Grátis
6 pág.

Mitos e verdades em ciência e religião - uma perspectiva histórica
UNIVERSO
Denunciar
Pré-visualização | Página 3 de 5
quando lemos os so- ciólogos, que agora estão tentando explicar por que a crença religiosa é tão vigorosa em todo o mundo e não apenas a crença religiosa, mas mesmo a crença religiosa fundamentalista. Seja na Índia, no Oriente Médio ou na América do Norte, a religião tem demonstrado ser bastante resiliente e parece estar crescendo, mesmo em suas mais conservadoras e inaceitáveis versões. Portanto, temos um problema muito diferente a explicar daquele que explicamos há apenas algumas décadas. 253Numbers RL / Rev Psiq Clín. 2009;36(6):246-51 Há alguns estudos tentando avaliar o impacto da ciência e particularmente do Darwinismo sobre a perda da fé no século XIX, e claramente algumas pessoas aban- donaram suas crenças por conta do Darwinismo, porém, Charles Darwin não o fez. Novamente, como Jim Moore mostrou há anos, em um dos mais comoventes ensaios que li na história da ciência e que honestamente me levou às lágrimas, ele conta a história de como Darwin perdeu sua fé. Primeiro ele perde seu pai, que era um médico maravilhoso, e de acordo com a teologia cristã, por seu pai não ser um crente, ele queimaria para sempre no inferno. Como um Deus justo poderia fazer uma coisa dessas? Em seguida, seu irmão morre. O golpe final em suas crenças religiosas foi quando, aos 10 anos de idade, sua filha Annie adoeceu. A Sra. Darwin estava grávida, assim Charles Darwin levou a filha para a hidroterapia, da qual ele já havia se beneficiado, e permaneceu junto à filha até que ela sucumbiu e faleceu. Ele ficou tão desconsolado que não pôde sequer estar presente no funeral. Darwin acreditava que se houvesse um Deus onisciente, um Deus onipotente que pudesse ter salvado a vida de Annie, por que não o faria? Portanto, foram es- sas experiências muito pessoais pelas quais ele passou, e não a doutrina da seleção natural, que o impeliram a abandonar o Cristianismo. Há alguns anos, uma socióloga britânica chamada Susan Budd estudou as biografias de cento e cinquenta secularistas e livre-pensadores britânicos que viveram entre 1850 e 1950. Um dos problemas no estudo da secu- larização é o de aprender o bastante sobre os indivíduos para contar o que aconteceu. Porém, na literatura dos livre-pensadores, muitas vezes seus obituários contêm as histórias de como eles perderam a fé, o que era uma coisa interessante de se registrar. Dessa forma, ela tinha uma base de dados raramente disponível para as pessoas que tentam encontrar respostas para tais ques- tões. Ela descobriu que apenas dois dos seus sujeitos mencionaram ter lido Darwin ou Huxley antes de perder a fé. A maioria dessas pessoas perdeu a fé por razões muito semelhantes àquelas que tinham destruído a fé de Darwin no Cristianismo, por razões muito pessoais, questionando sobre a origem e a natureza do pecado, do castigo eterno e questões desse tipo. Não é de se surpreender que muitos cristãos e outros religiosos tenham ficado ofendidos pelas caracterizações negativas e, em grande parte injustificadas, que retrata- vam o Cristianismo como o grande inimigo do progresso científico. Eles chamaram a atenção para o fato que a Europa cristã deu origem à ciência moderna e que uma grande maioria daqueles que contribuíram para a ciência era cristã declarada. Alguns apologistas cristãos (não vou nomeá-los agora) foram longe na tentativa de refor- mular a relação histórica entre a ciência e o Cristianismo como um compromisso essencialmente harmonioso, argumentando que a ciência poderia somente ter se desenvolvido em uma cultura como a cristã, em que a crença em um cosmos ordenado, criado e regulamenta- do por um ser divino era amplamente difundida. Pouquíssimos historiadores da ciência apoiariam essa explicação e uma das razões é bastante óbvia – para sustentá-la, é preciso excluir todas as realizações dos gregos, muçulmanos e judeus, no período anterior à revolução científica ou mesmo durante, e afirmar que o que eles estavam fazendo não era ciência. Andrew Cunningham tem exercido influência marcante na histo- riografia da ciência nas últimas décadas, demonstrando que a ciência na verdade era inexistente até os séculos XVIII ou XIX. Antes disso, tivemos a filosofia natural, a história natural e a medicina: essas foram as formas de investigação da natureza. A ciência como nós a conhece- mos, significando o estudo da natureza, exclusivamente o estudo do mundo natural, não surgiu até bem mais tarde. Talvez essa seja uma questão discutível, quanto aos gregos e aos muçulmanos terem feito uma ciência genuína, porque é anacrônico falar dessa maneira, mas eles estavam fazendo muito daquilo que mais tarde os filósofos cristãos e os historiadores naturais fizeram. Ainda que os cristãos, como já assinalei, muitas vezes contribuíram fundamentalmente para o crescimento da ciência nos séculos XVI, XVII e assim por diante, creio que seja presunçoso da parte dos cristãos alegarem que somente o Cristianismo poderia ter produzido a ciência como a conhecemos hoje. Como muitos sabem, provavelmente eu tenha tra- balhado muito mais do que uma pessoa de bom senso deveria, na história dos antievolucionistas que dos cria- cionistas, e gostaria de compartilhar alguns dos mitos que decorrem dessa área da minha pesquisa. O filme “O vento será sua herança” (Inherit the Wind) é um admirável filme premiado com o Oscar que retrata, usando nomes fictícios, o importante e infame julgamen- to de Scopes, em Dayton no Tennessee, em 1925. Este é um dos eventos históricos mais conhecidos nos Estados Unidos, em parte porque todos os livros didáticos do ensino médio e superior, que não contêm mais que uns poucos parágrafos sobre ciência nas suas 500 páginas, dedicam um parágrafo ou dois para o julgamento de Scopes; isso é padrão. Ao longo dos anos, centenas de milhares, se não foram milhões de pessoas, assistiram à peça ou ao filme “O vento será sua herança”. Ele passou a ter a reputação de um retrato fiel do que historicamente aconteceu há alguns anos. Um grupo de historiadores financiado pelo governo federal propôs normas nacionais para o ensino de história dos Estados Unidos e, na década de 1920, esse grupo de eminentes historiadores sugeriu que os professores do ensino médio mostrassem esse filme para que os estudantes pudessem entender a mentali- dade dos fundamentalistas que se opuseram à evolução no início do século XX. Isso seria adequado se o filme “O vento será sua herança” exibisse alguma semelhança ao evento histó- rico em Dayton, em 1925. Como vocês provavelmente 254 Numbers RL / Rev Psiq Clín. 2009;36(6):246-51 sabem, o anti-herói foi William Jennings Bryan, um político norte-americano muito popular que tinha sido o candidato democrata à presidência em três ocasiões distintas e foi um dos mais conhecidos e queridos polí- ticos dos Estados Unidos (não querido o suficiente para ganhar as eleições, mas querido em alguns círculos). Ao contrário do que mostra o filme, e que a maioria dos americanos acredita hoje, Bryan, que participou do julgamento, não era um criacionista no sentido em que agora conhecemos. Desde meados do século, conseguimos mais ou menos identificar os criacionistas como pessoas, que acreditam em uma história da Terra jovem, sem que nada tenha acontecido há mais de 6 ou 7 mil, talvez 10 mil anos atrás. E essa é a forma como Bryan é descrito; ele insiste na criação do mundo no ano de 4004 a.C., no dia 22 de outubro, creio eu. Um dos diálogos importantes do filme acontece quando Clarence Darrow, o famoso advogado agnóstico que estava questionando Bryan no banco das testemunhas, perguntou-lhe se ele poderia ser preciso e parece-me que Bryan disse (a Terra foi criada) às 9h; Darrow retruca “no horário padrão do leste ou no das Montanhas Rochosas?”; é claro que isso sempre causa gargalhadas. A transcrição do julgamento de Scopes está disponí- vel desde o final de 1925 em uma versão barata, portanto prontamente disponível para qualquer historiador. Se