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ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA Pílulas Mágicas, Drogas Psiquiátricas e o Aumento Assombroso da Doença Mental FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Nísia Trindade Lima Vice-Presidente de Educação, Informação e Comunicação Manoel Barrai Netto Editora Fiocruz (Gestáo 2017-2020) Diretor Manoel Barrai Netto Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Carlos Machado de Freitas Gilberto Hochman Conselho Editorial Denise Valle José Roberto Lapa e Silva Kenneth Rachel de CamargoJr. Ligia Maria V ieira da Silva Marcos Cueto Maria Cecília de Souza Minayo Marilia Santini de Oliveira Moisés Goldbaum Rafael Linden Ricardo Ventura Santos ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA Pílulas Mágicas, Drogas Psiquiátricas e o Aumento Assombroso da Doença Mental Robert Whitaker Tradução Vera Ribeiro (psicanalista) Revisão técnica Paulo Amarante Fernando Freitas 1 ª reimpressão EDITC>RA FIOC::::RUZ Copyright© 2017 do autor Originalmente publicado em inglês sob o título Anatomy of an Epidemie: magic bullets, psychiatric drugs, and the astonishing rise efmental illness inAmerica (Broadway Paperbacks, 2010) Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ/ EDITORA l ª edição: 2017 1 ª reimpressão: 20 I 7 Revisão Irene Ernest Dias Índice Clarissa Bravo Capa A partir da capa da edição original, criada por Laura D,gjy sobre ilustração de © Dietrich Madsen/Getty Images Projeto gráfico e editoração Daniel Pose Produção gráfico-editorial Phelipe Gasiglia Catalogação na fonte Fundação Oswaldo Cruz Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde Biblioteca de Saúde Pública W5 78a Whitaker, Robert Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. / Robert Whitaker; tradução de Vera Ribeiro. - Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 421 p.: il.; tab. ISBN, 978-85-7541-492-7 1. Transtornos Mentais - terapia. 2. Psiquiatria. 3. Reforma dos Serviços de Saúde. 4. Epidemias. 5. Surtos de Doenças. 6. Saúde Mental. 7. Esquizofrenia. 8. Doença Crônica.!. Título. 2017 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4.036, térreo, sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro, RJ Tek (21) 3882-9039 e 3882-9041 1 Telefax, (21) 3882-9006 E-mail: editora@fiocruz.br I www.fiocruz.br/editora CDD - 22.ed. - 362.2 Editora filiada l■■I ASSOCIAÇÃO EIRASIJ.SRA DAS EDITORAS UNIVERSITÃIUAS Sumário Prefácio à edição brasileira ...................................................................................... 9 Apresentação........................................................................................................... 15 p ARTE I -A EPIDEMIA 1. Uma Praga Moderna .......................................................................................... 21 2. Reflexões Experienciais .. , .................................................................................. 31 PARTE II-A CIÊNCIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS 3. As Raízes de uma Epidemia .............................................................................. 55 4. As Pílulas Mágicas da Psiquiatria ..................................................................... 63 5. A Caçada aos Desequilíbrios Químicos ............................................................ 81 PARTE III - REsULTADOS 6. Revelação de um Paradoxo ............................................................................... 1 O 1 7. A Armadilha das Benzodiazepinas ................................................................... 137 8. Uma Doença Episódica Torna-se Crônica ....................................................... 159 9. O Crescimento Explosivo do Transtorno Bipolar ........................................... 183 10. Explicação de uma Epidemia .......................................................................... 215 11. A Epidemia Disseminada entre as Crianças ................................................. 225 12. Quando os Jovens Sofrem ............................................................................... 255 L p ARTE IV - EXPLlCAÇÃO DE UMA ILUSÃO !3. A Ascensão de uma Ideologia ..................................................................... 27! !4. A História que Foi... e Não Foi Contada .................................................... 29! 15. Contabilizando os Lucros ............................................................................ 32 1 PARTE V - SOLUÇÕES !6. Projetos de Reforma .................................................................................... 339 Epílogo ................................................................................................................. 367 Notas .................................................................................................................... 369 Agradecimentos .................................................................................................. 40 l Índice ................................................................................................................... 403 Prefácio à edição brasileira É com enorme satisfação e honra que prefaciamos este livro do jornalista estadunidense Robert Whitaker que, já traduzido em mais de uma dezena de idiomas, finalmente chega às mãos do leitor de língua portuguesa. Desde 201 O, quando foi publicado nos Estados Unidos,Anatomia de uma Epidemia tem tido uma repercussão gigantesca nos diversos cantos do mundo, seja no meio acadêmico, entre profissionais da saúde em geral, entre pacientes psiquiátricos autodenominados vítimas ou sobreviventes da psiquiatria, ou mesmo entre os psiquiatras, embora não nos surpreenda que a maioria ainda reaja ao seu conteúdo. Nosso interesse pelo pensamento de Whitaker foi despertado pela leitura de um artigo de Mareia Angell publicado no número 59 da revista Piauí, em agosto de 2011. O artigo, com o sugestivo título "A epidemia da doença mental", é norteado por uma questão, por si própria, bastante intrigante: por que cresce assombrosamente o número de pessoas com transtornos mentais e de pacientes tratados com antidepressivos e outros medicamentos psicoativos? Após haver lido os dois livros de Whitaker sobre psiquiatria até então publicados -Mad in America e Anatonry of an Epidemie-, como membros da diretoria da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) não poupamos esforços para trazê-lo ao Brasil para dois eventos de grande porte organizados pela entidade: o 3° Congresso Brasileiro de Saúde Mental, realizado em Manaus em 2014, e o 2° Fórum Brasileiro de Direitos Humanos e Saúde Mental, emJoão Pessoa, em 2015. As contribuições trazidas por Whitaker foram impactantes. Como jornalista investigativo, Whitaker ganhou vários prêmios importantes nos Estados Unidos e tem larga experiência em editorias de periódicos científicos em medicina. Em Anatomia de uma Epidemia ele assume o desafio de decifrar um 9 enigma: está havendo um crescimento vertiginoso de pessoas diagnosticadas com algum transtorno mental, com parte considerável da população entrando em tratamento psiquiátrico e não se curando com as abordagens psicofarmacológicas; muito pelo contrário, ficam mais doentes e dependentes da psiquiatria. Ora, essa realidade contraria o pensamento dominante segundo o qual a psiquiatria tem tido enorme progresso científico nos últimos cinquenta anos. Essa problemática não pode deixar de nos inquietar. Particularmente a nós, brasileiros, que temos um processo de reforma psiquiátrica reconhecido internacionalmente. Ao deslocar a assistência para o território e oferecer aos usuários dos serviços públicos cuidados baseados em abordagens psicossociais, temos tido êxito em diminuir significativamente o número de pessoas tratadas em hospitais psiquiátricos. Não obstante, verificamos que aqui no Brasil vem se produzindo um fenômeno em muito assemelhado ao que se passana maioria das sociedades que não contam com uma reforma da assistência tão radical como a que temos obtido com muitas lutas. Trata-se do crescimento vertiginoso do número de pessoas que são diagnosticadas com algum transtorno mental e não conseguem deixar de ser pacientes (usuários) da assistência psiquiátrica. Por que isso ocorre? Por que os ''transtornos mentais", como as psicoses, os transtornos depressivos, os transtornos de ansiedade, e assim por diante, são doenças crônicas em sua maioria? Será que é porque os serviços são carentes de recursos humanos, físicos, técnicos ou financeiros? Se assim for, a dimensão da "epidemia" é muito maior ainda, porque não faltam relatos de pesquisas a afirmarem que há subnotificação diagnóstica, que haveria muito mais pessoas que deveriam estar em tratamento se os profissionais estivessem mais bem formados academicamente. Será que vivemos uma "epidemia" de transtornos mentais de fato? O senso comum diz que sim! O impactante na leitura de Anatomia é que vários dos fundamentos que sustentam esse senso comum são ilusórios! São mitos criados com nenhuma ou pouca fundamentação científica. Whitaker nos motiva a refletir profundamente e com coragem sobre o que está errado e não sabemos dizer o que é. Guiados pelo senso comum, fazemos esforços para escapar dessa "epidemia", mas não podemos. Nosso sofrimento e o do outro - depressão, psicoses, dificuldades de relacionamento, insônia, ou medo - precisa ser compreendido. Tentamos de todas as maneiras negar o sofrimento! E quando buscamos um médico, uma orientação, um suporte afetivo-emocional, 10 é-nos apresentado um determinado diagnóstico, quase sempre acompanhado por uma droga psiquiátrica. O enigma é: por que continuamos a sofrer, física, fisiológica e/ou psicologicamente? Por que o sofrimento parece ficar ainda mais acentuado com as formas de tratamento hegemônicas? O primeiro mito abordado por Whitaker é o de que, graças aos avanços científicos das últimas décadas, a sociedade conta, cada vez mais, com diagnósticos psiquiátricos precisos, com protocolos de intervenção objetivos e confiáveis, capazes de identificar problemas que até então ou não eram percebidos ou eram abordados de forma não científica, os quais devem orientar o tratamento adequado. Por conseguinte, não é surpresa que o número de pessoas com algum "transtorno mental" esteja sempre aumentando. Sendo isso quase s_enso comum entre nós, o desafio maior seria dotar o sistema de saúde de capacidades para dar conta·das demandas (das quais uma parte significativa ainda estaria reprimida!). Whitaker desconstrói esse mito recapitulando a história das maneiras como a psiquiatria tem tornado problemas normais, usuais - comuns ao cotidiano da maioria das pessoas - em "transtornos mentais". Em sua desconstrução, adota a própria lógica que supostamente sustenta o discurso psiquiátrico: a das evidências científicas. Com a leitura do livro, a cada página somos surpreendidos com a constatação de que faltam justamente evidências científicas para a construção das categorias de diagnóstico. As sucessivas revisões doDiagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), dizem os seus formuladores, apenas tornam oficial o que é observado na prática. Dizem ainda que a causa dos transtornos mentais é essencialmente biológica, e por isso mesmo a medicação psiquiátrica é essencial. Quer dizer, historicamente o que a psiquiatria tem feito é primeiro nomear transtornos para depois buscar causas biológicas. A lógica que fundamenta a construção desses manuais é que se um número importante de clínicos sente que determinada categoria de diagnóstico é importante em seu trabalho, então essa categoria merece estar no manual (muito em particular noDSM, objeto de análise de Whitaker). As sucessivas versões doDSM têm como questão saber o quanto de consenso há para se reconhecer e incluir um transtorno mental qualquer. Porém, para a ciência acordo não necessariamente significa verdade. O segundo mito é o de que as drogas psiquiátricas íniciaraffi um extraordinário avanço científico. Para a visão oficial, a introdução da clorpromazina na medicina asilar em 1955 foi o ponto de partida para uma revolução na psiquiatria, comparável à introdução da penicilina na medicina. E em 1989, com a introdução dos medicamentos da segunda geração, argumenta-se que ocorre uma nova li etapa revolucionária. Com "transtornos mentais" bem definidos e medicamentos adequados para atingir o "alvo", eis que nós, contemporâneos, podemos, cada vez mais, nos ver livres do "sofrimento psíquico" - é o que nos fazem pensar! Ora, quando se faz um tratamento para determinada doença, o que se espera é que esta desapareça ou pelo menos seja submetida a controle. No entanto, cada vez mais há mais pessoas "doentes mentais" e em tratamento por médio e longo prazos. Como o medicamento psiquiátrico age no cérebro? Segundo a teoria, há um desequilíbrio químico subjacente a cada ''transtorno mental". Por exemplo, a teoria da dopamina para a esquizofrenia e da serotonina para a depressão. Não obstante essa crença, há muito poucas evidências científicas a confirmar tal teoria. Ao contrário, o que aparece são- evidências que a desmentem. O que cada vez mais tem ficado evidente é que as drogas psiquiátricas criam perturbações nas funções dos neurônios; temporárias, mas desgraçadamente muitas vezes definitivas. O que explicaria a razão pela qual as pessoas que começam a tomar antipsicóticos, antidepressivos, ansiolíticos não possam mais interromper o tratamento medicamentoso, sob o risco de terem recaídas que as deixam em condição muito mais grave do que o estado em que se encontravam inicialmente! Tudo parece indicar que após poucas semanas de uso de drogas psiquiátricas, o cérebro da pessoa passa a funcionar de modo qualitativa e quantitativamente diferente daquele como funcionava nos estados normais. E o que não faltam são evidências científicas para se entender esse fenômeno, tradicionalmente conhecido como iatrogenia. São evidências interculturais investigadas pela própria Organização Mundial da Saúde, com clássicos estudos de follow-up, nos quais "países em desenvolvimento", cuja população está menos psiquiatrizada, apresentam muito melhores resultados de cura dos seus cidadãos do que aqueles países onde a presença da psiquiatria é muito forte. São experimentos em animais nos quais as patologias "psiquiátricas" são encontradas após o uso de drogas psiquiátricas. São estudos prospectivos longitudinais que acompanham pessoas, entre pacientes diagnosticados com esquizofrenia, que foram ou não tratadas com medicamentos psiquiátricos ao longo de dois, cinco, dez, quinze, vinte e 25 anos. São pesquisas com imagens de ressonância magnética que demonstram a redução da massa encefálica ao longo do tempo de tratamento com medicamentos psiquiátricos. Muito provavelmente, o leitor de Anatomia de uma Epidemia ficará surpreso como a maioria dos seus leitores nos diversos países têm ficado. Os desafios para nós, brasileiros, são enormes, sobretudo porque o uso de medicamentos 12 psiquiátricos está tão generalizado entre nós, no cotidiano da nossa população, mesmo nos serviços e dispositivos clínicos construídos no bojo do processo de reforma psiquiátrica! Assim como tem sido trabalhoso para nós superar o modelo asilar de assistência, certamente não será menos difícil conseguirmos mudar o paradigma da psiquiatria biológica que domina a nossa assistência. Como tratar as pessoas? Relativizando não apenas os diagnósticos, mas sobretudo o papel hegemônico que a medicação psiquiátrica exerce no cotidiano? É possível obter os resultados esperados com as diversas abordagens de natureza psicossocial se os pacientes estão sendo submetidos a tratamentos psicofarmacológicos? Como livrar o grande número de pacientes das drogas psiquiátricas após meses ou anos de uso? Whitaker apresenta alternativas. Detalha o exemplodas experiências na Finlândia, conhecidas pela expressão diálogo aberto, em que, com o emprego ao nível mais reduzido quanto possível de drogas psiquiátricas, e sempre a curto prazo, os resultados com o tratamento da esquizofrenia são os melhores de todo o mundo ocidental. O princípio fundamental que orienta essa abordagem é o diálogo entre os profissionais, os pacientes, suas redes sociais, explorando todos os recursos psicossociais disponíveis no território. A maioria das pessoas é tratada em sua própria casa, reduzindo-se ao máximo a necessidade de espaços físicos especializados em cuidados em saúde mental. Esperamos que este livro seja um instrumento de reflexão para todos os seus leitores, mas principalmente para os profissionais que atuam nas práticas clínicas e institucionais e que, por uma série de razões - dentre as quais se destacam as maciças propagandas e promoções dos laboratórios, inclusive com o financiamento de pesquisas, publicações, programas de formação e eventos médicos. E que esses profissionais acreditem que é possível melhorar o cuidado dirigido às pessoas em sofrimento, assim como a vida destas e a de seus familiares. Fernando Freitas Psicólogo, doutor em psicologia Paulo Amarante Médico, doutor em saúde pública Pesquisadores titulares do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz 13 Apresentação A história da psiquiatria e de seus tratamentos pode ser uma questão controvertida em nossa sociedade, tanto assim que, quando escrevemos sobre ela, como fiz num livro anterior, Mad in America [Loucos nos Estados Unidos], é comum as pessoas perguntarem como viemos a nos interessar pelo assunto. A suposição é que o sujeito deve ter uma razão pessoal para sentir curiosidade sobre esse tema, caso contrário preferiria ficar longe do que pode ser um tremendo campo minado político. Além disso, em geral, quem pergunta está tentando determinar se o autor tem alguma inclinação pessoal que influencie seu texto. No meu caso, eu não tinha nenhuma ligação pessoal com o assunto. Cheguei a ele de uma forma muito indireta. Em 1994, depois de trabalhar alguns anos como repórter de um jornal, deixei o jornalismo diário para ser cofundador de uma editora, a CenterWatch, que fazia relatórios sobre os aspectos comerciais dos testes clínicos de novos medicamentos. Nossos leitores vinham de empresas farmacêuticas, faculdades de medicina, da clínica médica particular e de Wall Street, e, na maioria dos casos, escrevíamos sobre essa iniciativa de uma forma receptiva à indústria. Víamos os testes clínicos como parte de um processo que trazia para o mercado melhores tratamentos médicos e informávamos sobre os aspectos financeiros dessa indústria crescente. Então, no começo de 1998, deparei com uma matéria que falava dos maus-tratos a pacientes psiquiátricos nos meios de pesquisa. Mesmo sendo coproprietário da CenterWatch, vez por outra eu escrevia artigos comofteelance para revistas e jornais e, naquele outono, fui coautor de uma série sobre esse problema para o Boston Globe. Havia vários tipos de "maus-tratos" em que Dolores Kong e eu nos concentramos. Examinamos estudos financiados pelo Instituto Nacional de Saúde Mental 15 ANATOMIA DE UMA EPIDEl\.flA (NIMH)1 que envolviam administrar a pacientes esquizofrênicos um medicamento destinado a exacerbar seus sintomas ( os estudos serviam para investigar a biologia da psicose). Investigamos as mortes que haviam ocorrido durante os testes dos novos antipsicóticos atípicos. Por fim, informamos sobre estudos que envolviam retirar de pacientes esquizofrênicos os seus medicamentos antipsicóticos, o que nos pareceu ser antiético. Na verdade, consideramos que era ultrajante. Nosso raciocínio era fácil de compreender. Diziam que essas drogas eram "como a insulina para o diabetes". Fazia algum tempo que eu sabia que isso era "verdade", desde a ocasião em que fizera a cobertura do campo da medicina no Albany Times Union. Claramente, portanto, era um abuso os pesquisadores psiquiátricos fazerem dezenas de estudos sobre a suspensão dos medicamentos, nos quais calculavam cuidadosamente a percentagem de pacientes esquizofrênicos que tornavam a adoecer e tinham que ser reinternados. Por acaso alguém conduziria um estudo que envolvesse retirar a insulina de diabéticos, para ver com que rapidez eles tornavam a adoecer? Foi assim que descrevemos na nossa série os estudos sobre retirada da medicação, e esse teria sido o fim dos meus escritos sobre psiquiatria, não fosse o fato de ter me restado uma questão não resolvida que me incomodava. Enquanto preparava as reportagens dessa série, eu havia deparado com duas constatações de pesquisas que simplesmente não faziam sentido. A primeira era de investigadores da Faculdade de Medicina de Harvard que anunciaram, em 1994, que os resultados observados nos pacientes de esquizofrenia nos Estados Unidos haviam piorado durante as duas décadas anteriores, e não estavam melhores agora do que tinham sido cem anos antes. A segunda era da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em duas ocasiões, havia constatado que os resultados referentes à esquizofrenia eram muito melhores em países pobres, como a Índia e a Nigéria, do que nos Estados Unidos e em outros países ricos. Entrevistei vários especialistas a respeito dos dados da OMS e eles sugeriram que os maus resultados nos Estados Unidos se deviam a políticas sociais e valores culturais. Nos países pobres as famílias davam mais apoio aos esquizofrênicos, disseram eles. Embora isso parecesse plausível, não era uma explicação inteiramente satisfatória e, depois de publicada a série no Boston Glohe, voltei atrás e reli todos os artigos científicos relacionados com o estudo da OMS sobre os resultados referentes à esquizofrenia. Foi então que fiquei sabendo de um fato estarrecedor: nos países pobres, apenas 16% dos pacientes eram sistematicamente mantidos com medicamentos antipsicóticos. Sigla da denominação original, National Institute ofMental Health. (N.T.) 16 Apresentação É esta a história da minha entrada no "campo minado" da psiquiatria. Eu havia acabado de ser coautor de uma série que, numa de suas partes, tinha se concentrado no quanto era antiético retirar a medicação de pacientes esquizofrênicos, e, no entanto, ali estava um estudo da OMS que parecia haver encontrado uma associação entre os resultados positivos e a não utilização contínua desses medicamentos. Escrevi Loucos nos Estados Unidos, que se transformou numa história do tratamento dos doentes mentais graves em nosso país, para tentar compreender como isso era possível. Confesso tudo isto por uma razão simples. Uma vez que a psiquiatria é um tema tão controvertido, considero importante os leitores compreenderem que iniciei esta longa jornada intelectual como alguém que acreditava no saber convencional. Eu acreditava que os pesquisadores psiquiátricos estavam descobrindo as causas biológicas das doenças mentais e que esse conhecimento levara ao desenvolvimento de uma nova geração de drogas psiquiátricas que ajudavam a "equilibrar" a química cerebral. Esses medicamentos eram como "insulina para o diabetes". Eu acreditava que isso era verdade, porque era o que me diziam os psiquiatras na época em que eu escrevia para jornais. Depois, no entanto, tropecei no estudo de Harvard e nas descobertas da OMS, e isso levou a que eu me lançasse numa busca intelectual que acabou por se transformar neste livro,Anatomia de uma Epidemia. 17 1 Uma Praga Moderna "Esta é a essência da ciência:Jaça uma pergunta impertinente e você estará a caminho de uma resposta pertinente." � Jacob Bronowski, 19731 Esta é a história de um enigma da medicina. Trata-se de um emgma de natureza extremamente curiosa, mas que nós, como sociedade, precisamos desesperadamente resolver, pois ele fala de uma epidemia oculta quevem reduzindo a vida de milhões de norte-americanos, inclusive de um número rapidamente crescente de crianças. Essa epidemia teve um aumento de tamanho e alcance nas últimas cinco décadas, e hoje incapacita 850 adultos e 250 crianças diariamente. E esses números estarrecedores dão apenas uma sugestão do verdadeiro alcance dessa praga moderna, pois são somente a contagem dos que ficaram tão doentes que suas famílias ou seus cuidadores foram autorizados a receber do governo federal um cheque de pensão por invalidez. Então, eis o quebra-cabeça. Como sociedade, passamos a entender que a psiquiatria fez grandes progressos no tratamento das doenças mentais nos últimos cinquenta anos. Há cientistas descobrindo as causas biológicas dos distúrbios mentais, e as empresas farmacêuticas desenvolveram diversos remédios eficazes para esses problemas de saúde. Essa história tem sido contada em jornais, revistas e livros, e a prova de nossa crença nela como sociedade pode ser encontrada em nossos gastos habituais. Em 2007, gastamos 25 bilhões de dólares em antidepressivos e antipsicóticos e, para situar essa cifra no panorama geral, ela foi superior ao produto interno bruto de Camarões, uma nação de 18 milhões de pessoas.2 Em 1999, David Satcher, o diretor nacional de Saúde dos Estados Unidos, resumiu bem essa história de progresso científico, num relatório de 458 páginas intitulado Saúde Mental. Segundo ele, podia-se dizer que a era moderna da psiquiatria tivera início em 1954. Antes dessa data, a psiquiatria não dispunha de tratamentos que pudessem "impedir que os pacientes ficassem cronicamente 21 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA enfermos". Mas então foi introduzido o T horazine.1 Essa foi a primeira droga a constituir um antídoto específico para um distúrbio mental - era um medicamento antipsicótico - e ela deu o pontapé inicial numa revolução psicofarmacológica. Logo em seguida, foram descobertos agentes antidepressivos e ansiolíticos, e, como resultado, hoje desfrutamos de "uma variedade de tratamentos, de eficácia bem documentada, para o conjunto de transtornos mentais e comportamentais claramente definidos que ocorrem ao longo da vida", escreveu Satcher. A introdução do Prozac e de outros medicamentos psiquiátricos de "segunda geração", acrescentou o diretor nacional de Saúde, foi "instigada por avanços das neurociências e da biologia molecular" e representou mais uin avanço no tratamento das doenças mentais.3 Os estudantes de medicina que fazem formação em psiquiatria leem sobre essa história em seus livros didáticos, e o público lê sobre ela nas matérias populares a respeito desse campo. A torazina, escreveu Edward Shorter, catedrático da Universidade de Toronto, em seu livro Uma História da Psiquiatria, de 1997, "iniciou na psiquiatria uma revolução comparável à introdução da penicilina na medicina geral".4 Esse foi o começo da "era psicofarmacológica", e agora podíamos ter certeza de que a ciência havia provado que as drogas do armário de medicamentos da psiquiatria eram benéficas. "Dispomos de tratamentos muito eficazes e seguros para uma ampla gama de distúrbios psiquiátricos", informou Richard Friedman, diretor da clínica de psicofarmacologia da Faculdade de Medicina Weill Cornell, aos leitores do New York Times, em 19 de junho de 2007.5 Três dias depois, num editorial intitulado "Quando as crianças precisam de remédios", o Boston Globe fez eco a esse sentimento: "O desenvolvimento de medicamentos potentes revolucionou o tratamento da doença mental".6 Psiquiatras que trabalham em países do mundo inteiro também creem que isso seja verdade. Na 161ª Conferência Anual da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (APA} ,11 realizada em maio de 2008 em Washington, quase metade dos vinte mil psiquiatras presentes era estrangeira. Nos corredores fervilhavam conversas sobre esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão, distúrbio do pânico, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e uma multiplicidade de outros distúrbios descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, m da APA, e, ao longo de cinco dias, quase todas as palestras, seminários e simpósios falaram de avanços nesse campo. "Percorremos um longo caminho na compreensão dos n m 22 Torazina, vendida no Brasil com o nome comercial de Amplictil. (N.T.) Sigla da denominação original, American Psychiatric Association. (N.T.) Diagnostic and Statistical Manual ef Mental Disorders, comumente citado pela abreviatura DSM. (N.T.) Uma Praga Moderna transtornos psiquiátricos, e nossos conhecimentos continuam a se expandir", disse à plateia Carolyn Robinowitz, presidente da APA, em seu discurso de abertura. "Nosso trabalho salva e melhora inúmeras vidas."7 Mas aí é que está o enigma. Dado esse grande avanço no tratamento, seria de se esperar que o número de inválidosrv por doença mental nos Estados Unidos, numa estatística per capita, houvesse declinado nos últimos cinquenta anos. Também seria de se esperar que o número de doentes mentais inválidos, numa proporção per capita, houvesse diminuído desde a chegada do Prozac, em 1988, e dos outros medicamentos psiquiátricos de segunda geração. Deveríamos ter visto uma queda em duas etapas nas taxas de invalidez. Ao contrário, à medida que se desdobrou a revolução psicofarmacológica, o número de casos de invalidez por doença mental nos Estados Unidos teve um aumento vertiginoso. Além disso, tal aumento desse número de casos acelerou-se ainda mais desde a introdução do Prozac e das outras drogas psiquiátricas de segunda geração. E o mais perturbador de tudo é que esta praga da era moderna vem se espalhando agora entre as crianças do país. Os dados sobre invalidez, por seu turno, levam a uma pergunta muito mais ampla. Por que tantos norte-americanos, na atualidade, ainda que não se hajam tornado inválidos por doenças mentais, são atormentados por problemas mentais crônicos - por depressões recorrentes, sintomas bipolares e uma ansiedade incapacitante? Se dispomos de tratamentos que lidam de maneira eficaz com esses distúrbios, por que a doença mental tem se tornado um problema de saúde cada vez maior nos Estados Unidos? O termo disabled pode ser traduzido para o português como inválido, deficiente, incapacitado. No Brasil, tal terminologia não é empregada no campo da saúde mental, por ser considerada politicamente incorreta. Nos Estados Unidos, o governo federal, por intermédio da Administração do Seguro Social (Social Security Administration), tem dois programas para pessoas que se tornam inválidas (disabled) e incapazes para trabalhar. Os doentes mentais consid.erados inválidos mencionados no texto de Whitaker são aquelas pessoas que se encontram entre os considerados com alguma incapacidade (deficiência, invalidez) devida a doença. Whitaker utiliza o termo com o sentido muito específico empregado nos Estados Unidos: o número de pessoas que recebem o pagamento do governo por invalidez, porque podem ser declaradas incapacitadas por doença mental. Atualmente, os pesquisadores que buscam rastrear o número de inválidos por doença mental na era moderna comparam-no com o número de pessoas em hospitais psiquiátricos antes da desinstitucionalização, na medida em que eram vistos como uma população incapaz de cuidar de si própria. Algo, portanto, muito importante: Whitaker não faz uso de "inválidos por doença mental" com algum tipo de sentido genérico para descrever o doente mental. Mas usa tal expressão para definir um número de pessoas que recebem do governo federal pagamentos por incapacidade, porque são considerados incapacitados para trabalhar devido à sua doença mental. (N.R.T.) 23 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA A Epidemia Bem,juro que este não será apenas um livro de estatísticas. Estamos tentando solucionar um mistério neste livro, e isto nos levará a urna exploração da ciência e da história e, em última análise, a uma narrativa com muitas reviravoltas surpreendentes. Masesse mistério brota de uma análise profunda das estatísticas do governo e, portanto, como primeiro passo, precisamos levantar os números da invalidez nos últimos cinquenta anos, para ter certeza de que a epidemia é real. Em I 955, os doentes mentais inválidos eram primordialmente tratados em manicômios municipais e estaduais. Hoje em dia, é típico receberem um pagamento mensal da Renda Complementar da Previdência (SSI) v ou uma pensão do Seguro da Previdência Social por Invalidez (SSDI),VI e muitos vivem em abrigos residenciais ou em outras instituições residenciais subsidiadas. Essas duas fontes estatísticas fornecem uma contagem aproximada do número de pessoas sob a assistência do governo por terem sido incapacitadas por doenças mentais. Em 1955, havia 566.000 pessoas em hospitais psiquiátricos municipais e estaduais. Entretanto, apenas 355.000 delas tinham um diagnóstico psiquiátrico, uma vez que as demais sofriam d e alcoolismo, demência ligada à sífilis, mal de Alzheimer e retardas mentais, população esta que não figuraria numa contagem dos atuais casos de invalidez por doença mental.8 Portanto, em 1955, um em cada 468 norte-americanos era hospitalizado por doença mental. Em 1987, havia 1,25 milhão de pessoas recebendo pensões da SSI ou do SSDI por invalidez decorrente de doença mental, ou um em cada 184 norte-americanos. Doentes mentais hospitalizados em 1955 Primeira internacão Pacientes residentes Transtornos osicóticos Esquizofrenia 28.482 267.603 Psicose maníaco-depressiva 9.679 50.937 Outros 1.387 14.734 Psiconeurose ( Ansiedade i 6.549 5.415 Transtornos de nersonalidade 8.730 9.739 Todos os demais 6.497 6.966 Embora houvesse 558.922 pacientes residentes em hospitais psiquiátricos municipais e estaduais em I 955, apenas 355.000 sofriam de doenças mentais. Os outros 200.000 eram pacientes idosos que sofriam de demência, sífilis em estágio final, alcoolismo, retardo mental e diversas síndromes neurológicas. Fonte: C. Silverman; The Epidemiology ef Depression, 1968: 139. V "' 24 A sigla da denominação original, Supplemental Security Incarne, foi mantida nesta tradução. (N.T.) A sigla da denominação original, Social Security Disability Insurance, foi mantida nesta tradução (N.T.) Uma Praga Moderna Ora, pode-se argumentar que isso é comparar alhos com bugalhos. Em 1955, talvez os tabus da sociedade a respeito da doença mental levassem a uma relutância em procurar tratamento e, por isso, a baixos índices de hospitalização. Também é possível que a pessoa precisasse estar mais doente para ser hospitalizada em 1955 do que para receber uma pensão da SSI ou do SSDI em 1987, e por isso o índice de invalidez em 1987 seria tão mais elevado. Entretanto, também seria possível elaborar argumentos no sentido inverso. Os números da SSI e do SSDI fornecem apenas uma contagem dos doentes mentais inválidos com menos de 65 anos de idade, ao passo que os hospitais psiquiátricos de 1955 abrigavam muitos esquizofrênicos idosos. Também havia muito mais doentes mentais que eram moradores de rua e estavam na cadeia em 1987 do que em 1955, e essa população não aparece nos cálculos da invalidez. A comparação é imperfeita, mas é a melhor que se pode fazer para levantar os índices de invalidez entre 1955 e 1987. Felizmente, a partir de 1987, a comparação torna-se direta, envolvendo apenas os números da SSI e do SSDI. A Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA) VII aprovou o Prozac em 1987 e, nas duas décadas seguintes, o número de inválidos por doença mental nas listas da SSI e do SSDI saltou para 3,97 milhões.9 Em 2007, o índice de invalidez era de um em cada 76 norte americanos. Isso equivale a mais do dobro do índice de 1987 e a seis vezes o de 1955. A comparação direta prova que há alguma coisa errada. Se vasculharmos um pouco mais os dados sobre invalidez, encontraremos um segundo quebra-cabeça. Em 1955, a depressão grave e o transtorno bipolar não incapacitavam muita gente. Havia apenas 50.937 pessoas em hospitais psiquiátricos municipais e estaduais com diagnóstico de um desses transtornos afetivos.10 Durante a década de 1990, entretanto, pessoas em luta com a depressão e com o transtorno bipolar começaram a aparecer nas listas da SSI e do SSDI em número cada vez maior, e hoje estima-se que haja 1,4 milhão de pessoas de 18 a 64 anos que recebem pensão federal por invalidez em decorrência de transtornos afetivos.1 1 Acresce que essa tendência vem se acelerando: de acordo com o relatório de 2008 do General Accountability Office (GAO),virr 46% dos adultos jovens (de 18 a 26 anos) que receberam pensão da SSI ou do SSDI por invalidez psiquiátrica em 2006 foram diagnosticados com algum transtorno afetivo ( e outros 8% tornaram se inválidos por "transtorno da ansiedade").12 Sigla da denominação original, Federal Drug Administration. (N.T.) VIII Órgão que tem, nos Estados Unidos, funções similares às da Controladoria Geral da União (CGU) no Brasil. (N.T.) 25 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA Invalidez por doença mental na era do Prozac Beneficiários da SSI e do SSDI abaixo de 65 anos com invalidez por doença mental, 1987-2007 4.000.000 3.500.000 3.000.000 2.500.000 2.000.000 1.500.000 1.000.000 1987 1992 1997 2002 Total Beneficiários da S81 Beneficiários do SSDI 2007 Um em cada seis beneficiários do SSDI também recebe pagamentos da SSI, de modo que o número total de beneficiários é inferior à soma dos números da SSI e do SSDI. Fonte: relatórios da Administração de Seguridade Social, 1987-2007. Essa praga das doenças mentais incapacitantes também se espalhou agora entre nossas crianças. Em 1987, havia 16.200 crianças abaixo de 18 anos que recebiam pensão da SSI como incapacitadas por doença mental grave. Essas crianças correspondiam a apenas 5,5% das 293.000 incluídas no rol dos inválidos - na época, a doença mental não era uma causa preponderante de invalidez entre as crianças do país. A partir de 1990, porém, o número de crianças com doenças mentais começou a sofrer uma elevação drástica, e no fim de 2007 havia 561.569 delas no rol dos inválidos da SSI. No curto intervalo de vinte anos, o número de crianças incapacitadas por doenças mentais aumentou 35 vezes. Hoje em dia, a doença mental é a principal causa de invalidez nas crianças, e o grupo dos doentes mentais abrangeu 50% do total de crianças no rol da SSI em 2007. 13 A natureza desconcertante dessa epidemia infantil aparece com especial clareza nos dados da SSI de 1996 a 2007. Enquanto o número de crianças incapacitadas por doenças mentais mais do que duplicou durante esse período, o número de crianças no rol da SSI por todas as outras razões - câncer, retardo mental etc. - diminuiu, baixando de 728.110 para 559.448. Ao que parece, os médicos do país estavam progredindo no tratamento de todas essas outras doenças, mas, no que dizia respeito às doenças mentais, constatava-se exatamente o inverso. 26 Uma Praga Moderna Uma Investigação Científica Agora o quebra-cabeça pode ser resumido com precisão. Por um lado, sabemos que muitas pessoas são ajudadas por medicamentos psiquiátricos. Sabemos que muitas pessoas se estabilizam bem com eles e dão depoimentos pessoais sobre como os remédios as ajudaram a levar uma vida normal. Além disso, como assinalou Satcher em seu relatório de 1999, a literatura científica realmente documenta que as drogas psiquiátricas, pelo menos a curto prazo, são "eficazes". Os psiquiatras e outros médicos que as receitam atestam esse fato, e muitos pais de crianças que tomam remédios psiquiátricos também juram por sua eficácia. Tudo isso compõe um poderoso consenso: as drogas psiquiátricas funcionam e ajudam as pessoas a levarem uma vida relativamente normal. No entanto, ao mesmo tempo, ficamos às voltas com fatos perturbadores: o número de pessoas com invalidez por doença mental teve um crescimento drástico desde 1955, e, nas duas últimas décadas, período em que houveuma explosão nas receitas de medicamentos psiquiátricos, o número de adultos e crianças incapacitados por doenças mentais subiu de maneira estarrecedora. Chegamos assim a uma pergunta óbvia, ainda que de natureza herege: poderia o nosso paradigma de atendimento medicamentoso, de alguma forma imprevista, estar alimentando essa praga dos tempos modernos? É minha esperança que Anatomia de uma Epidemia sirva como uma exploração dessa pergunta. Também é fácil perceber o que deveremos encontrar, se quisermos resolver esse quebra-cabeça. Precisaremos descobrir uma história da ciência que se desdobre no correr de 55 anos, provenha das melhores pesquisas e explique todos os aspectos do nosso quebra-cabeça. A história deve revelar por que houve um aumento drástico do número de inválidos por doença mental, deve explicar por que os transtornos afetivos incapacitantes são tão mais comuns hoje do que há cinquenta anos, e deve explicar por que atualmente tantas crianças vêm sendo derrubadas por doenças mentais graves. E, se encontrarmos essa história, deveremos estar aptos a explicar por que ela permaneceu oculta e desconhecida. Também é fácil perceber o que está em jogo. Os números da invalidez são apenas um indício do extraordinário tributo que a doença mental tem cobrado de nossa sociedade. Em seu relatório de junho de 2008, o GAO concluiu que um em cada 16 adultos jovens dos Estados Unidos tem hoje ''uma doença mental grave". Nunca houve uma sociedade que visse tamanha praga de doenças mentais em seus adultos jovens, e os que entram nas listas da SSI e do SSDI nessa faixa etária precoce tendem a passar o resto da vida recebendo pensão por invalidez. O jovem 27 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA de 20 anos que entra nas listas da SSI ou do SSDI receberá mais de um milhão de dólares em benefícios nos próximos quarenta anos, aproximadamente, e esse é um custo - caso a epidemia continue aumentando - que nossa sociedade não terá corno bancar. Há outro aspecto, mais sutil, nessa epidemia. Nos últimos 25 anos, a psiquiatria remoldou profundamente a nossa sociedade. Por meio do seu Manual Diagn6stico e Estatístico, ela traçou uma fronteira entre o que é "normal" e o que não é. Nossa compreensão social da mente humana, que no passado provinha de uma mescla de fontes (grandes obras de ficção, investigações científicas e textos filosóficos e religiosos), é hoje filtrada pelo DSM. Na verdade, as histórias contadas pela psiquiatria sobre "os desequilíbrios químicos" do cérebro reformularam nossa compreensão de corno funciona a mente e questionaram nossas concepções do livre-arbítrio. Será que somos realmente prisioneiros de nossos neurotransmissores? Mais importante, nossas crianças são as primeiras da história humana a crescerem sob a sombra constante da "doença mental". Não faz muito tempo, os vadios, os gaiatos, os valentões, os cê-dê-efes, os tímidos, os xodós dos professores e um sem-número de outros tipos reconhecíveis enchiam os pátios das escolas, e todos eram considerados mais ou menos normais. Ninguém sabia realmente o que esperar dessas crianças quando chegassem à idade adulta. Isso fazia parte da gloriosa incerteza da vida-o mandrião da quinta série podia aparecer na comemoração de vinte anos de formatura do curso médio como o empresário rico, e a menina tímida, como uma atriz de sucesso. Hoje em dia, no entanto, as crianças diagnosticadas com problemas mentais - em especial transtorno do déficit de atenção com hiperatividade [TDAH], depressão e transtorno bipolar - ajudam a povoar o pátio estudantil. Essas crianças são informadas de que há algo errado com seu cérebro e de que talvez tenham que tomar remédios psiquiátricos pelo resto da vida, assim como "o diabético torna insulina". Essa máxima da medicina ensina a todos os alunos do pátio uma lição sobre a natureza da humanidade, e essa lição difere radicalmente do que se costumava ensinar às crianças. Portanto, eis o que está em jogo nesta investigação: se for verdadeira a história convencional, e se a psiquiatria de fato houver obtido grandes progressos na identificação das causas biológicas dos distúrbios mentais e no desenvolvimento de tratamentos eficazes para essas doenças, poderemos concluir que tem sido benéfica a remoldagem de nossa sociedade pela psiquiatria. Por pior que possa ser a epidemia de doenças mentais incapacitantes, será razoável supormos que, sem esses avanços da psiquiatria, ela seria muito pior. A literatura científica 28 Uma Praga Moderna mostrará que milhões de crianças e adultos estão sendo auxiliados pelos medicamentos psiquiátricos, e que sua vida tem se tornado mais rica e mais plena, como disse Carolyn Robinowitz, a presidente da APA, em seu discurso na conferência de 2008 dessa entidade. Mas, se desvendarmos uma história de outra natureza - uma história que mostre que as causas biológicas das doenças mentais continuam por ser descobertas e que, na verdade, os medicamentos psiquiátricos vêm alimentando a epidemia de doenças mentais incapacitantes -, o que dizer? Teremos documentado uma história que fala de uma sociedade terrivelmente desencaminhada e, poderíamos dizer, traída. E, se for esse o caso, passaremos a última parte deste livro examinando o que, como sociedade, podemos fazer para construir um futuro diferente. 29 2 Reflexões Experienciais "Se valorizamos a busca do conhecimento, devemos ter a liberdade de prosseguir nessa busca aonde quer que ela nos leve." - Adiai Stevenson, 19521 O Hospital McLean, em Belmont, no estado de Massachussetts, é um dos manicômios mais antigos dos Estados Unidos, pois foi fundado em 1817, quando um tipo de atendimento conhecido por terapia moral vinha sendo popularizado pelos quacres. Era convicção deles que se devia construir um retiro para os doentes mentais num ambiente buc6lico, e até hoje o campus do McLean, com suas belas construções de tijolos e seus jardins cheios de sombra, dá a impressão de um oásis. Na noite de agosto de 2008 em que lá cheguei, para comparecer a uma reunião da Aliança de Apoio a Depressivos e Bipolares (DBSA) ,1 essa sensação de tranquilidade foi acentuada pelas condições climáticas. Foi uma das noites mais gloriosas do verão e, quando me aproximei da lanchonete onde deveria realizar se o encontro, imaginei que talvez a frequência noturna fosse reduzida. A noite estava agradável demais para se ficar num recinto fechado. Tratava-se de uma reunião para moradores da comunidade, o que significava que eles teriam que sair de suas casas e apartamentos para ir até lá, e, considerando que o grupo do Hospital McLean se reunia cinco vezes por semana - havia uma sessão vespertina todas as segundas, quintas, sextas e sábados, bem como uma reunião noturna todas as quartas-feiras -, calculei que a maioria das pessoas ligadas ao grupo faltaria a esse encontro. Eu estava errado. Cerca de cem pessoas enchiam a cafeteria, numa cena que atestava, em pequena escala, a epidemia de doenças mentais incapacitantes que eclodiu em nosso país nos últimos vinte anos. A Aliança de Apoio a Depressivos e Bipolares foi fundada em 1985 (a princípio conhecida como Associação dos Depressivos e Maníaco-Depressivos), iniciando-se esse grupo do McLean pouco depois disso, Sigla da denominação original, Depression and Bipolar Support Alliance. (N.T.) 31 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA e hoje a organização conta com quase mil desses grupos de apoio em todo o território nacional. Existem sete deles somente na área da Grande Boston, e a maioria - como o grupo que se reúne no McLean - oferece às pessoas a oportunidade de se reunirem e conversarem várias vezes por semana. A DBSA cresceu pari passu com a epidemia. A primeira hora da reunião foi dedicada a uma palestra sobre a "terapia da flutuação" e, à primeira vista, a plateia não era realmente identificável - pelo menos não para uma pessoa de fora, como eu - como um grupo de pacientes. Os participantes tinham idades muito variadas,estando os mais jovens no final da adolescência e os mais velhos na faixa dos 60 anos, e, embora houvesse um número maior de mulheres, talvez essa disparidade de gênero fosse esperável, dado que a depressão afeta mais as mulheres do que os homens. Quase todos na plateia eram brancos, o que talvez refletisse o fato de Belmont ser uma cidade abastada. Talvez o único sinal revelador de que a reunião era para pessoas diagnosticadas com algum distúrbio mental fosse o fato de um bom número delas estar acima do peso. Às pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar é muito comum receitar um antipsicótico atípico, como o Zyprexa, e esses remédios costumam fazer as pessoas engordarem. Terminada a palestra, Steve Lappen, um dos dirigentes da DBSA em Boston, listou os novos grupos que passariam a se reunir. Havia um de "recém-chegados", outro de "familiares e amigos", um terceiro de "adultos jovens", um quarto de· "manutenção da estabilidade" e assim por diante, e a última das oito opções era um "grupo do observador", que Steve havia organizado para mim. Havia nove pessoas no nosso grupo ( excetuando eu mesmo) e, à guisa de introdução, cada um fez um rápido resumo de como vinha passando, ultimamente - "tenho atravessado uma fase difícil" era um refrão comum - e nos falou de seu diagnóstico específico. O homem à minha direita era um ex-executivo que havia perdido o emprego por causa de sua depressão recorrente e, à medida que fizemos a ronda da sala, essas histórias de vida foram surgindo. Uma mulher mais moça falou de seu casamento problemático com um chinês que, em função de sua cultura, não gostava de falar em doença mental. Ao lado dela, um ex-promotor público contou ter perdido a mulher dois anos antes e disse que, desde então, ''tenho a impressão de não saber quem eu sou". Uma mulher que era professora adjunta numa faculdade da região contou como estava difícil o seu trabalho naquele momento, e por fim, uma enfermeira recém-internada no McLean por depressão explicou o que a levara para esse lugar sombrio: ela enfrentava a tensão 32 Reflexões Experienciais de cuidar do pai doente, a tensão do trabalho e anos de convívio com "um marido agressivo". O único momento mais leve dessa rodada de apresentações veio do membro mais velho do grupo. Ele andava passando muito bem nos últimos tempos, e sua explicação para sua relativa felicidade agradaria ao personagem George Constanza, do seriado Seirifeld: "O verão costuma ser uma época difícil para mim, porque todos parecem muito felizes. Mas, com toda a chuva que temos tido, não tem sido bem esse o caso neste verão", declarou. Ao longo da hora seguinte, a conversa saltou de um assunto para outro. Houve uma discussão sobre o estigma enfrentado pelos doentes mentais na nossa sociedade, particularmente no trabalho, e sobre como os familiares e amigos, passado algum tempo, perdem a empatia. Ficou claro que era por isso que muitos integrantes do grupo estavam lá - achavam útil a compreensão compartilhada. A questão da medicação veio à baila e, nesse tema, as opiniões e experiências eram muito variáveis. O ex-executivo, embora ainda sofresse regularmente de depressão, disse que sua medicação fazia "maravilhas" por ele e que seu maior medo era que ela "parasse de funcionar". Outros falaram de haver tentado um remédio após outro, até encontrarem um regime medicamentoso que proporcionasse algum alívio. Steve Lappen disse que os remédios nunca haviam funcionado para ele, enquanto Dennis Hagler, o outro dirigente da DBSA na reunião (que também concordou em ser identificado), disse que uma dose alta de um antidepressivo tinha feito toda a diferença do mundo em sua vida. A enfermeira disse ter reagido muito mal aos antidepressivos em sua hospitalização recente: ''Tive uma reação alérgica a cinco remédios diferentes", afirmou. "Agora estou experimentando um dos novos [antipsicóticos] atípicos. Espero que funcione." Terminadas as sessões grupais, as pessoas se reuniram na lanchonete em grupos de duas ou três, conversando informalmente. Isso criou um momento agradável; havia na sala um sentimento compartilhado de entusiasmo, e era perceptível que a noite havia levantado o ânimo de muitos. Era tudo tão comum que aquilo poderia facilmente ser o encerramento de uma reunião de pais e professores, ou uma reunião social da igreja, e, enquanto eu andava para o carro, foi esse aspecto corriqueiro que mais me impressionou. No grupo do observador, houvera um homem de negócios, um engenheiro, um historiador, um promotor público, uma professora universitária, uma assistente social e uma enfermeira (as outras duas pessoas do grupo não tinham falado de sua história profissional). No entanto, até onde pude perceber, apenas a professora universitária estava empregada 33 .ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA naquele momento. E este era o enigma: as pessoas do grupo do observador tinham instrução e todas tomavam medicamentos psicotrópicos, mas, ainda assim, muitas eram tão atormentadas pela depressão persistente e por sintomas bipolares que não conseguiam trabalhar. Mais cedo, Steve me dissera que cerca de metade dos membros da DBSA recebia pensão da Renda Complementar da Previdência (SSI) ou do Seguro da Previdência Social por Invalidez (SSDI) porque, aos olhos do governo, essas pessoas estavam incapacitadas por suas doenças mentais. É esse o tipo de paciente que vem inchando as listas da SSI e do SSDI nos últimos 15 anos, enquanto a DBSA tornou-se a maior organização de pacientes com doenças mentais do país durante esse período. Agora a psiquiatria tem três classes de medicamentos que usa para tratar os distúrbios afetivos - antidepressivos, estabilizadores do humor e antipsicóticos atípicos -, mas, seja por que for, um número cada vez maior de pessoas aparece nas reuniões da DBSA em todo o país, para falar de sua luta persistente e duradoura com a depressão, a mania, ou ambas. Quatro Histórias Na medicina, as histórias pessoais dos pacientes diagnosticados com uma doença são conhecidas como "estudos de caso", e há um entendimento de que, embora esses relatos experienciais possam trazer a compreensão profunda de uma doença e de seus tratamentos, não têm como provar se determinado tratamento funciona. Somente os estudos científicos que examinam os efeitos do conjunto podem fazê-lo e, mesmo assim, é comum ser nebuloso o quadro que emerge. A razão de os relatos experienciais não poderem fornecer essa comprovação é que as pessoas podem ter reações sumamente variáveis aos tratamentos médicos, o que é particularmente verdadeiro na psiquiatria. Podemos encontrar pessoas que nos falam de corno os remédios psiquiátricos lhes trouxeram imensa ajuda; podemos encontrar pessoas que nos dirão como os remédios arruinaram sua vida; e podemos encontrar pessoas - e estas parecem ser a maioria, na minha experiência - que não sabem o que pensar. Não conseguem propriamente decidir se os medicamentos as ajudaram ou não. Ainda assim, ao nos propormos resolver o enigma da epidemia moderna de doenças mentais incapacitantes nos Estados Unidos, os relatos experienciais podem ajudar-nos a identificar perguntas que será conveniente vermos respondidas em nossa investigação da literatura científica. Vejamos quatro dessas histórias de vida. 34 Reflexões Experienciais Cathy Levin Conheci Cathy Levin em 2004, não muito depois de publicar meu primeiro livro sobre psiquiatria, Loucos nos Estados Unidos. Tornei-me um admirador imediato do seu espírito de luta. A última parte deste meu primeiro livro indagava se os medicamentos antipsicóticos estariam piorando o curso da esquizofrenia a longo prazo (tema explorado no Capítulo 6 do presente livro), e Cathy objetou a essa ideia, de certa maneira. Apesar de ter sido inicialmente diagnosticada com um transtorno bipolar ( em 1978), seu diagnóstico fora posteriormente substituído por um distúrbio "esquizoafetivo" e, na sua própria avaliação, ela fora salva por umantipsicótico atípico, o Risperdal. Em certo sentido, a história que eu havia relatado em Loucos nos Estados Unidos ameaçava a experiência pessoal de Cathy, que me telefonou várias vezes para me dizer o quanto essa droga lhe fora útil. Nascida em 1960 num subúrbio residencial de Boston, Cathy havia crescido no que recordava como um mundo "dominado pelos homens". Seu pai, professor de uma universidade na área de Boston, era veterano da Segunda Guerra Mundial, e sua mãe, do estilo dona de casa, via esses homens como "a espinha dorsal da ordem social". Seus dois irmãos mais velhos, ela se lembrou, costumavam "intimidá-la" e, em mais de uma ocasião, desde quando era bem pequena, vários meninos do bairro a haviam molestado. "Eu vivia chorando quando era criança", disse ela, que não raro fingia estar doente para não ter de ir à escola, preferindo, em vez disso, passar os dias sozinha em seu quarto, lendo livros. Embora se saísse bem no segundo grau, em termos acadêmicos, Cathy tinha sido "uma adolescente difícil, hostil, raivosa, retraída". No segundo ano do bacharelado, na Faculdade Earlham, em Richmond, estado de Indiana, seus problemas afetivos se agravaram. Ela começou a se divertir com os rapazes do time de futebol americano, ansiosa "por transar", disse, mas, ao mesmo tempo, com medo de perder a virgindade. "Eu ficava confusa quanto a me envolver com algum cara. Ia a uma porção de festas e não conseguia mais me concentrar nos estudos. Comecei a levar pau na faculdade." Cathy também estava fumando muita maconha, e logo começou a agir de maneira excêntrica. Pegava roupas emprestadas de outras pessoas para usar, e circulava pelo campus com "tamancos enormes, um macacão por cima da roupa comum, uma jaqueta de aviador e um chapéu engraçado, que comprei numa loja de artigos do Exército e da Marinha". Uma noite, ao voltar de uma festa para casa, ela jogou fora os óculos, sem a menor razão para isso. Suas ideias sobre sexo 35 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA evoluíram aos poucos para uma fantasia com o comediante Steve Martin. Sem conseguir dormir a noite inteira, ela acordava às 4 horas da manhã e saía para caminhar, e às vezes, era como se Steve Martin estivesse no campus a espreitá-la. "Eu achava que ele estava apaixonado por mim e correndo pelos arbustos, sem se deixar ver", disse. "Estava me procurando." A mania e a paranoia foram se combinando numa mistura volátil. O ponto de ruptura veio na noite em que ela atirou um objeto de vidro na parede de seu quarto, no dormitório. ''Não limpei aquilo, fiquei andando em volta. Fiquei tirando cacos de vidro dos pés, sabe? Estava completamente fora de mim." Funcionários da faculdade chamaram a polícia e Cathy foi levada às pressas para um hospital, e foi nesse momento, dias antes de ela completar 18 anos, que teve início sua vida medicada. Ela foi diagnosticada com psicose maníaco depressiva, informada de que sofria de um desequilíbrio químico no cérebro e tratada com Haldol [haloperidol] e lítio. Nos 16 anos seguintes, Cathy entrou e saiu ciclicamente de hospitais. Ela "detestava os remédios" - o Haldol lhe enrijecia os músculos e a fazia babar, ao passo que o lítio a deixava deprimida - e, muitas vezes, parava abruptamente de tomá-los. "Era maravilhoso sair da medicação", disse-me, e até hoje, ao se lembrar dessa sensação, ela parece perder-se no puro deleite de uma lembrança do passado distante. "Quando você larga os remédios, é como tirar um casaco de lã molhado que estava usando, apesar de ser um lindo dia de primavera, e, de repente, sentir se muito melhor, mais livre, com mais prazer." O problema era que, sem os medicamentos, ela "começava a descompensar e a ficar desorganizada". No início de 1994, Cathy foi hospitalizada pela décima quinta vez. Era vista como doente mental crônica, passara a ouvir vozes de vez em quando, e recebeu um novo diagnóstico (transtorno esquizoafetivo) e um coquetel de drogas: Haldol, Ativan, Tegretol, Halcion e Cogentin, sendo esta última droga um antídoto contra os efeitos colaterais desagradáveis do Haldol. No entanto, depois de receber alta naquela primavera, um psiquiatra lhe disse para experimentar o Risperdal, um novo antipsicótico que acabara de ser aprovado pela Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA). "Três semanas depois, minha mente estava muito mais clara", disse Cathy. "As vozes começaram a desaparecer. Deixei os outros remédios e passei a tomar apenas esse. Melhorei. Pude começar a fazer planos. Parei de conversar com o Diabo.Jesus e Deus pararam de travar batalhas na minha cabeça." 36 Reflexões Experienciais O pai de Cathy assim resumiu a situação: "A Cathy voltou". Embora vários estudos financiados pelo Instituto Nacional de Saúde Mental e pelo go.verno britânico tenham constatado que, de modo geral, os pacientes não se saem melhor com o Risperdal e os outros antipsicóticos atípicos do que com os antipsicóticos mais antigos, ficou patente que Cathy respondeu muito bem a esse novo agente. Voltou a estudar e se formou em rádio, cinema e televisão na Universidade de Maryland. Em 1998, começou a sair com o homem com quem vive hoje, Jonathan. Em 2005, aceitou um emprego de meio expediente como editora de Voices .for Change, um boletim de notícias publicado pelo M-Power, um grupo de consumidores de Massachusetts, e conservou esse emprego por três anos. Na primavera de 2008, ajudou a conduzir uma campanha do M-Power para fazer a Câmara dos Deputados de Massachusetts aprovar uma lei para proteger os direitos dos pacientes psiquiátricos nos prontos-socorros. Apesar disso, ela continua a receber pensão do SSDI - "sou uma mulher sustentada", brinca - e, embora haja muitas razões para isso, acredita que o Risperdal, justamente a droga que tanto a ajudou, tem se revelado uma barreira ao trabalho em horário integral. Ainda que ela costume ter muita energia no começo da tarde, o Risperdal a deixa tão sonolenta de manhã que ela tem dificuldade de se levantar. O outro problema é que sempre teve dificuldade para se relacionar com outras pessoas, e o Risperdal agrava esse problema, ao que ela diz. "Os remédios isolam a gente. Interferem na empatia. Há uma certa apatia, e por isso a gente sempre se sente constrangida com as pessoas. Eles tornam difícil nós nos relacionarmos. Os remédios podem cuidar da agressividade, da ansiedade e de um pouco da paranoia, sintomas desse tipo, mas não ajudam na empatia que contribui para nos darmos bem com as pessoas." O Risperdal também cobrou um tributo físico. Cathy tem 1,58m de altura, cabelo castanho ondulado e, apesar de sua razoável forma física, deve estar uns 27 quilos acima do que seria considerado o peso ideal. Também desenvolveu alguns dos problemas metabólicos, como o colesterol elevado, que os antipsicóticos atípicos sempre costumam causar. "Posso enfrentar qualquer velhinha, em pé de igualdade, com um rosário dos meus problemas de saúde", diz ela. "Problemas com os pés, a bexiga, o coração, os seios nasais, o aumento de peso, tudo isso eu tenho." Mais alarmante ainda foi que, em 2006, sua língua começou a enrolar na boca, sinal de que ela estaria desenvolvendo uma discinesia tardia. Quando aparece, esse efeito colateral significa que os gânglios basais, a parte do cérebro que controla o funcionamento motor, está ficando permanentemente disfuncional, danificada por anos de tratamentos medicamentosos. Mas Cathy não consegue 37 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA passar bem sem o Risperdal e, no verão de 2008, isso a levou a um momento de profundo desespero: "É claro que, daqui a alguns anos, terei um aspecto meio horripilante, com os movimentos involuntários na boca". Assim tem sido o curso da sua vida com os medicamentos. Dezesseis anos terríveis, seguidos por 14 anos bastante bons com o Risperdal. Cathy acredita que hoje essa droga é essencial para sua saúde mental e, na verdade, poderia ser vista como uma garota-propaganda local na promoção das maravilhasdesse remédio. No entanto, se pensarmos no longo curso de sua doença e remontarmos à sua primeira hospitalização, aos 18 anos de idade, seremos forçados a perguntar: ela teve uma história de vida aprimorada por nosso paradigma de tratamento medicamentoso dos distúrbios mentais, ou será que teve uma história de vida piorada? De que maneira poderia ter se desenrolado a sua vida se, ao sofrer seu primeiro episódio maníaco, no outono de 1978, ela não tivesse sido imediatamente medicada com lítio e Haldol, e se, em vez disso, os médicos houvessem tentado outros meios - repouso, terapias psicológicas etc. - para restaurar sua sanidade? Ou se, depois de estabilizada por esses medicamentos, ela tivesse sido incentivada a se desabituar deles? Teria ela passado 16 anos entrando e saindo de hospitais? Teria sido incluída no SSDI e permanecido nele desde então? Como estaria hoje a sua saúde física? Como teria sido sua experiência subjetiva da vida ao longo desses anos? E, se houvesse conseguido passar bem sem as drogas, quantas outras coisas teria realizado na vida? Esta última era uma questão em que Cathy, dada a sua experiência com o Risperdal, não havia pensado muito, antes de nossas conversas. Mas, depois que a levantei, pareceu obcecada com essa possibilidade, a qual trouxe à baila repetidas vezes em nossos encontros. "Eu teria sido mais produtiva sem os remédios", disse, na primeira vez. "Eu ficaria desolada" se pensasse nisso, afirmou posteriormente. Em outra ocasião, lamentou que, passando a vida com antipsicóticos, ''a gente perca a alma e nunca mais a recupere. Fiquei empacada no sistema e na luta para tomar remédios". Por fim, ela me disse isto: "O que eu lembro, quando olho para trás, é que, no começo, eu não estava realmente tão doente assim. Na verdade, só estava confusa. Eu tinha todas aquelas questões, mas ninguém conversava comigo sobre isso. Ainda hoje, eu gostaria de poder largar os remédios, mas não há ninguém para me ajudar nisto. Não sei nem começar um diálogo". Não há como saber, é claro, o que teria sido uma vida sem remédios para Cathy Levin. Entretanto, mais adiante neste livro, veremos o que a ciência tem a revelar sobre o possível curso que sua doença teria tomado se, naquele momento fatídico 38 Reflexões Experienciais de 1978, depois do episódio psicótico inicial, ela não tivesse sido medicada nem informada de que teria de tomar remédios pelo resto da vida. A ciência deveria poder dizer-nos se os psiquiatras têm razões para acreditar que seu paradigma de tratamento medicamentoso altere para melhor ou para pior os efeitos a longo prazo. Mas Cathy acredita que essa é uma questão que os psiquiatras nunca consideram: "Eles não fazem a menor ideia de como essas drogas nos afetam a longo prazo. S6 tentam estabilizar a pessoa naquele momento, e procuram controlá-la de semana em semana, de um mês para outro. É s6 nisso que eles pensam". George Badillo Atualmente, George Badillo mora em Sound Beach, em Long Island, e sua casa caprichosamente arrumada fica a uma pequena distância da praia. Aos quase 50 anos, ele está em boa forma, penteia o cabelo ligeiramente grisalho para trás e tem um sorriso fácil e caloroso. Seu filho de 13 anos, Brandon, mora com ele - "Está no time de futebol americano, na equipe de luta romana e no time de basquete, e está no quadro de honra", disse-me George, com compreensível orgulho -, e a filha de 20 anos, Madelyne, que é aluna da Faculdade de Staten Island, estava lhe fazendo uma visita no dia em que estive com ele. Mesmo à primeira vista, era patente que os dois estavam felizes por passarem esse tempo juntos. Como muitas pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, George se lembra de ter sido "diferente1' na infância. Quando menino, crescendo no Brooklyn, sentia se isolado das outras crianças, em parte porque seus pais porto-riquenhos só falavam espanhol: "Eu me lembro de todos os outros garotos conversando e sendo camaradas e extrovertidos, convivendo uns com os outros, mas eu não sabia fazer isso. Sentia vontade de falar com eles, mas sempre ficava apreensivo", recordou. George também tinha um pai alco6latra que sempre batia nele, e por isso começou a achar que "as pessoas viviam tramando coisas e querendo me machucar". Ainda assim, ele se saiu bem na escola, e s6 no fim da adolescência, quando era aluno do Baruch College, foi que sua vida começou a dar errado: "Entrei numa vida de discotecas", explicou. "Comecei a usar anfetaminas, maconha e cocaína, e gostei. As drogas me relaxavam. S6 que a coisa fugiu do controle e a cocaína começou a me fazer pensar numa porção de maluquices. Fiquei paranoico de verdade. Achava que havia conspirações e tudo o mais. As pessoas me perseguiam, e o governo estava envolvido nisso". George acabou fugindo para Chicago, onde foi morar com uma tia e se retirou do mundo que julgava persegui-lo. Assustada, a 39 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA família o persuadiu a voltar para casa e o levou à unidade psiquiátrica do Hospital Judaico de Long Island, onde ele foi diagnosticado corno esquizofrênico paranoide. "Ficaram todos me dizendo que meu cérebro estava estragado e que eu ficaria doente pelo resto da vida", comentou. Os nove anos seguintes passaram-se num remoinho caótico. Tal corno Cathy Levin, George detestava o Haldol e os outros antipsicóticos que os médicos o mandavam tomar e, em parte por esse desespero induzido pelas drogas, fez múltiplas tentativas de suicídio. Brigou com a família por causa dos medicamentos, largou as drogas e voltou para elas, passou por um ciclo de várias hospitalizações e, em 1987, tornou-se pai, quando sua namorada de 18 anos deu à luz Madelyne. Casou-se com a namorada, decidido a ser um bom pai, mas Madelyne era uma criança doentia, e ele e sua mulher sofreram crises nervosas na tentativa de cuidar da menina. A avó dele levou Madelyne para Porto Rico, e George acabou divorciado e morando num asilo para inválidos. Ali conheceu e se casou com uma mulher igualmente diagnosticada como esquizofrênica paranoide e, após uma série de aventuras e desventuras em San Francisco, também eles se divorciaram. No começo de 1991, desanimado e novamente paranoide, George baixou no Centro Psiquiátrico Kings Park, um hospital estadual dilapidado em Long Island. E veio então seu mergulho no desamparo completo. Depois de tentar introduzir clandestinamente uma pistola no hospital, para poder se matar, ele recebeu uma sentença de dois anos numa ala de acesso restrito. Em seguida, ao se aproximar o Natal daquele ano, aborreceu-se quando vários pacientes que eram seus colegas não receberam autorização para passar as festas em casa e ajudou-os a fugir, quebrando uma janela em seu quarto e amarrando lençóis uns nos outros para que eles pudessem descer até o chão. O hospital reagiu mandando-o para uma ala destinada a pessoas que estavam internadas havia décadas. "Fiquei então numa ala com pessoas que se urinavam", recordou. "Eu era um perigo para a sociedade e fui dopado. A pessoa fica sentada o dia inteiro, vendo televisão. Não pode nem ir para o lado de fora. Achei que minha vida tinha acabado." George passou oito meses nessa ala de doentes mentais incuráveis, perdido numa névoa de drogas. Entretanto, foi finalmente transferido para uma unidade em que podia sair dos recintos fechados e, de repente, lá estavam o céu azul para ver e o ar puro para respirar. Ele começou a reter a medicação antipsicótica na língua e a cuspi-la quando o pessoal hospitalar não estava olhando. "Voltei a poder pensar", contou. "As drogas antipsicóticas não me deixavam pensar. Eu parecia um vegetal e não conseguia fazer nada. Não tinha emoções. Ficava lá sentado, 40 Reflexões Experienciais vendo televisão. Mas, nessa ocasião, eu me senti com um controle maior. E foi ótimo voltar a me sentir vivo." Por sorte, George não sofreu um retorno dos sintomas psicóticos e, não mais tendo o corpo amolecido pelos remédios, começou a fazerjogging e levantamento de peso. Enamorou-se de mais uma paciente do hospital, Tara McBride, e, em 1995, depois que os dois receberam alta e se transferiram para uma residência comunitária próxima, Tara deu à luz Brandon. George, que nunca havia perdido inteiramente o contato com a filha, Madelyne, passou a ter um novo objetivo na vida: "Percebi que eu tinha uma segunda chance. Eu queria ser um bom pai". No começo, as coisas não correram bem. Tal como Madelyne, Brandon nasceu com problemas de saúde -tinha uma anomalia intestinal que precisou de cirurgia-, e Tara entrou em crise, em função do estresse, e tornou a ser hospitalizada. Como George continuava morando numa residência para doentes mentais, o Estado julgou que ele não tinha condições para cuidar de Brandon, que foi entregue à irmã de Tara para ser criado. Em 1998, porém, George começou a trabalhar em regime de meio expediente como facilitador entre pares no Serviço de Saúde Mental do Estado de Nova York, orientando pacientes internados sobre seus direitos, e, três anos depois, pôde apresentar-se ao tribunal como alguém capaz de ser um bom pai para Brandon. "Minha irmã Madeline e eu obtivemos a custódia", contou. "Foi a melhor sensação possível. Simplesmente dei pulos de alegria. Parece ter sido a primeira vez que alguém no sistema obteve a custódia dos filhos." No ano seguinte, uma das irmãs de George comprou-lhe a casa em que ele mora atualmente. Embora ainda receba pensão do SSDI, ele trabalha sob contrato para um órgão federal, a Administração de Serviços de Saúde Mental e Controle de Abuso de Drogas, e faz trabalhos voluntários com jovens hospitalizados em Long Island. Sua vida é repleta de sentido e, como atesta o sucesso de Brandon na escola, George tem se revelado o bom pai que sonhava tornar-se. Madelyne, por sua vez, orgulha-se escancaradarnente do pai. "Ele queria o Brandon e eu na sua vida", disse. ''Isso o fez querer dar a volta na sua situação. Ele queria ser um pai para nós. E é a prova de que uma pessoa pode se recuperar da doença mental." Embora a história de George seja claramente inspiradora, ela não prova nada, em um sentido ou em outro, sobre os méritos globais dos antipsicóticos. Mas instiga uma indagação de ordem clínica: dado que sua recuperação começou quando ele parou de tomar antipsicóticos, será possível que algumas pessoas que sofrem de doenças mentais graves, como a esquizofrenia ou o transtorno bipolar, venham a se recuperar na ausência de medicação? Porventura a história dele é uma 41 ÁNATOMIA DE UMA EPIDEMIA anomalia, ou proporciona um discernimento do que seria um caminho bastante comum de recuperação? George, que hoje toma Ambien [zolpidem] ou uma dose baixa de Seroquel [quetiapina], ocasionalmente, para dormir à noite, acredita que, pelo menos no seu caso, foi o abandono dos medicamentos que lhe permitiu melhorar: "Se eu tivesse continuado a tomar aqueles remédios, não estaria onde estou hoje. Estaria preso num asilo para adultos em algum lugar, ou no hospital. Mas estou recuperado. Ainda tenho umas ideias estranhas, mas agora as guardo para mim. E supero qualquer estresse emocional que apareça. Ele fica comigo algumas semanas, depois vai embora". Manica Briggs Manica Briggs é uma mulher alta, marcante e, como tantas pessoas que atuam no movimento de "recuperação dos pares", imensamente agradável. No dia em que almocei com ela, num restaurante do bairro de South Boston, Manica chegou à mesa mancando, apoiada numa bengala, por ter se machucado em data recente, e, quando lhe perguntei como tinha ido até lá, ela sorriu,- discretamente satisfeita consigo mesma: "Vim de bicicleta", disse. Nascida em 1967, Manica é de Wellesley, no estado de Massachusetts, e, como adolescente criada naquela comunidade abastada, parecia ser a última pessoa fadada a ter pela frente uma vida de doença mental. Vinha de uma família culta - a mãe era professora da Universidade de Wellesley e o pai lecionava em diversas faculdades da área de Boston - e, na infância, tinha sido uma criança que se sobressaía em tudo que fazia. Era boa atleta, tirava as mais altas notas e exibia um talento especial para a pintura e a literatura. Ao concluir o curso médio, recebeu vários prêmios sob a forma de bolsas de estudos e, ao ingressar na Faculdade de Middlebury, em Vermont, no outono de 1985, acreditou que sua vida seguiria um rumo muito convencional: ''Achei que eu iria para a faculdade, me casaria, teria um labrador cor de chocolate e uma casa num subúrbio residencial, com um SUV. ( ... ) Eu achava que tudo aconteceria assim". Depois de um mês como caloura na Middlebury, Manica foi atingida de surpresa por um grave episódio depressivo, que pareceu não ter causa alguma. Ela nunca tivera problemas afetivos até então, não havia acontecido nada de mau em Middlebury e, ainda assim, a depressão a atingiu com tal força que ela teve de deixar a faculdade e voltar para casa. "Eu nunca tinha abandonado coisa alguma", disse. "Achei que minha vida estava acabada. Achei que aquilo era um fracasso de que eu nunca poderia me recuperar." 42 Reflexões Experienciais Meses depois, ela regressou a Middlebury. Estava tomando um antidepressivo (desipramina) e, com a aproximação da primavera, seu estado de ânimo começou a melhorar. Mas não melhorou simplesmente num nível "normal". Em vez disso, seu ânimo disparou para além do que parecia ser uma situação muíto melhor. Ela ficou com energia para dar e vender. Passou a fazer longas corridas e se entregou à pintura, produzindo rapidamente autorretratos esmerados a carvão e a pastel. Sentia tão pouca necessidade cle sono que abriu uma empresa de camisetas. "Era fantástico, genial", disse. "Eu não me achava Deus nem nada, mas me sentia muito perto de Deus, àquela altura. Isso durava várias semanas, e depois eu desabava durante o que parecia ser uma eternidade." Era o começo da longa batalha de Monica com o transtorno bipolar. A depressão dera lugar à mania, seguida por uma depressão ainda pior. Apesar de ter conseguido concluir o primeiro ano com média 9, ela começou a passar por episódios cíclicos de depressão e mania e, em maio do segundo ano, tomou um punhado de comprimidos para dormir, com a intenção de se matar. Nos 15 anos seguintes, foi hospitalizada três vezes. Embora o lítio mantivesse a mania sob controle, a depressão suicida sempre voltava, e os médicos receitavam um antidepressivo após outro, na tentativa de encontrar a pílula mágica que a ajudaria a ficar bem. Entre as internações, houve períodos em que Monica ficou razoavelmente estável, e ela os aproveitou ao máximo. Em 1994, bacharelou-se na Faculdade de Pintura e Desenho de Massachusetts e, depois disso, trabalhou para várias agências de publicidade e editoras. Tornou-se membro atuante da Associação Nacional de Depressivos e Maníaco-Depressivos e desenhou o logotipo da instituição, o "urso bipolar". Em .2001 , porém, depois de ser demitida do emprego, por haver passado uma semana em casa por causa da depressão, seus impulsos suicidas voltaram para valer. Ela comprou um revólver, mas só conseguiu que ele falhasse seis vezes quando tentou se matar. Passou três noites num viaduto acima de uma rodovia, querendo desesperadamente atirar-se na autoestrada lá embaixo, mas se abstendo por achar que poderia causar um acidente que feriria outras pessoas. Foi internada várias vezes e então, em 2001, sua mãe morreu de um câncer no pâncreas, e suas batalhas mentais tomaram um rumo ainda pior. "Fiquei psicótica, alucinando, vendo coisas. Achei que tinha superpoderes e podia alterar o curso do tempo. Achei que tinha asas de três metros e podia voar." Foi nesse ano que ela entrou no SSDI. Dezessete anos depois de seu episódio maníaco inicial, ela ·se tornou oficialmente inválida, em decorrência de transtorno bipolar. "Detestei isso", afirmou. "Eu era uma moça de Wellesley dependendo 43 ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA da previdência social, e não
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