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o PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NAS NOVAS PAUTAS POLÍTICAS % Os meios de comunicação, os movimentos sociais e os ciclos de conferências da ONU nos mostram, quase todos os dias, o consenso global sobre a necessidade de resgatar valores universais, de respeito aos direitos humanos e de pluralismo cultural como pilares de um futuro justo e sustentável. Por outro lado, a globalização econômica parece nos manter ^ distante de um pacto de cooperação entre as nações que possa garantir a consolidação de um mundo mais igualitário. Diante de uma dinâmica internacional de forças antagônicas, que alimentam a participação da sociedade na construção de novos valores e, ao mesmo tempo, reforçam políticas excludentes, qual é o papel da sociedade civil, sua força e suas motivações? Em busca de contrabalançar o poder do mercado e dos governos, a sociedade civil vem conjugando os esforços práticos de influenciar positivamente as políticas públicas com a reflexão permanente sobre seu papel e o escopo de suas ações. 0 PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NAS NOVAS PAUTAS POLÍTICAS o PAPEL DA S O C IED A D E CIVIL NAS NOVAS P A U T A S P O L ÍT IC A S E D I T O R A ^ Peirópolis 7Í?U Copyright© 2004 by Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) EDITOKA ^ 0 Peirópolis Editora responsável Renata Farhat Borges Coordenação editorial Noelma Brocanelli Preparação e revisão Salete Brentan Projeto gráfico e editoração eletrônica João Bosco de Oliveira Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) Organização e coordenação editorial Denise Gomide e Sérgio Haddad Editora responsável Isabel Moraes Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) O papel da sociedade civil nas novas pautas políticas - São Paulo: Peirópolis; A B O N G , 2004. 1. Globalização 2. Polídca mundial 3. Sociedade civil I. Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais. ISBN 85-7596-037-7 04-4556 CDD-327 índices para catálogo sistemático: 1. Política internacional : Papel da sociedade civil 327 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 6 0 5 0 4 0 3 0 2 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Fundação Peirópolis Ltda. Rua Girassol, 128 - Vila Madalena 05433-000 — Sâo Paulo — SP Tel. (55 11) 3816-0699 e fax (55 11) 3816-6718 e-mail: editora@editorapeiropolis.com.br wvm.editorapeiropolis.com.br mailto:editora@editorapeiropolis.com.br A P R ES EN T A Ç Ã O A s novas tecnologias da connunicação, os nnovimentos sociais e os grandes ciclos de conferências sociais da Organização das Nações Unidas (ONU) evidenciarann, de maneira crescente, o consenso glo bal sobre a necessidade de valores universais, de respeito aos direi tos humanos e ao pluralismo cultural, bem como de preservação dos bens naturais e da sociodiversidade do planeta. Ao mesmo tempo, o avanço da globalização econômica, das políticas neoliberais e tam bém das forças imperiais, ,de guerra e do terrorismo apontou para o fracasso da construção de um mundo mais igualitário e solidário. A desigualdade socia! e a distância entre países e entre seres humanos, se ampliaram de tal forma que a perspectiva de um mundo mais solidário e fraterno tornou-se ainda mais longínqua. Os(as) pobres continuam sendo as grandes vítimas da intolerância e da ganância socioeconômica, sejam eles(as) os(as) imigrantes ou minorias raciais do Norte, sejam as grandes populações dos países do Sul. O neoliberalismo, com suas conseqüências perversas, como a redução dos direitos sociais e a crescente concentração de renda; a incapacidade dos sistemas econômicos giobais de solucionarem os grandes problemas da humanidade; e o modo de operação e o papel social dos organismos internacionais do sistema Bretton Woods con formam uma pauta de interesse e indignação entre aqueles(as) que colocam suas vidas a serviço da construção da democracia, da justiça social e do desenvolvimento sustentável. Pessoas que se unem para ajudar outras pessoas não são novidade na história da humanidade. O novo é a extensão dessa presença na esfera pública e sua escala global. As ações resultantes desse movi mento variam de amplitude e diversidade; suas fontes de inspiração podem ser desde motivos religiosos, de solidariedade e filantropia, até motivos de natureza política. No-mundo inteiro, a sociedade civil interage e busca contrabalançar o poder do mercado e dos governos. O colapso dos regimes socialistas do Leste Europeu e a derrota das ditaduras civis e militares de grande parte dos países do Sul criaram um ambiente de maior complexidade política. As crises dos sistemas e estruturas de governo, unidas às crises dos sistemas de repre sentação partidária, deslocarann a atenção para â capacidade e os interesses da sociedade civil organizada e sua potencialidade no campo da intervenção social. Então, que papel a sociedade civil pode cumprir, qual a sua força, quais as suas motivações? Na verdade, assim como os interesses do mercado e dos governos se apresentam de forma diversa e contraditória,i os interesses da sociedade civil também o são. Nesse campo, coexistem diferentes identidades políticás, em que se manifestam disputas por hegemo nias de idéias e poder. As organizações não-governamentàis (ONGs) se inserem no campo da sociedade civil e, como organizações pri vadas, expressam em suas missões os interesses políticos de seus(süas) sócios(as) e apoiadores(as), em um universo de contra dições e valores diversificados. Ao lado de outros atores, como sindicatos, movimentos sociais e populares, pastorais e demais organizações da sociedade civil, as ONGs cada vez mais têm ganho visibilidade e despertado o interesse da sociedade global, provocando debates sob diferentes perspec tivas. Nesse contexto, duas questões têm sido freqüentes: em primeiro Jugar, o papel social das ONGs, sua natureza, seu sentido è sua importância política diante dos demais atores da sociedade civil; em segundo, sua forma de atuação, seus mecanismos de intervenção na esfera pública, suas alianças e suas ações em redes temáticas e de interesses comuns nos planos nacional e internacional. O seminário O papei da sodedade civil nas novas pautas po líti cas, documentado nesta publicação, é parte das ^ações desenvolvi das pela Associação Brasileira de Organizações Não Governamen tais (Abong),'fundada em 1991, que vem se constituindo em um importante ator da sociedade civil, ao congregar um conjunto de ONGs que trabalham e se identificam com a luta por cidadania e justiça spcial. O seminário, promovido entre 1- e 3 de setembro de 2003,' foi estruturado com base na necessidade de debater e con- textualizar o lugar da sociedade civil e o papel das ONGs, tendo em vista as mudanças atuais na conjuntura política naciorial e inter nacional, por meio do aprofundamento e da construção de con sensos. O objetivo foi estimular a reflexão, com a participação de organizações originárias de diferentes países, orientado pelos seguintes eixos: • Os desafios da sociedade civil na nova dinâmica internacional e nacional: globalização, guerra, hegemonia e contra-hegemonia, império, formas de cooperação internacional, democracia e os novos movimentos sociais. • A sociedade civil nos espaços públicos nacionais e interna cionais: o lugar das ONGs nas suas relações com movimentos sociais, partidos políticos, Estado, espaços públicos sociais e organizações internacionais multilaterais. • As ações e as estratégias da sociedade civil; as relações entre ativismo e produção de conhecimento para transformação social e garantia de direitos. Essa reflexão se realizou com base em um conjunto de indagações em pauta entre organizações que, partindo de um compromisso social efetivo, colocam-se em campo com o propósito de buscar alternativas aos atuais desafios, especialmente no que diz respeito à promoção e ao respeito aos direitos humanos e sociais e à democracia; ao combate à pobreza, à exclusão social e a qualquer espécie de discriminação e preconceito; à busca de alternativas de desenvolvi mento sustentável; e ao fortalecimento e à promoção da cidadania e da participação política e cultural de todos os setores da sociedade. Entre essas indagações, estão os acontecimentos políticos interna cionais, especialmente as ações de guerra desencadeadas pelos Estados Unidos (EUA), expressão do controle hegemônico exercido pelo império norte-americano no mundo da comunicação, da cultura, da política, da economia e do poder militar. Figuram entre as con seqüências mais recentes o rompimento do compromisso com o mul tilateralismo, o esvaziamento do papei da ONU e o reforço e o atendimento às necessidades do mercado globalizado. Por outro lado, a ampliação da articulação entre os movimentos sociais contra a globalização e a base estrutural que a favorece - Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI) - ou mesmo as ações em defesa da paz e contra a guerra configuram a contestação da ordem mundial e das atuais estratégias de aprofundamento do modelo econômico globalizado. No âmbito nacional, o governo Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta desafios importantes. Eleito em conseqüência do esgotamento do modelo proposto pelo governo anterior e da ampliação do movimen to democrático, somado ao desejo de mudança de grande parte da população, o governo Lula precisa responder à enorme demanda social e à expectativa que sua eleição gerou, com propostas diferen tes das contidas na política anterior, em um quadro de constrangi mentos no plano econômico e de agravamento das condições sociais. A ênfase na constituição de espaços de reflexão sobre o papel da sociedade civil e o lugar das ONGs na conjuntura nacional ejnterna- cional, por meio deste seminário, preparou a Assembléia Geral das associadas da Abong, que ocorreu na seqüência, entre os dias 3 e 4 de setembro de 2003. Nossos objetivos ao preparar a programação foram: (a) destacar o papel político da sociedade civil em busca da transformação e alteração da atual ordem mundíaf, em defesa dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais; (b) refletir sobre a identidade e o lugar das ONGs nos espaços públicos nacionais e internacionais, nas novas conjunturas políticas; :e (c) debater as estratégias e ações ativas e reflexivas em busca do fortalecimento e ampliação da capacidade de controlar as políticas públicas e de influir sobre elas, de maneira crítica e comprometida, visando a atender às demandas sociais. Esta publicação da Abong traz as discussões promovidas por quase duas dezenas de conferencistas e debatedores(as), enrique cidas com as contribuições da platéia, cujos(as) participantes eram oriundos(as) de diferentes segmentos sociais. A Abong agradece à Fundação Ford, que apoiou o seminário; ao Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas, que disponibilizou o iocal para a realização do evento; e à Asociación Latinoamericana de Organizaciones de Promoción (Alop),, que se encarregou das passagens e estadias dos representantes de associa ções irmãs de ONGs da América Latina. Sérgio Haddad (Presidente da Abong nas gestões 1998-2001 e 2001-2003 e atual d iretor de re1açõesi internacionais) sumario A NOVA DlISÍÂMiCA INTERNACIONAL E OS DESAFIOS DA SOCIEDADE CIVIL 11 Mobilização mundial 11 0 desafio de construir movimentos e articulações permanentes 14 MULTILATERALISMO: GOVERNANÇA INTERNACIONAL E O PAPEL DA 19 SOCIEDADE CIVIL 0 contrapeso da opinião pública 20 Democratização dos organismos multilaterais 21 A SOCIEDADE CIVIL NOS ESPAÇOS PÚBLICOS INTERNACIONAIS: O LUGAR 25 DAS ONGs Os mitos da globalização 26 A polêmica idéia de uma sodedade civil global 28 As ONGs no espaço global 29 Desconstrução dos mitos 33 Desafios do consenso, da democracia e da representação 36 O PAPEL DA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 39 Diversidade de conhecimentos ' 40 Sociologia das ausências 43 Substituir monoculturas por ecologias 46 Sociologia das emergências 48 ONGs E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO 55 Entre a academia e as ONGs 56 A construção do conhecimento/pensamento 59 Produção de conhecimento e silêncio sobre o racismo 64 A SOCIEDADE CIVIL NAS PAUTAS POLÍTICAS NACIONAIS 69 Guerra de posições 70 Ocupar trincheiras na guerra de posições 74 Quem pauta a pauta política nacional? - 75 RELAÇÕES ENTRE ESPAÇOS PÚBLICOS NACIONAIS E SOCIEDADE CIVIL 79 Alargar a democracia e ampliar a governabilidade 80 Diferença de agendas 83 Exercício de socialização do poder 84 A N O V A D I N A I V I IC A I N T E R N A C I O N A L E O S D E S A F I O S D A S O C I E D A D E C I V I L Esse foi o tema da conferencia de abertura do seminário, apresentado por Christophe Aguiton, membro da diretoria da Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac/França), e Fátima Mello, secretária-executiva da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip) e coordenadora de relações internacionais da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). Eles abordaram, entre outras, questões como as debilidades da globa lização; a crescente força de um movimento social, contra-hegemônico, que está esvaziando a legitimidade do modelo neoliberal; a atuação em rede e a construção de consensos; o desafio de construir movimentos e articulações permanentes; e a necessidade de fazer com que os movimentos sejam enraizados na sociedade, conquistando as lutas cotidianas e estabe lecendo pontes entre a agenda global e as questões que afetam o dia-a-dia das pessoas. Mo b il iz a ç ã o m u n d ia l Christophe Aguiton iniciou sua exposição salientando a importância do recente ciclo de mobilização mundial, especialmente contra a invasão do Iraque pela coalizão EUA-Reino Unido, Essa onda, “jamais ocorrida em nível internacional, começou com a luta contra a globalização neoliberal e também contra as guerras que aconteceram depois do 11 de Setembro', // 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas englobando também questões ecológicas, feministas e sociais” . Ele com parou as mobilizações atuais com as ocorridas na década de 1960 e desta cou as diferenças (para melhor) do atual ciclo, como a ligação com os movimentos populares, agora mais rápida e mais profunda. Ao abordar a situação internacional, Aguiton constatou que a aparente semelhança das políticas na Europa, no Japao e nos Estados Unidos, bem como o papel e o poder real de instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OM C), o Fundo Mone tário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, levam a superestimar o poder da globalização neoliberal. “Em meu ponto de vista, porém, a globalização neoliberal é provavelmente muito mais débil do que geral mente pensamos.” Para evidenciar essa debilidade, ele lembrou que houve uma primeira fase de globalização entre cerca de 1850 e 1880, na Europa, e fez uma analogia entre a situação atual da globalização e o fim dessa etapa pio neira. Conforme Aguiton, esse primeiro período de globalização se rompeu inicialmente na Alemanha, por voka de 1870, quando o contexto histórico, a crise econômica e social e a eclosão dos movimentos de massa levaram o chanceler Otto von Bismarck a adotar, entre outras, medidas de proteção aduaneira, exemplo que foi seguido pelas grandes potências, como França, Inglaterra e Estados Unidos. Uma das conseqüências dessas medidas foi um papel mais importante dos Estados na redistribuição de renda e na proteção social, conferindo aos operários ' melhores condições de vida em relação ao período anterior. Para Aguiton, há muitas semelhanças entre a globalização do final do século XIX e a atual, especialmente o peso da crise econômica — que leva os grandes empresários e as grandes multinacionais a darem prioridade à defesa de seu terreno e do próprio mercado — e a força do movimento social. “E essa força do movimentosocial pressiona a única coisa que se pode pressionar, que sâo os Estados nacionais”, visando a conquistar me lhores condições de trabalho, maiores salários e acesso à terra, entre outros direitos. Essa pressão tem custo e conseqüência política para os estados. Aguiton apontou o fracasso do Consenso de Washington- como mais uma prova da debilidade da globalização. Ele expôs a expectativa gerada pela ideologia do Consenso de Washington, bem como a adoção de suas propostas como única alternativa após a derrocada da União Soviética e .72 A nova dinâmica intemacional e os desafios da sociedade civil da Guerra do Golfo, “quando se tornou o credo de todos os dirigentes do mundo Ocidental, alimentando um otimismo segundo o qual, com a vitória do neoliberalismo, o mundo iria conhecer um crescimento infini to, tornar-se democrático, redistribuir a renda de maneira natural, sem choque, sem dificuldade, sem problema”, o que, obviamente, não ocorreu. Ele vinculou as características da atuação em rede das organizações da sociedade civil, como organizações não-governamentais (ONGs) e sin dicatos, às características da globalização, salientando que “há uma iso- morfia, uma evolução de forma comparável entre o capitalismo e o movi mento social” e reafirmou a possibilidade de vencer a fragmentação, mesmo quando se apresenta uma grande diversidade de interesses, de tomar decisões de consenso e de evoluir. Para reforçar sua opinião, citou o avanço do movimento antiglobalização a partir de 1999, que continuou ascendente mesmo após o 11 de Setembro, e a mobilização mundial con tra a guerra, em 2003. Porém, ao analisar o funcionamento em rede, com base em consen sos, Aguiton chamou a atenção para alguns problemas. O primeiro, de monstra que o consenso é mais violento do que se imagina, porque, uma vez que se chega a ele, as pessoas que se posicionam contra são totalmente rechaçadas. “Assim, existe um risco de haver um consenso dos poderes fortes, olvidando todas as formas minoritárias”. Isso pode ocorrer nos organismos multilaterais, como a OM C, em que o consenso é um con senso entre Europa, EUA, Japão e países em desenvolvimento, como o Brasil, a China e a índia, e também nos movimentos da sociedade civil, em que ainda prevalece “um problema real para integrar as minorias” . O segundo problema apontado por Aguiton “é o caráter opaco, pouco visível das decisões e da maneira de atuar dentro de uma rede”, o que envolve um risco de desaparecimento das organizações, como ocorreu na Europa, sobretudo na Espanha. Ele citou como exemplo as grandes ma nifestações contra a guerra em Barcelona, em 2003, que não tiveram uma organização por trás, como ocorre no Brasil, “com o Movimento dos Trabalhadores Riirais Sem Terra (MST), a Central Única dos Traba lhadores (CUT), o Partido dos Trabalhadores (PT), a Associação Bra sileira de Organizações Não Governamentais (Abong), onde se pode ver um pouco das posições de cada um (a) e entender um pouco por que um(a) disse isso e outro (a), aquilo”. 1 3 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas O terceiro problema situa-se no campo da articulaçâo entre os movi mentos da sociedade civil e as alternativas políticas. Ele afirmou que é pos sível obter vitórias, como ocorreu com Lula no Brasil, “mas a vitória náo quer dizer que seja fácil implementar novas políticas” . Além disso, lem brou que vigora um sistema de político, pelo qual, muito rapida mente, os governos sao rechaçados pelas populações, e isso “dificulta nosso papel, como movimento, para ajudar a construir uma alternativa”. Conforme Aguiton, é difícil obter uma ruptura com os modelos sociais, econômicos e políticos, como ocorreu em meados do século XX, quando houve a planificação russa e chinesa e a adoção do keynesianismo em alguns países do Norte, especialmente. No entanto, fez um convite à reflexão ao apontar uma mudança peculiar, a do free-software, como o sistema Linux, cuja proposta “é romper com a lei da ganância máxima que vigora no mundo capitalista. E isso cria realmente um novo paradigma, demonstra que há uma outra solução”, concluiu. O DESAFIO DE CONSTRUIR MOVIMENTOS E ARTICULAÇÕES PERMANENTES Fátima Mello concentrou-se no cenário continental americano, espe cialmente na campanha contra a Area de Livre Comércio das Américas (Alca) e no desafio de construir movimentos e articulações permanentes. “A campanha contra a Alca é quase um laboratório das alianças e dos compromissos que as ONGs têm estabelecido com os movimentos sociais, com o movimento sindical e com as igrejas, ao longo do con tinente. A construção desse movimento contra-hegemônico tem crescido enormemente e, de alguma maneira, contribuído muito para esvaziar a legitimidade do modelo neoliberal, do modelo que os EUA tentam implementar na região.” Conforme Fátima, a eleição recente de alguns governos de centro- esquerda na América Latina também contribui para deslegitimar o mo delo defendido pelo governo norte-americano. Ela situou historicamente o início da construção desse movimento continental contra-hegemônico em 1994, quando foi criado o Acordo de 1 4 A nova dinâmica intemacional e os desafios da sociedade civil Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Naquela época, as coa lizões trinacionais dos EUA, do México e do Canadá, que tentaram bar rar o Nafta, foram derrotadas, mas deram origem às bases de alianças em nivel continental. ̂ ' “Nesse ano (1994), foi realizada a primeira cupula da Alca, a primeira cúpula de chefes de Estado das Américas, em que Bill Clinton, presidente dos EUA, praticamente não se deparou com nenhum movimento de resistencia. Nove anos depois, podemos afirmar que construímos um movimento que, no minimo, compli cou muito o jogo da Alca. Nós ainda não derrotarnos a Alca, mas podemos dizer que esse projeto está, no mínimo, sofrendo de falta de legitimidade e encontra fortíssimas resistências.” Fátima relembrou a criação da Aliança Social Continental, em 1997, e o início de um ciclo ascendente de protestos e de resistência global, começado em Seattle, em 1999, passando por Washington, Praga, Luxemburgo, Gênova... “O 11 de Setembro tentou interromper esse ciclo, mas, na nossa per cepção, a realização do Segundo Fórum Social Mundial (FSM), em 2002, revela que conseguimos responder às tentativas de criminaliza- ção dos movimentos sociais com uma recuperação da nossa capaci dade e da nossa iniciativa política. O grande sucesso do Fórum demonstra que todo o movimento que se gestava - nâo só nas Américas, mas em nível global - de protesto contra o G-8, a OMC, o Banco Mundial e o FMI tinha uma demanda latente por um espaço próprio de debate sobre alternativas e de convergência de lutas.” Ela salientou que, “em 2002, fizemos aqui no Brasil um plebiscito sobre a Alca, em que dez milhões de pessoas participaram, e a maioria esmagadora votou contra a Alca. Existem muitas discussões sobre o plebiscito, mas, na verdade, o fato de que dez milhões de pessoas tenham ido à urna votar sobre um tema tão difícil de ser enraizado na sociedade revela a capacidade de mobilização que se construía aqui no Brasil e em âmbito continental” . 1 5 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas No entanto, lembrou que a passagem de uma situação desolado ra, como a de 1994, para um cenário de fortíssima resistência da sociedade e de alguns governos ao projeto dos EUA não significa que a Alca esteja der rotada. Ela explicitou como opção tática transferir as negociações de alguns temas, como agrocomércio, investimentos e compras governamen tais, da Alca para o âmbito da OM C, esvaziando a agenda do acordo de livre-comércio. Também discutiu a construção das alianças da sociedade civil, ou seja, desse movimento por trás das ações de resistência contra a Alca, cuja origem (as coalizões contra o Nafta) apresentou uma grande novidade: “uma aliança horizontal de organizações dos EUA com organizações do México e do Canadá,em que as organizações norte-americanas participaram de igual para igual, como irmãs e não mais como pro tetoras. Esse movimento, que pretende ser um movimento perma nente, baseia-se em alianças plurais, alianças multissetoriais. Lutar contra a Alca é o que nos une, mas a construção de um movimento permanente não se sustenta só aí. Tem de ser capaz de ir além de bar rar o projeto para tentar construir alternativas políticas. Somado aos protestos e às resistências, esse movimento quer ser uma articulação permanente e, para ser isso, tem de se enraizar na sociedade, tem de conseguir pegar essa agenda global e traduzi-la nas lutais cotidianas. Esse movimento tem o desafio de, ao mesmo tempo em que faz a resistência e o protesto, também fazer o monitoramento das nego ciações, entender o que está sendo negociado, identificar as posições de cada governo.” Para Fátima, esse desafio está posto também no FSM, que, além de ser um evento anua], quer ser um processo. Para ser um processo, o Fórum tem de ser capaz de se enraizar na sociedade, conquistar as lutas cotidia nas, estabelecer pontes entre essa agenda global e as questões que afetam o dia-a-dia das pessoas”. Além disso, ela apontou as duas vias em debate dentro dos movimen tos globais sobre como mudar o poder no sistema internacional e no âmbito contiiiental; a aposta na “desglobalização da economia e da políti ca, para construir uma melhor correlação de forças nos âmbitos nacionais, 1 6 Á nova dinâmica internacional e os desafios da sociedade civil ou a aposta na democratização do sistema internacional e na alteração do sistema de poder pela via das instituições globais, pela via supranacional” . Conforme Fátima, a campanha continental contra a Alca tem sido capaz de combinar as duas estratégias. “Ao mesmo tempo que existe um movimento supranacional, que questiona as bases hemisféricas da construção desse acordo, tem-se tentado conduzir e mudar a correlação de forças dentro de cada país, o que altera substantivamente a posição de aiguns países nas nego ciações. Um exemplo é o que está ocorrendo com o governo Lula. Se o Brasil não quiser esse modelo, ele pode mudar muita coisa nas negociações da Alca. E o mínimo que podemos dizer hoje do gover no Lula é que ele nos incluiu no jogo.” Na última parte de sua exposição, Fátima falou dos desafios da sociedade civil de construir, em âmbito continental, um movimento baseado em amplas alianças, que seja permanente e consistente inclusive dentro dos EUA. Também salientou a oportunidade da existência de go vernos de centro-esquerda na América Latina para realizar um projeto alternativo de integração. Na construção desse modelo alternativo, ela defendeu: (a) “a desprÍvatÍzação da vida social, ou seja, o fato de que há esferas fundamentais na vida social que não têm de ser mercantilizadas; (b) um projeto de integração que tenha por prioridade a redução das desigualdades entre países e no interior desses países; e (c) um projeto de integração que seja capaz de combater o racismo e o sexismo”. Ao final de sua exposição, Fátima lançou uma indagação: “Como nós, ONGs brasileiras e latino-americanas, vamos nos comprometer com a luta contra o neoliberalismo e a guerra e fazer isso com enraizamento social, com vínculo com as lutas cotidianas?” . E uma afirmação: “O compromis so das O N Cs é com formas de ações políticas não-hierarquizadas, como as do FSM e da campanha continental contra a Alca, com a construção des ses movimentos nao-piramidais, mas, ao mesmo tempo, com um projeto político anti-sistêmico e com alternativas” . 1 7 notas 1. 0 atentado da Al-Qaeda a Nova York, em 2001 (N. do E.) 2. Conæ næ deW a d i i ig to n : expressão criada pelo economista inglês John Williamson para de* signar um conjunto de medidas político-econômicas recomendadas, a partir de 1989, por especia listas de instituições financeiras e centros de estudos baseados em Washington (EUA), aos paises tatino-americanos, visando, em tesé, à estabilidade e ad crescimento econômico. À época, o conti nente estava mergulhado em estagnação econômica, inflação ascendente, dívida externa elevada, desemprego e recessão. Em linhas gerais, as recomendações do Consenso de Washington incluíann a redução da presença do Estado na economia, a privatização, a abertura ao mercado internacional, o enxugamento do setor público, a austeridade fiscal e monetária, a desregulamentação da econo mia, o fortalecimento do direito à propriedade, etc. A observância de medidas inspiradas no Consenso de Washington tornou-se uma das pnncipais exigências do FMI e do Banco Mundial para concederem empréstimos aos países que recorreram à sua ajuda. 1 8 M U L T I L A T E R A L I S M O : G O V E R N A N Ç A I N T E R N A C I O N A L E O P A P E L D A S O C I E D A D E C I V I L Esse tema foi discutido no segundo dia do seminário, na parte da manhã, e apresentado por Roberto Bissio, fundador e co-diretor do Ins tituto Terceiro Mundo (Uruguai), editor do Guia D el Mundo e das revis tas D el Sur e Terceiro Mundo Econômico\ coordenador da Social Watch, organização da sociedade civil em 50 países, membro do comitê da so ciedade civil que assegura o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O outro expositor foÍ Teivo Teivainen, profes sor adjunto da Universidade de Helsinque (Finlândia), doutor em Ciências Sociais e diretor do Programa de Estudos sobre Democracia e Transformação Social da Universidade Nacional de São .Marcos, coorde nador nacional do Network Institute for Global Democratization e mem bro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, Após a explanação, foi aberto um espaço para o debate com. a platéia, sobre questões evidenciadas pelos dois apresentadores, como as maneiras de assegurar a democracia nos organismos multilaterais e as estratégias da sociedade civil nesses processos, seja na forma de confronto ou na forma de negociação e participação. Também foram questionadas as com plicações que a vigência de dois pesos e duas medidas nas relações inter nacionais representam. Os comentários dos expositores estão incluídos nos textos a seguir. 79 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas O CONTRAPESO DA OPINIÃO PUBLICA Roberto Bissio iniciou sua exposição falando sobre a guerra contra o Iraque, iniciada em março de 2003 pela coalizão EUA-Reino Unido, sem autorização do Conselho de Segurança da O N U e contra a opinião públi ca mundial. “A oposição à guerra é uma força mobilizadora, mas o que realmente mobilizou e sensibilizou a opinião pública do mundo inteiro foi a ilegalidade dessa guerra” . Para ele, “o fim da Guerra Fria marcou a extinção de qualquer possi bilidade de contrapeso militar ao poderio dos EUA, mas criaram-se as raízes do contrapeso da opinião pública”. Esse contrapeso, representado pela sociedade civil, ganhou força a partir da última década do século XX, quando ocorreram diversas conferências internacionais, englobando toda a agenda social, ambiental e de gênero, com a maioria dos governos de todo o mundo comprometendo-se a implementar suas proposições. Ele salientoLi que, nesse período, “o conceito de direitos humanos, que antes se resumia a direitos civis e políticos, foi acrescentado de conceitos de di reitos econômicos, sociais, culturais, direito de não-dÍscriminação étnica e de gênero, entre outros” . Bissio citou a criação da Corte Penal Internacional como um passo para a construção do multilateralismo e de um tipo de governança inter nacional, surgida com a mobilização da sociedade civil,“ particularmente das ONGs. “A constituição da Corte, que alguns acreditavam demorar mais de 20 anos, ocorreu em apenas quatro anos. No entanto, os EUA resistem, negam a possibilidade de um soldado americano ser julgado pela Corte. Mas, nessa luta, o papel da chamada opinião pública — e, dentro dela, da parte que sai às ruas e que se sensibiliza — é enorme.” Na opinião dele, é preciso aprofundara legalidade internacional, ou multilateralismo, tornando-o mais justo do que o sistema atual. “O sistema multilateral claramente não funciona em benefício dà maioria da população do mundo, mas se não existisse, seria ainda pior. A falta de lei e a falta de justiça são, principalmente para os mais 2 0 Multilateralismo: governança intemacional e o papel da sociedade civil vulneráveis, pobres e indefesos, ainda piores do que a assistência de uma justiça incompleta. A náo-existência de algum tipo de justiça significaria a volta à barbárie mais pura e ao simples poder da força.” Sobre as estratégias adotadas pela sociedade civil, de confronto ou de negociação e participação nesses organismos multilaterais, Bissio ressaltou que ambas sâo importantes para influir nas decisões dessas instâncias e defendeu uma terceira possibilidade de intervenção, que é reclamar prestação de contas. Conforme ele, no momento de fazer uma proposição é necessário “demonstrar que o que se propõe é sério, razoável e bem-fundamentado ou é realmente apoiado por maiorias que vão ter peso político”. Entretanto, a prestação de contas pode ser exigida por qualquer cidadão (a), que pode cobrar as medidas expressas em compromissos internacionais e em leis. “Isso tem sido tremendamente efetivo em muitas áreas, precisamente porque, para ganhar legitimidade, instituições como o Banco Mundial e até o FMI tiveram de ir acomodando normativas ambientais, de gênero, para povos indígenas, sobre tratamento de minerais, entre ou tras. Agora fala-se em impacto social. Desde que existam compromis sos e metas, qualquer grupo ou indivíduo pode questionar, cobrar sua efetivação. Assim, o jeito de construir objetivos decididos nacional mente cria e favorece uma accountability^ responsabilidade pública pe rante normas conhecidas de antemão, e isso é uma instância de parti cipação da sociedade civil que sempre é legítima, ainda que essa ati tude seja tomada por uma total minoria ou por um só indivíduo.” DEMOCRATIZAÇÃO DOS ORGANISMOS MULTILATERAIS Teivo Teivainen falou sobre as diferentes maneiras tanto para trans formar instituições multilaterais como para criar novas formas de insti tucionalidade, lembrando que, ao propor essas transformações, é preciso analisar detidamente que forças sociais poderiam apoiá-las ou se contra por a elas. “A sociedade civil e os movimentos prestam atenção às formas de poder capitalista de uma maneira mais detalhada, mas, muitas vezes, deixam de debater questões institucionais das organizações interna cionais, considerando que isso pode ser perda de tempo.” 2 7 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas Conforme Teivainen, “para ser possível pensar em um mundo dife rente quanto às organizações multilaterais, deve-se considerar que a democracia, tanto local quanto mundial, pode ter pelo menos três aspec tos: (a) a participação de diferentes grupos da sociedade civil organizada nos arranjos institucionais; (b) o princípio de uma pessoa, um ponto; e (c) um grupo, um ponto, sendo, no princípio internacional, um ponto um país” . Em seu entender, é necessário saber diferenciar-as propostas conser vadoras de mudanças nos organismos multilaterais daquelas realmente transformadoras, bem como saber analisar até que ponto as propostas de democratização sao verdadeiramente democráticas e que forças sociais poderiam dar seu apoio a esse processo. Teivainen considerou as propostas de democratização das Nações Unidas, assim conio a transformação desse órgão num instrumento mais efetivo para projetos democráticos ao redor do mundo, bastante difíceis. Em sua opinião, “transformar a Assembléia Geral e o Conselho de Se gurança da O N U é projeto de médio prazo praticamente impossível, principalmente, mas não unicamente, pelo papel dos EUA. Quase todas as propostas que vemos, factíveis e desejáveis para transformar o sistema multilateral, partem do pressuposto de que os EUA não vão tomar parte em nenhum projeto de transformação democrática”. Ele citou o exemplo do movimento que criou a Corte Penal Internacional, em cujo processo de constituição foram feitas muitas concessões aos EUA (mesmo assim, este país não ratificou o tratado e ainda pressionou dezenas de nações a seguirem seu exemplo ou a assinarem acordos bilaterais comprometendo- se a não apresentar denúncias contra cidadãos norte-americanos nessa instância jurídica supranacional). Para Teivainen, qualquer proposta para mudar efetivamente as Nações Unidas passa pelas relações financeiras e pela dependência econômica tanto da O NU, financiada especialmente pelos países centrais, sobretudo os EUA, como dos países que a integram. Ele vinculou a democratização dos organismos multilaterais à superação dessas dependências financeiras, apostando em duas propostas-chave. A primeira, supõe a luta contra os mecanismos de poder da dívida externa. “Há movimentos que buscam isso por meio de mecanismos de arbitragem da dívida; outros, dizem que os mecanismos de arbitragem entregam a soberania das nações endividadas a organismos de arbitragem. 2 2 M ultilateralismo; governança internacional e o papel da sociedade civil mas para mim esse debate ainda não está claro. Outra alternativa é a luta para anular a dívida como tal, que eu vejo como uma luta válida.” Ele defendeu mais articulação entre os que lutam por mecanismos dè arbi tragem e os que buscam a anulação total da dívida. A segunda proposta é lutar por mecanismos de impostos sobre a especuiáção financeira, em nível global. “Pode-se começar sem os EUA e sem a Grã-Bretanha - e há que começar sem os EUA”, enfatizou, lem brando que o Brasil é um país-chave e seu governo teria muito poder de convencimento em alguns fóruns multilaterais para propor impostos sobre a especulação financeira. Para Teivainen, este é o momento ideal para que a sociedade civil brasileira pressione o governo a defender a ta xação do capital especulativo. Conforme o expositor, esse tipo de recurso poderia ser usado para diminuir a dependência financeira da O N U em relação a países como os EUA, o que poderia, talvez, viabilizar alguns projetos de democratização. “Com o poder de veto dos EUA e de outros países no Conselho de Segurança, vai ser muito difícil fazer da O N U uma instituição muito democrática, mas isso poderia criar alguns espaços para quem buscá alter nativas de luta dentro da organização.” Ao propor uma institucionalidade mundial alternativa, Teivainen defendeu mecanismos para a participação efetiva da sociedade civil organi zada, mas ressaltou que é preciso manter-se atento, pois sob o guarda- chuva da sociedade civil há também “muitas organizações que representam muito bem as grandes empresas e o poder financeiro. Os representantes da sociedade civil precisam ser forças legítimas dessa sociedade; logo, pro ponho uma representação por Estados e uma representação com base no número da população dos Estados. Pode nâo ser a melhor proposta, mas é hora de os movimentos da sociedade civil apresentarem e debaterem diferentes propostas de institucionalidades alternativas, mas nâo lançando um parlamento mundial de hoje para amanhã”. Conforme Teivainen, uma assembléia popular mundial é uma exce lente proposta, possível a longo prazo, mas a prioridade deve ser dada às lutas contra as formas de dependência econômica, que envolve a luta con tra a dívida externa e a especulação financeira. Ele concluiu propondo uma reflexão sobre o que essas mudanças representariam para as lutas popu lares, já que abririam espaço para novas formas de luta, em outras frentes. 2 3 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas Ao responder aos questionamentos da platéia, Teivainen defendeu uma mudança no eixo de debate sobre a globalização, no sentido de não o limitar à globalização pró e contra, como se isso dividisse os movimen tos, pois se o “adversário é o poder antidemocrático, capitalista, o nosso eixo de debate deve se concentrar nasmaneiras de democratizar essas for mas de poder não-controladas, em nível local, nacional, mundial e trans nacional, bem como aqueles que defendem os privilégios desse poder”. A articulação, nesse caso, visaria muito mais à luta pró-democracia radical e anticapitalista do que a qualquer outra fmalidade. Teivainen apoiou-se em Gramsci^ para demonstrar que as relações he gemônicas são também relações educativas. “Se pensamos que o mundo é uma escola, e o FMI e a O M C são professores dessa escola, obtemos uma das fases legitimado ras das formas de poder desiguais dessas instituições; a idéia de que países em via de desenvolvimento são crianças e países desenvolvidos, adul tos. Por isso, é importante pensar não somente em educação tradi cionalmente entendida como escolaridade, mas educação como re lações pedagógicas de poder na sociedade, em diferentes níveis.” notas 1. Antr>ni> Giam sri: filósofo italiano (1891-1937), cujas idéias tiveram profunda influência sobre o eurocomunismo, na segunda metade do século XX, e sobre a esquerda brasileira, nas décadas de 1970 e 1980. Embora também defendesse uma revolução proletária, como os demais marxistas, acreditava que essa só seria possível se antecedida por uma mudança de mentalidade. Em sua obra, analisou o papel da cultura e dos intelectuais nos processos de transformação histórica. Gramsci usou o conceito de hegemonia para caracterizar o domínio cultural-ideológico de uma classe sobre as outras. Para ele, esse poder hegemônico incorpora uma lógica de adesão quase incondicional, sem necessariamente ter de recorrer a medidas de dominação tradicionais. Conforme Gramsci, toda relação de hegemonia é também uma relação pedagógica: primeiro se conquistam as mentes, ou seja, 0 consentimento, depois, o poder 2 4 A S O C I E D A D E CIV IL. N O S E S P A Ç O S P Ú B L I C O S I N T E R N A C I O N A I S : O L U G A R D A S O N G s Esse tema foi apresentado pelo antropólogo Eduardo Ballón, presi dente da Asociación Latinoamericana de Organizaciones de Promoción (Alop) e membro da O N G peruana Desco e da rede de articulação Grupo Proposta Cidadã. Os(as) debatedores(as) foram Nalu Faria, psicóloga e diretora da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e membro da Marcha Mundial das Mulheres, e Nelson Villarreal, presidente da Associação Nacional de ONGs do Uruguai (Anong). Nessa mesa, foram abordados assuntos como os mitos da globalização, as estratégias para fortalecer a ação das ONGs no espaço global, os desafios do consenso, da democracia e da representação, e os déficits social, democrático e econômico gerados pela globalização, entre outros. A platéia levantou questões sobre o fortalecimento do poder públi co via sociedade civil, a inclusão das minorias, o poder dos mitos da globalização e as formas como as organizações e movimentos sociais poderiam vencer as próprias divisões para formar alianças dentro da diversidade e constituir um projeto político mais consistente. Os comentários do conferencista e dos(as) debatedores(as) sobre essas indagações estão incluídos nos textos a seguir. 2 5 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas Os MITOS DA GLOBALIZAÇÃO Eduardo Ballón ordenou sua intervenção em diversos momentos, abordando os mitos da globalização, a idéia de sociedade civil global e o papel dos distintos atores nessa sociedade, além dos desafios das O NGs nos âmbitos regional e nacional. Ele recorreu à opinião de diversos historiadores para evidenciar três momentos distintivos, emblemáticos, no processo de globalização, que se nutrem de sucessivas revoluções tecnológicas, em especial as que reduzem drasticamente os custos de transporte, informação e comunicação, e man têm uma clara continuidade entre si. “O primeiro momento distintivo ocorreu entre 1870 e 1913, caracterizado por elevadíssima mobilidade de capital e de mão-de- obra e auge comercial, proporcionado muito mais pela redução dos custos de transporte do que pelo livre-comércio. Esse momento con cluiu-se com a Primeira Guerra Mundial. A segunda fase aconteceu entre 1945 e 1973, com o desenvolvi mento de instituições de cooperação internacional em matéria fi nanceira e comercial, expansão do comércio manufatureiro entre os países desenvolvidos, baixa mobilidade de capital e de mão-de-obra. Essa foi a fase da regulação macroeconômica definida em Bretton Woods, que colapsou em meados de 1970. Finalmente, a terceira fase é a atual, caracterizada pela genera lização gradual do livre-comércio, pela presença avassaladora no cenário internacional das grandes corporações, com sistemas inte grados de produção, crescimento e grande mobilidade de capitais, em contraste com as restrições crescentes à mobilidade da mão-de- obra, assim como uma clara tendência à homogeneização por via da subordinação dos modelos de desenvolvimento.” Conforme Ballón, nesse cenário global prevalecem cinco mitos, ou seja, cinco formas de mascarar e ocultar a realidade. • “O primeiro desses mitos sustenta que o livre mercado maximiza o crescimento e a riqueza no mundo e simultaneamente otimiza 2 6 A sociedade civil nos espaços públicos internacionais: o lugar das ONGs a distribuição que resulta desse incremento. Frente a esse mito, basta constatar que, na América Latina, a zona mais desigual do planeta, os dez por cento mais pobres possuem o equivalente a menos de 5 por cento das riquezas que estao nas mãos dos dez por cento mais abastados. O segundo mito sustenta que a liberalização do mercado mundial e o sistema financeiro internacional possibilitarão o acesso eqüita tivo de países e pessoas aos bens e serviços produzidos no mundo. Basta olhar os subsídios e as barreiras que os países desenvolvidos impõem para que essa afirmação perca totalmente o sentido. O terceiro mito é o que sustenta que a globalização permitirá uma incorporação paulatina de países e povos, com base em seu acesso à tecnologia e ao conhecimento. Recordemos simplesmente que o atual processo está liderado por 300 empresas transnacionais, que elevaram sua participação a 28 por cento do produto bruto mun dial, num planeta em que 20 por cento da população apropria-se de 80 por cento de todas as riquezas, excluindo definitivamente continentes inteiros. O quarto mito sustenta que estamos assistindo à perda de sentido do Estado-nação. Sem dúvida, a globalização afetou os Estados nacionais, que agora têm possibilidades limitadas de se impor aos mercados e viram diminuídos os poderes públicos, bem como tornaram-se muito mais débeis diante da agressividade especula tiva, como certificaram-se o Brasil e o México recentemente. No entanto, apesar dos limites impostos pela globalização, os Estados nacionais continuam sendo atores significativos nas relações inter nacionais. Eles conservam uma dose de poder muito grande e têm uma capacidade de decisão significativa, embora menor do que tiveram antes. O quinto mito afirma que o 11 de Setembro faz com que a globalização nos coloque diante de um sistema incontrolável, que vai ser definitivamente unipolar, e que teremos a hegemonia 27 0 pape! da sociedade civil nas novas pautas políticas norte-americana por várias décadas, se nao por séculos. Apesar da inegável hegemonia norte-americana em cada um dos campos que se compete globalmente, são claras, simultaneamente, a per da de peso dos EUA no comércio e no produto mundial, bem como a consolidação da União Européia e o avanço de outras potências, como China e Japão, que nos confrontam com um curioso sistema híbrido de uma superpotência e distintas potên cias regionais.” A POLÊMICA IDÉIA DE UMA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL Ballón apontou como parte das mudanças, no contexto mundial, o surgimento de uma nova trama social transnacional, cujos protagonistas são atores não-estatais, que questionam, buscam influir e resistir, de dis tintas formas, à globalização. Esses atores compõem a chamada sociedade civil global, caracterizada porsua heterogeneidade e diversidade, em cuja configuração estão O N Gs internacionais, movimentos sociais globais, sindicatos, grupos ecologistas, feministas, étnicos, etc. Conforme Ballón, essa heterogeneidade se expressa também nas diver sas visões e estratégias de açâo dos diferentes grupos. Ele citou exemplos da presença, sobretudo das ONGs internacionais e de uma parcela dos novos movimentos transnacionais, nas dinâmicas globais ligadas ao sis tema das Nações Unidas e, em menor medida, nas organizações multila terais, como a OMC, lembrando que a partir da década de 1990 “essa prática ‘institucionalizou um sistema de reuniões paralelas àquelas que realizavam os governos” . Salientou que essas organizações buscam respon der ao democrático e de participação na nova ordem mundial e que têm logrado êxitos e frustrações em suas tentativas de influir nas políticas globais. Mas chamou a atenção para o fato de que, muitas vezes, as O N Gs e movimentos do Norte, que possuem mais acúmulo de experiências e maior capacidade financeira, definem os conteúdos básicos das agendas, exportando-os para o Sul. Já os movimentos mais tradicionais, para Ballón, adotam estratégias de mobilização mais direta, que resultam freqüentemente em confrontação, sobretudo visando a reduzir o déficit socî Á. e econômico da globalização, ou seja, o aprofundamento e a ampliação da desigualdade” . Para ele, esse 2 8 A sociedade civil nos espaços públicos internacionais: o lugar das ONGs tema interessa especialmente ao Sul, onde “eliminam-se nao só o direito de participação como também os direitos sociais e econômicos de grande parte da população”. Obviamente, essas diferenças de estratégias sao marcadas por um con junto de tensões. Assim, Ballón expôs algumas debilidades e desafios da sociedade civil global, cujo espaço mais significativo é atualmente o Fórum Social Mundial, em que se “administra uma relação complexa entre os chamados atores globaiifóbicos’ e atores globalitários’, um evento que per mite a expressividade e o difícil reconhecimento de todos eles” . Entre as debilidades e desafios, apontou: (a) a persistência de problemas de sobre- representação e sub-representação de todo tipo - país, religião, gênero, etnia, etc.; (b) as tensões freqüentes entre os níveis de ação — local, nacional, regional ou global; (c) a afirmação das diferentes identidades e a necessidade de construir alianças e confluências amplas; (d) as divisões entre as formas organizativas e as estratégias dos novos movimentos sociais, com as ONGs e as redes cívicas, de um lado, e os sindicatos e as formas político-partidárias, de outro; e (e) as diferenças estratégicas entre reforma ou ruptura com o capitalismo global e com a nova arquitetura institucional do poder. Apesar das tensões internas e das debilidades desses atores e organiza ções, ele citou efeitos inegáveis gerados por sua ação, como: (a) o apoio e o reconhecimento da legitimidade do movimento social global por am plos segmentos da opinião pública; (b) a pressão crescente sobre governos e corporações transnacionais, obrigados freqüentemente a negociar; e (c) o surgimento de um espaço público supraterritorial de debate, reflexão e ação sobre questões e condições cruciais da vida, que envolvem um número crescente de pessoas em todo o planeta. Conforme Ballón, a consolidação dessa sociedade civil global implica abarcar a diversidade e assumir a pluralidade sem, contudo, afetar as iden tidades próprias de seus diferentes atores, logrando desenvolver-se nos níveis nacional, region^ e global e articular-se em alianças e redes. AS ONGs NO ESPAÇO GLOBAL Ballón também analisou como atuam as ONGs nesse novo espaço glo bal, apontando alguns aspectos, como o protagonismo das ONGs interna cionais, sobretudo as do Norte, que muitas vezes nâo só subordinam como 2 9 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas dão suporte financeiro às ONGs do SuL Essas ONGs internacionais, con forme o conferencista, intervém em três grandes campos. “O primeiro é esse campo em que se exercitam os direitos de controle e propostas cidadãs sobre os organismos internacionais e as empresas transnacionais. O segundo refere-se à promoção de um maior e mais efetivo controle social sobre os bens que são comuns a toda a humanidade, vinculando-se fortemente às questões relacionadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. Em um terceiro campo de ação, as ONGs agem como porta-vozes éticos de interesses mais gerais da humanidade, lutando para estabelecer convênios inter nacionais que sobredeterminem a atuação dos Estados, como os que tratam da defesa dos direitos humanos, por exemplo.” Conforme Ballón, a visibilidade e os resultados obtidos pelas organiza ções não-governamentais fazem com que sua legitimidade seja questiona da por distintas instâncias, mesmo por aquelas instituições que mantêm espaço de diálogo com essas ONGs. Pergunta-se o que ou quem essas organizações representariam em contraste com governos eleitos democra ticamente ou com representantes internacionais que possuem mandato delegado pela população de seus países. Já aquelas corporações que são diretamente confrontadas pela atuação das ONGs não só questionam sua legitimidade como chegam a manter institutos para vigiar e levantar denúncias contra seu trabalho. Parte dessas tensões, na opinião de Ballón, deve-se ao fato de as O NGs internacionais não fazerem: “uma clara diferenciação entre a representação entendida como mandato ou delegação (de eleitores ou de bases sociais claramente definidas) e outra lógica, resultante de seu compromisso volun tário com a defesa e a promoção de algum bem público, de que não é representativa apenas de si mesma e que adquire legitimi dade com base em sua capacidade, aceita por outros, de influir na agenda pública. Esse descuido obedece às próprias dinâmicas internas de muitas dessas organizações, que não aplicam necessariamente em seu interior 3 0 A sociedade civil nos espaços públicos internacionais: o lugar das ONGs os mesmos critérios de transparência, informação e prestação de con tas que exigem de outros atores, nem estabelecem, em muitas ocasiões, mecanismos de debate democrático entre seus membros e aliados sobre os temas e agendas que priorizam”. Para Ballón, “apesar das mudanças e dos avanços que se observam nesse terreno, é claro que esse continua sendo um dos pontos débeis de muítas organizações, que persistem em falar em nome dos pobres’ e excluídos sem atender com maior profundidade às exigências que supõem construir uma legitimidade própria”. Especificamente sobre as O N Gs do continente latino-americano, Ballón apontou suas múltiplas identidades e sua história, lembrando que houve três gerações de ONGs; as missionárias e militantes dos anos de 1970; as promotoras de democracia dos anos de 1980 e início da década de 1990; e as profissionais e até tecnocráticas da segunda metade da déca da de 1990 em diante, “que constituem um segmento heterogêneo, de finido ambiguamente e por negação - não-governamental” . Conforme Ballón, “nessa heterogeneidade e diferenciação entre as ONGs, que articulam entre si e com outros atores da sociedade civil, coexistem vários discursos problemáticos”, definidos como dilemas: • “a diferença entre quem se define como parte de um terceiro setor, não-lucrativo e filantrópico, de claro conteúdo neoliberal, e quem se define como parte da sociedade civil, na qual afirma uma iden tidade específica, baseada na defesa de interesses públicos e no compromisso com a constituição de uma esfera pública ampliada; • a diferença entre quem defende o fortalecimento das organiza ções da sociedade civil e da esfera pública não-estatal e quem adota uma postura privatista, favorável ao processo de redução do Estado; • a diferença entre quem acredita que a luta contra a pobreza deve ser feita por meio do fortalecimento da política social como expressão de direitos equem entende essa luta como assistencia lismo e filantropia”. 3 1 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas O problema, nos casos acima, é definir se “trata-se de instituições favoráveis ao esquema de dominação ou, ao contrário, de organizações que buscam ser favoráveis à sociedade e às suas demandas” . A despeito da importante visibilidade que as ONGs adquiriram na região, Ballón chamou a atenção para um desafio daquelas organizações que lutam por transformações e acreditam que um “outro mundo é possível” : é preciso firmar a identidade e ir além da imagem de associações privadas com finalidade pública. Ele lembrou que as O N Cs da América Latina atuam no continente mais desigual e excludente do planeta, onde buscam “contribuir para modificar as relações sociais de poder, tanto econômico e político como simbólico”. Também enfatizou que a pobreza e a exclusão não resultam da falta de recursos ou da ausência de espaços democráticos, mas do fato de esses espaços e recursos serem apropriados por uma minoria. Ballón ressaltou as estratégias das ONGs latino-americanas para for talecerem sua ação no espaço regional e, com base nessa ação regional, na agenda global. Entre essas ações figuram a atuação em redes, as articulações com diversos movimentos sociais, as campanhas como a do jubileu e a de oposição à Alca e a constituição de diversos fóruns. Todas essas iniciativas, conforme Ballón, buscam questionar o déficit democrático e a exclusão e a desigualdade social. “Mesmo em meio a dificuldades, como a heterogenei dade das alianças e a limitação de recursos, esses processos continuam avançando, visando a contribuir para mudar as relações de poder (nacional- regional-mundial) num mundo globalizado, lançando mão de estratégias tanto de participação e diálogo quanto de mobilização e ação mais direta.” Ter uma agenda própria nas sociedades nacionais também é funda mental para as ONGs. Conforme Ballón, é no âmbito nacional que as organizações estruturam sua legitimidade, “que é uma construção sociaJ sustentada na articulaçâo de coalizões nacionais com distintos movimen tos e atores sociais, como condição para possibilitar sua açâo interna cional, com base em sua ação nas sociedades civis nacionais”. Para isso, entretanto, faz-se necessário: “um esforço pela recuperação da política, o que supÕe a construção de uma esfera pública não-estatal, que implica o reconhecimento de ou tros múltiplos, diversos e plurais atores. Em segundo lugar, trata-se da 3 2 A sodedade dvil nos espaços públicos internadonais: o lugar das ONGs politização do social como parte central da formação de uma comu nidade política, o que implica o restabelecimento radical da discussão dos temas da pobreza e da exclusão como parte da geração de uma cidadania universal e transnacional. Finalmente, trata-se de impul sionar e apoiar os distintos processos de vigilância e controle social sobre o Estado, imprescindíveis neste novo contexto”. Conforme Ballón, na açãó e reflexão das ONGs em interação com ou tros atores da sociedade civil devem ser incluídos temas como: (a) “a relação entre globalização, soberania e cidadania no contexto da disputa de sentido do surgimento de cidadanias e sociedades civis globais; (b) a dívida externa, que é parte da nova arquitetura financeira internacional e do ordenamento do comércio mundial; (c) o significado dos processos de integração regionai, que não podem se limitar aos mercados e às empre sas, como estratégia de integração de sociedades plurais e de construção de identidades compartilhadas; e (d) os direitos econômicos, sociais e cultu rais como ampliação dos direitos humanos”. D e s c o n s t r u ç ã o d o s m it o s Nelson Villareal retomou alguns pontos apresentados por Ballón, especialmente o papel das ONGs no processo global e os mitos da glo balização. Também falou da diversidade e heterogeneidade das ONGs, bem como de consenso e dissenso. Ele salientou a necessidade de ampliar o conceito de mito e questionar de forma crítica os mitos que fundamentam a globalização, buscando maneiras de desconstruí-los e de criar novos mitos, para reconstruir alternativas. “Como é que podemos transitar, por exemplo, sobre o mito da inte gração, o mito da reciprocidade, o mito da regionalização autônoma? Não consideramos que o mito do livre-comércio seja o de querer igualdade, mas qual é o mito da economia solidária que constitui a possibilidade de uma alternativa? Quais sao os mitos que hoje dinamizam a sociedade civil global, a sociedade civil local e regional, que dão conta de sua diversidade e de sua complexidade?” 3 3 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas Ele lembrou que os mitos são mobilizadores dos processos culturais e sociais e que, portanto, devemos “ser capazes de ampliar, na construção de alternativas, os mitos da concepção de igualdade e reciprocidade que mobi lizam as organizações” . Villareal chamou a atenção para o processo de “desgoverno” que os Estados-nação estão vivendo no mundo globalizado, como mencionou Ballón, e defendeu uma “busca da sociedade civil local e nacional para constituir governanças, para constituir fatores que dêem capacidade de sinergia à sociedade”. Evidenciou que mundialmente também se busca interatuar para constituir uma governança global. Nesse aspecto, salientou a importância da discussão sobre o papel da O N U nas relações de confli to geradas pela globalização, bem como a importância dos marcos insti tucionais, como a Corte Penal Internacional. Ao discorrer sobre a heterogeneidade e a diversidade dos atores que compõem a sociedade civil global, Villareal citou o Fórum Social Mundial como exemplo de articulação de atores num contexto não apenas de he terogeneidade, mas também de fragmentação dos próprios sujeitos sociais. Lembrou que, “de alguma maneira, a idéia de que reconhecemos a diver sidade, que somos distintos, tem sido uma boa estratégia para dizer qüe discrepamos”, mas não descartou as vantagens da atuação conjunta. Ao contrário, apontou o diálogo entre atores sociais como um desafio necessário à construção de alternativas e de processos que provoquem impacto sobre organismos e formas institucionais. Outro ponto enfatizado por Villareal, com base na exposição de Ballón, foi o conflito entre sociedade civil e terceiro setor, lembrando que significam esferas distintas, especialmente porque a primeira centra sua lógica na participação cidadã, que, “em última instância, pensa obje tivos políticos que vão além das estruturas que tradicionalmente deno minam-se políticas. Mas as lógicas que se tem projetado como terceiro setor, uma articulação entre Estado e mercado, não fazem a definição da iniciativa cidadã”. Villareal abordou o conflito construção da cidadania versus assisten cialismo, que representa um grande dilema para as organizações sem fins lucrativos em geral. No entanto, salientou que nas sociedades desiguais e excludentes, como as do Sul, os temas de atenção direta devem estar liga dos aos processos de promoção e consolidação estrutural de direitos. 34 A sociedade civil nos espaços públicos internacionais; o lugar das ONGs Como exemplo de atenção direta, citou o programa Fome Zero, imple mentado no Brasil pelo governo Lula. O conflito entre a construção de subjetividades e os processos de transformação material também foi analisado por Villareal. “De alguma maneira, estávamos convencidos de que, em algum momento, as transformações econômicas levariam a transformações em sociedades igualitárias. Não nos demos conta de que os conflitos de desigualdade econômica e social não levariam por si mesmos à igualdade se não se constituíssem simbolicamente e politicamente formas de identidade de gênero, de igualdade étnica ou social, por exemplo.” Villareal reafirmou sua aposta nas sociedades igualitárias e perguntou: “como, então, em lugares distintos, que não se reduzem a um conjunto, constrói-se criativamente uma governança nova?”, lembrando que é possível sistematizar esse processo nos âmbitos local, regional e global. Ao comentar a questão sobre a crise do Estado e a sociedade civil, le vantada pela platéia, Villareal salientou que é preciso alterar a lógica atual e pensar que, “nas últimas três décadas, não houve uma crise do Estado, mas uma crise do público”, propondo uma reconstituição do público, fundamentada pela interação de atores diversos e não apenas pelo Estado. Ele lembrou que as sociedades não se constituem de maneira linear, mas por processos de conflito. Assim, mesmo quando ONGs e partidos possuem objetivos políticos comuns, como a construção de uma sociedade igualitária, há um conflito na forma como se desenvolvem e se constituem. “E trágico o fato de os governantes julgarem as ONGs li neares. Também é trágico as ONGs acreditarem que os temas e formas de governar podem ser resumidos da mesma maneira. Isso é um engano, pois o exercício de governo apresenta restrições institucionais distintas das restrições comuns à atuação no âmbito da sociedade civil.” Sobre a construção de consensos, Villareal foi enfático: “Perigosamente, assumimos a idéia de que os consensos nos dão maior fortaleza. Os consensos devem ser o resultado de um processo de contradição, de controvérsia e de dissenso. Se logramos processar controvérsia e dissenso, com o objetivo de alguns consensos básicos, vamos operar mudanças, Se cremos que se impõem consensos ou se temos medo de discutir dissensos e gerar controvérsias, a sociedade 3 5 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas estanca. As ONGs têm de processar esses temas de imediato, porque a mudança do marco político e a mudança do processo da sociedade regional e globai demandam a intuição que tivemos nos anos de 1970 e 1980, em que colocar sobre a mesa o dissenso e a discrepân cia não significava negar a busca de consensos básicos” . D e s a f io s d o c o n s e n s o , da d e m o c r a c ia E DA REPRESENTAÇÃO Para Nalu Faria, o novo momento político traz à tona, mais uma vez, o debate sobre a identidade das ONGs e sobre seu papel na sociedade. “Os novos espaços que estão se configurando na sociedade civil, seja em nível nacional ou global, têm nos dado grandes oportunidades de repensar o nosso lugar e de repensar a nossa ação.” Neste novo contexto, há uma questão fiindamental para ONGs e movimentos sociais: o projeto políti co com que cada um(a) se coloca nesses espaços. Conforme Nalu, esse projeto político e a construção de consensos com outros movimentos e organizações são facilitadores da atuação das ONGs, embora a construção de consensos ainda seja um grande desafio. Ela apontou como uma das causas de tensões entre ONGs e movimentos sociais a suposta especialização das ações, a'dicotomia entre contestação e proposição, já lembrados por Fátima Mello (veja o texto O desafio de construir movimentos e articulações permanentes), “como se os movi mentos mobilizassem e pressionassem e as ONGs mediassem e pro pusessem”. No entanto, lembrou que, quando “se formam redes, cada um é um ator, cada um pode propor e protestar, seja como O N G ou movi mento”. Ela citou o exemplo da campanha contra a Alca e do plebiscito no Brasil, apresentado por Fátima Mello, resultados de uma importante aliança entre ONGs e movimentos sociais. Tendo em vista o projeto político com os quais as ONGs se apresen tam nos novos espaços, como o Fórum Social Mundial, as campanhas transnacionais contra a guerra e a atuação no âmbito da OMC, entre ou tros, Nalu chamou a atenção para o fato de que o “neoliberalismo não só reestruturou as políticas econômicas e a discussão sobre a soberania do Estado, mas reconfigurou as subjetividades, o cotidiano das pessoas. Por isso, esse debate político em que as ONGs se inserem não é só econômico 3 6 A sodedade civil nos espaços públicos internadonais; o lugar das ONGs e de transformações estruturais, mas deve estar combinado com o que tem significado na vida das pessoas e representar mudanças em seu cotidiano, em particular dos setores mais pobres e oprimidos, como o das mulheres, dos negros e dos indígenas” . Ao enfatizar que a participação em redes potencializa a ação, Nalu lem brou que essa atuação conjunta, além do desafio do consenso, implica refletir sobre a construção de espaços democráticos, com propostas mais participativas, que envolvam todos os integrantes da rede, e sobre a questão da representação, um tema que ainda tensiona as organizações, mas é fun damental num processo de construção coletiva. Mais uma vez, ela reforçou o tipo de atuação que o novo contexto impõe: “temos de pensar também a nossa intervenção política, reafirmando a importância da regulação nor mativa e da idéia de direitos, mas articulando com a questão das transfor mações culturais e estruturais, pois não é possível pensar a nossa açâo nes ses espaços internacionais sem articular todas as dimensões”. Ao comentar questões da platéia sobre a perda de poder do Estado, Nalu afirmou que discorda “desta idéia que às vezes paira entre nós, como Ah!, ganhamos o governo, mas nao ganhamos o poder’. Eu considero que uma eleição como a do Lula, que teve uma expressiva votação, não toma o poder e não tem condição, de fazer a revolução, mas tem muito poder. E o governo pode fazer muitas coisas mesmo em condições adversas” . Ela lem brou que isso difere de país para país, mas, no caso do Brasil, existe uma clara disposição da sociedade civil organizada de fazer um diálogo diferen ciado com o governo, embora essa experiência não esteja sendo aproveita da em sua total potencialidade. Salientou que, “se uma coalizão partidária se dispôs a ganhar o governo para alterar a política anterior, o esforço tem de ser nesse sentido, mesmo que isso implique conflitos” . Para Nalu, isso é válido também nas práticas das ONGs, pois a atuação em redes potencia liza, faz crescer e ajuda a enfrentar as dificuldades, sendo “extremamente importante para aprender a romper com a fragmentação e construir a idéia de sujeitos coletivos, de atores coletivos”. Eia concluiu reafirmando a declaração de Eduardo Ballón de que o ca minho das pedras é conquistar uma mudança na relação de poder em liga mundial. Lembrou que esse tem sido o objetivo das ONGs no novo espaço internacional e que as mudanças de regras nos organismos multi laterais devem estar articuladas a uma mudança não só de poder entre os 3 7 países como também dentro dos próprios países. Ressaltou que “não é possível construir uma nova sociedade, um novo paradigma, baseada na igualdade, se não houver o envolvimento do maior número possível de pessoas e se não houver a disposição de construir sínteses”. 3 8 o P A P E L D A P R O D U Ç Ã O DE C O N H E C IIV IE N T O N A T R A N S F O R M A Ç Ã O S O C I A L Esse tema foi apresentado pelo professor Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia e membro do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Ele expôs sua teoria da sociologia das ausências e das emergências e instigou os(as) participantes a adotarem um novo tipo de racionalidade, capaz de ampliar o presente e possibilitar a implementação de açòes transformadoras. Expôs, também, a teoria da tradução, que permite aos diferentes movimentos da sociedade civil, sobretudo no âmbito do Fórum Social Mundial, maximizar o que os une e minimizar o que os separa. Após a apresentação de Boaventura, formou-se uma mesa de exposição e debate, erh que a professora Leilah Landim, o professor Luiz Eduardo Wanderley e a professora Lúcia Xavier discutiram o tema ONGs e Produção de Conhecimento, que compõe o próximo capítulo. Eles fize ram várias referências à conferência de Boaventura, bem como aõ conteú do de sua obra (livros e artigos). A platéia questionou o professor acerca de fluxo de conhecimento e democracia nas ONGs, construção coletiva de saberes, desigualdades raciais e de gênero, dentre outros.Os comentários dele foram incluídos no final do relato a seguir. 39 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas DIVERSIDADE DE CONHECIMENTOS Boaventura iniciou a conferência expondo “as relações entre o conhe cimento e a democracia, entre o conhecimento e o poder, entre o co nhecimento e a globalização contra-hegemônica”. De acordo com ele; “o conhecimento ratifica e legitima determinadas práticas e, obvia mente, deslegitima, marginaliza e suprime outras práticas. Assim, é importante analisar calmamente as relações sociais de conhe cimento, na medida em que provavelmente são fundamentais para entender as relações sociais decorrentes do tempo e, particular mente, no nosso tempo. Assim, devemos dar atenção cada vez maior aos processos de conhecimento, para exatamente conhecermos quais são as novas formas de desigualdade que emergem na sociedade”. O professor salientou que existe um conhecimento hegemônico, além de vários outros conhecimentos. “Vivemos em uma sociedade-conhecimento. Na sociedade da comunicação, da informação e do conhecimento. Raramente faze mos uma análise crítica dessa sociedade-conhecimento, porém a globalização neoliberal não existe sem ela. Nao existe conhecimento em geral e, se não existe conhecimento em geral, também nao existe ignorância em geral. Portanto, há conhecimentos e há ignorâncias. Ter conhecimento é tornar-se sabedor por,meio de um processo para vencer um certo tipo de ignorância. Ser ignorante é ser ignorante de um certo saber, Há, portanto, vários tipos de conhecimento e vários tipos de ignorância. Assim, é importante ver as diferentes trajetórias por intermédio das quais se passa da ignorância para o saber.” Conforme Boaventura, todo conhecimento constitui-se de um processo, “uma trajetória entre o ponto A, que é a ignorância, e o ponto B, que é o co nhecimento”. Ressaltou que na modernidade ocidental existem dois grandes modelos de conhecimento, “que naturalmente chamam atenção para dois processos de construção de saber, com base em duas formas de ignorância”, sendo esses o conhecimento-regulação e o conhecimento-emancipação. 4 0 0 papel da produção de conhecimento na transformação social “O conhecimento-regulação é um conhecimento cujo ponto de ignorância se chama ‘caos’ e o ponto de saber denomina-se ‘ordem’. Conhecer é passar do caos para a ordem. Essa é a forma de conheci mento dominante. Mas a própria modernidade ocidental tem uma outra forma de conhecimento: o conhecimento-emancipação. Aqui a ignorância é colonialismo, é transformar o outro em objeto e não reconhecê-lo como sujeito, e o saber é solidariedade. O conhecimento- emancipação conhece partindo do colonialismo para a solidariedade.” Boaventura ressaltou que esses dois tipos de conhecimento teorica mente coexistem na modernidade Ocidental. Contudo, evidenciou qúe: “ao longo dos últimos duzentos anos, o conhecimento-regulação dominou totalmente o conhecimento-emancipação, tornando-se hege mônico. Ao se transformar em conhecimento hegemônico, o co nhecimento-regulação recodificou a seu jeito os termos do conheci- mento-emancipação. Assím, o que era ignorância, colonialismo, no conhecimento-emancipação, passou a ser saber e ordem, e o que era sabér, solidariedade, passou a cáos”. Ele propôs um resgate do conhecimento-emancipação, pois: “a compreensão do mundo é muito mais vasta do que a compreen são ocidental do mundo. O conhecimento-regulação transformou a compreensão ocidental na compreensão dó mundo e, ao fazê-lo, assumiu uma forma de racionalidade extremamente estreita. E é essa racionalidade que condiciona muito do nosso trabalho. Nós, na prática das nossas associações, muitas vezes não damos atenção a esse detalhe; Que conhecimento usamos ao trabalhar com as populações, que formas de conhecimentos reivindicamos, que autoridade temos? Nosso conhecimento por vezes boicota as nossas intenções e, por tanto, muitas vezes, as intenções de libertação e de emancipação tor nam-se perversamente ações de regulação, de repressão e de destrui ção da emancipação. Assumimos criticamente que o conhecimento científico é a forma de conhecimento rigoroso, mas esse conheci mento científico é um conhecimento de regulação que nos impede 41 0 papel da sociedade civil nas novas pautas políticas de elaborar uma compreensão mais ampla do mundo. E o que isso significa? Se a compreensão do mundo é restringida, ocultamos a experiência social. A irracionalidade que perpassa muito nosso tra balho nas ciências sociais e no ativismo é uma irracionalidade que produz duas conseqüências fatais para repensar a emancipação social. Ela desperdiça a experiência social ao contrair o presente. E contrai o presente porque oculta a experiência.” De acordo com o professor: “a sociedade vive hoje num mundo em que o presente pouco conta, vive na ânsia do futuro e considera o presente um momento muito vul gar - e é um presente relativamente restringido. Se vivemos sempre no presente, por que ele é tão passageiro e estamos sempre pensando no futuro ou no passado? A razão pela qual nós temos essa concepção de presente, totalmente contraído, é porque a racionalidade que nos do mina é uma racionalidade que restringe a experiência do presente. O presente é feito de muitas experiências que não sao contabilizadas por nós, que são marginalizadas, suprimidas e desperdiçadas. Se tivéssemos um modelo de racionalidade mais amplo, que permitisse conhecer essas experiências, nós ampliaríamos o presente, nós conheceríamos toda essa riqueza que está de fato ao nosso alcance. Essa racionalidade contrai o presente porque tem uma concepção de totalidade muito estreita, que são as dicotomias, como a dicotomia norte/sul, homem/mulher, natureza/cultura, tradicional/moderno. Fora da dicotomia, as coisas nao são sequer analisadas por nós. Por exemplo, o que é a mulher que independe da relação com o homem? O que há no sul que não depende da relação com o norte ou que nao é captável pela hierarquia norte/sul? Perguntar para além dessas dico tomias é muito difícil, precisamente porque o modelo de racionalidade que temos não nos permite pensar nisso. No caso de países desen volvidos/subdesenvolvidos, não somos capazes de pensar que os países subdesenvolvidos podem estar à frente dos desenvolvidos em alguns setores. E é exatamente essa forma de irracionalidade que contrai o pre sente, impede-nos de ter uma compreensão mais arhpla do mundo e nos faz desperdiçar experiências” . 42 SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS Boaventura defendeu um “modelo de racionalidade mais amplo, uma racionalidade que dilate o presente e traga outras experiências, que de outra maneira nâo somos capazes de captar. E, para isso, é preciso superar aquela idéia de totalidade e de dicotomias, vamos dizer assim, mecânicas, em que a racionalidade ocidental nos capturou. E isso se faz por um procedimento que eu chamo de a sociologia das ausências’. Muito da experiência social que nós nâo vemos é produzida ativa mente como não-existente. Aquilo que não existe é produzido ati vamente para não existir, isto é, não é um ato fortuito, é produzido para estar ausente, suprimido, oculto da nossa imaginação, do nosso conhecimento e da nossa racionalidade. Assim, temos de fazer uma sociologia dessas ausências para trazer para nossa presença esses obje tos que são objetos impossíveis e transformá-los em objetos pos síveis, para transformar realidades que nâo existem em realidades que existem. A realidade não pode se reduzir àquilo que existe. Se nós reduzimos a realidade àquilo que existe, somos conformistas” . Boaventura indicou “cinco grandes modos de produção de não- existência, que são cinco monoculturas que dominam a nossa raciona lidade, responsáveis por todo esse desperdício, ocultação e marginalização da experiência”, propondo denunciar tais monoculturas e substituí-las por ecologias. “A primeira monocultura é a do saber e do rigor do saber, segundo a qual o conhecimento
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