ou golilha, a gargalheira), o tronco e o vira-mundo, as algemas, machos, cepo e a peia. Apesar de serem clas- sificados como instrumentos de cap- tura e contenção podiam tais utensí- lios transformar facilmente em ins- trumentos de grandes tormentos, pois ao provocarem a imobilidade forçada tornava-se um verdadeiro suplício. Além dos instrumentos já citados, existiam também as másca- ras de flandes, os anjinhos, o baca- lhau, à palmatória e o ferro para marcar com inscrições o corpo do escravo faltoso (APOLINARIO, 2000, p. 102, apud SANTOS, 2009, s/p). Os cativos segundo Santos (2009, s/p) aprendiam a conhecer cada um desses objetos, destinados a suplicá-los, desde a mais tenra ida- de como também saber que qual- quer falta cometida, seriam castiga- dos por tais instrumentos (NEVES, 1996, p 91). A série de instrumentos de tortura utilizados nas práticas in- quisitoriais desafiava a imaginação da consciência mais dura. O tronco era um velho instrumento usado em muitos países, para os condenados de todas as raças, e na própria África os negros o empregavam com fins penais. Depois da abolição da escra- vatura no Brasil, o tronco ainda foi empregado em muitas fazendas, para a prisão e castigo de ladrões de cavalo e de outros delinquentes. Seu objetivo era imobilizar o escravo obrigando-o a posições mais ou me- nos forçadas, torturava-se pelo can- saço, pela impossibilidade de se de- fender dos insetos que o atacavam, pelo desgaste físico e moral (LARA, 1988, p. 75, apud SANTOS, 2009, s/p). O cepo consistia num grosso tronco de madeira que o escravo car- regava à cabeça preso por uma longa corrente a uma argola que trazia no tornozelo (LARA, 1988, p. 73-74, apud SANTOS, 2009, s/p). Nesta série de correntes e ar- golas, está o libambo. Extensiva- mente é toda espécie de corrente que prendia o escravo e, neste sentido, está descrito por vários historiado- res. No Brasil, porém, o libambo teve uma significação restrita: serviu para designar aquele instrumento que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde saía 16 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES uma haste longa, também de ferro, que se dirigia para cima ultrapas- sando o nível da cabeça do escravo. Esta haste ora terminava por um chocalho, ora por trifurcação de pontas retorcidas. Os anjinhos eram instrumentos de suplício que pren- diam os dedos polegares da vítima em dois anéis que comprimiam gra- dualmente por intermédio de uma pequena chave ou parafuso (NEVES, 1996, p. 91, apud SANTOS, 2009, s/p). Arthur Ramos (1938, apud SANTOS, 2009, s/p) em seu artigo afirma que nas cidades, os castigos de açoites eram feitos publicamente, nos pelourinhos. O espetáculo era anunciado publicamente pelos rufos do tambor. Era grande a multidão que se reunia na praça do pelouri- nho para assistir ao látego do car- rasco abater-se sobre o corpo do próprio escravo condenado, que ali ficava exposto á execração pública. A multidão excitava e aplaudia, en- quanto o chicote abria estrias de sangue no dorso nu do negro escravo para servir de exemplo aos demais. No período da escravidão no Brasil, segundo Santos (2009, s/p) costumava- se dizer que para o es- cravo são necessários três P, a saber, pau, pão e pano. E posto que come- cem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, provera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado a qualquer causa pouco pro- vada ou levantada e com instrumen- tos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um ca- valo que meia dúzia de escravos (NEVES, 1996, p. 92, apud SANTOS, 2009, s/p). De acordo com Santos (2009, s/p) o castigo físico enquanto domi- nação sobre o corpo do “outro” não foi um mecanismo de poder exclu- sivo do escravismo moderno. Em outras épocas a cultura ocidental foi criando práticas de violência ade- quada aos interesses das elites. To- davia é na sociedade escravista mo- derna que ela vai tomar nuances mais elaboradas e fincadas na racio- nalidade do Estado Moderno e nos interesses dos senhores escravistas. Isto não significa, porém, que o cas- tigo dos escravos tenha sido para- lelo, reflexo ou simplesmente repeti- ção do que se passava em nível mais geral. Perpassado pelas conexões mais amplas, os castigos físicos, me- didos, justos, corretivos, educativo, moderado e exemplar dos escravos e escravas negras mantinham sua es- pecificidade: exercício do poder se- nhorial e na reafirmação da domina- ção. Sendo que eles estavam ligados 17 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES à reprodução de uma relação de ex- ploração direta do trabalho. (SAN- TOS, 2009, s/p) Explorando os estudos acerca das fugas e dos quilombos no Brasil o professor Maestri (2005, s/p) pu- blicou um artigo em aponta que no início dos anos 1500, viviam no lito- ral brasílico em torno de seiscentos mil americanos, sobretudo aldeões de língua tupi-guarani. Os coloniza- dores lusitanos ocuparam as terras litorâneas; eliminaram, escraviza- ram ou assimilaram as populações nativas; impuseram economia es- cravista e latifundiária voltada à produção de mercadorias. Por três séculos e meio, a pro- dução escravista colonial regeu a so- ciedade colonial e imperial brasilei- ra, impondo duríssimas condições de existência aos trabalhadores es- cravizados, primeiros americanos, a seguir africanos e afrodescendentes. Os trabalhadores feitorizados serviram-se de diversos meios para oporem-se, em forma consciente, semiconsciente e inconsciente à ex- ploração escravista, destacando-se entre eles a resistência na execução do trabalho; a apropriação de bens por eles produzidos; o justiçamento de escravistas e prepostos; o suicí- dio; a fuga; o aquilombamento; a re- volta; a insurreição. O cativo resistiu ininterruptamente, mesmo quando se acomodava à escravidão. (MAES- TRI, 2005, s/p) A principal forma de resistên- cia do cativo segundo Maestri (20 05, s/p) à escravidão foi a oposição ao trabalho escravizado, através do corpo mole, da sabotagem das ferra- mentas, do auto-ferimento, etc. O profundo desamor ao trabalho feito- rizado impôs a necessidade de que o produtor direto fosse estreitamen- te vigiado, durante a produção, ou duramente castigado, quando não cumpria suas tarefas, ensejando gas- tos não produtivos com o controle e a vigilância que oneravam duramen- te essa forma de produção, como apontado por Jacob Gorender, no clássico O escravismo colonial. Uma não menos significativa forma de oposição à escravidão foi a fuga, através da qual o cativo liber- tava-se das amarras que o prendia ao escravizador, criando as condi- ções para um exercício autonômico de sua força de trabalho. Se a oposi- ção incessante ao trabalho e as ou- tras formas de resistência minaram a produção escravista, foi a fuga dos cativos, concentrados na Centro- Sul, durante o auge da cafeicultura, que assentou o derradeiro golpe à instituição, como desvelado no mag- nífico estudo de Robert C. Conrad, Os últimos anos da escravidão no Brasil. 18 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES As fugas foram uma hemorra- gia incessante na produção escra- vista. Fugiam trabalhadores escravi- zados, de ambos os sexos, crianças,jovens, adultos ou já idosos; fugiam cativos das cidades, das residências, das embarcações, das chácaras, das fazendas, das olarias, das charquea- das. Fugia o cativo crioulo, que não conhecia outra vida que a vivida no jugo da escravidão, fugia o africano apenas ou há muito chegado ao Bra- sil, que vivera em liberdade no Con- tinente Negro. Fugia o cativo do- méstico, o trabalhador do eito, o ga- nhador especializado. Os fujões es- capavam em grupos ou aos pares, mas, sobretudo sozinhos, para visi- tar amigos e parentes; para viver co- mo negros livres libertos nas cidades e nos campos; para procurar a pro- teção de acoitador cúmplice; encon- trar o abrigo em um ermo do inte- rior. A documentação referente à so- ciedade escravista está prenha de re- gistros dessa vontade incessante de liberdade e, não raro, da dura von- tade de mantê-la, mesmo pela força. Ali onde era possível, os cativos fu- giam para além das fronteiras do Brasil, onde comumente se reconhe- cia a sua liberdade. Apenas o desconhecimento, até a poucos anos, do caráter hege- mônico da escravidão no Brasil e da dominância da oposição entre escra- vizador e escravizado, impediu a correta avaliação e releitura de nos- so passado a partir daquela contra- dição. E isso apesar dos trabalhos germinais de Benjamin Péret, Que foi o quilombo de Palmares? de 19 56, de Clóvis Moura, Rebeliões Da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, de 1959, de Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, de 1966, entre outros. (MAESTRI, 2005, s/p) Ainda conforme Maestri (2005, s/p) até hoje, não contamos com estudos gerais sistemáticos so- bre a fuga de cativos no Brasil, pos- síveis de serem realizados apenas a partir do cruzamento de múltiplas fontes. Tentar por exemplo estimar a incidência dessas ocorrências atra- vés dos anúncios de jornais pagos pelos proprietários de fujões é uma quase inocência historiográfica. Por inúmeras razões, apenas uma parte dos escravistas utilizava-se desse re- curso. Nem mesmo as listas de cati- vos fugidos expressam plenamente a dimensão do fenômeno. Em geral, elas não abarcam as perdas dos pro- prietários de poucos cativos, as fu- gas de breve duração, os fujões já presos ou sem título de propriedade, etc. Praticamente todas as estima- tivas isoladas, ainda que baseadas em uma documentação lacunar su- gerem que, nos períodos de norma- lidade institucional, de dois a cinco 19 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES por cento da população escraviza- da encontrava-se fugida, o que per- mite uma ideia aproximativa da for- te pressão da fuga – assim como a da possível fuga – sobre a produção es- cravista, através dos gastos necessá- rios de vigilância, das jornadas de trabalho jamais recuperadas, da per- da de capitais investidos, da desva- lorização do preço do cativo captu- rado, etc. São muito raros os mo- mentos em que a ordem capitalista conheceu uma atividade grevista sis- temática de tamanha dimensão. Não possuem base documental as tentativas da historiografia neo-pa- triarcal de minimizar a importância da fuga e de transformá-la em mera resistência cultural; em ação transi- tória do cativo crioulo, para forçar o escravista à “negociação”; em reação do africano insatisfeito com o meio hostil, pois ainda desconhecido; em recurso do cativo querendo “descan- sar” um pouco, etc. Todos esses fu- jões sempre vivamente dispostos a retornar ao regaço paternal do ne- greiro, já que “ansiosos” pelo traba- lho no eito e pelas raras horas con- cedidas por alguns escravistas para “atividades autônomas”. Nessas apresentações apolo- géticas do cativeiro colonial, a resis- tência transforma-se em uma von- tade política singular do cativo de “transformar a escravidão no seio da escravidão”, e não em sua supera- ção, ainda que através da emancipa- ção individual. Essa proposta, que exigiria do cativo nível de consciên- cia impossível para a época, se real- mente procedesse, tornaria desne- cessários os ingentes gastos de vigi- lância em feitores, em homens do mato, em tropas municipais e regio- nais e, sobretudo, dispensaria a inti- midação terrorista a que a popula- ção escravizada foi submetida. Por necessidades estruturais da socie- dade negreira, e não por ruindade dos escravistas, era habitual cativos condenados, além das penas de morte ou de prisão, a até mil e qui- nhentas chicotadas, como Solimar Oliveira Lima assinalou em seu magnífico estudo Triste pampa: re- sistência e punição de escravos em fontes judiciárias no RS, referente ao Rio Grande do Sul, região do Bra- sil já apresentada como terra de amos afáveis. (MAESTRI, 2005, s/p) Nesse sentido Maestri (2005, s/p) aponta que ao igual de outras regiões da América, desde o início do cativeiro, nos campos, mas também nas cidades do Brasil, um grande número de cativos fugia à procura de um ermo qualquer do interior, de um abrigo nas escarpas de uma ser- ra, no coração de uma ilha, nos em- brenhados de um mangue ou na pro- 20 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES fundeza de uma floresta. Através do exercício da antiga sabedoria dos oprimidos de que se “deus é grande, o mato é ainda maior”, os cativos fu- gidos procuravam formar uma co- munidade de produtores livres em um espaço geográfico e social que, por suas características, estivesse longe do braço pesado do negreiro. No Brasil, essas comunidades foram conhecidas no passado, sobretudo como mocambos ou quilombos. No novo espaço de liberdade, o traba- lhador escravizado escapado usu- fruía dos produtos de seu esforço, empregado na agricultura, no arte- sanato, na caça, na coleta, no extra- tivismo, na pesca, na rapinagem, etc. Em forma mais ou menos sistemá- tica, as mais diversas regiões do Bra- sil escravista conheceram quilom- bos. Não temos igualmente estimati- vas sobre o número de minúsculos, pequenos, médios e grandes quilom- bos, formados durante o passado es- cravista brasileiro. Entretanto, ele possivelmente se eleva às dezenas de milhares. A importância quantitativa e a extensão geográfica das fugas e dos aquilombamentos influenciou pro- fundamente a história política, so- cial, econômica, demográfica, etc. do Brasil. Porém, apenas nos anos 1970 e 1980, o estudo das comunida- des de cativos fugidos conheceu im- portante impulso, desenvolvendo-se então pesquisas sobre os principais quilombos e levantamentos, mais ou menos exaustivos, da incidência desse fenômeno em praticamente todas as regiões do Brasil. (MAES- TRI, 2005, s/p) Concluindo Maestri (2005, s/p) nos aponta que esses valiosos estudos centraram-se na identifica- ção e descrição política, social e eco- nômica do quilombo, considerado, porém mais comumente em forma isolada, no que se refere ao espaço e ao tempo. Foram raras e limitadas as tentativas de análises diacrônicas e sincrônicas sobre a determinação pelos quilombos da história rural brasileira, da povoação do interior, da fronteira agrícola, da formação de comunidades caboclas de origem africana, da influência dos padrões do português falado no Brasil etc. (MAESTRI, 2005, s/p) 22 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES 3. A Memória dos Negros Escravizados: o Banzo Fonte: Jornal Daqui3 e acordo com Haag (2010, s/p) - “Vai com a sombra crescendo o vulto enorme/ Do baobá.../ E cres- ce na alma o vulto de uma tristeza, imensa, imensamente...”, escreveu o poeta parnasiano Raimundo Correia no soneto Banzo. Essa tristeza, bati- zada de banzo, era um estado de de- pressão psicológica que tomava con- ta dos africanos escravizados assim que desembarcavam no Brasil e se- ria uma enfermidade crônica: a nos- talgia profunda que levava os negros3 Retirado em https://jornaldaqui.com.br/banzo/ à morte. “No século XIX, obras como as do médico francês François Si- gaud e do naturalista Carl F. Von Martius, bem como crônicas de via- jantes europeus, veicularam essa ideia de uma nostalgia fatal dos es- cravos. Nestes relatos, as mortes vo- luntárias dos cativos são descritas como uma forma passiva de suicídio - recusar alimentos e deixar-se mor- rer de inanição e tristeza - e também pelos métodos universais, como en- D 23 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES forcamento, afogamento, uso de ar- mas brancas etc.”, explica a psiquia- tra Ana Maria Galdini Oda, profes- sora adjunta do Departamento de Medicina do Centro de Ciências Bio- lógicas e da Saúde da Universida- de Federal de São Carlos, que ana- lisou o banzo em sua pesquisa Dos desgostos provenientes do cativeiro: uma história da psicopatologia dos escravos brasileiros no século XIX. (...) “Invariavelmente, os narradores atribuíam esse desejo de morrer a uma enfermidade melancólica, rela- cionada à situação de cativeiro: o desgosto causado pelo afastamento violento da África, a revolta pela per- da de liberdade e as reações aos cas- tigos pesados e injustos.” (...) Segun- do a pesquisadora, a análise históri- ca da enfermidade reafirma a neces- sidade de desfazer explicações sim- plificadoras sobre os males de escra- vos, seja o banzo, seja a sua forma extrema, o suicídio, como decorren- tes dos “desgostos provenientes do cativeiro”, fórmula usada no século XIX para encobrir a natureza vio- lenta da relação entre escravos e se- nhores. Na história do banzo, então, se cruzam várias rotas da história: histórias da psicopatologia, do trá- fico transatlântico de escravos e das doenças. “A enfermidade sempre aparece numa dupla posição: ela é uma entidade clínica, uma variação da nostalgia europeia nos trópicos, associada a outras doenças dos ne- gros e, ao mesmo tempo, não se dis- socia dos debates políticos sobre o cativeiro negro”, observa a pesquisa- dora. (...) (HAAG, 2010, s/p) Segundo ainda Haag (2010, s/p) essa imagem do banzo como fruto da crueldade do tráfico esten- deu-se à primeira metade do século XIX e foi incorporada às narrativas de viagem, aos compêndios de medi- cina tropical e a teses de medicina. “É a vocação do banzo para ser um tipo de enfermidade-argumento”, mobilizada na luta contra a escravi- dão”, lembra a autora. Sigaud, em Do clima e das doenças do Brasil (1844), lançado pela primeira vez em português este ano pela editora Fiocruz, considerava o banzo como uma doença mental, uma variante da nostalgia-melancolia desencade- ada por causas morais tais como as saudades da África ou o ressenti- mento por castigos injustos. Já Mar- tius, em Natureza, doenças, medi- cina e remédios dos índios brasilei- ros (1844), faz uma comparação en- tre o banzo do negro e do índio, afir- mando que em ambos a melancolia reina como causa da morte, com a ressalva de que os negros pareciam sentir mais do que os indígenas os sentimentos dolorosos, já que estes últimos seriam frios e distantes em oposição aos africanos, emotivos e 24 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES passionais. Joaquim Manuel de Ma- cedo, em sua monografia sobre a nostalgia, escrita em 1844 (o mesmo ano da publicação de A moreninha) como tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para a obtenção do título de doutor, con- sidera o banzo como uma moléstia mental originada das saudades da pátria, tendo como sede o cérebro. (...) - Lar: Surge mesmo uma nova etimologia para a palavra: banzo se- ria ligado ao quimbundo mbanza, al- deia, e assim significaria a “saudade da aldeia” e, por extensão, do lar. “A origem africana da palavra me pa- rece um pouco incerta. No Vocabu- lário, de Bluteau, por exemplo, a pa- lavra “banzar” aparece como a ação de “pasmar com pena” e “banzeiro” seria algo “inquieto, mal seguro”. Há quem acredite na origem portuguesa da palavra.” Em 1933, o conceito re- apareceu nas páginas finais de Casa- Grande & Senzala (1933), de Gil- berto Freyre, cuja visão marcou os relatos modernos da palavra: “Não foi de todo alegria a vida dos negros. Houve os que se suicidaram comen- do terra, enforcando-se, envenenan- do-se. O banzo, a saudade da África, deu cabo de muitos. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas”, escreveu Freyre. Em 1939 começa- ram a surgir visões médicas da mo- léstia, como a do parasitologista Ma- noel Augusto Pirajá, que afirmava ser o banzo uma forma da doença do sono, a tripanossomíase africana, hipótese descartada atualmente. “Uma proposta a se considerar é a do psiquiatra Álvaro Rubim de Pinho, da Faculdade de Medicina da Bahia, exposta em Aspectos históricos da psiquiatria folclórica no Brasil (1982). Segundo ele, o banzo seria aproximado das chamadas “síndro- mes de campo de concentração”, diz a autora. O modelo é multicausal: o mal dos escravos seria um quadro em que se superporia um estado mental depressivo (característico de situações de terror, fome, confina- mento etc.) a sintomas decorrentes da acentuada carência nutricional e de vulnerabilidade a doenças graves, várias das quais seriam as responsá- veis pelos sintomas físicos e mentais do banzo.” (...) (HAAG, 2010, s/p) - Assassinatos - “O índice de mortes voluntárias” entre escravos, quando comparado ao de homens livres, era duas ou três vezes mais elevado e, em geral, atribuído ao banzo”, afir- ma o historiador Renato Pinto Ve- nâncio, da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica. “Mas, como todo testemu- nho do passado, isso deve ser lido com olhos críticos: o registro de sui- cídio pode encobrir assassinatos praticados por senhores. Isso não implica diminuir o banzo como uma 25 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES das expressões trágicas da loucura comum a milhões de pessoas vítimas do tráfico de escravos. A divulgação desse sofrimento nos jornais deve ter contribuído para a formação da sensibilidade abolicionista na socie- dade imperial. Daí se entender o banzo como uma forma não intenci- onal de protesto político, um exem- plo primário de luta pela não violên- cia.” Os números esconderiam ou- tras motivações. “Os homens livres ocultavam seus casos procurando evitar sanções morais e religiosas, que impediam o sepultamento em cemitérios, o que pode explicar o nú- mero elevado de mortes de cativos”, explica o historiador Jackson Fer- reira, da Universidade Federal da Bahia e autor do artigo Por hoje se acaba a lida: suicídio escravo na Ba- hia (1850-1888). “Os atos suicidas foram mais que expressão e meca- nismos de desespero, mas formas de negociar melhores condições, de re- sistir às condições de cativeiro ou li- bertar-se dele, abandonando defini- tivamente esta “terra de vivos”, co- mo escreveu o escravo Timóteo em sua nota de suicídio.” (HAAG, 2010, s/p) As Imagens e a Memória: os Abolicionistas Os discursos: Segundo Macha- do (2007, p. 1) apagar a “mancha da escravidão” era o objetivo de intelec- tuais que atuavam na imprensa ou no Parlamento, na década de 1880, no Rio de Janeiro. Para que a propa- ganda atingisse maior número de pessoas, eles também participavam de diversos eventos, como conferên- cias e comícios, para denunciar as mazelas do cativeiro. Os senhores, representantes do “atraso e conser- vadorismo” eram acusados de difi- cultar a entrada do Brasil no rol das “nações civilizadas”. Faziam tam- bém parte do movimento grupos ur- banos que não dependiam direta- mente do braço escravo. O Rio de Janeiro era um espaço repleto de contrastes, caracterizado pela incor- poração das novidades europeias e das ideias de progresso e civilizaçãoque se opunham ao escravismo. Essa peculiaridade da cidade favoreceu o envolvimento da população na cam- panha abolicionista. Libertos, mula- tos e brancos pobres se juntavam aos propagandistas nas ruas contra o cativeiro. O crescimento urbano e a existência de um contingente ex- pressivo de escravos ou de seus des- cendentes facilitaram essa mobiliza- ção de caráter popular que marcou o abolicionismo no Rio de Janeiro. Deve-se acrescentar ainda a circula- ção mais rápida das notícias devido ao aumento da publicação de jor- nais. Especialmente na década de 26 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES 1880, a imprensa começou a adqui- rir um papel fundamental na veicu- lação das ideias abolicionistas. Os assuntos políticos e o abolicionismo ganharam as ruas junto com os pe- riódicos e os segmentos urbanos ti- veram maior facilidade de externar as suas reivindicações. (MACHADO, 1998, p. 71-76, BERGSTRESSER, 1973, apud MACHADO, 2007, p. 1) Abolicionistas Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/ Em 1880, de acordo com Ma- chado (2007, p. 1) foi criada por um grupo de propagandistas, entre os quais Joaquim Nabuco, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, se- melhante à sua congênere inglesa - AntiSlavery Society. Suas reuniões e conferências atraíam um grande nú- mero de pessoas. Em 1883, a Confe- deração Abolicionista do Rio de Ja- neiro, liderada por João Clapp e Jo- sé do Patrocínio, incorporou várias associações, como o Centro Abolici- onista Ferreira de Menezes e o Clube de 2 Libertos de Niterói. (MACHA- DO, 1991) Paralelamente à mobiliza- ção desses intelectuais e das entida- des antiescravistas, ocorriam deba- tes cada vez mais intensos na Câma- ra sobre a questão servil, transcritos nos jornais, aumentando a repercus- são junto à opinião pública, apesar das dificuldades decorrentes do alto grau de analfabetismo. A luta antiescravista ocupou vários espaços no Rio de Janeiro: do Parlamento às ruas, dos teatros às igrejas e jornais, das casas grandes às próprias senzalas. Assim, o aboli- cionismo se desenvolveu em diver- sos palcos que serviam para criticar o que Joaquim Nabuco denominava a “nefanda instituição”. (NABUCO, 1949) Festas beneficentes e quer- messes também eram organizadas para angariar a simpatia popular e recursos destinados à alforria dos cativos. A ação nas vias públicas, através de comícios, para convencer os proprietários dos males do cati- veiro também era outro artifício usa- do pelos militantes. André Rebouças registrou este tipo de atuação dos abolicionistas: Fizemos, recorda de- pois, o papel de empresários de es- petáculos para o público, a 500 réis por pessoa; varremos teatros e pre- gamos cartazes; éramos simultanea- mente, redatores, repórteres, reviso- res e distribuidores, leiloeiros nas 27 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES quermesses; propagandistas por to- da a parte, nas ruas, nos cafés, nos teatros, nas estradas de ferro. (NA- BUCO, C., 1958, p. 106, apud MA- CHADO, 2007, p. 2) Os abolicionistas da Corte uti- lizavam uma estratégia que surtia um efeito devastador sobre os se- nhores. Era o que eles denomina- vam a limpeza das ruas, que consis- tia em pressionar proprietários de escravos de algumas ruas do centro, escolhidas previamente, para liber- tarem os seus cativos, sob a ameaça de publicação de seus nomes nos jornais. Cada propagandista ficava responsável por uma rua, devendo persuadir os senhores a eliminar a mancha que sujava a cidade. A lim- peza da Rua do Ouvidor e do Largo de São Francisco, onde se situava a Escola Politécnica, em abril de 1884, foi saudada de forma entusiástica pelos jornais abolicionistas da cida- de, com festas e bandas de música. (GAZETA DA TARDE, 23/4/ 1884, apud MACHADO, 2007, p. 2) A divulgação da campanha abolicionista era feita pelos jornais, distribuídos por vendedores ambu- lantes “rapazinhos italianos, negros e mulatos, que nos deixam quase surdos com a sua gritaria”, confor- me nos informa um contemporâneo. (KOSERITZ, 1980, p. 52-53) Os pontos de venda eram os quiosques que distribuíam também livros, im- pressos, flores, doces, charutos, ci- garros, café e refrescos. Locais por onde circulavam as notícias e as úl- timas novidades europeias. O au- mento do público leitor ocorria em função de uma verdadeira leitura de ouvido. Assim, as ideias abolicionis- tas eram difundidas mesmo para os analfabetos. (MACHADO, 1991, p. 18, apud MACHADO, 2007, p. 2) Machado (2007, p. 3) aponta que a imprensa era caracterizada por Joaquim Nabuco como “fator importante na história da democra- tização do país”, destacando a sua importância para os historiadores quando futuramente estudassem a escravidão. (1949, 104) José do Pa- trocínio registrou também o papel que os jornais desempenharam na propaganda antiescravista. Às vés- peras da extinção legal da escravi- dão, ele ressaltou como o “atrito da imprensa” e o “calor da palavra” ser- viram “para limar os grilhões de três séculos de cativeiro”. (CIDADE DO RIO, 30/4/1888) Em relação à Cidade do Rio, jornal de sua propriedade, assinalou que ele ficará “(...) na memória das gerações livres do Brasil, e os histo- riadores hão de fazê-lo depor no processo histórico de nossa pátria, na primeira fila das testemunhas ho- nestas e altivas do nosso tempo (...)”. 28 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES (28/9/1889) Exageros à parte, in- questionavelmente a ação dos jor- nais na veiculação de matérias que retratavam a sociedade escravista contribuiu enormemente para a sua derrocada. Os jornais não se limitam, ape- nas, a noticiar o fato, possuem o po- der de ampliar a sua dimensão, in- fluenciando a opinião pública. Por- tanto, a matéria jornalística não se restringe ao acontecimento, ela tem o poder de, segundo Darnton, “mol- dar os fatos ao dar-lhes cobertura”, como ocorreu na Revolução Fran- cesa, “(...) quando o jornalismo sur- giu pela primeira vez como uma força nos negócios de Estado (...)”. (DARNTON, 1990, p. 16) Da mesma forma, no final do século XIX estrei- taram-se as relações entre a im- prensa e o Poder no Brasil, na me- dida em que se iniciou o desenvolvi- mento de empresas jornalísticas. (BARBOSA, 2000, p. 21-25) Os pe- riódicos, portanto, tiveram parcela de responsabilidade na construção de uma sociedade pautada em novos valores, inspirados nos ideais de progresso e civilização, em oposição à escravidão. Assim, a divulgação sugestiva e interessada dos jornais exerce uma pressão psicológica so- bre as atitudes e comportamentos das pessoas na medida em que uti- liza, muitas vezes, “slogans” direcio- nados para um determinado fim. Por exemplo, quando José do Patro- cínio, influenciado por Proudhon, terminava os seus editoriais afir- mando que: “A escravidão é um rou- bo e todo dono de escravo é um la- drão”, tinha o objetivo de angariar a simpatia de um maior número de adeptos para a causa abolicionista. (...) (MACHADO, 2007, p. 4) Nas páginas dos jornais de José do Patrocínio – Gazeta de Notí- cias, Gazeta da Tarde e Cidade do Rio - circulavam sistematicamente críticas à “herança do passado”, res- ponsável pelo “atraso” do Brasil. A escravidão era denunciada na me- dida em que ela não se coadunava com os exemplos externos que ates- tavam o triunfo do “século do pro- gresso”. Os editoriais convocavam os homens “sensatos” para que reti- rassem o Brasil da “inércia” provo- cada pelo cativeiro, que o impedia de galgar os mesmos degraus das na- ções “civilizadas”. (MACHADO, 2007, p. 4) Já para De Deus (s/d, s/p) o pensamento abolicionista, como to- da doutrina reformadora no Brasil nasceu do liberalismo europeu do século XIX, que na Europa contava com o suporte da Revolução Indus- trial, a urbanização aceleradae o crescimento econômico, mudanças que foram possíveis pela aplicação 29 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES da ciência e da tecnologia. Entretan- to, o liberalismo, no Brasil, surgiu como resultado de tendências des- providas do respaldo de qualquer mudança econômica profunda. Mes- mo assim as ideias abolicionistas vão crescendo pouco a pouco, em- bora levem longo tempo para torna- rem-se uma força política decisiva. Aqui e ali, de vez em quando, umas poucas vozes isoladas tinham cla- mado pela abolição geral desde o co- meço do século XIX. Dentre as vozes isoladas, a mais famosa foi a de José Bonifácio em 1825, logo após a inde- pendência do Brasil. Sua proposta, porém, não foi levada em conta e o tráfico de africanos continuava em grande escala, pois ninguém ousava a ele se opor, até que a pressão bri- tânica forçasse o seu término em 1850. Com o suprimento de escravos cortado, e com as alforrias, embora o tráfico clandestino permaneça por algum tempo, é natural que a popu- lação servil aos poucos vá decres- cendo. Dessa forma, há uma certa reorganização interna e a escrava- tura deixa de ser uma questão polí- tica por algum tempo. A calmaria, entretanto, foi quebrada em 1866, e novamente por pressão externa, neste caso, a pressão veio da França, no mesmo ano, quando um grupo de abolicionistas franceses apelou ao imperador D. Pedro II solicitando- lhe que exercesse sua autoridade pa- ra acabar com a escravidão. Em res- posta ao grupo, o imperador com- promete-se e esta passa a ser a pri- meira promessa formal de abolição de um sistema que vai entrando em falência, cuja derrocada será apenas uma questão de tempo. O certo é que os abolicionistas, desde o começo, deveram muito à opinião estrangei- ra, e quando muito, ao menos pelos princípios cristãos que deveriam nortear um país oficializado católico pela Constituição de 1824, D. Pedro II era obrigado a responder às pres- sões estrangeiras. (...) Ainda de acordo com De Deus (s/d, s/p) o que pensavam os aboli- cionistas sobre a questão da raça? Os abolicionistas eram conhecedores das teorias racistas vindas da Amé- rica do Norte e da Europa, e carrega- vam consigo um certo drama: o de pertencer a uma sociedade miscige- nada e de maioria negra. As análises explicativas do Brasil elaboradas em fins do século XIX e início do século XX surpreendem pelo cunho clara- mente racista. A escravidão impu- nha limites epistemológicos para o desenvolvimento pleno do país. A população negra estava fora da pre- ocupação dos governantes. Somente com o movimento abolicionista é que o negro é integrado às preocupa- 30 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES ções nacionais, até porque o sistema escravagista não permitia a entrada do progresso, sendo um entrave ao avanço econômico, político e cultu- ral do país. É então sob a ótica racista am- parada pela “ciência” que vão sendo tecidas as culturas brasileiras. A miscigenação aparece como uma única saída para resolver o grande “dilema” que se impõe: como aspirar ao progresso e ao desenvolvimento, se a maioria da população está con- denada ao atraso, conforme as teo- rias científicas raciais? A ordem, portanto, era injetar o “sangue bran- co” e cada vez mais branquear a po- pulação. Imbuídos dessas ideias, ao mesmo tempo em que clamam pelo fim da escravidão, os abolicionistas pertencentes à elite urbana come- çam a pensar no “branqueamento” do Brasil, pois acreditam na supre- macia do “sangue branco”. É claro que poucas vezes o desejo de “bran- queamento” é dito e pronunciado com todas as letras, mas ele está sempre subjacente nas campanhas migratórias, às vezes de forma eufe- mística, raríssimas vezes de forma direta, como podemos verificar no dizer de Joaquim Nabuco: “O que os abolicionistas queriam”, explicou ele em 1883, “era um país em que, atraída pela fraqueza das nossas ins- tituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração europeia traga sem cessar para os trópicos uma cor- rente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos ab- sorver sem perigo (...)”. (DE DEUS, s/d, s/p) De outra feita, segundo De Deus (s/d, s/p) a sociedade rejeita, com certa veemência, a proposta de um grupo de fazendeiros que em 1870 propôs que o Brasil, impor- tasse trabalhadores chineses. Nesse caso as vozes foram mais alteradas, para dizer que os chineses não iriam contribuir para a melhoria do país, pelo contrário, o Brasil precisava era de “sangue novo” e não de “suco en- velhecido” e “envenenado”. Essas vozes estão eivadas de racismo, embora seus portadores não admitam, porque a crença geral é a de que a sociedade brasileira não abrigava preconceito racial. Tal crença foi sendo tecida ao longo do tempo em conjunto com o ideal de “branqueamento” que vai sendo es- timulado, na medida em que alguns mulatos ascendem, o que comprova ser o Brasil uma sociedade multirra- cial e que, ao contrário dos Estados Unidos, não possuía barreira de cor institucionalizada. No entanto, o que não é dito é que a população ne- gra estava fadada à extinção pelo processo de “branqueamento”, via miscigenação. A tese do “branquea- 31 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES mento” baseava-se na suposta supe- rioridade branca, às vezes substitu- ída pelo eufemismo de “raças mais adiantadas” em oposição às “raças menos adiantadas” e ainda pelo fato de deixar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. O que não é di- to claramente também, é que não se deve falar da questão racial por não ser considerada relevante, na me- dida em que deixará de existir pelo desaparecimento do próprio negro, que gradualmente será absorvido pela raça branca. Miscigena-se, por- tanto, para “embranquecer” jamais para “empretecer”. (DE DEUS, s/d, s/p) De outro lado, segundo aponta Ferreira (2007, p. 78) a introdução de trabalhadores brancos e livres atenderia às necessidades mais ur- gentes que se apresentavam ainda na primeira metade do século XIX. E para comprovar os benefícios e as vantagens da colonização espontâ- nea, seus idealizadores precisavam apresentar os efeitos e os males cau- sados pela escravidão, assim, além do trabalho escravo, o negro foi sen- do pintado das mais variáveis cores que pretendiam mostrar não só a improdutividade de seu trabalho, como sua própria inferioridade em relação ao branco europeu. Dessa forma, estes textos contrapunham as imagens do imigrante ideal, intro- dutor e agente do progresso e da ci- vilização ao negro sempre estigmati- zado pela escravidão, inimigo inter- no que marca a sociedade com seus maus costumes. O jogo dos contrá- rios foi a estratégia mais utilizada para chamar a atenção, que com a constante oposição de imagens po- deria refletir sobre o que seria bom, se baseando no que acreditavam ser ruim. (...) Dentro desse jogo foram invocadas as qualidades que forma- vam imagem de um trabalhador per- feito, europeu e branco o oposto do que se tinha o escravo, africano ou descendente de africano, negro e su- postamente bárbaro e cheio de ví- cios. (...) (FERREIRA, 2007, p. 79) Conforme FEREIRA (2007, p. 79) a grande questão discutida é a população total livre do Brasil, que por ser pequena em relação ao terri- tório nacional não contribui como deveria para o progresso da nação. A proposta de incentivo à introdução de colonos europeus viria a atender, além da necessidade de um mercado interno, ao progressivo aumento e branqueamento da população brasi- leira livre, a qual seria a verdadeira população capaz de solidificar a grandeza e a força do Império. (...) Na formação da “verdadeira nacio- nalidade brasileira” não tinha lugar para o trabalho escravo nem para o negro maculado pela escravidão. Pa-32 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES ra legitimar a colonização europeia foi preciso mostrar o quanto a escra- vidão era prejudicial à sociedade e que o melhor meio de reverter a si- tuação de crise - imagem sempre evocada neste tipo de discurso - em que ela se encontrava era a morali- zação e civilização dos costumes, pa- pel destinado ao imigrante europeu. E para reforçar a imagem de superioridade do imigrante, en- quanto agente de civilização e do progresso, foi preciso recorrer à ideia de inferioridade do escravo ne- gro mostrando-o como represen- tante da desordem e símbolo da ne- gação do progresso. A escravidão sempre foi tida como culpada pela corrupção dos costumes e pela de- gradação da sociedade, e a entrada maciça de africanos como nociva a moralidade, a civilização e a liber- dade do povo brasileiro. A missão do imigrante europeu seria, então, re- verter esse quadro não só através de seu sangue e cor, como também de seus costumes. De novo uma crítica severa é feita à resistência contra a imigração europeia. Sobre este assunto, Emília Viotti da Costa (1998) aponta para os motivos de ordem social, hábitos intelectuais e mentais que manti- nham o apego da classe senhorial pelo trabalho feito por escravos que os fazia criarem um vínculo tão forte, que não conseguiam ver outra possibilidade de imigração senão a forçada de africanos. Outro ponto tocado no artigo diz respeito às pri- meiras experiências na introdução de colonos estrangeiros frustradas pelos mais variados motivos, que no geral se resumem a despreparação de homens tão acostumados a serem servidos por escravos e não saberem lidar com trabalhadores livres, o que manchou enormemente a ima- gem do Brasil no exterior. Esse tra- tamento dado aos colonos pode ser explicado justamente por esse des- preparo, por não estarem acostuma- dos com exigências diretas dos no- vos submissos, por terem que en- contrar outros meios, que não a vio- lência, para impulsionarem a produ- ção, por terem que adotam um sis- tema completamente diverso do qual estavam habituados. Tudo isso só deixa transpare- cer a força da mentalidade escravista na sociedade brasileira. Por isso, al- guns jornalistas acreditavam que só mesmo a cessação definitiva do trá- fico de africanos para o Brasil incen- tivaria a substituição da mão-de- obra escrava pela mão-de-obra livre. (...) Aqui outra questão se desenha, a questão da superioridade do traba- lho livre em relação ao escravo que será outro discurso a favor da imi- gração europeia. Para valorizar o 33 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES trabalho livre foi preciso inferiorizar o trabalho escravo, e para isso bus- caram-se argumentos no próprio es- cravo, enquanto agente executor do trabalho. Buscaram comprovar a in- ferioridade do escravo negro para julgar seu trabalho improdutivo. Mais difícil ainda, foi a missão de mostrar que o trabalho dignifica o homem enquanto a escravidão mos- trava o contrário. A revalorização do trabalho foi o primeiro passo na di- reção de conseguir trabalhadores es- trangeiros disponíveis a vir para o Brasil. Parecia inconcebível a ideia de ter trabalhando lado a lado ho- mens livres e escravizados, pelo ní- vel de aviltamento a que atingiu as atividades manuais tanto no campo como nas cidades. (FERREIRA, 2007, p. 80) Concluindo FERREIRA (2007, p. 82-83) aponta que os que construíram a ideia do trabalho como uma forma de remissão para conseguir dominarem os africanos convencendo-os da pretensa inferio- ridade que os condenava à situação de escravos, são os mesmos, ou pelo menos têm os mesmos interesses, que farão todo possível para criticar os escravos negros pelos males cau- sados ao trabalho. Mais uma vez re- corre-se às imagens do negro pre- guiçoso, ocioso, imoral e dado a ví- cios para provar que foi a índole dos escravizados que contribuiu para a desvalorização do trabalho. (FER- REIRA, 2007, p. 82-83) A Imagem Oficial Para Menezes (2009, p. 87) o Brasil se transforma de colônia em país independente, mas com um re- gime diferente dos seus vizinhos: Estado unitário, uma monarquia constitucional sob uma constituição outorgada, com um poder executivo forte e um parlamento consentido e limitado. A escravidão é mantida. O governo imperial assina com a In- glaterra, em 1826, um tratado para o final do tráfico de escravos que não é levado a efeito. Em 1831, como de- corrência dos acordos assinados em 1826 com a Inglaterra para o reco- nhecimento da Independência, é aprovada a Lei Evaristo de Morais, que “declara livres todos os negros que sejam ingressados no território nacional”. No entanto, sua aplicação foi frequentemente burlada, a ponto de que o aumento da repressão por parte da Inglaterra e a reação brasi- leira à mesma causam conflitos en- tre as duas nações. As mudanças no campo político se implantam sem que a discussão sobre a escravidão seja enfrentada até mesmo em mo- vimentos separatistas que ocorrem nas diversas províncias brasileiras, 34 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES com poucas exceções: a Cabanagem, no Pará, em 1835, e a Balaiada, no Maranhão, em 1838, que têm cará- ter de sublevação popular, com par- ticipação de negros e mulatos, inclu- sive de escravos aquilombados. A Confederação do Equador, em Per- nambuco, se “defende” da acusação de antiescravista, dizendo: “muito nos honraria, porém temos a com- preensão de que a Abolição deve ser Gradual”. (MENEZES, 2009, p. 87) A discussão conforme Mene- zes (2009, p. 87) sobre o final do trá- fico será conduzida, por um lado, pe- las pressões da Inglaterra e, do ou- tro, pelas pressões internas, inclu- sive pelo medo que se implanta en- tre os proprietários pelos levantes dos negros, em especial na Bahia. O processo abolicionista no Brasil, de- senvolvido ao longo de mais de um século, passou por etapas e fases que vão se sucedendo ao influxo das con- tradições e conflitos entre os propri- etários e seus representantes e os di- versos atores a favor da extinção da escravidão. A história dos tratados com a Inglaterra para o final do tráfico e o patrulhamento da costa brasileira pelos navios da Armada Britânica é bastante longa. Tem início ainda sob a Regência do Príncipe D. João, de- pois da chegada da família real por- tuguesa no Brasil, fugindo da inva- são francesa. Antes mesmo da Inde- pendência são editados onze atos contra o tráfico, assinados pelo Prín- cipe Regente D. João e obedecendo às determinações resultantes das pressões da Inglaterra. (...) A Lei de 07 de novembro de 1831 declara Li- vres todos os escravos vindos de fora do Império. A rigor, aí deveria ter acabado o tráfico. No entanto ele se- gue até meados da década de 50. Até aí encontramos notícias de contra- bando de escravos; aparece em leis de orçamento, previsão de recursos para o combate ao contrabando. Nas décadas de 30 e 40 do séc. XIX tra- vou-se um intenso conflito entre Brasil e Inglaterra, a ponto da insta- lação de um bloqueio do porto do Rio de Janeiro e o rompimento das relações entre os dois países. É difí- cil acreditar nas reais intenções de combate ao tráfico a partir da Lei de 1831, quando se encontram promul- gadas duas medidas opostas com re- lação à sua repressão: em outubro de 1831 o Congresso, ao aprovar o Orçamento para o período 34/35, autoriza o ministério da Marinha a gastar 100.000$000 em embarca- ções para o combate ao tráfico; no entanto, no mesmo ano outra lei manda suspender estes gastos. No final da década de 1840, após a subida ao poder do Príncipe - logo aclamado Imperador - e cum- 35 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES prido o programa de unificação do país, são retomadas as pressões e os debates sobreo final do tráfico. Fi- nalmente, após crises no relaciona- mento do Brasil com a Inglaterra, com os navios destas invadindo as águas territoriais brasileiras para aprisionar navios negreiros, em 1850 é aprovada a Lei Eusébio de Queiroz, para o combate ao tráfico clandestino. As medidas de repres- são ao tráfico instaladas de aí até 1860 são de caráter econômico, cri- ando-se taxas sobre os escravos, so- bre sua transmissão, sua consigna- ção; a sua venda é taxada pelo mes- mo critério das “casas de moda”. Gastos com a repressão só vão rea- parecer em 1851, sendo consignadas verbas para tanto no orçamento do Império até 1862 (sendo que a partir de 60 aparece associada com uma “despesa secreta”). O controle mais eficaz da posse do escravo - via im- posto - só vai se dar, no entanto, em 1867, quando a Lei nº 1507 aumenta significativamente o valor da taxa anual sobre o escravo, em especial nas cidades, estabelecendo inclusive um escalonamento de acordo com tamanho destas. (MENEZES, 2009, p. 89) Ainda de acordo com Menezes (2009, p. 89) a partir de 1850, com a eficácia crescente da repressão ao tráfico, há uma queda no debate so- bre a “questão servil”, sobre a neces- sidade de extinguir a escravidão. Era como que o Brasil, aceitando sua “vocação agrícola”, aceitasse tam- bém uma “vocação escravocrata”. Neste sentido seus interesses se identificaram com os interesses dos escravistas norte-americanos. A própria sociedade parece aceitar-se como escravista, vendo a escravidão como natural. (...) Com o final do tráfico os escravos se tornam extre- mamente caros e há um interesse em cuidá-los melhor. Aparecem manu- ais de instrução de como fazer para que “durem mais”. Instala-se uma crise de mão de obra que faz com que as zonas de expansão da agricul- tura, mais que tudo São Paulo, bus- cassem um intenso processo de atra- ção de mão de obra, voltando-se para o trabalhador livre nacional – que, no entanto, se recusava a qual- quer tipo de trabalho compulsório, sob as normas/pautas a que se sub- metiam os escravos – e para o tráfico interno, com compra dos escravos dos estados no Norte e Nordeste do país. Tem início a ideia da atração de imigrantes, inicialmente sob a forma de colônias de povoamento. Este modelo não dá certo. Os fazendeiros acusavam os imigrantes, europeus, de serem preguiçosos e desordeiros - “a ralé da Europa” - e de não respei- tarem os termos dos acordos. Paga a 36 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES dívida que tinham com os fazendei- ros, os colonos migravam para as ci- dades. Por isso investem, neste mo- mento, fortemente, no tráfico inter- no. Cresce o número de escravos en- volvidos no plantio do café, mor- mente nas províncias do Rio de Ja- neiro, Minas Gerais e São Paulo, mostrando a presença forte destas províncias na manutenção da escra- vidão, contra a ideia passada de que estes teriam sido, por mais moder- nos, os interessados no final da es- cravidão, contra os interesses dos plantadores do Nordeste açucareiro. (...) (MENEZES, 2009, p. 90) No contexto conforme Mene- zes (2009, p.90) em 1870 é lançado o Manifesto Republicano que nada diz sobre a escravidão. Um decreto de 15 de setembro de 1869 proíbe a venda de escravos debaixo de pregão e em exposição pública. Começára- mos a ter vergonha da escravidão. Finda a Guerra com o Paraguai, o próprio governo leva a debate a Lei de Ventre Livre que não só a declara livres os filhos de escrava que nas- cem daí em diante, como prevê e re- gulamenta outras formas de liberta- ção. (...) O projeto da Lei do Ventre Livre sofre enorme oposição, dentro e fora do Parlamento, por estar ex- tinguindo a ideia da hereditariedade da condição de escravo. Enxergava- se um atentado ao direito de propri- edade. Por sua vez, a Lei não prevê uma educação das crianças livres; preocupa-se com sua criação e ma- nutenção até os 8 anos de idade, sendo que a partir daí e até os 21 anos, o jovem deveria, como retri- buição, prestar serviços ao senhor de sua mãe, que tinha o direito, inclu- sive de castigá-lo. Aliás, a única re- comendação educativa é de que o castigo não seja demasiado rigoroso, pois com isso o senhor poderia per- der o direito aos serviços do menor. Apesar de seus defeitos e de estar longe de atender aos interesses dos escravos, a aplicação da Lei foi pro- telada e burlada. Os diversos autores falam em demora na regulamenta- ção e na execução da nova matrícula de escravos que, ao registrar a idade, permitia verificar a existência de es- cravos em situação ilegal, cuja en- trada no país se havia dado depois de 1831; a estes, lhes aumentavam a idade. Com relação ao registro dos recém-nascidos, os registravam co- mo anteriores à lei, mantendo-os co- mo escravos. Com relação ao Fundo de Emancipação criado, a sua formação foi demorada, mas pior ainda foi sua eficácia. O repasse de recursos às províncias e aos municípios se fez de forma tão lenta e as dúvidas quanto aos critérios para classificação dos 37 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES que deveriam ser libertos foram tan- tas que André Rebouças, em 1874, registrava a existência de uma quan- tia, imobilizada no Fundo, suficiente para libertar 4.000 escravos. Em 1884 Rui Barbosa cita que, até aque- le momento, apenas 17.000 escravos haviam sido libertados pelo Fundo, enquanto que 70.000 por iniciativa própria ou de particular. (MENE- ZES, 2009, p. 90) Por fim segundo Menezes (2009, p. 90) cabe lembrar que ne- nhum dos ingênuos chegou à liber- dade pelo mecanismo da Lei do Ven- tre Livre: quando da Abolição final, em 1888, tinham apenas de 16 para 17 anos os mais velhos. Calcula- se que formavam um contingente de 500.000 pessoas, as quais, somadas aos mais de 700.000 escravos liber- tados, dão a dimensão numérica dos efeitos da chamada Lei Áurea. A ins- tituição desmoronava, em 1888, po- rém atingia ainda a muita gente. (...) A terceira fase, em que se caracteriza o movimento popular pela Abolição, são adotadas três vias: a) a via parla- mentar, legal; b) a Campanha Popu- lar, propriamente dita, através da edição de jornais, da criação de So- ciedades Abolicionistas, revivendo uma, congregando outras, da agita- ção através da promoção de Encon- tros, Conferências Públicas, Con- gressos, eventos, Quermesses, não só com a finalidade de manter vivo o debate sobre a Abolição como para angariar fundos e realizar liberta- ções de escravos; e c)a ação direta, através do incentivo à fuga dos es- cravos e mesmo, a libertação de bairros inteiros, cidades inteiras, províncias inteiras, tanto por alfor- ria paga, como gratuita. Estas três fases, por sua vez, comportam duas concepções para a extinção do insti- tuto da escravidão: o emancipacio- nismo e o abolicionismo. Em 1880 Joaquim Nabuco apresenta um projeto de extinção da escravidão. São os seguintes os pon- tos principais do projeto: Cessação imediata da compra e venda de cati- vos e em consequência, fim do trá- fico interprovincial; As associações organizadas para emancipar escra- vos receberiam terras, para o estabe- lecimento de colônias de libertos; Proibição da separação das mães de seus filhos, para serem alugadas como amas de leite, como criadas ou outro fim; Libertação imediata dos escravos mais velhos, doentes, ce- gos ou comprovadamente nascidos na África (veja-se que, mesmo que fossem recém-nascidos ao chegar aqui, as vítimas do tráfico ilegal, in- gressados a partir de 31, já estariam, naquela data, com pelo menos 50); Os irmãos mais velhos dos “ingê- nuos” seriam libertados em dois anos; Proibia- se o uso de ferros, cor- rentes, bem como qualquer forma de 38 A ESCRAVIDÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES castigo corporal; O ensino primário seria estabelecido,
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