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ABONG_O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NAS NOVAS PAUTAS POLÍTICAS

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o PAPEL DA 
SOCIEDADE CIVIL
NAS NOVAS 
PAUTAS POLÍTICAS
%
Os meios de comunicação, os 
movimentos sociais e os ciclos de 
conferências da ONU nos mostram, 
quase todos os dias, o consenso 
global sobre a necessidade de 
resgatar valores universais, 
de respeito aos direitos humanos 
e de pluralismo cultural como pilares 
de um futuro justo e sustentável.
Por outro lado, a globalização 
econômica parece nos manter 
^ distante de um pacto de cooperação 
entre as nações que possa garantir 
a consolidação de um mundo 
mais igualitário.
Diante de uma dinâmica 
internacional de forças antagônicas, 
que alimentam a participação 
da sociedade na construção de 
novos valores e, ao mesmo tempo, 
reforçam políticas excludentes, 
qual é o papel da sociedade civil, 
sua força e suas motivações?
Em busca de contrabalançar o poder 
do mercado e dos governos, a 
sociedade civil vem conjugando os 
esforços práticos de influenciar 
positivamente as políticas públicas 
com a reflexão permanente sobre 
seu papel e o escopo de suas ações.
0 PAPEL DA 
SOCIEDADE CIVIL 
NAS NOVAS 
PAUTAS POLÍTICAS
o PAPEL DA 
S O C IED A D E 
CIVIL NAS 
NOVAS P A U T A S 
P O L ÍT IC A S
E D I T O R A ^
Peirópolis
7Í?U
Copyright© 2004 by Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong)
EDITOKA ^ 0
Peirópolis
Editora responsável
Renata Farhat Borges
Coordenação editorial
Noelma Brocanelli
Preparação e revisão
Salete Brentan
Projeto gráfico e 
editoração eletrônica
João Bosco de Oliveira
Associação Brasileira de Organizações 
Não Governamentais (Abong)
Organização e coordenação editorial
Denise Gomide e Sérgio Haddad
Editora responsável
Isabel Moraes
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
O papel da sociedade civil nas novas pautas políticas 
- São Paulo: Peirópolis; A B O N G , 2004.
1. Globalização 2. Polídca mundial 3. Sociedade civil
I. Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais.
ISBN 85-7596-037-7
04-4556 CDD-327
índices para catálogo sistemático:
1. Política internacional : Papel da sociedade civil 327
9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 6 0 5 0 4 0 3 0 2
Todos os direitos desta edição reservados à 
Editora Fundação Peirópolis Ltda.
Rua Girassol, 128 - Vila Madalena 
05433-000 — Sâo Paulo — SP 
Tel. (55 11) 3816-0699 e fax (55 11) 3816-6718 
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wvm.editorapeiropolis.com.br
mailto:editora@editorapeiropolis.com.br
A P R ES EN T A Ç Ã O
A s novas tecnologias da connunicação, os nnovimentos sociais e os 
grandes ciclos de conferências sociais da Organização das Nações 
Unidas (ONU) evidenciarann, de maneira crescente, o consenso glo­
bal sobre a necessidade de valores universais, de respeito aos direi­
tos humanos e ao pluralismo cultural, bem como de preservação dos 
bens naturais e da sociodiversidade do planeta. Ao mesmo tempo, o 
avanço da globalização econômica, das políticas neoliberais e tam­
bém das forças imperiais, ,de guerra e do terrorismo apontou para o 
fracasso da construção de um mundo mais igualitário e solidário. A 
desigualdade socia! e a distância entre países e entre seres humanos, 
se ampliaram de tal forma que a perspectiva de um mundo mais 
solidário e fraterno tornou-se ainda mais longínqua. Os(as) pobres 
continuam sendo as grandes vítimas da intolerância e da ganância 
socioeconômica, sejam eles(as) os(as) imigrantes ou minorias raciais 
do Norte, sejam as grandes populações dos países do Sul.
O neoliberalismo, com suas conseqüências perversas, como a 
redução dos direitos sociais e a crescente concentração de renda; a 
incapacidade dos sistemas econômicos giobais de solucionarem os 
grandes problemas da humanidade; e o modo de operação e o papel 
social dos organismos internacionais do sistema Bretton Woods con­
formam uma pauta de interesse e indignação entre aqueles(as) que 
colocam suas vidas a serviço da construção da democracia, da justiça 
social e do desenvolvimento sustentável.
Pessoas que se unem para ajudar outras pessoas não são novidade 
na história da humanidade. O novo é a extensão dessa presença na 
esfera pública e sua escala global. As ações resultantes desse movi­
mento variam de amplitude e diversidade; suas fontes de inspiração 
podem ser desde motivos religiosos, de solidariedade e filantropia, 
até motivos de natureza política. No-mundo inteiro, a sociedade civil 
interage e busca contrabalançar o poder do mercado e dos governos.
O colapso dos regimes socialistas do Leste Europeu e a derrota das 
ditaduras civis e militares de grande parte dos países do Sul criaram 
um ambiente de maior complexidade política. As crises dos sistemas
e estruturas de governo, unidas às crises dos sistemas de repre­
sentação partidária, deslocarann a atenção para â capacidade e os 
interesses da sociedade civil organizada e sua potencialidade no 
campo da intervenção social. Então, que papel a sociedade civil pode 
cumprir, qual a sua força, quais as suas motivações?
Na verdade, assim como os interesses do mercado e dos governos 
se apresentam de forma diversa e contraditória,i os interesses da 
sociedade civil também o são. Nesse campo, coexistem diferentes 
identidades políticás, em que se manifestam disputas por hegemo­
nias de idéias e poder. As organizações não-governamentàis (ONGs) 
se inserem no campo da sociedade civil e, como organizações pri­
vadas, expressam em suas missões os interesses políticos de 
seus(süas) sócios(as) e apoiadores(as), em um universo de contra­
dições e valores diversificados.
Ao lado de outros atores, como sindicatos, movimentos sociais e 
populares, pastorais e demais organizações da sociedade civil, as 
ONGs cada vez mais têm ganho visibilidade e despertado o interesse 
da sociedade global, provocando debates sob diferentes perspec­
tivas. Nesse contexto, duas questões têm sido freqüentes: em 
primeiro Jugar, o papel social das ONGs, sua natureza, seu sentido è 
sua importância política diante dos demais atores da sociedade civil; 
em segundo, sua forma de atuação, seus mecanismos de intervenção 
na esfera pública, suas alianças e suas ações em redes temáticas e de 
interesses comuns nos planos nacional e internacional.
O seminário O papei da sodedade civil nas novas pautas po líti­
cas, documentado nesta publicação, é parte das ^ações desenvolvi­
das pela Associação Brasileira de Organizações Não Governamen­
tais (Abong),'fundada em 1991, que vem se constituindo em um 
importante ator da sociedade civil, ao congregar um conjunto de 
ONGs que trabalham e se identificam com a luta por cidadania e 
justiça spcial. O seminário, promovido entre 1- e 3 de setembro de 
2003,' foi estruturado com base na necessidade de debater e con- 
textualizar o lugar da sociedade civil e o papel das ONGs, tendo 
em vista as mudanças atuais na conjuntura política naciorial e inter­
nacional, por meio do aprofundamento e da construção de con­
sensos. O objetivo foi estimular a reflexão, com a participação de
organizações originárias de diferentes países, orientado pelos 
seguintes eixos:
• Os desafios da sociedade civil na nova dinâmica internacional e 
nacional: globalização, guerra, hegemonia e contra-hegemonia, 
império, formas de cooperação internacional, democracia e os novos 
movimentos sociais.
• A sociedade civil nos espaços públicos nacionais e interna­
cionais: o lugar das ONGs nas suas relações com movimentos sociais, 
partidos políticos, Estado, espaços públicos sociais e organizações 
internacionais multilaterais.
• As ações e as estratégias da sociedade civil; as relações entre 
ativismo e produção de conhecimento para transformação social e 
garantia de direitos.
Essa reflexão se realizou com base em um conjunto de indagações 
em pauta entre organizações que, partindo de um compromisso 
social efetivo, colocam-se em campo com o propósito de buscar 
alternativas aos atuais desafios, especialmente no que diz respeito à 
promoção e ao respeito aos direitos humanos e sociais e à democra­cia; ao combate à pobreza, à exclusão social e a qualquer espécie de 
discriminação e preconceito; à busca de alternativas de desenvolvi­
mento sustentável; e ao fortalecimento e à promoção da cidadania e 
da participação política e cultural de todos os setores da sociedade.
Entre essas indagações, estão os acontecimentos políticos interna­
cionais, especialmente as ações de guerra desencadeadas pelos 
Estados Unidos (EUA), expressão do controle hegemônico exercido 
pelo império norte-americano no mundo da comunicação, da cultura, 
da política, da economia e do poder militar. Figuram entre as con­
seqüências mais recentes o rompimento do compromisso com o mul­
tilateralismo, o esvaziamento do papei da ONU e o reforço e o 
atendimento às necessidades do mercado globalizado.
Por outro lado, a ampliação da articulação entre os movimentos 
sociais contra a globalização e a base estrutural que a favorece - Banco 
Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC), Fundo Monetário 
Internacional (FMI) - ou mesmo as ações em defesa da paz e contra a 
guerra configuram a contestação da ordem mundial e das atuais 
estratégias de aprofundamento do modelo econômico globalizado.
No âmbito nacional, o governo Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta 
desafios importantes. Eleito em conseqüência do esgotamento do 
modelo proposto pelo governo anterior e da ampliação do movimen­
to democrático, somado ao desejo de mudança de grande parte da 
população, o governo Lula precisa responder à enorme demanda 
social e à expectativa que sua eleição gerou, com propostas diferen­
tes das contidas na política anterior, em um quadro de constrangi­
mentos no plano econômico e de agravamento das condições sociais.
A ênfase na constituição de espaços de reflexão sobre o papel da 
sociedade civil e o lugar das ONGs na conjuntura nacional ejnterna- 
cional, por meio deste seminário, preparou a Assembléia Geral das 
associadas da Abong, que ocorreu na seqüência, entre os dias 3 e 4 
de setembro de 2003. Nossos objetivos ao preparar a programação 
foram: (a) destacar o papel político da sociedade civil em busca da 
transformação e alteração da atual ordem mundíaf, em defesa dos 
Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais; (b) refletir sobre a 
identidade e o lugar das ONGs nos espaços públicos nacionais e 
internacionais, nas novas conjunturas políticas; :e (c) debater as 
estratégias e ações ativas e reflexivas em busca do fortalecimento e 
ampliação da capacidade de controlar as políticas públicas e de influir 
sobre elas, de maneira crítica e comprometida, visando a atender às 
demandas sociais.
Esta publicação da Abong traz as discussões promovidas por 
quase duas dezenas de conferencistas e debatedores(as), enrique­
cidas com as contribuições da platéia, cujos(as) participantes eram 
oriundos(as) de diferentes segmentos sociais.
A Abong agradece à Fundação Ford, que apoiou o seminário; ao 
Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas, 
que disponibilizou o iocal para a realização do evento; e à Asociación 
Latinoamericana de Organizaciones de Promoción (Alop),, que se 
encarregou das passagens e estadias dos representantes de associa­
ções irmãs de ONGs da América Latina.
Sérgio Haddad
(Presidente da Abong nas gestões 1998-2001 e 2001-2003 
e atual d iretor de re1açõesi internacionais)
sumario
A NOVA DlISÍÂMiCA INTERNACIONAL E OS DESAFIOS DA SOCIEDADE CIVIL 11
Mobilização mundial 11
0 desafio de construir movimentos e articulações permanentes 14
MULTILATERALISMO: GOVERNANÇA INTERNACIONAL E O PAPEL DA 19
SOCIEDADE CIVIL
0 contrapeso da opinião pública 20
Democratização dos organismos multilaterais 21
A SOCIEDADE CIVIL NOS ESPAÇOS PÚBLICOS INTERNACIONAIS: O LUGAR 25
DAS ONGs
Os mitos da globalização 26
A polêmica idéia de uma sodedade civil global 28
As ONGs no espaço global 29
Desconstrução dos mitos 33
Desafios do consenso, da democracia e da representação 36
O PAPEL DA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 39
Diversidade de conhecimentos ' 40
Sociologia das ausências 43
Substituir monoculturas por ecologias 46
Sociologia das emergências 48
ONGs E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO 55
Entre a academia e as ONGs 56
A construção do conhecimento/pensamento 59
Produção de conhecimento e silêncio sobre o racismo 64
A SOCIEDADE CIVIL NAS PAUTAS POLÍTICAS NACIONAIS 69
Guerra de posições 70
Ocupar trincheiras na guerra de posições 74
Quem pauta a pauta política nacional? - 75
RELAÇÕES ENTRE ESPAÇOS PÚBLICOS NACIONAIS E SOCIEDADE CIVIL 79
Alargar a democracia e ampliar a governabilidade 80
Diferença de agendas 83
Exercício de socialização do poder 84
A N O V A D I N A I V I IC A I N T E R N A C I O N A L 
E O S D E S A F I O S D A S O C I E D A D E C I V I L
Esse foi o tema da conferencia de abertura do seminário, apresentado 
por Christophe Aguiton, membro da diretoria da Ação pela Tributação 
das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac/França), e 
Fátima Mello, secretária-executiva da Rede Brasileira de Integração dos 
Povos (Rebrip) e coordenadora de relações internacionais da Federação de 
Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).
Eles abordaram, entre outras, questões como as debilidades da globa­
lização; a crescente força de um movimento social, contra-hegemônico, 
que está esvaziando a legitimidade do modelo neoliberal; a atuação em 
rede e a construção de consensos; o desafio de construir movimentos e 
articulações permanentes; e a necessidade de fazer com que os movimentos 
sejam enraizados na sociedade, conquistando as lutas cotidianas e estabe­
lecendo pontes entre a agenda global e as questões que afetam o dia-a-dia 
das pessoas.
Mo b il iz a ç ã o m u n d ia l
Christophe Aguiton iniciou sua exposição salientando a importância do 
recente ciclo de mobilização mundial, especialmente contra a invasão do 
Iraque pela coalizão EUA-Reino Unido, Essa onda, “jamais ocorrida em 
nível internacional, começou com a luta contra a globalização neoliberal e 
também contra as guerras que aconteceram depois do 11 de Setembro',
//
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
englobando também questões ecológicas, feministas e sociais” . Ele com­
parou as mobilizações atuais com as ocorridas na década de 1960 e desta­
cou as diferenças (para melhor) do atual ciclo, como a ligação com os 
movimentos populares, agora mais rápida e mais profunda.
Ao abordar a situação internacional, Aguiton constatou que a 
aparente semelhança das políticas na Europa, no Japao e nos Estados 
Unidos, bem como o papel e o poder real de instituições internacionais, 
como a Organização Mundial do Comércio (OM C), o Fundo Mone­
tário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, levam a superestimar o 
poder da globalização neoliberal. “Em meu ponto de vista, porém, a 
globalização neoliberal é provavelmente muito mais débil do que geral­
mente pensamos.”
Para evidenciar essa debilidade, ele lembrou que houve uma primeira 
fase de globalização entre cerca de 1850 e 1880, na Europa, e fez uma 
analogia entre a situação atual da globalização e o fim dessa etapa pio­
neira. Conforme Aguiton, esse primeiro período de globalização se 
rompeu inicialmente na Alemanha, por voka de 1870, quando o contexto 
histórico, a crise econômica e social e a eclosão dos movimentos de massa 
levaram o chanceler Otto von Bismarck a adotar, entre outras, medidas de 
proteção aduaneira, exemplo que foi seguido pelas grandes potências, 
como França, Inglaterra e Estados Unidos. Uma das conseqüências dessas 
medidas foi um papel mais importante dos Estados na redistribuição de 
renda e na proteção social, conferindo aos operários ' melhores condições 
de vida em relação ao período anterior.
Para Aguiton, há muitas semelhanças entre a globalização do final do 
século XIX e a atual, especialmente o peso da crise econômica — que leva 
os grandes empresários e as grandes multinacionais a darem prioridade à 
defesa de seu terreno e do próprio mercado — e a força do movimento 
social. “E essa força do movimentosocial pressiona a única coisa que se 
pode pressionar, que sâo os Estados nacionais”, visando a conquistar me­
lhores condições de trabalho, maiores salários e acesso à terra, entre outros 
direitos. Essa pressão tem custo e conseqüência política para os estados.
Aguiton apontou o fracasso do Consenso de Washington- como mais 
uma prova da debilidade da globalização. Ele expôs a expectativa gerada 
pela ideologia do Consenso de Washington, bem como a adoção de suas 
propostas como única alternativa após a derrocada da União Soviética e
.72
A nova dinâmica intemacional e os desafios da sociedade civil
da Guerra do Golfo, “quando se tornou o credo de todos os dirigentes do 
mundo Ocidental, alimentando um otimismo segundo o qual, com a 
vitória do neoliberalismo, o mundo iria conhecer um crescimento infini­
to, tornar-se democrático, redistribuir a renda de maneira natural, sem 
choque, sem dificuldade, sem problema”, o que, obviamente, não ocorreu.
Ele vinculou as características da atuação em rede das organizações da 
sociedade civil, como organizações não-governamentais (ONGs) e sin­
dicatos, às características da globalização, salientando que “há uma iso- 
morfia, uma evolução de forma comparável entre o capitalismo e o movi­
mento social” e reafirmou a possibilidade de vencer a fragmentação, 
mesmo quando se apresenta uma grande diversidade de interesses, de 
tomar decisões de consenso e de evoluir. Para reforçar sua opinião, citou o 
avanço do movimento antiglobalização a partir de 1999, que continuou 
ascendente mesmo após o 11 de Setembro, e a mobilização mundial con­
tra a guerra, em 2003.
Porém, ao analisar o funcionamento em rede, com base em consen­
sos, Aguiton chamou a atenção para alguns problemas. O primeiro, de­
monstra que o consenso é mais violento do que se imagina, porque, uma 
vez que se chega a ele, as pessoas que se posicionam contra são totalmente 
rechaçadas. “Assim, existe um risco de haver um consenso dos poderes 
fortes, olvidando todas as formas minoritárias”. Isso pode ocorrer nos 
organismos multilaterais, como a OM C, em que o consenso é um con­
senso entre Europa, EUA, Japão e países em desenvolvimento, como o 
Brasil, a China e a índia, e também nos movimentos da sociedade civil, 
em que ainda prevalece “um problema real para integrar as minorias” .
O segundo problema apontado por Aguiton “é o caráter opaco, pouco 
visível das decisões e da maneira de atuar dentro de uma rede”, o que 
envolve um risco de desaparecimento das organizações, como ocorreu na 
Europa, sobretudo na Espanha. Ele citou como exemplo as grandes ma­
nifestações contra a guerra em Barcelona, em 2003, que não tiveram uma 
organização por trás, como ocorre no Brasil, “com o Movimento dos 
Trabalhadores Riirais Sem Terra (MST), a Central Única dos Traba­
lhadores (CUT), o Partido dos Trabalhadores (PT), a Associação Bra­
sileira de Organizações Não Governamentais (Abong), onde se pode ver 
um pouco das posições de cada um (a) e entender um pouco por que 
um(a) disse isso e outro (a), aquilo”.
1 3
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
O terceiro problema situa-se no campo da articulaçâo entre os movi­
mentos da sociedade civil e as alternativas políticas. Ele afirmou que é pos­
sível obter vitórias, como ocorreu com Lula no Brasil, “mas a vitória náo 
quer dizer que seja fácil implementar novas políticas” . Além disso, lem­
brou que vigora um sistema de político, pelo qual, muito rapida­
mente, os governos sao rechaçados pelas populações, e isso “dificulta 
nosso papel, como movimento, para ajudar a construir uma alternativa”.
Conforme Aguiton, é difícil obter uma ruptura com os modelos sociais, 
econômicos e políticos, como ocorreu em meados do século XX, quando 
houve a planificação russa e chinesa e a adoção do keynesianismo em alguns 
países do Norte, especialmente. No entanto, fez um convite à reflexão ao 
apontar uma mudança peculiar, a do free-software, como o sistema Linux, 
cuja proposta “é romper com a lei da ganância máxima que vigora no 
mundo capitalista. E isso cria realmente um novo paradigma, demonstra 
que há uma outra solução”, concluiu.
O DESAFIO DE CONSTRUIR MOVIMENTOS 
E ARTICULAÇÕES PERMANENTES
Fátima Mello concentrou-se no cenário continental americano, espe­
cialmente na campanha contra a Area de Livre Comércio das Américas 
(Alca) e no desafio de construir movimentos e articulações permanentes.
“A campanha contra a Alca é quase um laboratório das alianças e dos 
compromissos que as ONGs têm estabelecido com os movimentos 
sociais, com o movimento sindical e com as igrejas, ao longo do con­
tinente. A construção desse movimento contra-hegemônico tem 
crescido enormemente e, de alguma maneira, contribuído muito 
para esvaziar a legitimidade do modelo neoliberal, do modelo que os 
EUA tentam implementar na região.”
Conforme Fátima, a eleição recente de alguns governos de centro- 
esquerda na América Latina também contribui para deslegitimar o mo­
delo defendido pelo governo norte-americano.
Ela situou historicamente o início da construção desse movimento 
continental contra-hegemônico em 1994, quando foi criado o Acordo de
1 4
A nova dinâmica intemacional e os desafios da sociedade civil
Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Naquela época, as coa­
lizões trinacionais dos EUA, do México e do Canadá, que tentaram bar­
rar o Nafta, foram derrotadas, mas deram origem às bases de alianças em 
nivel continental. ̂ '
“Nesse ano (1994), foi realizada a primeira cupula da Alca, a 
primeira cúpula de chefes de Estado das Américas, em que Bill 
Clinton, presidente dos EUA, praticamente não se deparou com 
nenhum movimento de resistencia. Nove anos depois, podemos 
afirmar que construímos um movimento que, no minimo, compli­
cou muito o jogo da Alca. Nós ainda não derrotarnos a Alca, mas 
podemos dizer que esse projeto está, no mínimo, sofrendo de falta 
de legitimidade e encontra fortíssimas resistências.”
Fátima relembrou a criação da Aliança Social Continental, em 1997, e 
o início de um ciclo ascendente de protestos e de resistência global, 
começado em Seattle, em 1999, passando por Washington, Praga, 
Luxemburgo, Gênova...
“O 11 de Setembro tentou interromper esse ciclo, mas, na nossa per­
cepção, a realização do Segundo Fórum Social Mundial (FSM), em 
2002, revela que conseguimos responder às tentativas de criminaliza- 
ção dos movimentos sociais com uma recuperação da nossa capaci­
dade e da nossa iniciativa política. O grande sucesso do Fórum 
demonstra que todo o movimento que se gestava - nâo só nas 
Américas, mas em nível global - de protesto contra o G-8, a OMC, 
o Banco Mundial e o FMI tinha uma demanda latente por um espaço 
próprio de debate sobre alternativas e de convergência de lutas.”
Ela salientou que, “em 2002, fizemos aqui no Brasil um plebiscito 
sobre a Alca, em que dez milhões de pessoas participaram, e a maioria 
esmagadora votou contra a Alca. Existem muitas discussões sobre o 
plebiscito, mas, na verdade, o fato de que dez milhões de pessoas tenham 
ido à urna votar sobre um tema tão difícil de ser enraizado na sociedade 
revela a capacidade de mobilização que se construía aqui no Brasil e em 
âmbito continental” .
1 5
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
No entanto, lembrou que a passagem de uma situação desolado ra, 
como a de 1994, para um cenário de fortíssima resistência da sociedade e 
de alguns governos ao projeto dos EUA não significa que a Alca esteja der­
rotada. Ela explicitou como opção tática transferir as negociações de 
alguns temas, como agrocomércio, investimentos e compras governamen­
tais, da Alca para o âmbito da OM C, esvaziando a agenda do acordo de 
livre-comércio.
Também discutiu a construção das alianças da sociedade civil, ou seja, 
desse movimento por trás das ações de resistência contra a Alca, cuja 
origem (as coalizões contra o Nafta) apresentou uma grande novidade:
“uma aliança horizontal de organizações dos EUA com organizações 
do México e do Canadá,em que as organizações norte-americanas 
participaram de igual para igual, como irmãs e não mais como pro­
tetoras. Esse movimento, que pretende ser um movimento perma­
nente, baseia-se em alianças plurais, alianças multissetoriais. Lutar 
contra a Alca é o que nos une, mas a construção de um movimento 
permanente não se sustenta só aí. Tem de ser capaz de ir além de bar­
rar o projeto para tentar construir alternativas políticas. Somado aos 
protestos e às resistências, esse movimento quer ser uma articulação 
permanente e, para ser isso, tem de se enraizar na sociedade, tem de 
conseguir pegar essa agenda global e traduzi-la nas lutais cotidianas. 
Esse movimento tem o desafio de, ao mesmo tempo em que faz a 
resistência e o protesto, também fazer o monitoramento das nego­
ciações, entender o que está sendo negociado, identificar as posições 
de cada governo.”
Para Fátima, esse desafio está posto também no FSM, que, além de ser 
um evento anua], quer ser um processo. Para ser um processo, o Fórum 
tem de ser capaz de se enraizar na sociedade, conquistar as lutas cotidia­
nas, estabelecer pontes entre essa agenda global e as questões que afetam 
o dia-a-dia das pessoas”.
Além disso, ela apontou as duas vias em debate dentro dos movimen­
tos globais sobre como mudar o poder no sistema internacional e no 
âmbito contiiiental; a aposta na “desglobalização da economia e da políti­
ca, para construir uma melhor correlação de forças nos âmbitos nacionais,
1 6
Á nova dinâmica internacional e os desafios da sociedade civil
ou a aposta na democratização do sistema internacional e na alteração do 
sistema de poder pela via das instituições globais, pela via supranacional” . 
Conforme Fátima, a campanha continental contra a Alca tem sido capaz 
de combinar as duas estratégias.
“Ao mesmo tempo que existe um movimento supranacional, que 
questiona as bases hemisféricas da construção desse acordo, tem-se 
tentado conduzir e mudar a correlação de forças dentro de cada país, 
o que altera substantivamente a posição de aiguns países nas nego­
ciações. Um exemplo é o que está ocorrendo com o governo Lula.
Se o Brasil não quiser esse modelo, ele pode mudar muita coisa nas 
negociações da Alca. E o mínimo que podemos dizer hoje do gover­
no Lula é que ele nos incluiu no jogo.”
Na última parte de sua exposição, Fátima falou dos desafios da 
sociedade civil de construir, em âmbito continental, um movimento 
baseado em amplas alianças, que seja permanente e consistente inclusive 
dentro dos EUA. Também salientou a oportunidade da existência de go­
vernos de centro-esquerda na América Latina para realizar um projeto 
alternativo de integração. Na construção desse modelo alternativo, ela 
defendeu: (a) “a desprÍvatÍzação da vida social, ou seja, o fato de que há 
esferas fundamentais na vida social que não têm de ser mercantilizadas; 
(b) um projeto de integração que tenha por prioridade a redução das 
desigualdades entre países e no interior desses países; e (c) um projeto de 
integração que seja capaz de combater o racismo e o sexismo”.
Ao final de sua exposição, Fátima lançou uma indagação: “Como nós, 
ONGs brasileiras e latino-americanas, vamos nos comprometer com a luta 
contra o neoliberalismo e a guerra e fazer isso com enraizamento social, 
com vínculo com as lutas cotidianas?” . E uma afirmação: “O compromis­
so das O N Cs é com formas de ações políticas não-hierarquizadas, como as 
do FSM e da campanha continental contra a Alca, com a construção des­
ses movimentos nao-piramidais, mas, ao mesmo tempo, com um projeto 
político anti-sistêmico e com alternativas” .
1 7
notas
1. 0 atentado da Al-Qaeda a Nova York, em 2001 (N. do E.)
2. Conæ næ deW a d i i ig to n : expressão criada pelo economista inglês John Williamson para de* 
signar um conjunto de medidas político-econômicas recomendadas, a partir de 1989, por especia­
listas de instituições financeiras e centros de estudos baseados em Washington (EUA), aos paises 
tatino-americanos, visando, em tesé, à estabilidade e ad crescimento econômico. À época, o conti­
nente estava mergulhado em estagnação econômica, inflação ascendente, dívida externa elevada, 
desemprego e recessão. Em linhas gerais, as recomendações do Consenso de Washington incluíann 
a redução da presença do Estado na economia, a privatização, a abertura ao mercado internacional, 
o enxugamento do setor público, a austeridade fiscal e monetária, a desregulamentação da econo­
mia, o fortalecimento do direito à propriedade, etc. A observância de medidas inspiradas no 
Consenso de Washington tornou-se uma das pnncipais exigências do FMI e do Banco Mundial para 
concederem empréstimos aos países que recorreram à sua ajuda.
1 8
M U L T I L A T E R A L I S M O : 
G O V E R N A N Ç A I N T E R N A C I O N A L E 
O P A P E L D A S O C I E D A D E C I V I L
Esse tema foi discutido no segundo dia do seminário, na parte da 
manhã, e apresentado por Roberto Bissio, fundador e co-diretor do Ins­
tituto Terceiro Mundo (Uruguai), editor do Guia D el Mundo e das revis­
tas D el Sur e Terceiro Mundo Econômico\ coordenador da Social Watch, 
organização da sociedade civil em 50 países, membro do comitê da so­
ciedade civil que assegura o Programa das Nações Unidas para o 
Desenvolvimento (Pnud). O outro expositor foÍ Teivo Teivainen, profes­
sor adjunto da Universidade de Helsinque (Finlândia), doutor em 
Ciências Sociais e diretor do Programa de Estudos sobre Democracia e 
Transformação Social da Universidade Nacional de São .Marcos, coorde­
nador nacional do Network Institute for Global Democratization e mem­
bro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial,
Após a explanação, foi aberto um espaço para o debate com. a platéia, 
sobre questões evidenciadas pelos dois apresentadores, como as maneiras 
de assegurar a democracia nos organismos multilaterais e as estratégias da 
sociedade civil nesses processos, seja na forma de confronto ou na forma 
de negociação e participação. Também foram questionadas as com­
plicações que a vigência de dois pesos e duas medidas nas relações inter­
nacionais representam. Os comentários dos expositores estão incluídos 
nos textos a seguir.
79
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
O CONTRAPESO DA OPINIÃO PUBLICA
Roberto Bissio iniciou sua exposição falando sobre a guerra contra o 
Iraque, iniciada em março de 2003 pela coalizão EUA-Reino Unido, sem 
autorização do Conselho de Segurança da O N U e contra a opinião públi­
ca mundial. “A oposição à guerra é uma força mobilizadora, mas o que 
realmente mobilizou e sensibilizou a opinião pública do mundo inteiro 
foi a ilegalidade dessa guerra” .
Para ele, “o fim da Guerra Fria marcou a extinção de qualquer possi­
bilidade de contrapeso militar ao poderio dos EUA, mas criaram-se as 
raízes do contrapeso da opinião pública”. Esse contrapeso, representado 
pela sociedade civil, ganhou força a partir da última década do século XX, 
quando ocorreram diversas conferências internacionais, englobando toda 
a agenda social, ambiental e de gênero, com a maioria dos governos de 
todo o mundo comprometendo-se a implementar suas proposições. Ele 
salientoLi que, nesse período, “o conceito de direitos humanos, que antes 
se resumia a direitos civis e políticos, foi acrescentado de conceitos de di­
reitos econômicos, sociais, culturais, direito de não-dÍscriminação étnica e 
de gênero, entre outros” .
Bissio citou a criação da Corte Penal Internacional como um passo 
para a construção do multilateralismo e de um tipo de governança inter­
nacional, surgida com a mobilização da sociedade civil,“ particularmente 
das ONGs.
“A constituição da Corte, que alguns acreditavam demorar mais de 
20 anos, ocorreu em apenas quatro anos. No entanto, os EUA 
resistem, negam a possibilidade de um soldado americano ser julgado 
pela Corte. Mas, nessa luta, o papel da chamada opinião pública — e, 
dentro dela, da parte que sai às ruas e que se sensibiliza — é enorme.”
Na opinião dele, é preciso aprofundara legalidade internacional, ou 
multilateralismo, tornando-o mais justo do que o sistema atual.
“O sistema multilateral claramente não funciona em benefício dà 
maioria da população do mundo, mas se não existisse, seria ainda 
pior. A falta de lei e a falta de justiça são, principalmente para os mais
2 0
Multilateralismo: governança intemacional e o papel da sociedade civil
vulneráveis, pobres e indefesos, ainda piores do que a assistência de 
uma justiça incompleta. A náo-existência de algum tipo de justiça 
significaria a volta à barbárie mais pura e ao simples poder da força.”
Sobre as estratégias adotadas pela sociedade civil, de confronto ou de 
negociação e participação nesses organismos multilaterais, Bissio ressaltou 
que ambas sâo importantes para influir nas decisões dessas instâncias e 
defendeu uma terceira possibilidade de intervenção, que é reclamar prestação 
de contas. Conforme ele, no momento de fazer uma proposição é necessário 
“demonstrar que o que se propõe é sério, razoável e bem-fundamentado ou 
é realmente apoiado por maiorias que vão ter peso político”. Entretanto, a 
prestação de contas pode ser exigida por qualquer cidadão (a), que pode 
cobrar as medidas expressas em compromissos internacionais e em leis.
“Isso tem sido tremendamente efetivo em muitas áreas, precisamente 
porque, para ganhar legitimidade, instituições como o Banco Mundial 
e até o FMI tiveram de ir acomodando normativas ambientais, de 
gênero, para povos indígenas, sobre tratamento de minerais, entre ou­
tras. Agora fala-se em impacto social. Desde que existam compromis­
sos e metas, qualquer grupo ou indivíduo pode questionar, cobrar sua 
efetivação. Assim, o jeito de construir objetivos decididos nacional­
mente cria e favorece uma accountability^ responsabilidade pública pe­
rante normas conhecidas de antemão, e isso é uma instância de parti­
cipação da sociedade civil que sempre é legítima, ainda que essa ati­
tude seja tomada por uma total minoria ou por um só indivíduo.”
DEMOCRATIZAÇÃO DOS ORGANISMOS MULTILATERAIS
Teivo Teivainen falou sobre as diferentes maneiras tanto para trans­
formar instituições multilaterais como para criar novas formas de insti­
tucionalidade, lembrando que, ao propor essas transformações, é preciso 
analisar detidamente que forças sociais poderiam apoiá-las ou se contra­
por a elas. “A sociedade civil e os movimentos prestam atenção às formas 
de poder capitalista de uma maneira mais detalhada, mas, muitas vezes, 
deixam de debater questões institucionais das organizações interna­
cionais, considerando que isso pode ser perda de tempo.”
2 7
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
Conforme Teivainen, “para ser possível pensar em um mundo dife­
rente quanto às organizações multilaterais, deve-se considerar que a 
democracia, tanto local quanto mundial, pode ter pelo menos três aspec­
tos: (a) a participação de diferentes grupos da sociedade civil organizada 
nos arranjos institucionais; (b) o princípio de uma pessoa, um ponto; e (c) 
um grupo, um ponto, sendo, no princípio internacional, um ponto um 
país” . Em seu entender, é necessário saber diferenciar-as propostas conser­
vadoras de mudanças nos organismos multilaterais daquelas realmente 
transformadoras, bem como saber analisar até que ponto as propostas de 
democratização sao verdadeiramente democráticas e que forças sociais 
poderiam dar seu apoio a esse processo.
Teivainen considerou as propostas de democratização das Nações 
Unidas, assim conio a transformação desse órgão num instrumento mais 
efetivo para projetos democráticos ao redor do mundo, bastante difíceis. 
Em sua opinião, “transformar a Assembléia Geral e o Conselho de Se­
gurança da O N U é projeto de médio prazo praticamente impossível, 
principalmente, mas não unicamente, pelo papel dos EUA. Quase todas 
as propostas que vemos, factíveis e desejáveis para transformar o sistema 
multilateral, partem do pressuposto de que os EUA não vão tomar parte 
em nenhum projeto de transformação democrática”. Ele citou o exemplo 
do movimento que criou a Corte Penal Internacional, em cujo processo 
de constituição foram feitas muitas concessões aos EUA (mesmo assim, 
este país não ratificou o tratado e ainda pressionou dezenas de nações a 
seguirem seu exemplo ou a assinarem acordos bilaterais comprometendo- 
se a não apresentar denúncias contra cidadãos norte-americanos nessa 
instância jurídica supranacional).
Para Teivainen, qualquer proposta para mudar efetivamente as Nações 
Unidas passa pelas relações financeiras e pela dependência econômica 
tanto da O NU, financiada especialmente pelos países centrais, sobretudo 
os EUA, como dos países que a integram. Ele vinculou a democratização 
dos organismos multilaterais à superação dessas dependências financeiras, 
apostando em duas propostas-chave.
A primeira, supõe a luta contra os mecanismos de poder da dívida 
externa. “Há movimentos que buscam isso por meio de mecanismos de 
arbitragem da dívida; outros, dizem que os mecanismos de arbitragem 
entregam a soberania das nações endividadas a organismos de arbitragem.
2 2
M ultilateralismo; governança internacional e o papel da sociedade civil
mas para mim esse debate ainda não está claro. Outra alternativa é a luta 
para anular a dívida como tal, que eu vejo como uma luta válida.” Ele 
defendeu mais articulação entre os que lutam por mecanismos dè arbi­
tragem e os que buscam a anulação total da dívida.
A segunda proposta é lutar por mecanismos de impostos sobre a 
especuiáção financeira, em nível global. “Pode-se começar sem os EUA e 
sem a Grã-Bretanha - e há que começar sem os EUA”, enfatizou, lem­
brando que o Brasil é um país-chave e seu governo teria muito poder de 
convencimento em alguns fóruns multilaterais para propor impostos 
sobre a especulação financeira. Para Teivainen, este é o momento ideal 
para que a sociedade civil brasileira pressione o governo a defender a ta­
xação do capital especulativo.
Conforme o expositor, esse tipo de recurso poderia ser usado para 
diminuir a dependência financeira da O N U em relação a países como os 
EUA, o que poderia, talvez, viabilizar alguns projetos de democratização. 
“Com o poder de veto dos EUA e de outros países no Conselho de 
Segurança, vai ser muito difícil fazer da O N U uma instituição muito 
democrática, mas isso poderia criar alguns espaços para quem buscá alter­
nativas de luta dentro da organização.”
Ao propor uma institucionalidade mundial alternativa, Teivainen 
defendeu mecanismos para a participação efetiva da sociedade civil organi­
zada, mas ressaltou que é preciso manter-se atento, pois sob o guarda- 
chuva da sociedade civil há também “muitas organizações que representam 
muito bem as grandes empresas e o poder financeiro. Os representantes da 
sociedade civil precisam ser forças legítimas dessa sociedade; logo, pro­
ponho uma representação por Estados e uma representação com base no 
número da população dos Estados. Pode nâo ser a melhor proposta, mas 
é hora de os movimentos da sociedade civil apresentarem e debaterem 
diferentes propostas de institucionalidades alternativas, mas nâo lançando 
um parlamento mundial de hoje para amanhã”.
Conforme Teivainen, uma assembléia popular mundial é uma exce­
lente proposta, possível a longo prazo, mas a prioridade deve ser dada às 
lutas contra as formas de dependência econômica, que envolve a luta con­
tra a dívida externa e a especulação financeira. Ele concluiu propondo uma 
reflexão sobre o que essas mudanças representariam para as lutas popu­
lares, já que abririam espaço para novas formas de luta, em outras frentes.
2 3
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
Ao responder aos questionamentos da platéia, Teivainen defendeu 
uma mudança no eixo de debate sobre a globalização, no sentido de não 
o limitar à globalização pró e contra, como se isso dividisse os movimen­
tos, pois se o “adversário é o poder antidemocrático, capitalista, o nosso 
eixo de debate deve se concentrar nasmaneiras de democratizar essas for­
mas de poder não-controladas, em nível local, nacional, mundial e trans­
nacional, bem como aqueles que defendem os privilégios desse poder”. A 
articulação, nesse caso, visaria muito mais à luta pró-democracia radical 
e anticapitalista do que a qualquer outra fmalidade.
Teivainen apoiou-se em Gramsci^ para demonstrar que as relações he­
gemônicas são também relações educativas.
“Se pensamos que o mundo é uma escola, e o FMI e a O M C são 
professores dessa escola, obtemos uma das fases legitimado ras das 
formas de poder desiguais dessas instituições; a idéia de que países 
em via de desenvolvimento são crianças e países desenvolvidos, adul­
tos. Por isso, é importante pensar não somente em educação tradi­
cionalmente entendida como escolaridade, mas educação como re­
lações pedagógicas de poder na sociedade, em diferentes níveis.”
notas
1. Antr>ni> Giam sri: filósofo italiano (1891-1937), cujas idéias tiveram profunda influência sobre 
o eurocomunismo, na segunda metade do século XX, e sobre a esquerda brasileira, nas décadas de 
1970 e 1980. Embora também defendesse uma revolução proletária, como os demais marxistas, 
acreditava que essa só seria possível se antecedida por uma mudança de mentalidade. Em sua obra, 
analisou o papel da cultura e dos intelectuais nos processos de transformação histórica. Gramsci 
usou o conceito de hegemonia para caracterizar o domínio cultural-ideológico de uma classe sobre 
as outras. Para ele, esse poder hegemônico incorpora uma lógica de adesão quase incondicional, 
sem necessariamente ter de recorrer a medidas de dominação tradicionais. Conforme Gramsci, toda 
relação de hegemonia é também uma relação pedagógica: primeiro se conquistam as mentes, ou 
seja, 0 consentimento, depois, o poder
2 4
A S O C I E D A D E CIV IL. N O S 
E S P A Ç O S P Ú B L I C O S I N T E R N A C I O N A I S : 
O L U G A R D A S O N G s
Esse tema foi apresentado pelo antropólogo Eduardo Ballón, presi­
dente da Asociación Latinoamericana de Organizaciones de Promoción 
(Alop) e membro da O N G peruana Desco e da rede de articulação Grupo 
Proposta Cidadã. Os(as) debatedores(as) foram Nalu Faria, psicóloga e 
diretora da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e membro da 
Marcha Mundial das Mulheres, e Nelson Villarreal, presidente da 
Associação Nacional de ONGs do Uruguai (Anong).
Nessa mesa, foram abordados assuntos como os mitos da globalização, 
as estratégias para fortalecer a ação das ONGs no espaço global, os 
desafios do consenso, da democracia e da representação, e os déficits social, 
democrático e econômico gerados pela globalização, entre outros.
A platéia levantou questões sobre o fortalecimento do poder públi­
co via sociedade civil, a inclusão das minorias, o poder dos mitos da 
globalização e as formas como as organizações e movimentos sociais 
poderiam vencer as próprias divisões para formar alianças dentro da 
diversidade e constituir um projeto político mais consistente. Os 
comentários do conferencista e dos(as) debatedores(as) sobre essas 
indagações estão incluídos nos textos a seguir.
2 5
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
Os MITOS DA GLOBALIZAÇÃO
Eduardo Ballón ordenou sua intervenção em diversos momentos, 
abordando os mitos da globalização, a idéia de sociedade civil global e o 
papel dos distintos atores nessa sociedade, além dos desafios das O NGs 
nos âmbitos regional e nacional.
Ele recorreu à opinião de diversos historiadores para evidenciar três 
momentos distintivos, emblemáticos, no processo de globalização, que se 
nutrem de sucessivas revoluções tecnológicas, em especial as que reduzem 
drasticamente os custos de transporte, informação e comunicação, e man­
têm uma clara continuidade entre si.
“O primeiro momento distintivo ocorreu entre 1870 e 1913, 
caracterizado por elevadíssima mobilidade de capital e de mão-de- 
obra e auge comercial, proporcionado muito mais pela redução dos 
custos de transporte do que pelo livre-comércio. Esse momento con­
cluiu-se com a Primeira Guerra Mundial.
A segunda fase aconteceu entre 1945 e 1973, com o desenvolvi­
mento de instituições de cooperação internacional em matéria fi­
nanceira e comercial, expansão do comércio manufatureiro entre os 
países desenvolvidos, baixa mobilidade de capital e de mão-de-obra. 
Essa foi a fase da regulação macroeconômica definida em Bretton 
Woods, que colapsou em meados de 1970.
Finalmente, a terceira fase é a atual, caracterizada pela genera­
lização gradual do livre-comércio, pela presença avassaladora no 
cenário internacional das grandes corporações, com sistemas inte­
grados de produção, crescimento e grande mobilidade de capitais, 
em contraste com as restrições crescentes à mobilidade da mão-de- 
obra, assim como uma clara tendência à homogeneização por via da 
subordinação dos modelos de desenvolvimento.”
Conforme Ballón, nesse cenário global prevalecem cinco mitos, ou 
seja, cinco formas de mascarar e ocultar a realidade.
• “O primeiro desses mitos sustenta que o livre mercado maximiza 
o crescimento e a riqueza no mundo e simultaneamente otimiza
2 6
A sociedade civil nos espaços públicos internacionais: o lugar das ONGs
a distribuição que resulta desse incremento. Frente a esse mito, 
basta constatar que, na América Latina, a zona mais desigual do 
planeta, os dez por cento mais pobres possuem o equivalente a 
menos de 5 por cento das riquezas que estao nas mãos dos dez por 
cento mais abastados.
O segundo mito sustenta que a liberalização do mercado mundial 
e o sistema financeiro internacional possibilitarão o acesso eqüita­
tivo de países e pessoas aos bens e serviços produzidos no mundo. 
Basta olhar os subsídios e as barreiras que os países desenvolvidos 
impõem para que essa afirmação perca totalmente o sentido.
O terceiro mito é o que sustenta que a globalização permitirá uma 
incorporação paulatina de países e povos, com base em seu acesso 
à tecnologia e ao conhecimento. Recordemos simplesmente que o 
atual processo está liderado por 300 empresas transnacionais, que 
elevaram sua participação a 28 por cento do produto bruto mun­
dial, num planeta em que 20 por cento da população apropria-se 
de 80 por cento de todas as riquezas, excluindo definitivamente 
continentes inteiros.
O quarto mito sustenta que estamos assistindo à perda de sentido 
do Estado-nação. Sem dúvida, a globalização afetou os Estados 
nacionais, que agora têm possibilidades limitadas de se impor aos 
mercados e viram diminuídos os poderes públicos, bem como 
tornaram-se muito mais débeis diante da agressividade especula­
tiva, como certificaram-se o Brasil e o México recentemente. No 
entanto, apesar dos limites impostos pela globalização, os Estados 
nacionais continuam sendo atores significativos nas relações inter­
nacionais. Eles conservam uma dose de poder muito grande e têm 
uma capacidade de decisão significativa, embora menor do que 
tiveram antes.
O quinto mito afirma que o 11 de Setembro faz com que a 
globalização nos coloque diante de um sistema incontrolável, 
que vai ser definitivamente unipolar, e que teremos a hegemonia
27
0 pape! da sociedade civil nas novas pautas políticas
norte-americana por várias décadas, se nao por séculos. Apesar 
da inegável hegemonia norte-americana em cada um dos campos 
que se compete globalmente, são claras, simultaneamente, a per­
da de peso dos EUA no comércio e no produto mundial, bem 
como a consolidação da União Européia e o avanço de outras 
potências, como China e Japão, que nos confrontam com um 
curioso sistema híbrido de uma superpotência e distintas potên­
cias regionais.”
A POLÊMICA IDÉIA DE UMA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL
Ballón apontou como parte das mudanças, no contexto mundial, o 
surgimento de uma nova trama social transnacional, cujos protagonistas 
são atores não-estatais, que questionam, buscam influir e resistir, de dis­
tintas formas, à globalização. Esses atores compõem a chamada sociedade 
civil global, caracterizada porsua heterogeneidade e diversidade, em cuja 
configuração estão O N Gs internacionais, movimentos sociais globais, 
sindicatos, grupos ecologistas, feministas, étnicos, etc.
Conforme Ballón, essa heterogeneidade se expressa também nas diver­
sas visões e estratégias de açâo dos diferentes grupos. Ele citou exemplos 
da presença, sobretudo das ONGs internacionais e de uma parcela dos 
novos movimentos transnacionais, nas dinâmicas globais ligadas ao sis­
tema das Nações Unidas e, em menor medida, nas organizações multila­
terais, como a OMC, lembrando que a partir da década de 1990 “essa 
prática ‘institucionalizou um sistema de reuniões paralelas àquelas que 
realizavam os governos” . Salientou que essas organizações buscam respon­
der ao democrático e de participação na nova ordem mundial e que 
têm logrado êxitos e frustrações em suas tentativas de influir nas políticas 
globais. Mas chamou a atenção para o fato de que, muitas vezes, as O N Gs 
e movimentos do Norte, que possuem mais acúmulo de experiências e 
maior capacidade financeira, definem os conteúdos básicos das agendas, 
exportando-os para o Sul.
Já os movimentos mais tradicionais, para Ballón, adotam estratégias de 
mobilização mais direta, que resultam freqüentemente em confrontação, 
sobretudo visando a reduzir o déficit socî Á. e econômico da globalização, 
ou seja, o aprofundamento e a ampliação da desigualdade” . Para ele, esse
2 8
A sociedade civil nos espaços públicos internacionais: o lugar das ONGs
tema interessa especialmente ao Sul, onde “eliminam-se nao só o direito 
de participação como também os direitos sociais e econômicos de grande 
parte da população”.
Obviamente, essas diferenças de estratégias sao marcadas por um con­
junto de tensões. Assim, Ballón expôs algumas debilidades e desafios da 
sociedade civil global, cujo espaço mais significativo é atualmente o Fórum 
Social Mundial, em que se “administra uma relação complexa entre os 
chamados atores globaiifóbicos’ e atores globalitários’, um evento que per­
mite a expressividade e o difícil reconhecimento de todos eles” . Entre as 
debilidades e desafios, apontou: (a) a persistência de problemas de sobre- 
representação e sub-representação de todo tipo - país, religião, gênero, 
etnia, etc.; (b) as tensões freqüentes entre os níveis de ação — local, nacional, 
regional ou global; (c) a afirmação das diferentes identidades e a necessidade 
de construir alianças e confluências amplas; (d) as divisões entre as formas 
organizativas e as estratégias dos novos movimentos sociais, com as ONGs 
e as redes cívicas, de um lado, e os sindicatos e as formas político-partidárias, 
de outro; e (e) as diferenças estratégicas entre reforma ou ruptura com o 
capitalismo global e com a nova arquitetura institucional do poder.
Apesar das tensões internas e das debilidades desses atores e organiza­
ções, ele citou efeitos inegáveis gerados por sua ação, como: (a) o apoio e 
o reconhecimento da legitimidade do movimento social global por am­
plos segmentos da opinião pública; (b) a pressão crescente sobre governos 
e corporações transnacionais, obrigados freqüentemente a negociar; e (c) 
o surgimento de um espaço público supraterritorial de debate, reflexão e 
ação sobre questões e condições cruciais da vida, que envolvem um 
número crescente de pessoas em todo o planeta.
Conforme Ballón, a consolidação dessa sociedade civil global implica 
abarcar a diversidade e assumir a pluralidade sem, contudo, afetar as iden­
tidades próprias de seus diferentes atores, logrando desenvolver-se nos 
níveis nacional, region^ e global e articular-se em alianças e redes.
AS ONGs NO ESPAÇO GLOBAL
Ballón também analisou como atuam as ONGs nesse novo espaço glo­
bal, apontando alguns aspectos, como o protagonismo das ONGs interna­
cionais, sobretudo as do Norte, que muitas vezes nâo só subordinam como
2 9
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
dão suporte financeiro às ONGs do SuL Essas ONGs internacionais, con­
forme o conferencista, intervém em três grandes campos.
“O primeiro é esse campo em que se exercitam os direitos de controle 
e propostas cidadãs sobre os organismos internacionais e as empresas 
transnacionais. O segundo refere-se à promoção de um maior e mais 
efetivo controle social sobre os bens que são comuns a toda a 
humanidade, vinculando-se fortemente às questões relacionadas ao 
meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. Em um terceiro 
campo de ação, as ONGs agem como porta-vozes éticos de interesses 
mais gerais da humanidade, lutando para estabelecer convênios inter­
nacionais que sobredeterminem a atuação dos Estados, como os que 
tratam da defesa dos direitos humanos, por exemplo.”
Conforme Ballón, a visibilidade e os resultados obtidos pelas organiza­
ções não-governamentais fazem com que sua legitimidade seja questiona­
da por distintas instâncias, mesmo por aquelas instituições que mantêm 
espaço de diálogo com essas ONGs. Pergunta-se o que ou quem essas 
organizações representariam em contraste com governos eleitos democra­
ticamente ou com representantes internacionais que possuem mandato 
delegado pela população de seus países. Já aquelas corporações que são 
diretamente confrontadas pela atuação das ONGs não só questionam sua 
legitimidade como chegam a manter institutos para vigiar e levantar 
denúncias contra seu trabalho.
Parte dessas tensões, na opinião de Ballón, deve-se ao fato de as O NGs 
internacionais não fazerem:
“uma clara diferenciação entre a representação entendida como 
mandato ou delegação (de eleitores ou de bases sociais claramente 
definidas) e outra lógica, resultante de seu compromisso volun­
tário com a defesa e a promoção de algum bem público, de que 
não é representativa apenas de si mesma e que adquire legitimi­
dade com base em sua capacidade, aceita por outros, de influir na 
agenda pública.
Esse descuido obedece às próprias dinâmicas internas de muitas 
dessas organizações, que não aplicam necessariamente em seu interior
3 0
A sociedade civil nos espaços públicos internacionais: o lugar das ONGs
os mesmos critérios de transparência, informação e prestação de con­
tas que exigem de outros atores, nem estabelecem, em muitas ocasiões, 
mecanismos de debate democrático entre seus membros e aliados 
sobre os temas e agendas que priorizam”.
Para Ballón, “apesar das mudanças e dos avanços que se observam nesse 
terreno, é claro que esse continua sendo um dos pontos débeis de muítas 
organizações, que persistem em falar em nome dos pobres’ e excluídos 
sem atender com maior profundidade às exigências que supõem construir 
uma legitimidade própria”.
Especificamente sobre as O N Gs do continente latino-americano, 
Ballón apontou suas múltiplas identidades e sua história, lembrando que 
houve três gerações de ONGs; as missionárias e militantes dos anos de 
1970; as promotoras de democracia dos anos de 1980 e início da década 
de 1990; e as profissionais e até tecnocráticas da segunda metade da déca­
da de 1990 em diante, “que constituem um segmento heterogêneo, de­
finido ambiguamente e por negação - não-governamental” .
Conforme Ballón, “nessa heterogeneidade e diferenciação entre as 
ONGs, que articulam entre si e com outros atores da sociedade civil, 
coexistem vários discursos problemáticos”, definidos como dilemas:
• “a diferença entre quem se define como parte de um terceiro setor, 
não-lucrativo e filantrópico, de claro conteúdo neoliberal, e quem 
se define como parte da sociedade civil, na qual afirma uma iden­
tidade específica, baseada na defesa de interesses públicos e no 
compromisso com a constituição de uma esfera pública ampliada;
• a diferença entre quem defende o fortalecimento das organiza­
ções da sociedade civil e da esfera pública não-estatal e quem 
adota uma postura privatista, favorável ao processo de redução 
do Estado;
• a diferença entre quem acredita que a luta contra a pobreza deve 
ser feita por meio do fortalecimento da política social como 
expressão de direitos equem entende essa luta como assistencia­
lismo e filantropia”.
3 1
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
O problema, nos casos acima, é definir se “trata-se de instituições 
favoráveis ao esquema de dominação ou, ao contrário, de organizações 
que buscam ser favoráveis à sociedade e às suas demandas” . A despeito da 
importante visibilidade que as ONGs adquiriram na região, Ballón 
chamou a atenção para um desafio daquelas organizações que lutam por 
transformações e acreditam que um “outro mundo é possível” : é preciso 
firmar a identidade e ir além da imagem de associações privadas com 
finalidade pública.
Ele lembrou que as O N Cs da América Latina atuam no continente 
mais desigual e excludente do planeta, onde buscam “contribuir para 
modificar as relações sociais de poder, tanto econômico e político como 
simbólico”. Também enfatizou que a pobreza e a exclusão não resultam da 
falta de recursos ou da ausência de espaços democráticos, mas do fato de 
esses espaços e recursos serem apropriados por uma minoria.
Ballón ressaltou as estratégias das ONGs latino-americanas para for­
talecerem sua ação no espaço regional e, com base nessa ação regional, na 
agenda global. Entre essas ações figuram a atuação em redes, as articulações 
com diversos movimentos sociais, as campanhas como a do jubileu e a de 
oposição à Alca e a constituição de diversos fóruns. Todas essas iniciativas, 
conforme Ballón, buscam questionar o déficit democrático e a exclusão e a 
desigualdade social. “Mesmo em meio a dificuldades, como a heterogenei­
dade das alianças e a limitação de recursos, esses processos continuam 
avançando, visando a contribuir para mudar as relações de poder (nacional- 
regional-mundial) num mundo globalizado, lançando mão de estratégias 
tanto de participação e diálogo quanto de mobilização e ação mais direta.” 
Ter uma agenda própria nas sociedades nacionais também é funda­
mental para as ONGs. Conforme Ballón, é no âmbito nacional que as 
organizações estruturam sua legitimidade, “que é uma construção sociaJ 
sustentada na articulaçâo de coalizões nacionais com distintos movimen­
tos e atores sociais, como condição para possibilitar sua açâo interna­
cional, com base em sua ação nas sociedades civis nacionais”.
Para isso, entretanto, faz-se necessário:
“um esforço pela recuperação da política, o que supÕe a construção de 
uma esfera pública não-estatal, que implica o reconhecimento de ou­
tros múltiplos, diversos e plurais atores. Em segundo lugar, trata-se da
3 2
A sodedade dvil nos espaços públicos internadonais: o lugar das ONGs
politização do social como parte central da formação de uma comu­
nidade política, o que implica o restabelecimento radical da discussão 
dos temas da pobreza e da exclusão como parte da geração de uma 
cidadania universal e transnacional. Finalmente, trata-se de impul­
sionar e apoiar os distintos processos de vigilância e controle social 
sobre o Estado, imprescindíveis neste novo contexto”.
Conforme Ballón, na açãó e reflexão das ONGs em interação com ou­
tros atores da sociedade civil devem ser incluídos temas como: (a) “a 
relação entre globalização, soberania e cidadania no contexto da disputa 
de sentido do surgimento de cidadanias e sociedades civis globais; (b) a 
dívida externa, que é parte da nova arquitetura financeira internacional e 
do ordenamento do comércio mundial; (c) o significado dos processos de 
integração regionai, que não podem se limitar aos mercados e às empre­
sas, como estratégia de integração de sociedades plurais e de construção de 
identidades compartilhadas; e (d) os direitos econômicos, sociais e cultu­
rais como ampliação dos direitos humanos”.
D e s c o n s t r u ç ã o d o s m it o s
Nelson Villareal retomou alguns pontos apresentados por Ballón, 
especialmente o papel das ONGs no processo global e os mitos da glo­
balização. Também falou da diversidade e heterogeneidade das ONGs, 
bem como de consenso e dissenso.
Ele salientou a necessidade de ampliar o conceito de mito e questionar de 
forma crítica os mitos que fundamentam a globalização, buscando maneiras 
de desconstruí-los e de criar novos mitos, para reconstruir alternativas.
“Como é que podemos transitar, por exemplo, sobre o mito da inte­
gração, o mito da reciprocidade, o mito da regionalização autônoma? 
Não consideramos que o mito do livre-comércio seja o de querer 
igualdade, mas qual é o mito da economia solidária que constitui a 
possibilidade de uma alternativa? Quais sao os mitos que hoje 
dinamizam a sociedade civil global, a sociedade civil local e regional, 
que dão conta de sua diversidade e de sua complexidade?”
3 3
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
Ele lembrou que os mitos são mobilizadores dos processos culturais e 
sociais e que, portanto, devemos “ser capazes de ampliar, na construção de 
alternativas, os mitos da concepção de igualdade e reciprocidade que mobi­
lizam as organizações” .
Villareal chamou a atenção para o processo de “desgoverno” que os 
Estados-nação estão vivendo no mundo globalizado, como mencionou 
Ballón, e defendeu uma “busca da sociedade civil local e nacional para 
constituir governanças, para constituir fatores que dêem capacidade de 
sinergia à sociedade”. Evidenciou que mundialmente também se busca 
interatuar para constituir uma governança global. Nesse aspecto, salientou 
a importância da discussão sobre o papel da O N U nas relações de confli­
to geradas pela globalização, bem como a importância dos marcos insti­
tucionais, como a Corte Penal Internacional.
Ao discorrer sobre a heterogeneidade e a diversidade dos atores que 
compõem a sociedade civil global, Villareal citou o Fórum Social Mundial 
como exemplo de articulação de atores num contexto não apenas de he­
terogeneidade, mas também de fragmentação dos próprios sujeitos sociais. 
Lembrou que, “de alguma maneira, a idéia de que reconhecemos a diver­
sidade, que somos distintos, tem sido uma boa estratégia para dizer qüe 
discrepamos”, mas não descartou as vantagens da atuação conjunta. Ao 
contrário, apontou o diálogo entre atores sociais como um desafio 
necessário à construção de alternativas e de processos que provoquem 
impacto sobre organismos e formas institucionais.
Outro ponto enfatizado por Villareal, com base na exposição de 
Ballón, foi o conflito entre sociedade civil e terceiro setor, lembrando 
que significam esferas distintas, especialmente porque a primeira centra 
sua lógica na participação cidadã, que, “em última instância, pensa obje­
tivos políticos que vão além das estruturas que tradicionalmente deno­
minam-se políticas. Mas as lógicas que se tem projetado como terceiro 
setor, uma articulação entre Estado e mercado, não fazem a definição da 
iniciativa cidadã”.
Villareal abordou o conflito construção da cidadania versus assisten­
cialismo, que representa um grande dilema para as organizações sem fins 
lucrativos em geral. No entanto, salientou que nas sociedades desiguais e 
excludentes, como as do Sul, os temas de atenção direta devem estar liga­
dos aos processos de promoção e consolidação estrutural de direitos.
34
A sociedade civil nos espaços públicos internacionais; o lugar das ONGs
Como exemplo de atenção direta, citou o programa Fome Zero, imple­
mentado no Brasil pelo governo Lula.
O conflito entre a construção de subjetividades e os processos de 
transformação material também foi analisado por Villareal. “De alguma 
maneira, estávamos convencidos de que, em algum momento, as 
transformações econômicas levariam a transformações em sociedades 
igualitárias. Não nos demos conta de que os conflitos de desigualdade 
econômica e social não levariam por si mesmos à igualdade se não se 
constituíssem simbolicamente e politicamente formas de identidade de 
gênero, de igualdade étnica ou social, por exemplo.” Villareal reafirmou 
sua aposta nas sociedades igualitárias e perguntou: “como, então, em 
lugares distintos, que não se reduzem a um conjunto, constrói-se criati­vamente uma governança nova?”, lembrando que é possível sistematizar 
esse processo nos âmbitos local, regional e global.
Ao comentar a questão sobre a crise do Estado e a sociedade civil, le­
vantada pela platéia, Villareal salientou que é preciso alterar a lógica atual 
e pensar que, “nas últimas três décadas, não houve uma crise do Estado, 
mas uma crise do público”, propondo uma reconstituição do público, 
fundamentada pela interação de atores diversos e não apenas pelo Estado.
Ele lembrou que as sociedades não se constituem de maneira linear, 
mas por processos de conflito. Assim, mesmo quando ONGs e partidos 
possuem objetivos políticos comuns, como a construção de uma 
sociedade igualitária, há um conflito na forma como se desenvolvem e se 
constituem. “E trágico o fato de os governantes julgarem as ONGs li­
neares. Também é trágico as ONGs acreditarem que os temas e formas de 
governar podem ser resumidos da mesma maneira. Isso é um engano, pois 
o exercício de governo apresenta restrições institucionais distintas das 
restrições comuns à atuação no âmbito da sociedade civil.”
Sobre a construção de consensos, Villareal foi enfático:
“Perigosamente, assumimos a idéia de que os consensos nos dão 
maior fortaleza. Os consensos devem ser o resultado de um processo 
de contradição, de controvérsia e de dissenso. Se logramos processar 
controvérsia e dissenso, com o objetivo de alguns consensos básicos, 
vamos operar mudanças, Se cremos que se impõem consensos ou se 
temos medo de discutir dissensos e gerar controvérsias, a sociedade
3 5
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
estanca. As ONGs têm de processar esses temas de imediato, porque 
a mudança do marco político e a mudança do processo da sociedade 
regional e globai demandam a intuição que tivemos nos anos de 
1970 e 1980, em que colocar sobre a mesa o dissenso e a discrepân­
cia não significava negar a busca de consensos básicos” .
D e s a f io s d o c o n s e n s o , da d e m o c r a c ia 
E DA REPRESENTAÇÃO
Para Nalu Faria, o novo momento político traz à tona, mais uma vez, 
o debate sobre a identidade das ONGs e sobre seu papel na sociedade. “Os 
novos espaços que estão se configurando na sociedade civil, seja em nível 
nacional ou global, têm nos dado grandes oportunidades de repensar o 
nosso lugar e de repensar a nossa ação.” Neste novo contexto, há uma 
questão fiindamental para ONGs e movimentos sociais: o projeto políti­
co com que cada um(a) se coloca nesses espaços.
Conforme Nalu, esse projeto político e a construção de consensos com 
outros movimentos e organizações são facilitadores da atuação das ONGs, 
embora a construção de consensos ainda seja um grande desafio. Ela 
apontou como uma das causas de tensões entre ONGs e movimentos 
sociais a suposta especialização das ações, a'dicotomia entre contestação e 
proposição, já lembrados por Fátima Mello (veja o texto O desafio de 
construir movimentos e articulações permanentes), “como se os movi­
mentos mobilizassem e pressionassem e as ONGs mediassem e pro­
pusessem”. No entanto, lembrou que, quando “se formam redes, cada um 
é um ator, cada um pode propor e protestar, seja como O N G ou movi­
mento”. Ela citou o exemplo da campanha contra a Alca e do plebiscito 
no Brasil, apresentado por Fátima Mello, resultados de uma importante 
aliança entre ONGs e movimentos sociais.
Tendo em vista o projeto político com os quais as ONGs se apresen­
tam nos novos espaços, como o Fórum Social Mundial, as campanhas 
transnacionais contra a guerra e a atuação no âmbito da OMC, entre ou­
tros, Nalu chamou a atenção para o fato de que o “neoliberalismo não só 
reestruturou as políticas econômicas e a discussão sobre a soberania do 
Estado, mas reconfigurou as subjetividades, o cotidiano das pessoas. Por 
isso, esse debate político em que as ONGs se inserem não é só econômico
3 6
A sodedade civil nos espaços públicos internadonais; o lugar das ONGs
e de transformações estruturais, mas deve estar combinado com o que tem 
significado na vida das pessoas e representar mudanças em seu cotidiano, 
em particular dos setores mais pobres e oprimidos, como o das mulheres, 
dos negros e dos indígenas” .
Ao enfatizar que a participação em redes potencializa a ação, Nalu lem­
brou que essa atuação conjunta, além do desafio do consenso, implica 
refletir sobre a construção de espaços democráticos, com propostas mais 
participativas, que envolvam todos os integrantes da rede, e sobre a questão 
da representação, um tema que ainda tensiona as organizações, mas é fun­
damental num processo de construção coletiva. Mais uma vez, ela reforçou 
o tipo de atuação que o novo contexto impõe: “temos de pensar também 
a nossa intervenção política, reafirmando a importância da regulação nor­
mativa e da idéia de direitos, mas articulando com a questão das transfor­
mações culturais e estruturais, pois não é possível pensar a nossa açâo nes­
ses espaços internacionais sem articular todas as dimensões”.
Ao comentar questões da platéia sobre a perda de poder do Estado, 
Nalu afirmou que discorda “desta idéia que às vezes paira entre nós, como 
Ah!, ganhamos o governo, mas nao ganhamos o poder’. Eu considero que 
uma eleição como a do Lula, que teve uma expressiva votação, não toma o 
poder e não tem condição, de fazer a revolução, mas tem muito poder. E o 
governo pode fazer muitas coisas mesmo em condições adversas” . Ela lem­
brou que isso difere de país para país, mas, no caso do Brasil, existe uma 
clara disposição da sociedade civil organizada de fazer um diálogo diferen­
ciado com o governo, embora essa experiência não esteja sendo aproveita­
da em sua total potencialidade. Salientou que, “se uma coalizão partidária 
se dispôs a ganhar o governo para alterar a política anterior, o esforço tem 
de ser nesse sentido, mesmo que isso implique conflitos” . Para Nalu, isso é 
válido também nas práticas das ONGs, pois a atuação em redes potencia­
liza, faz crescer e ajuda a enfrentar as dificuldades, sendo “extremamente 
importante para aprender a romper com a fragmentação e construir a idéia 
de sujeitos coletivos, de atores coletivos”.
Eia concluiu reafirmando a declaração de Eduardo Ballón de que o ca­
minho das pedras é conquistar uma mudança na relação de poder em liga 
mundial. Lembrou que esse tem sido o objetivo das ONGs no novo 
espaço internacional e que as mudanças de regras nos organismos multi­
laterais devem estar articuladas a uma mudança não só de poder entre os
3 7
países como também dentro dos próprios países. Ressaltou que “não é 
possível construir uma nova sociedade, um novo paradigma, baseada na 
igualdade, se não houver o envolvimento do maior número possível de 
pessoas e se não houver a disposição de construir sínteses”.
3 8
o P A P E L D A P R O D U Ç Ã O DE 
C O N H E C IIV IE N T O N A 
T R A N S F O R M A Ç Ã O S O C I A L
Esse tema foi apresentado pelo professor Boaventura de Sousa Santos, 
doutor em Sociologia e membro do Centro de Estudos Sociais da 
Universidade de Coimbra. Ele expôs sua teoria da sociologia das ausências e 
das emergências e instigou os(as) participantes a adotarem um novo tipo de 
racionalidade, capaz de ampliar o presente e possibilitar a implementação de 
açòes transformadoras. Expôs, também, a teoria da tradução, que permite aos 
diferentes movimentos da sociedade civil, sobretudo no âmbito do Fórum 
Social Mundial, maximizar o que os une e minimizar o que os separa.
Após a apresentação de Boaventura, formou-se uma mesa de exposição 
e debate, erh que a professora Leilah Landim, o professor Luiz Eduardo 
Wanderley e a professora Lúcia Xavier discutiram o tema ONGs e 
Produção de Conhecimento, que compõe o próximo capítulo. Eles fize­
ram várias referências à conferência de Boaventura, bem como aõ conteú­
do de sua obra (livros e artigos). A platéia questionou o professor acerca 
de fluxo de conhecimento e democracia nas ONGs, construção coletiva de 
saberes, desigualdades raciais e de gênero, dentre outros.Os comentários 
dele foram incluídos no final do relato a seguir.
39
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
DIVERSIDADE DE CONHECIMENTOS
Boaventura iniciou a conferência expondo “as relações entre o conhe­
cimento e a democracia, entre o conhecimento e o poder, entre o co­
nhecimento e a globalização contra-hegemônica”. De acordo com ele;
“o conhecimento ratifica e legitima determinadas práticas e, obvia­
mente, deslegitima, marginaliza e suprime outras práticas. Assim, é 
importante analisar calmamente as relações sociais de conhe­
cimento, na medida em que provavelmente são fundamentais para 
entender as relações sociais decorrentes do tempo e, particular­
mente, no nosso tempo. Assim, devemos dar atenção cada vez maior 
aos processos de conhecimento, para exatamente conhecermos quais 
são as novas formas de desigualdade que emergem na sociedade”.
O professor salientou que existe um conhecimento hegemônico, além 
de vários outros conhecimentos.
“Vivemos em uma sociedade-conhecimento. Na sociedade da 
comunicação, da informação e do conhecimento. Raramente faze­
mos uma análise crítica dessa sociedade-conhecimento, porém a 
globalização neoliberal não existe sem ela. Nao existe conhecimento 
em geral e, se não existe conhecimento em geral, também nao existe 
ignorância em geral. Portanto, há conhecimentos e há ignorâncias. 
Ter conhecimento é tornar-se sabedor por,meio de um processo para 
vencer um certo tipo de ignorância. Ser ignorante é ser ignorante de 
um certo saber, Há, portanto, vários tipos de conhecimento e vários 
tipos de ignorância. Assim, é importante ver as diferentes trajetórias 
por intermédio das quais se passa da ignorância para o saber.”
Conforme Boaventura, todo conhecimento constitui-se de um processo, 
“uma trajetória entre o ponto A, que é a ignorância, e o ponto B, que é o co­
nhecimento”. Ressaltou que na modernidade ocidental existem dois grandes 
modelos de conhecimento, “que naturalmente chamam atenção para dois 
processos de construção de saber, com base em duas formas de ignorância”, 
sendo esses o conhecimento-regulação e o conhecimento-emancipação.
4 0
0 papel da produção de conhecimento na transformação social
“O conhecimento-regulação é um conhecimento cujo ponto de 
ignorância se chama ‘caos’ e o ponto de saber denomina-se ‘ordem’. 
Conhecer é passar do caos para a ordem. Essa é a forma de conheci­
mento dominante. Mas a própria modernidade ocidental tem uma 
outra forma de conhecimento: o conhecimento-emancipação. Aqui a 
ignorância é colonialismo, é transformar o outro em objeto e não 
reconhecê-lo como sujeito, e o saber é solidariedade. O conhecimento- 
emancipação conhece partindo do colonialismo para a solidariedade.”
Boaventura ressaltou que esses dois tipos de conhecimento teorica­
mente coexistem na modernidade Ocidental. Contudo, evidenciou qúe:
“ao longo dos últimos duzentos anos, o conhecimento-regulação 
dominou totalmente o conhecimento-emancipação, tornando-se hege­
mônico. Ao se transformar em conhecimento hegemônico, o co­
nhecimento-regulação recodificou a seu jeito os termos do conheci- 
mento-emancipação. Assím, o que era ignorância, colonialismo, no 
conhecimento-emancipação, passou a ser saber e ordem, e o que era 
sabér, solidariedade, passou a cáos”.
Ele propôs um resgate do conhecimento-emancipação, pois:
“a compreensão do mundo é muito mais vasta do que a compreen­
são ocidental do mundo. O conhecimento-regulação transformou a 
compreensão ocidental na compreensão dó mundo e, ao fazê-lo, 
assumiu uma forma de racionalidade extremamente estreita. E é essa 
racionalidade que condiciona muito do nosso trabalho. Nós, na 
prática das nossas associações, muitas vezes não damos atenção a esse 
detalhe; Que conhecimento usamos ao trabalhar com as populações, 
que formas de conhecimentos reivindicamos, que autoridade temos? 
Nosso conhecimento por vezes boicota as nossas intenções e, por­
tanto, muitas vezes, as intenções de libertação e de emancipação tor­
nam-se perversamente ações de regulação, de repressão e de destrui­
ção da emancipação. Assumimos criticamente que o conhecimento 
científico é a forma de conhecimento rigoroso, mas esse conheci­
mento científico é um conhecimento de regulação que nos impede
41
0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas
de elaborar uma compreensão mais ampla do mundo. E o que isso 
significa? Se a compreensão do mundo é restringida, ocultamos a 
experiência social. A irracionalidade que perpassa muito nosso tra­
balho nas ciências sociais e no ativismo é uma irracionalidade que 
produz duas conseqüências fatais para repensar a emancipação 
social. Ela desperdiça a experiência social ao contrair o presente. E 
contrai o presente porque oculta a experiência.”
De acordo com o professor:
“a sociedade vive hoje num mundo em que o presente pouco conta, 
vive na ânsia do futuro e considera o presente um momento muito vul­
gar - e é um presente relativamente restringido. Se vivemos sempre no 
presente, por que ele é tão passageiro e estamos sempre pensando no 
futuro ou no passado? A razão pela qual nós temos essa concepção de 
presente, totalmente contraído, é porque a racionalidade que nos do­
mina é uma racionalidade que restringe a experiência do presente. O 
presente é feito de muitas experiências que não sao contabilizadas por 
nós, que são marginalizadas, suprimidas e desperdiçadas. Se tivéssemos 
um modelo de racionalidade mais amplo, que permitisse conhecer 
essas experiências, nós ampliaríamos o presente, nós conheceríamos 
toda essa riqueza que está de fato ao nosso alcance.
Essa racionalidade contrai o presente porque tem uma concepção 
de totalidade muito estreita, que são as dicotomias, como a dicotomia 
norte/sul, homem/mulher, natureza/cultura, tradicional/moderno. 
Fora da dicotomia, as coisas nao são sequer analisadas por nós. Por 
exemplo, o que é a mulher que independe da relação com o homem? 
O que há no sul que não depende da relação com o norte ou que nao 
é captável pela hierarquia norte/sul? Perguntar para além dessas dico­
tomias é muito difícil, precisamente porque o modelo de racionalidade 
que temos não nos permite pensar nisso. No caso de países desen­
volvidos/subdesenvolvidos, não somos capazes de pensar que os países 
subdesenvolvidos podem estar à frente dos desenvolvidos em alguns 
setores. E é exatamente essa forma de irracionalidade que contrai o pre­
sente, impede-nos de ter uma compreensão mais arhpla do mundo e 
nos faz desperdiçar experiências” .
42
SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS
Boaventura defendeu um
“modelo de racionalidade mais amplo, uma racionalidade que 
dilate o presente e traga outras experiências, que de outra maneira 
nâo somos capazes de captar. E, para isso, é preciso superar aquela 
idéia de totalidade e de dicotomias, vamos dizer assim, mecânicas, 
em que a racionalidade ocidental nos capturou. E isso se faz por um 
procedimento que eu chamo de a sociologia das ausências’.
Muito da experiência social que nós nâo vemos é produzida ativa­
mente como não-existente. Aquilo que não existe é produzido ati­
vamente para não existir, isto é, não é um ato fortuito, é produzido 
para estar ausente, suprimido, oculto da nossa imaginação, do nosso 
conhecimento e da nossa racionalidade. Assim, temos de fazer uma 
sociologia dessas ausências para trazer para nossa presença esses obje­
tos que são objetos impossíveis e transformá-los em objetos pos­
síveis, para transformar realidades que nâo existem em realidades 
que existem. A realidade não pode se reduzir àquilo que existe. Se 
nós reduzimos a realidade àquilo que existe, somos conformistas” .
Boaventura indicou “cinco grandes modos de produção de não- 
existência, que são cinco monoculturas que dominam a nossa raciona­
lidade, responsáveis por todo esse desperdício, ocultação e marginalização 
da experiência”, propondo denunciar tais monoculturas e substituí-las 
por ecologias.
“A primeira monocultura é a do saber e do rigor do saber, segundo 
a qual o conhecimento

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