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DEGRADÂNCIA DECODIFICADA E O PAPEL DO ESTADO NA SUA GÊNESE Benedito Lima Renato de Mello © Benedito Lima e Renato de Mello, 2015 Capa Alvaro Beleza e Lívia Beleza Projeto gráfi co Alvaro Beleza Infografi a Fuxia Estudio Produção gráfi ca Sílvia Furtado Revisão Joice Nunes Catalogação na fonte Islânia Castro (CRB-3/955) Impressão e acabamento Expressão Gráfi ca Dados Internacionais de Catalogação na Publicação L732d Lima, Benedito. Degradância decodifi cada e o papel do estado na sua gênese / Benedito Lima, Renato de Mello. – Fortaleza, 2015. 140 f. : il., color. ISBN 978-85-420-0657-5 Inclui bibliografi a. 1. Trabalho escravo. 2. Ambiente de trabalho. I. Lima, Benedito. II. Mello, Renato de. III. Título. CDD 331.11734 Contato dos autores: beneditofl orindo@bol.com.br renato1mello@gmail.com SUMÁRIO Prefácio, 9 O papel da Auditoria Fiscal do Trabalho na erradicação da escravidão no Brasil, 13 Enfrentamento dos aspectos cruciais da caracterização de trabalho degradante, 15 Poema do Homem e do Lobo, 17 Nota introdutória, 21 CAP. 1 APRESENTAÇÃO, 23 CAP. 2 A ERGONOMIA E A CONCEITUAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO, 33 CAP. 3 A LÓGICA DIFUSA, 57 CAP. 4 O MODELO DE IDENTIFICAÇÃO DE TRABALHO EM CONDIÇÕES DEGRADANTE, 67 CAP. 5 APLICAÇÃO DO MODELO, 91 CAP. 6 CONCLUSÕES, 119 Auditoria Fiscal do Trabalho: compromisso com o trabalho digno, 122 Apêndice, 129 Referências bibliográfi cas, 138 AGRADECIMENTOS Ao Grupo Interinstitucional de Apoio a Erradicação do Trabalho Escravo (GAETE) que disponibilizou os recursos para a publicação deste livro. Ao juiz Jônatas dos Santos Andrade, titular da 2ª Vara Federal do Trabalho de Marabá, que foi incansável na disposição de viabilizar recursos para a publicação deste livro. Ao Ministério Público do Trabalho (MPT), em especial ao Procurador Geral Dr. Luis Camargo, que sempre apoiou o projeto deste livro. Aos procuradores do trabalho Tiago Oliveira Arruda e Valéria Sá Corrêa, que disponi- bilizaram os últimos recursos necessários para que este livro fosse publicado dentro do prazo estabelecido. Ao Juiz do Trabalho Dr. Hermano Queiroz, pela gentileza de fazer a apresentação desta obra. Ao Procurador do Trabalho, Dr. Maurel Mamede Selares, que viabilizou a compra dos softs que possibilitaram a construção do dendrograma de decisão. À Secretaria de Inspeção do Trabalho (MTE) e à Divisão de Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo (DETRAE), pelo incentivo e apoio logístico na elaboração desta obra. Ao Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), pelo apoio na distribuição desta obra, em especial à presidente, Dra. Rosa, pelas belas palavras escritas neste livro. Ao Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo incentivo à pesquisa e aos intensos debates ali travados, que muito contribuíram para a robustez deste livro. Ao auditor fiscal do trabalho Sérgio Carvalho de Santana, pela escolha das fotos, bem como pelo apoio incansável e orientação no tocante à disponibilização e escolha das fotos Ao auditor fiscal do trabalho e poeta Rubervam du Nascimento, que elaborou de forma magnífica a poesia “Poema do Homem e do Lobo”. Ao Dr. Roberto Cajubá, que fez uma revisão profunda e criteriosa deste livro. A todos os amigos que leram os rascunhos deste livro e fizeram sugestões para melhorá-lo. 9 PREFÁCIO herMano Queiroz JÚnior maio de 2014 Coube-me a inexcedível honra de prefaciar o livro do eminen- te estudioso dos direitos fundamentais dos trabalhadores, tema que me é muito caro, Dr. Benedito “Florindo”, operoso audi- tor fi scal do trabalho, intitulado “Degradância Decodifi cada e o Papel do Estado na sua Gênese”. Na obra, o autor, dedicado profi ssional na área de fi scalização das condições de trabalho dos prestadores de serviço Brasil afora, a par de denodado pesquisador acerca do tema “trabalho escravo”, realiza profunda incursão nos meandros da temática, com o objetivo de propiciar aos seus leitores, ao fi m e ao cabo da leitura, ferramentas que possibilitem, palavras suas, “[…] o desenvolvimento de uma estrutura lógica e computacional de apoio a tarefa de identifi cação das condições em que se encontram os trabalhadores quando existe denúncia de ‘trabalho análogo ao de escravo’”. Não descurando do necessário escorço histórico que deve preceder toda grande obra, o articulista traça, a princípio, alentado panorama da evolução do trabalho escravo ao longo da história, matizando, nesta senda, todos os aspectos relevantes para o desenvolvimento da temática central, notadamente no que respeita ao encadeamento evolutivo que deságua na desditosa realidade da existência de trabalho escravo na sociedade trabalhista do século XXI. Contextualizada a problemática no século atual, passa o professor Benedito Lima a expender longa explanação sobre as diversas formas de trabalho escravo no mundo do trabalho hodierno, muitas vezes embuçadas sob modalidades aparentemente lícitas de contratação, como as terceirizações, mas que camufl am condenáveis formas de exploração de mão de obra, em manifesto aviltamento da dignidade humana dos trabalhadores, como bem evidencia o doutrinador ao longo desta passagem do livro. 10 A esta altura da obra, a análise em referência, com aguda perti- nência, estabelece o link entre a parte introdutória e o tema central propriamente dito, com o insigne autor passando a elaborar de forma pormenorizada sua proposta de modelo, de modo a auxiliar o reconhecimento das formas de trabalho degradante, por ele fun- damentadamente reputada como a mais frequente modalidade de redução do trabalhador à condição análoga a de escravo. Nesta senda, após introduzir o leitor em conceitos como lógica difusa, variável linguística, fuzificação, desfuzificação, dendrogra- ma, que, prima facie, poderiam parecer inacessíveis, mas que com o didatismo esclarecedor que impregna toda a obra são facilmente apreendidos, o Dr. Benedito encaminha-nos para a formulação de seu modelo de auxílio de identificação de condições degradantes de trabalho com base na lógica difusa, metodologia esta desenvolvida, segundo por ele pontuado, com a preocupação de minimizar as imerecidas, na minha particular visão, críticas que são direcionadas ao trabalho do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em sua incansável função de acom- panhamento das condições de trabalho no Brasil. Assim, o sistema concebido pelo autor prevê a existência de 04 (quatro) temas ou blocos, a saber: desconformidade legal trabalhista, desconformidade legal de segurança e saúde do trabalhador, des- conformidade legal constitucional e desconformidade social, sendo cada um composto de indicadores individuais e temáticos que serão analisados durante as fiscalizações encetadas pelo GEFM, e aos quais serão atribuídas pontuações para, ao final do procedimento fiscaliza- tório, aferir-se, em função dos pontos atingidos, se os trabalhadores submetem-se ou não ao trabalho degradante. Confere, pois, o Dr. Benedito Lima, um tratamento matemático ao tema, sem, nada obstante, descurar-se dos aspectos humanitário e constitucional que o enfretamento da matéria demanda. Assim é que, complexidades lógico-matemáticas e informáticas à parte, o leitor arguto perceberá que o livro, em boa verdade, está impregnado do humanismo do autor, ao abordar o tema dos direi- tos fundamentais dos trabalhadores, na medida em que o objetivo último colimado pelo ilustre escritor é, consoante por ele várias 11 vezes salientado ao longo do livro, o de desenvolver método dotado de cientificidade e que seja idôneo ao identificar, com a máxima exatidão possível, a existência de trabalhadores em labor degradante, inseridos, portanto, dentro do nefasto tipo penal da sujeição do obreiro à condição análoga à de escravo. E esta preocupação com os direitos fundamentaisdos trabalha- dores avulta manifesta, na passagem do livro em que o autor, de forma minudente, analisa os indicadores individuais e temáticos que compõem os blocos de observação, indicando, em relação a cada um dos direitos fundamentais que a eles se vinculam, suas mais relevantes características, com especial enfoque na sua imbricação com a dignidade da pessoa humana do trabalhador, fundamento magno no qual repousam todas as garantias fundamentais conferidas aos trabalhadores pelo ordenamento jurídico pátrio. De tal circunstância decorre, ao meu sentir, o ineditismo da obra, que amalgama o científico e o humano em um só tomo, na medida em que nela o autor soube debruçar-se com inexcedível sensibilidade acerca do trabalho escravo, prática que já deveria de há muito ter sido extirpada da realidade laboral de nosso País. Ao analisá-lo sob a moderna ótica dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, confere tratamento lógico-matemático às suas propostas de detecção e consequente eliminação de tão malfazeja modalidade de exploração da mão de obra pátria. Muito mais havia a dizer da obra do Dr. Benedito Lima, mas não quero privar seus futuros leitores, que, estou convicto, serão muitos, da prazerosa leitura de tão instigante livro, que, a par de suscitar relevantes debates dentro e fora da academia, ensejará, com o acolhi- mento de suas proposições, profundas modificações no desempenhar do múnus da laboriosa carreira dos auditores fiscais do trabalho e, por conseguinte, a extinção, ou pelo menos a radical diminuição, dos casos de trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil. 13 O PAPEL DA AUDITORIA FISCAL DO TRABALHO NA ERRADICAÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL rosa Maria CaMpos Jorge Presidente do Sinait As tarefas e diversas exigências do cargo não afastaram do auditor fi scal do trabalho Benedito Lima da necessidade de expandir os horizontes das refl exões sobre o que se faz no cotidiano do trabalho, o que move, estimula e motiva a Auditoria Fiscal do Trabalho no Brasil e, mais especifi camente, no combate ao trabalho escravo. Os procedimentos e as rotinas de trabalho executadas pelas equi- pes do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que percorrem o país resgatando trabalhadores explorados, são aplicadas com a rigidez legal que cada situação fl agrada determina, bem como com a sensibilidade que a condição humana impõe. As constantes discussões acerca dos conceitos do que seja trabalho análogo à escravidão no Brasil, os questionamentos e, muitas vezes, as acusações contra os auditores fi scais do trabalho que compõem as equipes do GEFM levaram Benedito Lima a se debruçar sobre uma proposta de trabalho que culminou na publicação deste livro, “Degradância Decodifi cada e o Papel do Estado na sua Gênese”. A proposta é um amadurecimento do trabalho até aqui realizado, amparado pela legislação, pelas Normas Regulamentadoras, pela Constituição Federal e pela ordem social, que desemboca nos Direitos Humanos. Isso para que a escravidão contemporânea, com caracterís- ticas diferentes da escravidão colonial — essencialmente calcada na privação da liberdade —, mas não menos cruéis, não seja mascarada, negada, banalizada. Condições de vida e trabalho degradantes são, sim, sinônimos de escravidão, de coisifi cação, de desdém à vida. Que ninguém ache que é natural para o outro o que não quer para si mesmo. Somente a experiência, a vivência e a sensibilidade poderiam produzir tal instrumento, e esses quesitos estão presentes em Benedito Lima. 14 O Sinait ressalta mais uma vez a excelência da atuação dos audi- tores fiscais do trabalho, a qualidade de sua produção científica e a capacidade de inovar em suas atividades profissionais, fazendo do resultado de seu trabalho uma referência para diversos outros órgãos e instituições públicas e privadas. O que mais importa, entretanto, é que seu trabalho impede a perpetuação da exploração, rompe o ciclo da escravidão e muda a vida e o destino de milhares de trabalhadores. A cada ação dos explo- radores, sempre haverá uma reação da Auditoria Fiscal do Trabalho, perseguindo a meta da erradicação total da escravidão no país. 15 ENFRENTAMENTO DOS ASPECTOS CRUCIAIS DA CARACTERIZAÇÃO DE TRABALHO DEGRADANTE José Claudio Monteiro de Brito Filho Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Titular da Universidade da Amazônia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. Procurador Regional do Trabalho aposentado. O que deveria ser uma prática totalmente condenada e limitada a ocorrências esporádicas, quando muito, o trabalho em condições análogas à de escravo, ou, simplesmente, trabalho escravo, continua desafiando o Estado e a sociedade. Isso, mesmo com um aparato repressivo que está estruturado para ter eficácia, e que começa com o Grupo Especial de Fiscalização móvel, passa pelos membros do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal, e vai até o Poder Judiciário, nas esferas penal e trabalhista. Isso, mesmo com a sociedade condenando uma prática que desafia o direito de todos de terem seu maior atributo protegido: a dignidade da pessoa humana, e com parte dela estruturada, como o Estado, para ajudar a combater essa odiosa prática. Some-se a toda essa mobilização um dispositivo legal, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro que, como poucos, traduziu as práticas que implicam redução da pessoa à condição análoga à de escravo, com modos de execução bem identificados, construídos a partir da experiência vivenciada pelos que sofreram e pelos que combateram o trabalho escravo, modos esses introduzidos no dispositivo a partir de salutar alteração introduzida, em dezembro de 2003, pela Lei n. 10.803. É que, contra todo o exposto acima, encontra-se o que motiva uma boa parte das violações aos direitos das pessoas: a ganância desmedida, que faz com que as pessoas não tenham o menor pejo de sacrificar o direito dos trabalhadores, impondo-lhes condições desumanas de trabalho, com a violação de sua liberdade e, mais ainda, de sua digni- 16 dade, simplesmente para obter maior rentabilidade, mesmo que isso signifique fechar os olhos para o que preconizam o Direito e a Moral. E ainda se aproveitam de divergências que até hoje ocorrem, no plano doutrinário, mas também no plano jurisprudencial, a respeito do que configura, nos termos do artigo 149 do Código Penal, o trabalho escravo, especialmente em relação a alguns dos modos de execução. Contra essas divergências tem-se procurado construir uma doutri- na sólida e que responda às dúvidas e inquietações ainda presentes, sendo o livro que agora apresento parte importante deste esforço, e seu autor pessoa abalizada para a tarefa. Conheço o auditor fiscal do trabalho e pesquisador Benedito Lima, ou, como muitos de nós também o reconhecemos, o Bené, já há algum tempo, primeiro como combativo agente público a serviço do Estado no combate ao trabalho escravo, liderando equipe integrante do Grupo Especial de Fiscalização Móvel; logo depois, como estudioso do tema, quando alia o conhecimento prático a uma base teórica ampla. Este livro, um de seus inúmeros estudos, é a prova disso. Nele, Benedito procura discutir as condições degradantes de trabalho em um dos seus aspectos mais cruciais, considerando o que foi por mim dito mais acima: a sua caracterização. Para isso, utiliza como ferramenta teórica o que denomina lógica fuzzy, buscando construir modelo que, em suas palavras, “[…] serve para auxiliar a identificação de trabalho realizado em condições degradantes ou menos severas”. É um livro bem construído, que se lê com facilidade — a pri- meira virtude de qualquer texto — e que, tenho certeza, em muito contribuirá para ajudar a eliminar um dos grandes problemas para o combate ao trabalho escravo, que é a identificação, com segurança, de um dos mais frequentes modos de execuçãodo trabalho escravo, que é o trabalho em condições degradantes. Tenho certeza de que o livro será muito bem recebido pela co- munidade acadêmica, por aqueles que se interessam pela leitura de estudos que tratam de temas importantes, e, principalmente, por todos os que se dedicam a discutir e combater o trabalho escravo no Brasil Por tudo isso, parabenizo o autor pela obra e convido todos à sua leitura. 17 POEMA DO HOMEM E DO LOBO ou a lógica dos maus-tratos entre os humanos que trocaram asas por ossos ruBervaM du nasCiMento Poeta, reside em Teresina, capital do estado do Piauí. É auditor fiscal do trabalho e tem quatro livros publicados: A profissão dos peixes, 2ª edição, revista e diminuída; MARCO – Lusbel desce ao inferno; Os Cavalos de Dom Ruffato, premiado no Concurso Nacional Cidade do Recife, em 2004; Espólio, 1º lugar no Concurso Nacional da Livraria Asabeça, da Editora Scotecci, de São Paulo/SP; Crianças, às vezes — poemas e fotografias, com Sérgio Carvalho, em Fortaleza/CE. Tomemos por exemplo o lugar de convivência de dois cadáveres um de um homem outro de um lobo um parece que dorme o do outro estar morto possível fazer a diferença quando visitamos o túmulo de um e de outro não ocupam o mesmo túmulo o sono do homem e do lobo perguntar qual osso é mais difícil para a fome dos vermes devorar e o mais fácil para seguir com o uivo do lobo ao infinito ninguém soube quando vivos não pastavam homem e lobo em campos opostos satisfaziam sua fome e sede na mesma fonte do poço por que agora vivem às turras os ossos dos homem e não os do lobo ninguém se atreveu a medir o vazio que se formou dentro do homem após o silêncio impor pronúncia nula ao despojo do seu nome ofício da voz do homem secou na fórmula que recebeu para dar nome a tudo mais além do sol escondido no céu de sua boca 18 ao invés de agir o homem devolveu a voz do nome à solidão das coisas com o passar do tempo não ouvimos mais a voz do homem só bater à nossa porta e pedir misericórdia morreu de uma vez por todas o voo da voz do homem nenhum homem ligou para o aviso na porta de entrada da oficina de conserto de homens e bichos em estágio de relva “aqui não se emenda mais voo de homem somente do uivo do lobo” perdeu a magia que emendava o destino ao voo do homem o homem não conservou sequer o toco de suas asas para reparo o homem guardou o voo da carcaça dos seus dias na dureza da pele não suportou o peso do seu órgão mais completo o homem bebeu o resto de suor do corpo do seu semelhante à deriva pelo descampado de seus dias secos como se estivesse a engolir resto de sal de sua saliva para o homem tudo é um voo sobre rio de correnteza espessa derramado à toa na garganta de um cântaro quebrado sob a mesa a carne do homem tentou revelar-se em outras faces acesas não conseguiu ser espelho de sua água vermelha descoloridos os traços acumulados em seus reflexos não pergunte leitor por que tudo continua do mesmo jeito desde que o sol virou sol-posto ao final da tarde porque nada mudou desde que homem é homem e o lobo é lobo quem se atreve a dizer que tudo isso veio embarcado pelo mar a serviço das tarefas de ferro e aço dos navios que já deixaram os portos em marés de desavença e ódio nada mais justifica a dor de um homem causada por outro homem vindo do mesmo barro e do mesmo sono 19 qual a diferença por favor me diga entre dois animais que possuem na origem de seus nervos e músculos a mesma carne dura e o mesmo fôlego o homem arma-se de medo para atacar o outro levado pelo órgão sem controle que carrega no meio do peito só o homem se apaixona pela dor do outro homem você que não entende o caminho da minha voz nestas linhas tortas onde ouso registrar de novo o meu nome em cartório fique sabendo que as correntes soltas de minha memória não dizem nada a respeito de um lobo uivando para o infinito diz sobre um homem que age sob impulsos para atacar o outro homem quem não sabe ler as entrelinhas do que escrevo tem que abrir nova porta do juízo para receber o que só a imaginação é capaz de inventar para impedir que a verdade minta por acaso não desconfias que aquilo que dorme contigo sem farsa é um perigo o imaginário deste poema provoca a indignação que nos empurra para entender o que leva um homem a impor sofrimento a outro homem sem ao menos disso dá conta desumano o exercício do vento da manhã que entra pela janela e tenta acalmar o desespero que habita estas palavras 21 NOTA INTRODUTÓRIA Desde o primeiro contato que tive com o programa de erradicação do trabalho realizado em condições análogas à de escravo, nos idos da década de noventa, através das ações de fi scalizações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), inquietou-me o fato de haver um programa de erradicação de um fenômeno; no caso específi co, o combate ao trabalho análogo ao de escravo. Além disso, causou-me surpresa o fato de não haver, no ordenamento jurídico do Estado, uma defi nição clara deste fenômeno. Tal preocupação fez com que eu me debruçasse, ao longo dos últimos quinze anos, sobre o tema. Calcado na minha própria experi- ência e na de colegas, empreendi incansável busca para compreensão, conceituação e construção de ferramenta que pudesse auxiliar os operadores do Direito que fazem o combate ao trabalho análogo ao de escravo a identifi car tais casos. Ao longo dos anos, apoiei-me na experiência de profi ssionais de reconhecida competência que estudam o tema, em especial Renato de Mello e Luize Surkamp, para compreender e criar a tão sonhada ferramenta de auxílio à identifi cação de trabalho realizado em con- dições degradantes de trabalho, bem como entender quais fatores estão na gênese do trabalho análogo ao de escravo e quem são os responsáveis por ele. Assim sendo, este livro nada mais é do que uma construção coleti- va, materializada pelo autor. Nele há texto anteriormente publicado, mas que julgo ser oportuna a sua republicação, a fi m de tornar o tema mais compreensível e palatável. Direitos autorais de artigo derivado deste livro pertencem ao Instituto Innovare. Ressalte-se que a presente obra será distribuída gratuitamente a todos que a ela tiverem acesso. 1 APRESENTAÇÃO A escravidão do homem para força de trabalho é talvez a mais antiga forma de opressão imposta pelos detentores do poder em relação aos seus semelhantes. São encontrados relatos de escravidão humana nas antigas civilizações da África, da Ásia, da América do Sul e Central. Ultimamente, há relatos de escravização de imigrantes na França. No Brasil, aconteceu inicialmente a tentativa dos portugueses de escravizar os índios, que foi em parte malsucedida. A nação foi erguida sob o trabalho de escravos índios e africanos e, posteriormente, sob a semiescravidão dos descendentes dos africanos miscigenados com índios e portugueses. Em todo o mundo, inclusive no Brasil, convivem lado a lado tra- balhadores que têm os seus direitos trabalhistas respeitados pelos empregadores e outros que não os têm, trabalhando em condições análogas às de escravo. Vivem em condições de riscos ambientais elevados e sem proteção. Alojados de forma totalmente contrária às normas de seguranças do trabalho, algumas vezes fi cam albergados em barracos de lona, bebem água contaminada e trabalham sem re- gistro em carteira de trabalho, sem acesso a informações trabalhistas e previdenciárias. Às vezes contraem dívidas perpétuas com o patrão, o que os colocam em situação de absoluta submissão. Os trabalhadores encontrados em situação de trabalho análogo ao de escravo não têm, usualmente, capacidade de mobilização para sair destas condições e de se emanciparem, seja por falta de entendimento da situação em que se encontram, seja por força do escravizador. Tal como os grupos que necessitam de tutela do Estado — crianças, idosos, indígenas e incapacitados —, os trabalhadores escravizados merecem e têm direito de receber proteção social do Estado. 24 Até meados da década de 1990,o governo brasileiro vinha ne- gando a existência deste contingente de brasileiros e de imigrantes estrangeiros em condições subumanas de trabalho, como se a negação do fenômeno, por si só, solucionasse o problema. As recentes ações institucionais vêm trazendo à tona a dimensão nada desprezível da escravização humana no Brasil, ao passo que demonstra a pre- mente necessidade da eliminação definitiva desta situação-limite da condição humana. No Brasil, há trabalhadores rurais e urbanos laborando em condi- ções de trabalho em que os direitos constitucionais e trabalhistas não são respeitados. Tais trabalhadores são, às vezes, considerados traba- lhadores análogos a escravos pelos órgãos oficiais do Estado, sem que haja uma definição precisa do fenômeno, embora haja previsão legal. Segundo o Art. 149 do Código Penal (redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003), comete crime quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documen- tos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (BRASIL, 2003). Ao analisar os relatórios de fiscalização do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que combate o trabalho análogo ao de escravo, no período entre 2000 e 2012, verificamos que cerca de 90% (noventa por cento) dos trabalhadores resgatados em condições análogas às de escravo foram devido a condições degradantes de trabalho, o que comprova 25 que as hipóteses de trabalho forçado e vigilância armada, que eram frequentemente encontradas pelos GEFM na década de noventa, prati- camente desapareceram no período acima referenciado. É importante afirmar ainda que a servidão por dívida também tem desaparecido paulatinamente no universo estudado. No entanto, apesar de o resgate da maioria dos trabalhadores em condições análogas às de escravo ocorrerem devido às situações degra- dantes de trabalho, ainda há calorosos debates entre os interessados no tema para concluir se tal situação é ou não de trabalho degradante. Diante de tal insegurança jurídica é que muitos estudiosos do fenômeno têm se manifestado de forma frequente sobre o con- ceito de degradância. Para o procurador do trabalho José Cláudio Monteiro de Brito Filho, na nova redação do art.149, o que era tipo penal apresentado de forma sintética passou a ser definido de forma analítica. Segundo Bitencourt apud Brito Filho (2010), a alteração representou ampliação do tipo penal, pela também ampliação do bem jurídico protegido; mas, para outros, representou restrição capaz até de, quanto ao sujeito passivo, transformar o crime comum em especial. Nesse sentido, o tipo penal que, na forma sintética, não indicava os meios de execução, na nova versão elencou meios que fogem à visão tradicional a respeito do trabalho em condições análogas à de escravo, como a jornada exaustiva e as condições degradantes de trabalho, causando algumas dificuldades para sua caracterização jurídica, ou melhor, gerando posições divergentes que dificultam uma caracterização jurídica uniforme. Para Brito Filho (2010), a divergência ocorre principalmente entre os que reprimem a conduta na esfera trabalhista e os que o fazem na esfera penal. Não é rara a identificação do trabalho análogo ao de escravo realizada pelo auditor fiscal do trabalho em relatório de inspeção — que serve de base para o ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público do Trabalho —, que é julgada procedente pela Justiça do Trabalho, ser simplesmente rejeitada na esfera criminal pelo titular da ação ou pelo responsável pelo julgamento. Como o tipo é um só, ou seja, penal, mas ocorrendo a partir de relação de trabalho, é evidente que há um problema a resolver, pois se o fato é um só e o 26 tipo idem, não há sentido conviver com interpretações divergentes, posto que isto só interessa a quem pratica o ilícito. Ainda segundo Brito Filho (2010), a leitura superficial do art. 149 dá a impressão de que o bem maior a ser protegido é a liberdade do indivíduo; essa era a concepção dominante, para não dizer pacífica. No entanto, a alteração no referido artigo não deixa dúvidas de que o crime de redução à condição análoga à de escravo ocorre não somente quando a liberdade da pessoa é direta e estritamente suprimida. Pelo contrário, há hipóteses em que não se discute de forma direta — talvez se deva dizer, de forma principal — a supressão da liberdade do ser humano, como na jornada exaustiva e nas condições degradantes de trabalho, pois há bem maior a proteger, nesses casos, que a liberdade de ir e vir. Na visão de Brito Filho (2010), a identificação de trabalho análogo ao de escravo, que aparentemente se tornaria mais simples de reconhecer, se determinada situação encontrada nas investigações e fiscalizações do GEFM deva ser enquadrada como trabalho em condições análogas à de escravo ou não, na realidade tem se transformado num palco de intensas discussões, uma vez que, ao lado de condutas descritas de forma quase autoexplicativa, como as de trabalho forçado e de restrição de locomoção em razão de dívida, por cerceio do uso de meios de transporte ou pela retenção de documentos e objetos pessoais do trabalhador, existem as duas hipóteses: a jornada exaustiva e as con- dições degradantes de trabalho, que exigem esforço maior e que, via de regra, são as que produzem a maior parte das divergências entre os diversos atores estatais encarregados da repressão a essa conduta ilícita. O debate é tão intenso na identificação de trabalho análogo ao de escravo e suscita tanta divergência que foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a fim de investigar denúncias sobre essa prática, apurar responsabilidades e propor aperfeiçoamentos na le- gislação; no entanto, a mesma foi encerrada sem que fosse produzido o relatório da comissão. É preciso entender o fenômeno e uniformizar o conceito de de- gradância. Para tanto, é necessário definir que variáveis melhor caracterizam condições degradantes de trabalho, avaliar em campo estes indicadores e criar modelo de auxílio de decisão de identificação de trabalho análogo ao de escravo devido a condições degradantes 27 de trabalho. Para Bana e Costa (2004), a tomada de decisão é “[…] uma atividade intrinsecamente complexa e potencialmente das mais controversas, em que se tem de escolher não apenas entre possíveis alternativas de ação, mas também entre pontos de vista e formas de avaliar”. As operações de combate ao trabalho análogo ao de escravo re- alizadas pelo GEFM são fundamentadas em uma legislação que, ao caracterizar as condições de trabalho análogo ao de escravo, o faz baseado na lógica aristotélica, na qual as condições encontradas são do tipo dicotômico, ou seja, do sim ou não. O que se verifica em campo é que o cenário encontrado raramente se apresenta como uma situação dicotômica como a estudada pela lógica aristotélica, baseada na presença ou ausência de uma característica. Na maioria das vezes, os membros do GEFM são obrigados a fazer inferências para a caracterização de condições de trabalho degradante, já que as situações encontradas em campo quase sempre se situam entre os dois extremos. A dificuldade na identificação de condições degradantes de tra- balho se intensifica nas situações-limítrofe, uma vez que o GEFM não possui nenhum modelo que o auxiliena sua decisão. Este fato tem levado a conflito interno de decisão nos GEFMs no momento da identificação das condições caracterizadoras de trabalho análogo ao de escravo na modalidade degradante. São frequentes as situações em que os agentes públicos discordam sobre se determinadas situações de trabalho caracterizam condições degradantes. Caso o referido fenômeno não seja bem caracterizado, a iminente aprovação da PEC 438, que expropriará terras onde forem encontra- dos trabalhadores em condições de trabalho análogo ao de escravo, assim como a divulgação da “lista suja” regulamentada pela Portaria Interministerial nº 2, de 12 de maio de 2011, composta por empresas que mantêm trabalho análogo ao de escravo, as quais ficam impedidas de receberem empréstimos de bancos oficiais a partir do momento em que passam a constar da referida lista, provavelmente suscitarão ações regressivas contra o Estado e/ou contra os auditores fiscais do trabalho por parte das empresas que se sentirem prejudicadas. As variáveis caracterizadoras de trabalho em condições degra- dantes de trabalho raramente aparecem como variáveis discretas; às 28 vezes apresentam-se de forma difusa, e as dependências e as relações entre elas são usualmente muito fortes. As estruturas lógicas de tratamento destas variáveis se utilizam de ferramentas operacionais que se situam em campos de métodos sociológicos e filosóficos. Por outro lado, as ciências exatas vêm se voltando para contemplar sistemas difusos e estruturas lógicas de representações de estruturas, tais como as áreas sociais e filosóficas. Entre as contribuições que se mostram promissoras para tal está a teoria da lógica difusa. Este livro trata, portanto, do desenvolvimento de uma estrutura lógica e computacional de apoio à tarefa de identificação das condi- ções em que se encontram os trabalhadores quando existe denúncia de “trabalho análogo ao de escravo”. Entre as 4 (quatro) hipóteses indiciárias de trabalho análogo ao de escravo presentes no artigo 149 do Código Penal, a que suscita as maiores dificuldades na sua identificação, conforme retromenciona- do, são as condições degradantes de trabalho. Para tentar facilitar a identificação de trabalho análogo ao de escravo devido às condições degradantes de trabalho, foram desenvolvidos instrumentos lógicos apoiados na lógica fuzzy, na forma de soft decision trees. O modelo desenvolvido usou planilhas em Excel®, que são os servidores por onde os dados são alimentados. A programação da soft decision trees foi feita no software fuzzyTECH®. Na criação do modelo de auxílio à identificação de trabalho em condições degradantes de trabalho, procurou-se identificar as principais variáveis que caracterizam o trabalho em condições de- gradantes de trabalho, de forma a permitir uma melhor visualização (dendrograma1 de decisão) dos indicadores de trabalho em condições degradante e disponibilizar um sistema de inferências acerca da composição e combinações entre estas variáveis que ofereça aos decisores instrumento capaz de auxiliá-los na tomada de decisão. Entre os vários instrumentos disponíveis para a construção do 1. Dendrograma (dendro = árvore) é um tipo específico de diagrama ou representação icónica que organiza determinados fatores e variáveis. Resulta de uma análise estatística de determinados dados em que se emprega um método quantitativo que leva a agrupamentos e à sua ordenação hierárquica ascendente — o que, em termos gráficos, se assemelha aos ramos de uma árvore que se vão dividindo noutros, sucessivamente. Isto é, ilustra o arranjo de agrupamentos derivado da aplicação de um “algoritmo de clustering” (Fonte: Wikipédia). 29 modelo, a lógica difusa foi a escolhida por se apresentar como uma ferramenta que contém o princípio da dualidade, condição presente no fenômeno a ser identificado. Procurou-se oferecer, através do modelo, subsídios à abordagem cognitiva da identificação de trabalho degradante, entendendo que o sucesso do reconhecimento de trabalho análogo ao de escravo na modalidade degradante decorre de sua capacidade de criação e difusão do conhecimento. O modelo foi estruturado de forma a contemplar as variáveis de trabalho, compondo um método único, robusto e sensível. A aplicação do objeto da identificação do trabalho em condições degradantes se dá em razão da premência que a área de fiscalização do trabalho do MTE necessita dispor de método que traga à tona as informações e auxilie os decisores na identificação do fenômeno. A construção de ferramentas que auxiliem os membros do GEFM na identificação de situações de degradância atende aos anseios dos atores sociais envolvidos no combate ao trabalho análogo ao de escra- vo, quais sejam, Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Departamento de Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal (MPF) e demais atores sociais envolvidos no combate ao trabalho análogo ao de escravo. É necessário, portanto, definir com clareza o conceito de trabalho em condições degradantes, para que o Estado possa combatê-lo com eficácia e, desta feita, erradicá-lo. É importante enfatizar que o modelo desenvolvido não pretende substituir a avaliação feita de forma rotineira pelos auditores fiscais do trabalho na identificação de trabalho em condições degradante de trabalho, mas tão somente fornecer ferramenta de auxílio às suas decisões, baseada nas variáveis identificadas como formadoras do fenômeno, após valorá-las segundo a lógica da fiscalização e em obediência ao ordenamento jurídico brasileiro. O modelo criado é influenciado pelo ordenamento jurídico e, portanto, tem que ser reavaliado constantemente, para verificar se os indicadores primários estão consentâneos com as leis vigentes no Brasil no momento de sua aplicação. Na validação do modelo foram realizadas as verificações da sen- 30 sibilidade e robustez, com aplicação em campo nas fiscalizações de combate ao trabalho análogo ao de escravo do GEFM. No campo da Sociologia do Trabalho, em que as variáveis são, em sua maioria, qualitativas, há a necessidade de construção de mecanis- mos que auxiliem na identificação de um leque de situações, como trabalho infantil, trabalho infantil familiar, trabalho de imigrantes, entre outros, cujas variáveis se comportam de forma qualitativa e as avaliações da legalidade são feitas de forma qualitativa e intuitiva. Espera-se, portanto, que este modelo sirva de indutor para a criação de outros instrumentos de apoio à decisão de identificação daquelas situações que são muito mais sociológicas que técnicas, gerando, assim, a oportunidade de constituição de modelos que contribuam para o apoio à decisão de identificação e categorização do trabalho naquelas condições. Utilizando, assim, elementos de avaliação cujas métricas são, em geral, intuitivas, pouco objetivas e mal definidas conceitualmente, assim como ferramentais lógicos difusos e computacionais, o modelo pretende ser um instrumento que auxilie a análise sociológica do trabalho em condições análogas às de escravo devido à degradância, mostrando a influência de cada variável na sua constituição. Rogério Greco apud Brito Filho (2010), ao analisar o conceito de trabalho em condições degradantes, afirma que o bem juridicamente protegido não é só a liberdade da vítima, mas ensina que, quando a lei penal refere-se a condições degradantes de trabalho, existem outros bens juridicamente protegidos: “[…] a vida, a saúde, bem como a segurança do trabalhador, além de sua liberdade” O que se aprende da visão destes juristas retromencionados é que a alteração do artigo 149 do Código Penal produziu mudança significativa a respeito do bem jurídico principal protegido, que passou da liberdade de ir e vir para o atributo maior do homem, que é a sua dignidade. A dignidade deve ser considerada como atributo do ser humano; algo que dele faz parte e, portanto, o faz merecedor de um mínimo de direitos.Acima de tudo, é ela que é violada quando tipificado o crime de redução à condição análoga à de escravo, pois o que ocorre é o não respeito a esse atributo do ser humano, que é tratado como coisa, qual- quer que seja o meio de execução, com a negação de sua dignidade. 31 Nesta mesma linha, o Dr. Hermano Queiroz Júnior (2006), juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, ao estudar os direitos fundamentais dos trabalhadores na Constituição de 1988, afirma que os direitos fundamentais nada mais são que os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados no tempo e no espaço; portanto, como cláusulas pétreas, são de tal modo relevantes que seu reconhecimento ou não reconhecimento não podem ser deixados à livre disposição do legislador ordinário. Em outras palavras, Queiroz Júnior (2006) afirma que os direitos fundamentais são todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de vista do Direito Constitucional Positivo, foram, por seu conteúdo e importância, integradas ao texto da Consti- tuição e, portanto, retiradas da esfera da disponibilidade dos poderes constituídos. Depreende-se, pois, que todos os direitos fundamentais têm como elemento unificador o princípio da dignidade humana. De forma explícita e categórica, o referido autor afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana há de ser considerado como o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana; desta feita, é com fundamento nesta que devem ser interpretados. Apenas a título de informação didática sobre o conceito dos direi- tos fundamentais, é importante citar um pouco mais Queiroz Júnior (2006), que inicia sua análise pelos direitos naturais, que são aqueles inerentes ao homem em seu estado de natureza; portanto, conquanto lhes faleça o requisito da concreção, pela via da positivação, são os antecedentes históricos dos direitos humanos e fundamentais, indo estes buscar na fonte daqueles seu fundamento primeiro de legiti- midade, na medida em que os direitos naturais eram concernentes ao indivíduo e anteriores a qualquer contrato social. Os direitos humanos revelam um conceito de direitos com amplos e imprecisos contornos, com concreção e positivação em normas de Direito Internacional, cuja aplicação não se restringe exclusivamente aos cidadãos de um Estado, enquanto os direitos fundamentais são mais precisos e restritos que os direitos humanos, correspondendo ao conjunto de direitos e liberdades institucionais reconhecidos e 32 garantidos pelo Direito Positivo de determinado Estado. Ou seja, os direitos humanos são inerências da natureza humana, donde o seu caráter é inviolável, atemporal e universal, enquanto os direitos fun- damentais são aqueles objetivamente vigentes em cada Constituição e concernentes à pessoa humana, como os constantes no art.7º da Constituição de 1988. Vimos, através das considerações dos vários autores citados, que o rol de hipóteses que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, ao ser ampliado com a nova redação do art. 149 do CP, dá uma prote- ção explicita à dignidade da pessoa humana. Portanto, as variáveis presentes no dendrograma de auxílio à identifi cação de trabalho realizado em condições degradante de trabalho têm como elemento balizador os direitos fundamentais dos trabalhadores constantes na Constituição de 1988 e, de forma desdobrada, os direitos trabalhistas presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, de forma direta ou indireta, ferem a dignidade do trabalhador. 2 A ERGONOMIA E A CONCEITUAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO O governo brasileiro, após reconhecer a existência da prática de trabalho análogo ao de escravo no Brasil na década de 1990, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, vem, ao longo dos últimos anos, empreendendo ações sistemáticas de combate ao trabalho desenvolvido em condições de escravidão. O paradoxal destas ações do governo brasileiro é que, apesar de estarem dentro do Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em 18 de setembro de 2003 através da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), integrada por representantes do gover- no, de trabalhadores, de empregadores e da sociedade, responsável pela implementação das ações previstas no Plano Nacional e pelo seu moni- toramento, o fenômeno a ser combatido não é defi nido de forma clara pela legislação brasileira nem é bem compreendido pela sociedade. As denúncias de trabalho análogo ao de escravo colhidas e fi sca- lizadas pelo GEFM ao longo dos últimos anos têm demonstrado que, inexplicavelmente, elas são oriundas tanto de empresas de pequeno porte (pequenos fazendeiros) que utilizam pouca tecnologia como de grandes grupos econômicos do Brasil; em alguns casos, até de empresas multinacionais que empregam alta tecnologia. Segundo Santos (1997), a ergonomia signifi ca o estudos das leis do trabalho, ou seja, seu objeto é o trabalho, e busca compreender as relações que mantêm com o conhecimento científi co e com a realidade social. Portanto, a ergonomia, cujo ponto primário de observação é a atividade de trabalho, estuda também todos os fatores que nela interferem, sobretudo a sua organização. 34 Para Santos (1997), a ergonomia é fundamentalmente o estudo do trabalho concreto, da observação, da realização da tarefa no local de trabalho com os equipamentos e equipes envolvidas, assim como da coleta de dados quantitativos e/ou qualitativos, incertos, incompletos ou contraditórios necessários a um diagnóstico. Por isso a escolha da lógica Fuzzy para a identificação das condições de trabalho análogo ao de escravo devido a condições degradantes, uma vez que as variáveis presentes no referido fenômeno são como as citadas pelo autor. Conforme Guérin (2001), as condições de trabalho só podem ser transformadas quando bem compreendidas, e para tanto é necessá- rio que se faça um estudo minucioso do mesmo. Portanto, o ponto inicial desta abordagem de identificação de trabalho em condições de escravidão requer a compreensão da conceituação de trabalho escravo desde a Idade Antiga até os dias atuais, de forma que, com o conhecimento histórico do fenômeno e do ordenamento jurídico bra- sileiro vigente, possa-se efetuar a identificação e sua transformação. O segundo passo de uma intervenção ergonômica deve ser a iden- tificação das principais variáveis caracterizadoras do fenômeno, para só então tentar transformar as condições de trabalho, adequando-as à legislação vigente, de forma a oferecer as mínimas condições de trabalho que assegurem a segurança e a saúde dos trabalhadores e sejam compatíveis com as limitações do meio onde é desenvolvida. Entender, portanto, como os fatores de produção estão organizados e como interferem na tarefa e nas condições de trabalho deve ser o objetivo de toda a sociedade para poder transformá-lo. 2.1 TRABALHO ESCRAVO NA IDADE ANTIGA Na Idade Antiga, ao contrário do que se pensa hoje, evocava-se o Direito Natural para justificar o sistema de escravidão. Acredita- va-se que havia escravos por natureza, como entes inferiores aos senhores; a escravidão originada da guerra era até um benefício ao vencido que, assim, era poupado, quando se tinha o direito de matá-lo (MALHEIRO, 1962). Dentro desta linha de raciocínio, Aristóteles argumentava que as propriedades são uma reunião de instrumentos, e o escravo é 35 uma propriedade instrumental animada. Para ele, se cada instru- mento pudesse executar por si próprio a vontade ou o pensamento do dono, os arquitetos não teriam necessidade de operários nem os senhores teriam necessidade de escravos. Ainda segundo o raciocínio de Aristóteles, aqueles que nada têm de melhor para nos oferecer além do uso do seu corpo e dos seus membros, são condenados pela natureza à escravidão. É melhor para eles servir que serem aban- donados asi próprios. Em poucas palavras, é naturalmente escravo quem tem tão pouca alma e tão poucos meios que deve resolver-se a depender de outrem. Houve defensores da escravidão que buscaram argumentos na própria religião católica, no Velho e no Novo Testamentos, tentando, desta forma, dar um motivo divino para a existência de tal situação, como o teólogo Thornwell, ao afirmar ser o tráfico escravo a mais bela de todas as sociedades missionárias. Já o padre Brownlow defendia a ideia de que a escravidão americana devia ser eterna. Houve mesmo quem sustentasse que os africanos negros eram descendentes do amaldiçoado Cam ou de Canaan, e, portanto, condenados à servidão eterna. Felizmente, a justificativa pela lei natural é hoje tese ven- cida (MALHEIRO, 1962). Entretanto, foi Cristo quem primeiro proclamou a igualdade dos homens ante Deus, reprovando conscientemente a divisão ou repartição deles entre senhores e escravos, estabelecendo, em tese, a liberdade de todos; fincando a base dos fundamentos de que a escravidão é instituição do direito das gentes, contrária ao Direito Natural, quer dizer, a escravidão é um fato puramente humano. 2.2 TRABALHO NA IDADE MÉDIA A escravidão, posta em dúvida quanto à sua legitimidade ante a lei na- tural, baqueou um pouco e se metamorfoseou. Na Europa, no período entre os séculos V e XV, os prisioneiros deixaram de ser reduzidos a cativeiros. A escravidão rural se transformou em colonado e servidão adscritícia, desaparecendo a escravidão pessoal (MALHEIRO, 1962). Nesse período, na Europa Ocidental predominou um sistema de governo que, se não era um sistema escravocrata, guardava alguma 36 semelhança com aquele no tocante aos direitos dos trabalhadores. Segundo Huberman (1986), a sociedade feudal consistia de três clas- ses: sacerdotes, guerreiros e trabalhadores. O homem que trabalhava produzia para as outras classes. A maioria das terras agrícolas da Europa Ocidental e Central estava dividida em áreas conhecidas como feudos, que eram propriedades do senhor feudal, que os dividia em duas partes. Uma, de modo geral a terça parte do todo, pertencia ao senhor e era chamada de “seus domínios”; a outra ficava em poder dos arrendatários que trabalhavam nas terras. Uma das características mais marcantes do sistema feudal era que os servos, além de trabalharem as suas terras, eram obrigados a trabalhar dois ou três dias por semana a terra do senhor. Quando havia algum fenômeno que exigia pressa na colheita, o servo tinha que cuidar primeiro da parte do senhor. Esses “dias de dádiva” não faziam parte do trabalho normal. A propriedade do senhor tinha que ser arada, semeada e ceifada primeiro. Em qualquer circunstância a prioridade era dada às terras do senhor (HUBERMAN, 1986). Eram quase ilimitadas as imposições do senhor feudal ao cam- ponês arrendatário, chamado de “servo”, cuja origem vem da palavra latina “servus”, que significa escravo. No entanto, eles não eram escravos no sentido que se atribui à palavra quando referida ao tra- balhador do período colonial. No período feudal, o servo era ligado à terra, e o mesmo não podia ser vendido separado dela, ou seja, o seu senhor poderia transferir a posse do feudo a outro, mas isto significava apenas que o servo teria outro senhor e que permaneceria fixado à terra. Esta era uma dife- rença fundamental entre o sistema feudal e o escravo, pois concedia ao servo a segurança de que este não seria alienado de seu pedaço de terra. Este direito o escravo nunca teve. Por pior que fosse o tratamento dado ao servo, ele possuía família, lar e a segurança de manter a posse da terra e sua família unida (HUBERMAN, 1986). Segundo Huberman (1986), havia vários graus de servidão. Havia os “servos de domínios”, que viviam permanentemente ligados à casa do senhor e trabalhavam em seus campos durante todo o tempo, não apenas dois ou três dias por semana; havia camponeses muito pobres, chamados “fronteiriços”, que mantinham pequenos arrendamentos 37 de um hectare, aproximadamente, à orla da aldeia, e os “aldeães”, que nem mesmo possuíam um pequeno arrendamento, mas apenas uma cabana, e deviam trabalhar para o senhor como braços contra- tados, em troca de comida. Para Thompson apud Huberman (1986), o senhor feudal não fazia nenhuma distinção entre um servo e qualquer cabeça de gado de sua propriedade, a não ser no tocante ao valor dos mesmos. No século XI, na França, um cavalo valia 100 soldos, enquanto um camponês era avaliado em torno de 38 soldos. Da mesma forma que a morte de um boi aborrecia o senhor feudal por necessitar dele para trabalhar a terra, a morte de um servo também o aborrecia, por diminuir a força de trabalho humano na sua propriedade. Uma vez que o servo não podia ser vendido sem a terra, tampouco podia deixá-la, e como praticamente não havia trabalho remunerado, a perda de um servo era bastante sentida dentro do sistema de produção feudal. Se um deles tentasse fugir e fosse capturado, podia ser punido severamente, mas, sem dúvida, tinha que voltar. O feudalismo era baseado nos costumes da região, que tinham força de lei entre as partes. Baseava-se num sistema de deveres e obri- gações do princípio ao fim, tanto por parte dos servos como por parte do senhor feudal. A posse da terra implicava deveres que deveriam ser cumpridos, caso contrário seria tomada. As obrigações que os servos tinham para com o senhor e as que o senhor devia aos servos, como, por exemplo, proteção durante as guerras, eram todas estabelecidas e praticadas de acordo com os costumes (HUBERMAN, 1986). 2.3 TRABALHO ESCRAVO NO PERÍODO COLONIAL A escravidão, que parecia extinta, foi revivida no meado do século XV, com as descobertas das costas da África portuguesa e do novo mundo por Colombo, Cabral e outros. Com a descoberta da América em 1492, o tráfico de negros da África intensificou-se, com o objetivo de fornecer mão de obra para os países do novo mundo, já que os habitantes aqui encontrados não se adaptaram facilmente ao trabalho da lavoura. Segundo Malheiro (1976), a escravidão dos mouros e sarracenos era tolerada e legitimada em Portugal e na Espanha, em represália 38 a igual procedimento destes contra os prisioneiros cristãos, o que contribuiu para ser aceita como natural a escravidão dos habitantes negros, quando do descobrimento da Costa Oeste da África, trans- portados para Portugal com a justificativa de resgatá-los de morte ou de castigo de seus inimigos. O resgate foi o pretexto utilizado pelos países europeus para a escravidão dos negros, a quem se pretendia prestar um grande favor. Em pouco tempo, os países europeus vislumbraram que o comércio daqueles era fonte de grandes lucros e riqueza. Assim, o negro foi transformado em mercadoria (MALHEIRO, 1976). De acordo com Malheiro (1976), a escravidão não vive e existe senão pela lei positiva, que a reconheceu, legitimou e manteve, dela tornando-se cúmplice. O negro era, portanto, tratando como verdadei- ra propriedade, coisa, possuído; como tal, estava sujeito a transações, sob a fé, garantia e salvaguarda da ordem jurídica. No início do período colonial, tanto os índios como os negros foram levados a cativeiro. Para justificar a escravidão, chegaram ao desvario de duvidar se os índios eram homens. Quanto aos negros, chegou-se ao extremo de não se ver neles a condição de homens, e sim de raça inferior, ou seja, um intermediário entre homens brancos e os irracionais. Nas colônias espanholas, a importação de escravos negros foi expressamente autorizada nas instruções dadas ao Governador Nicolau Ovando. No Brasil, a colonização foi calcada no trabalho rural, o que levou à introdução de escravos de origem africana para suprir a necessidade de mão de obra, uma vez que os índios não se adaptaram ao trabalho rural (MALHEIRO, 1976). Malheiro (1976), ao refletir sobre a escravidão nas colônias eu- ropeias, chega a afirmar que os escravos eram mais mal tratados e havidos em maior desprezodo que na Antiguidade, pela razão da sua origem africana e por serem visto somente como instrumentos vivos de trabalho, máquinas, não sendo passíveis de receber qualquer educação intelectual ou moral. Todos os direitos lhes eram negados; eram reduzidos à condição de coisa, como os irracionais, aos quais eram equiparados, salvo certas exceções, chegando a serem chamados de peças, fôlegos vivos, que se marcavam com ferro quente, por castigo ou por sinal, como gado. 39 A hereditariedade e perpetuidade, características constitutivas da escravidão nos mundos antigo e moderno, são absolutamente des- tituídas de justificação, não tendo nenhuma razão de ser, derivando apenas da ficção do direito, pela qual o escravo não é pessoa, e sim quase um irracional. Equiparam o ventre escravo ao de um animal e, portanto, sujeitam os filhos perpetuamente à mesma sorte. Ficção do Direito Positivo que o próprio Direito romano havia reprovado, contra a teoria geral do mesmo Direito, dizendo que eles não eram frutos propriamente ditos, porque não é fruto o homem para quem a natureza criou todos os frutos. Foi, no entanto, o princípio jurídico “partus sequitur ventrem” que propagou a escravidão no mundo desde os primeiros tempos até nossos dias (MALHEIRO, 1976). O escravo tem tão pouca consideração da sociedade que acaba perdendo a própria consciência da dignidade humana, quase acre- ditando que não é uma criatura igual aos demais homens livres e que é pouco mais que um ser irracional. O escravo era totalmente desconsiderado como sujeito de direito e havido por animal de carga ou pouco menos (MALHEIRO, 1976). Consoante o referido autor, o escravo, enquanto propriedade do senhor, está equiparado às coisas, não tem personalidade, estado. É, pois, privado de toda a capacidade civil, sendo objeto de todas as vicissitudes dos semoventes, podendo ser herdado, doado, penhorado, arrematado, vendido, alugado etc. Na verdade, o escravo não tem personalidade, estado; é indiví- duo privado de capacidade civil e somente pode exprimir-se por intermédio do senhor, de quem é propriedade inalienável, sendo completamente controlado por ele. A condição de mercadoria do cativo é provavelmente a expressão mais pura da sua configuração peculiar, dando ao mesmo tempo a medida de sua posição no siste- ma econômico e social, expressando o caráter não humano a que é relegado o semovente posto no acervo do senhor como meio de produção (IANNI, 1962). Ainda segundo Ianni (1962), as atividades atribuídas aos escravos são as atividades braçais, consideradas brutas ou degradantes, e que só são executadas por eles ou seus descendentes, havendo, desta forma, uma especialização coletiva imposta pela própria condição de escravo, 40 levando-os a serem substituídos por novos africanos ou descendentes, mantendo os negros e mulatos, por gerações sucessivas, na mesma condição econômica, nas mesmas ocupações braçais em que se usam as atividades psicomotora, a força física, e não as intelectuais. Cardoso apud Chalhoub (1999, p. 38) corrobora este conceito de alienação do escravo ao afirmar que: A reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente. Por um lado, tornava-se uma peça cuja necessidade social era criada e regulada pelo mecanismo econômico de produção. Por outro lado, o escravo se auto-re- presentava e era representado pelos homens livres como um ser incapaz de ação autonômica. Noutras palavras, o escravo se apresentava, enquanto ser humano tornado coisa, como alguém que, embora fosse capaz de empreender ações humanas, exprimia, na própria consciência e nos atos que praticava orientações e significações sociais impostas pelos senhores. Os homens livres, ao contrário, sendo pessoas, podiam exprimir socialmente a condição de ser humano organizando e orientando a ação através de valores e normas criadas por eles próprio. Neste sentido, a consciência do escravo apenas registrava e espelhava, passivamente, os significados sociais que lhe eram impostos. Os autores que defendem a reificação do escravo procuram de todas as formas demonstrar que eles não tinham consciência de sua situação, como afirma Gorender apud Chalhoub (1999, p.40): O oprimido pode chegar a ver-se qual o vê seu opressor. O escravo podia assumir como própria e natural sua condição de animal possuído. Um caso limite desta ordem se depreende de relato de Tollenare. Em Pernambuco, matavam-se escravos de um inimigo por vingança como se mataria seu gado. Um senhor de engenho que ganhara a inimizade de moradores des- pejados das terras que ocupavam, confiara um negro ao visitante francês a fim de acompanhá-lo em seus passeios. O negro não ousava aproximar-se do povoado dos moradores hostis e se justificava; ‘o que diria o meu senhor se essa gente me matasse? Em contra-argumentação aos conceitos de reificação do escravo defendidos por Malheiro (1976), Cardoso (1962), Ianni (1962) e outros 41 é que Chalhoub (1999) afirma que a violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes de ação autonômica” nem em passivos receptores de valores senhoriais, tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis. Acreditar nisso pode ser apenas a opção mais cômoda: simplesmente desancar a barbárie social de um outro tempo traz implícita a sugestão de que se é menos bárbaro hoje em dia, de que se fez realmente algum progresso dos tempos da escravidão até hoje. Na mesma linha de raciocínio de Chaloub, contrária ao argumento de reificação dos escravos, Meillassoux apud Figueira (2004), ao estu- dar a sociedade escravista da África pré-colonial, não concorda que se possa chamar o escravo, mesmo o legal, de mercadoria. Considerar o escravo mercadoria não passaria de uma ficção contraditória e insustentável, pois o escravo “[…] é mais que um objeto e um animal” portanto, já se supõe o uso da inteligência. Havia na África escravos que eram nomeados guerreiros, que capturavam homens para seu senhor e, dependendo do local, havia escravos “governadores de províncias, arrecadadores” e “dignitários do rei”; havia escravas que eram ocupadas das funções mais humildes de domésticas e outras que realizavam tarefas ligadas à espionagem, à administração, à procriação e ao prazer. Ao longo do século XIX, os escravos foram conquistando pau- latinamente alguns direitos que contribuíram para minimizar as vicissitudes pelas quais passavam em suas vidas. Um dos fatores que concorreram para um melhor tratamento foi a cessação do tráfico, visto que, até então, a facilidade de substituição da mão de obra escra- va era facilitada pelo tráfico lícito, isto fazia com que os senhores de escravos não se preocupassem com a saúde desses e nem os tratassem com humanidade, o que passou a ser feito após a proibição do tráfico de escravos (MALHEIRO, 1976). Em meados da década de 60 do século XIX, os escravos tinham adquirido alguns direitos, conforme relata Malheiros (1976, p. 95): Nas cidades já se encontravam escravos tão bem vestidos e calçados que ao vê-los, ninguém dirá que o são. Até o uso do fumo e do charuto, sobretudo, confundindo no público todas as classes, nivelando-as, para bem dizer. 42 Malheiro (1976), um dos principais defensores da libertação dos escravos, afirmava que atacar a escravidão para transformar o trabalho escravo em trabalho livre era mudar não somente a face de nossa sociedade nos centros populosos, mas, particularmente, no campo; era tocar na nossa principal fonte de produção, pois trabalho e liberdade são ideias correlatas, associadas, não havendo, economicamente falando, trabalho sem liberdade, não somente a liberdade natural, mas também a civil, pois a expansão da atividade humana exige imperiosamente, para o desenvolvimento da produção e da riqueza, a possibilidade de livre escolha no exercício dessa atividade. Chaloub (1999), ao analisar o período colonial brasileiro da se- gunda metade do século XIX e as diversas leis relativas à escravidão, considera um anacronismoa interpretação que é dada ao ano de 1871 como marco da instauração de uma política acabada e de longo prazo, no sentido da organização e da disciplina do mercado de trabalho livre no Brasil. Para ele, esse período deve ser entendido, na realidade, como o início de instauração de um novo tipo de escravidão no país: os escravos agora só dependiam da obtenção de dinheiro da indenização do senhor para terem a liberdade; eles se tornaram, por assim dizer, servos de uma dívida, cujo valor era o seu próprio preço no mercado ou no arbitramento judicial. Estava instituída a servidão por dívida. Em Curitiba, no período colonial, os escravos eram anunciados para venda, troca ou aluguel juntamente com cavalos, bois ou mulas, conforme recortes do jornal O Dezenove de Dezembro: “Nesta typo- graphia compra-se uma preta, sem moléstia nem vícios, que lave e cozinhe”, “Compra-se um escravo official de sapateiro; nesta typogra- phia se dirá quem o quer” ou “Precisa-se comprar uma negrinha ou moleque de oito a dez anos; quem tiver dirija-se a esta typographia, que indicará a pessoa que pretende”. Como se pode observar, não era somente a força de trabalho dos escravos que era vendida como mercadoria, mas eles próprios eram colocados entre os meios de produção e negociados como tal (IANNI, 1962). Para Ianni (1962), mesmo no período colonial, quando havia lei que regulamentava o trabalho escravo, a definição da condição escrava não se encontrava formulada de maneira completa nem em um texto só. Tal circunstância podia ser apreendida através da manipulação 43 de evidências retidas em disposições e referências fragmentadas e dispersas em textos da época, devendo-se construir abstratamente a verdadeira condição do cativo. Segundo Nabuco apud Ianni (1962), a escravidão consiste na obriga- ção, de quem está sujeito a ela, de cumprir, sem ponderar, as ordens que recebe; de fazer o que lhe mandam, sem direito de reclamar de salário, vestuário, melhor alimentação, descanso ou mudança de trabalho. Para a manutenção do sistema de escravidão há a necessidade de um sistema social de controle e de vigilância que impeça a rebelião ou a fuga dos cativos, destacando-se os capitães-do-mato, agente legalmente instituído através de lei para capturar escravos fugitivos fora da área de jurisdição do senhor (IANNI, 1962). De forma semelhante, embora não legal, encontra-se hoje, nas regiões onde há a presença de trabalho escravo, a figura de jagunços armados com a missão de inibir a fuga de trabalhado- res (FIGUEIRA, 2004). Mesmo após a abolição da escravatura, o sistema capitalista tratou de manter o antigo escravo sob o seu jugo através de leis, como no art. 3° da Lei no 3.270, parágrafo 17: “Qualquer liberto, encontrado sem ocupação, será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que for estipulado pela polícia”. Desse modo, o sistema garantia que não haveria escassez de força de trabalho e o escravo continuaria a participar do processo produtivo, evitando oscilações indesejáveis de produção. Em alguns estados do Brasil havia leis estaduais que regula- mentavam as relações entre os senhores e os trabalhadores, como a Lei no 11 de 1892, do estado de Goiás, sobre serviços. A referida Lei regulamentava a relação entre contratantes, locador e locatário (trabalhador), assim como objetivava legalizar as relações de contrato entre as partes, como disciplinaram os seguintes artigos: Art. 9°: Findo o tempo estipulado, o locatário, ainda que esteja devendo ao locador, poderá despedir-se, pagando a dívida; não o fazendo, será obrigado a continuar a servir ao locador por tanto tempo, nunca mais de três anos, quanto seja necessário para pagá-la com duas terça partes do salário estipulado, sendo-lhe entregue mensalmente a outra parte. 44 […] Art. 11°: “Ao final do contrato o fazendeiro deverá passar ou não atestado de idoneidade ao trabalhador, informando como trabalhou e se ainda devia; neste caso, se algum interessado o contratar deverá assumir a dívida sob pena de nulidade do contrato. […] Art. 18°: “O locador poderá despedir o locatário por doença prolongada que o impeça de trabalhar. […] Art. 44°: sofrerá pena de dez a vinte dias a quem sair da propriedade sem motivo justo ou se recuse a trabalhar (GOIÁS, 1892). Esta lei vigorou em Goiás ate o final de 1930, quando foi substi- tuída pelo Decreto no 411, de 23 de dezembro de 1930, que procurava combater a exploração do trabalho. No estado de Goiás não se aplicava nem o Código Penal nem o Código Civil. O Estado legislava Direito substantivo, relegando para um plano inferior a lei federal (MOREIRA, 1999). 2.4 TRABALHO ESCRAVO NO SÉCULO XXI O relatório global do seguimento da Declaração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2002), relativo aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, enfatiza que persistem, nos dias atuais, formas tradicionais de trabalho forçado, como as escravidões e as servidões por dívida, sendo o controle abusivo de um ser humano por outro a antítese de relação laboral decente. As práticas coercitivas de trabalho forçado estavam sempre as- sociadas aos regimes colonialistas e às tradições de servidão. Há, no entanto, aspectos de trabalho forçado que continuam presentes nas formas contemporâneas de utilização de mão de obra, sendo estes semelhantes à escravidão, como a servidão por dívida. Castilho (1994) conceitua trabalho forçado ou compulsório, ou também obrigatório, como todo serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual este não se ofereceu de espontânea vontade. 45 Conforme a OIT (2002), as diversas modalidades de trabalho for- çado apresentam em comum duas características: o recurso à coação e a negação da liberdade. Para essa organização, entre as formas de trabalho forçado mais encontradas no mundo atual, destacam-se: a) escravidão e rapto; b) participação obrigatória em projetos de obras públicas; c) trabalho forçado na agricultura e em regiões rurais remotas (sistemas de recrutamento coercitivo); d) trabalho doméstico em situações de trabalho forçado; e) trabalho em servidão por dívida. O Brasil, após depositar na Organização das Nações Unidas (ONU) ins- trumento de ratificação ao Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, também conhecido como “Protocolo de Palermo”, homologou o referido protocolo em 12 de março de 2004, através do Decreto no 5017, que, em suas definições, passou a reger as instituições brasileiras. Nesse protocolo, a expressão “tráfico de pessoas” significa trans- porte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, sob ameaça, uso da força ou outras formas de coação, como: rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou situações de vulnerabilidade, entrega ou aceitação de pagamentos, benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de explo- ração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravaturas ou práticas similares à escravatura, servidão ou remoção de órgãos. O mesmo protocolo enfatiza que o consentimento da vítima de tráfico de pessoas será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer dos meios referidos no parágrafo acima. Para Figueira (2004), o consentimento da vítima é realmente irrelevante na caracterização de trabalho escravo, pois às vezes o trabalhador só se dá conta da condição de escravo em que se encontra quando percebe que não tem liberdade de deixar a fazenda, mesmo abrindo mão de qualquer ganho, pois está endividado. Essa consciên- cia somente emerge quando os pistoleiros da fazenda exibem armas 46 ostensivamente ou torturam os trabalhadores, que, eventualmente, tentam fugir para se livrar das condições em que se encontram. Da mesma forma Esterci (1999), ao mostrar a irrelevância do consentimento para descaracterização detrabalho escravo, cita depoi- mento de trabalhador que não tinha a plena consciência da situação em que se encontrava, pois só admitiu deixar a fazenda após saldar a dívida, realizando uma espécie de autoexploração pela intensificação de sua força de trabalho, com o objetivo de saldá-la. Essa percepção do pagamento da dívida como preceito moral foi exteriorizada ao declarar: “Melhor sair sem dever nada”. A Comissão Interestadual de Combate à Exploração sexual de Crianças e Adolescentes da Região Centro-Oeste, segundo seu manual Tráfico de Seres Humanos: Responsabilizar é Possível (2004), demonstra que o tráfico de pessoas atua por meio da vulnerabilidade econômica, buscando a fragilização da vítima pela coação de si ou de seus fami- liares; separação de sua comunidade e das possibilidades de acesso à qualquer tipo de auxílio; imposição de condições de endividamento; isolamento de qualquer forma de comunicação; ação no conhecimen- to da vítima de sua própria culpa diante da situação. Há, entretanto, paradoxalmente, mesmo entre membros da OIT (2002), certo grau de incertezas quanto à caracterização de trabalho for- çado em algumas práticas existentes no mundo do trabalho. O mesmo relatório referido anteriormente indica a necessidade de se fazer mais pesquisas para a análise dos fatores sociológicos, culturais e econômi- cos que alimentam ou enfraquecem as práticas de trabalho forçado. Para a OIT (2002), existe dificuldade de caracterização de trabalho forçado por não haver clara definição do conceito, o que leva à dificul- dade na coleta de dados e de estatísticas. Quantas pessoas são atingidas pelo trabalho? Quem são essas pessoas? Quem são as principais vítimas? Como funciona exatamente o trabalho forçado? Qual o perfil de quem se beneficia diretamente da sujeição de pessoas à servidão humana? De acordo com o relatório anteriormente citado, as respostas a estas questões contribuirão para um melhor entendimento da relação existente entre o desenvolvimento, a pobreza e a desigualdade, pois a existência de trabalho forçado desafia o valor do trabalho, solapa a formação de capital humano e contribui para o ciclo da pobreza. 47 Trabalho forçado, além de ser uma expressão jurídica que significa um tipo de relação de trabalho, é também um fenômeno econômico que vem se reproduzindo no capitalismo há vários séculos. Segundo o manual da OIT (2002), o trabalho forçado, do qual o tra- balho escravo é espécie, é uma forma de negação da liberdade humana ainda encontrado em vários países, nos mais diversos continentes; continua sendo um dos problemas mais complexos encontrados no mundo do trabalho e merece ser atacado pelas autoridades locais, governos nacionais, organizações de empregadores e de trabalhadores e da comunidade internacional, a fim de que seja eliminado. A convenção de 1926 da OIT define escravidão como o “estado ou a condição de uma pessoa sobre a qual se exercem alguns ou todos os poderes relativos ao direito de propriedade”. Em 1948, a Declaração dos Direitos Humanos reafirmou o princípio de que “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, assim como o direito a “livre escolha do emprego”. Em 1956, as Nações Unidas adotaram a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravidão, Tráfico de Escravos e Instituições e Práticas Análogas à Escravidão, na qual se exortavam os países membros a abolirem práticas como a servidão e a servidão por dívidas. A referida Convenção, em seu artigo 1°, alínea “a”, define “servi- dão por dívida” como o […] estado ou condição que resulta do fato de um devedor se ter comprometido a prestar seus serviços pessoais, ou os serviços de alguma pessoa sobre a qual exerce autoridade, como garantia de uma dívida, se o valor desses serviços razoavelmente avaliados, não for aplicado na liquidação da dívida, ou se não se define o prazo e a natureza dos ditos serviços (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1956). O mesmo artigo 1°, alínea “b”, define servidão como […] a condição da pessoa que está obrigada por lei, pelo costume ou por um acordo a viver e a trabalhar numa terra que pertence à outra pessoa e a prestar determinado serviço a essa outra pessoa com ou sem remuneração e sem liberdade de mudar sua condição (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1956). 48 Segundo o relatório da OIT, estas formas de servidão são bastante encontradas no setor rural. Geralmente é feito adiantamento em dinheiro no momento da contratação, o que contribui para restringir a liberdade do trabalhador de deixar o emprego ou mesmo o local de trabalho. Essas práticas de coerção são características dos sistemas agrários de alguns países em vias de desenvolvimento; outra forma é o confisco dos seus documentos. O relatório cita quatro tipos de trabalho forçado no Brasil: o pri- meiro relacionado a trabalho em mineração, desmatamento para a produção de carvão vegetal e atividades agrícolas, como corte de cana, plantação de capim, colheita de algodão e café. O segundo, relacionado aos trabalhadores rurais apanhados num ciclo de servidão por dívidas, perdem o contato com suas famílias e passam a viver em trânsito constante, de uma situação de exploração de trabalho para outra, e são conhecidos como peões de trecho. Tornam-se dependentes das hospedarias em que se alojam entre um trabalho e outro. O terceiro tipo envolve famílias inteiras na produção de carvão. Essas famílias se instalam nas regiões de derrubadas de árvores, constroem fornos para queimar lenha que, transformada em carvão vegetal, é vendida a intermediário para a produção de ferro gusa e aço. Por tratar-se de regiões remotas em que as famílias necessitam de intermediários para obter gêneros alimentícios e transporte, acabam proporcionando condições para o surgimento da servidão por dívida. Por fim, o traba- lho forçado dos índios, que, apesar de existir em menor escala, está presente em algumas regiões do Norte e do Centro-Oeste do Brasil. Para a OIT (2002), o principal aspecto do trabalho forçado nas áreas rurais do Brasil é o endividamento, que imobiliza o trabalhador nas propriedades até a quitação da dívida que, na maioria das vezes, é construída de forma fraudulenta. Alexim (1999), ao estudar o fenômeno da escravidão, chega à mesma conclusão dos autores citados anteriormente. Para ele, surgem formas de dissimulação que causam efeitos menos escandalosos ou ostensivos, mas resultam em formas muitos semelhantes. O processo mais comum e conhecido é o da servidão por dívida, que afeta milhões de pessoas no mundo inteiro. O empregador ou um contratista que atua a seu mando, usa o artifício de oferecer um adiantamento ao tra- 49 balhador, que será descontado em seus salários futuros. O empregador costuma cobrar todo tipo de despesa, como alimentação, residência, ferramentas e até multa por alegados trabalhos insatisfatórios. A dívida, em geral, se eleva, estabelecendo, assim, uma situação que impede o desligamento do trabalhador. A libertação de trabalhadores em condições de servidão forçada não é tarefa fácil, pois os locais de trabalho são normalmente de difícil acesso e muitas vezes a condição de servidão se impõe por falta de transporte, negando-se o empregador a custeá-lo ou disponibilizá-lo ao trabalhador para que o mesmo possa regressar aos seus locais de origem, obrigando-o a permanecer na área e se sujeitar às mais precárias condições, como longas jornadas e riscos de acidentes. Conclui-se que a migração é um componente intrínseco da exploração, posto que os trabalhadores encontrados em condições de servidão são normalmente oriundos de outras terras (ALEXIM, 1999). Corroborando o que afirma Alexim (1999), Correia (1999) declara que o trabalho escravo se inicia com o aliciamento do trabalhador nas suas cidades de origem, normalmente bem distantes dos locais de trabalho, passando pelas hospedagens e pelo transporte dos traba- lhadores até o seu destino final. O aliciamento é feito por aliciadores chamados de “gatos”,