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Paulo Astor Soethe 2009 Literatura COMPARADA IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: IESDE Brasil S.A. S681 Soethe, Paulo Astor. / Literatura Comparada. / Paulo Astor Soethe. — Curitiba : IESDE Brasil S.A, 2009. 204 p. ISBN: 978-85-387-0951-0 1. Literatura – História e Crítica. 2. Literatura comparada. CDD 809 Paulo Astor Soethe Possui pós-doutorado pela Universidade de Tübingen, Alemanha, como bolsista da Fundação Alexander von Humboldt. Doutor e mestre em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Letras (Alemão e Português) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de Língua e Literatura Alemã, tradutor. Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer ... 11 Literatura e discurso ................................................................................................................. 12 Literatura e mimese .................................................................................................................. 15 Literatura e estética .................................................................................................................. 21 A literatura entre as nações (e para além) ....................... 29 Contexto e percurso da literatura comparada ............................................................... 29 Culturas nacionais e globalização ...................................................................................... 31 A contribuição latino-americana ........................................................................................ 35 Autores multiculturais: Franz Kafka ................................... 47 O contexto histórico-cultural de Franz Kafka ................................................................. 47 Vida e obra de um escritor à frente de seu tempo ....................................................... 49 A Metamorfose: pop, cult and more .................................................................................... 52 O Processo: os descaminhos nossos de cada dia ........................................................... 57 Textos literários em diálogo: intertextualidade............. 67 As diversas camadas de significado no texto literário: palimpsesto ..................... 67 Raduan Nassar e Lavoura Arcaica ....................................................................................... 70 Cartas ao pai: cenas familiares, o poder e a palavra do outro .................................. 73 Temas e recursos kafkianos em Lavoura Arcaica ........................................................... 75 Sumário Textos literários em diálogo com a tradição ................... 87 O texto literário: fascículo em coleção .............................................................................. 87 Matrizes consagradas ............................................................................................................. 89 Relato de um Certo Oriente, romance do diálogo inter-religioso ............................. 91 João Guimarães Rosa e as artes visuais ..........................105 Guimarães Rosa: uma obra brasileira para a literatura universal ..........................105 Introdução ao método de criação rosiano ....................................................................107 Guimarães Rosa, aprendiz e fruidor das artes ..............................................................109 Leitura de um episódio “visual” de Grande Sertão: Veredas .....................................113 Literatura e outras artes: a música ...................................133 Heinrich e Thomas Mann, filhos de brasileira ...............................................................133 A música como referência cultural ....................................................................................136 Personagens-artistas e a música na obra de Thomas Mann ....................................140 Literatura e História: artes do tempo ..............................159 Literatura, História: escrituras do inapreensível, marcas da memória .................161 Literatura, História: o que fica .............................................................................................163 Papel social da literatura e dos estudos de literatura comparada .........................169 Gabarito .....................................................................................183 Referências ................................................................................197 Anotações .................................................................................203 Apresentação Este manual propõe uma reflexão sobre a Literatura como fenômeno social e como conjunto de produtos culturais. Entende cada obra como declaração de alguém que participa de uma comunidade de comunicação e que, para manifes- tar-se, recorre a dimensões especiais da linguagem: à capacidade da linguagem para encenar situações concretas, revelar-se a si mesma e dizer coisas inesperadas sobre a vida, diante das grandes questões (como o amor, a morte, os conflitos e a violência, o sentido de nossa existência, a posição que cada um ocupa na socie- dade e no mundo natural). Sobre o pano de fundo dessa reflexão geral, este livro oferece conhecimentos básicos sobre o surgimento e o desenvolvimento da área de Literatura Comparada no âmbito dos estudos literários. Com base em exemplos, apresenta instrumental para análise e leitura crítica de obras em particular, relacionadas entre si ou a outras áreas do conhecimento e a outras artes. Dedica-se ao trabalho prático com obras de autores brasileiros (entre os quais Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Milton Hatoum e Raduan Nassar) e da literatura universal (como Haruki Murakami, Franz Kafka, Thomas Mann e Mario Vargas Llosa). Irá relacionar essas obras entre si e a outros âmbitos de diálogo: outras disciplinas afins (história, filosofia, geografia e psicologia) e outras artes (pintura e música, em especial). A partir de reflexões e exercícios no âmbito da disciplina de literatura compa- rada, este manual pretende convidar a ler e espera que seus leitores estabeleçam, eles mesmos, comparações: relações que os levem a pensar sobre a literatura e a realidade, sobre o lugar que a literatura ocupa no mundo e o lugar que ela oferece a cada um. Encerro a apresentação com uma palavra de agradecimento às colegas Sibele Paulino, Elisangela Redel, Solange Rosa Carneiro Leão, Priscila Buse, Tassia Kleine e Assionara Medeiros, pelo apoio na concepção deste material. Pensando neles e nas alunas e alunos que vão utilizar o material, lembro que o verbo grego didáskein significa, ao mesmo tempo, aprender e ensinar, e preciso supor que Guimarães Rosa conhecesse essa regência peculiar. Em Grande Sertão: Veredas, o escritor opera com a ambivalência do verbo. Zé Bebelo, pretenso mestre, diz a Riobaldo no fim do romance: “A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?” Mas então cai em si, e percebe ter sido ele o aprendiz; e que só se aprende-ensina convivendo e dialogando. Sua conclusão: “A bom, eu não te ensinei; mas bem te aprendi a saber certa a vida...” Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer Vamos imaginar que um leitor brasileiro se debruce sobre o romance Kafka à Beira-Mar, do escritor japonês Haruki Murakami. O romance figura duas histórias, que em certo momento se entrecruzam. A primeira é de Kafka Tamura, um jovem de 15 anos no Japão contempo- râneo. Tendo conflitos com o pai, ele sai de casa em busca da mãe e da irmã, sob a menção direta do mito grego de Édipo. A outra história é ado velho Satoru Nakata, que se caracteriza por ser in- gênuo e simples, mas que é também uma espécie de honorável mago, capaz de prodígios como falar com gatos ou fazer chover peixes e sanguessugas. Ambas as histórias compõem uma teia de referências à cultura ocidental (Édipo, contos de fada, obras de Franz Kafka e outros escritores e compositores europeus) e à cultura japonesa (formas da literatura japonesa tradicional, como tankas, haikus e haikais1, fatos do Japão moderno e de sua história desde a Segunda Guerra Mundial, entre outros). 1 Tanka é uma forma fixa de poema ou estrofe com cinco versos, dos quais o primeiro e o terceiro são livres e os demais têm sempre sete sílabas. Historicamente, tanka é a forma básica de poesia japonesa e por isso equivale às vezes ao termo waka, que denota de forma geral toda a poesia japonesa em suas formas clássicas. Quando essa literatura clássica ganhou ambientação palaciana, o tanka passou a ser composto de maneira dialogada por duas pessoas. Uma compunha os três primeiros versos, o hokku (estrofe inicial), e a outra, os outros dois, o wakiku (estrofe lateral). O hokku tornou-se ao longo do tempo uma forma fixa. Os haikais eram poemas cômicos, muito populares a partir do século XVI. Nessa época, fundiram-se as características da comicidade (hai-) e a forma do hokku (-ku), e surgiu então a forma haiku, que foi promovida no século XVII, pelo grande poeta Bashô, a uma forma elevada, espiritual e de grande consciência artística. É essa forma haiku que se viu especialmente valorizada pelo poetas concretos, no Brasil do século XX, sob a designação geral haikai (sobre esta forma poética, ver, por exemplo, Franchetti; Doi; Dantas, 1996). Haruki Murakami nasceu na cidade de Quioto, no Japão, em 1949. Depois de viver longo tempo nos Estados Uni- dos, voltou ao seu país, morando na capital, Tóquio. D iv ul ga çã o Ed ito ra O bj et iv a. 12 Nosso leitor brasileiro, na poltrona de sua sala, ou no banco de um ônibus enquanto vai de casa para o trabalho, lê o romance na boa tradução de Leiko Gotoda. O volume foi produzido cuidadosamente pela editora carioca Objetiva, mas traz na capa a marca da editora espanhola Alfaguara. Coisa curiosa: o leitor brasileiro debruça-se sobre uma história que acontece literalmente do outro lado do mundo, escrita em um idioma cujo alfabeto ele sequer seria capaz de ler. Mesmo assim, graças à boa tradução e sob as facilidades do mercado editorial globalizado, vê-se envolvido em uma história inquietante. Acaba por identificar-se com as personagens e com situações que parecem suas. Depara-se com referências culturais que são uma mistura de coisas próprias ao Japão e ao Ocidente. E já que Haruki Murakami, de forma generosa, muitas vezes explicita e explica essas referências, nosso leitor brasileiro (como o leitor japonês, ou outro qualquer) informa-se sobre um repertório cultural imenso, pensa, refle- te e posiciona-se em face de questões fundamentais para qualquer ser humano: relações com a família, amor e amizade, o poder e os limites da palavra, os desa- fios de tornar-se adulto, envelhecer, despedir-se da vida... Murakami conhece bem a tradição literária japonesa e a ocidental. Deixa isso claro ao escrever seu romance. Kafka à Beira-Mar exige do leitor que perceba a literatura como fenômeno humano, capaz de ultrapassar fronteiras nacionais e idiomas específicos. Exige dele que seja capaz de comparar os contextos e tradi- ções diferentes que a obra envolve, os diálogos que ela estabelece, os textos e referências que confluem para ela. A literatura comparada, como disciplina acadêmica, ajuda a entender essa dimensão das obras literárias: a inserção de cada texto e de cada conjunto de textos (uma literatura nacional, ou a literatura de determinado período) em uma rede de relações. Porém, antes de definir e apresentar a disciplina, contar um pouco de sua história e analisar obras específicas sob sua óptica, cabe explicar que aspectos da literatura iremos destacar. Literatura e discurso Em primeiro lugar, vamos definir discurso, que será um conceito central em nossa reflexão. Para nós, no sentido de filósofos como Jürgen Habermas e Karl- Literatura Comparada 13 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer -Otto Apel, discurso quer dizer a interlocução (a conversa ampla) que se dá em um contexto social, histórico e reflexivo determinado. (O termo discurso também tem outros usos na linguística ou na psicanálise, mas esses usos não nos interes- sarão aqui.) Cada um de nós integra a sociedade como sujeito. Na sociedade, partici- pamos de comunidades de comunicação mais ou menos formalizadas, em um tempo e um espaço específicos. Denominamos discurso o debate e as ações co- municativas que uma comunidade de comunicação conduz em torno de deter- minada questão. Quando pagamos a passagem de ônibus, por exemplo, participamos da or- ganização estruturada de todo o sistema de transporte coletivo de nossa cidade. Se fazemos isso de forma consciente, tanto melhor: então sabemos ser sujeitos na organização desse sistema, sabemos ter direitos e deveres diante de todos os outros sujeitos que participam dele (prefeitura, planejadores urbanos, empre- sas de ônibus, motoristas, cobradores, demais passageiros). Pagar a passagem de ônibus pode significar: “Participo da comunidade de comunicação que or- ganiza e utiliza o sistema de transporte coletivo”. E disso decorre a possibilidade de propor ou exigir melhorias, reclamar formalmente se o ônibus vem lotado demais ou atrasado, ou elogiar se tudo funciona bem. Essas são formas de parti- cipar do discurso sobre o sistema de transporte coletivo da cidade. Outro exemplo: se lemos a resenha de um romance no jornal, decidimos comprá-lo ou emprestá-lo na biblioteca e o lemos, participamos da comunidade de comunicação organizada em torno da literatura, em um discurso específico sobre esse romance. Se gostamos do livro e o recomendamos para um amigo que também decide lê-lo, integramos o discurso sobre o livro de forma ativa: fazemos em nível individual o que o resenhista do jornal faz em nível coletivo, no espaço público. Portanto, há um discurso que trata das obras literárias como produtos culturais, e integramos esse discurso ao ler e falar sobre literatura, ou estudá-la em uma disciplina, como agora. Fazem parte desse discurso escritores e críticos especializados, professores e alunos em colégios e universidades, bibliotecários, administradores de arquivos literários, editores, os leitores de maneira geral. O discurso literário, no entanto, tem uma peculiaridade: o produto cultural sobre o qual se discute, o texto literário, também integra o discurso como uma voz na comunidade de comunicação – não participa de maneira passiva, como objeto, mas também como a voz de um sujeito dessa comunidade, em caráter ativo. 14 Assim, um romance, por exemplo, fala sobre si mesmo. Diz de si, inaugura um debate sobre si mesmo. Além de falar de si, também traz declarações sobre outros assuntos e, portanto, participa de outras comunidades de comunicação. O texto fala de outros textos e manifesta-se igualmente sobre outros temas. O romance de Haruki Murakami, que comentávamos há pouco, fala de si mesmo, inaugura o discurso sobre si. Mas participa também do discurso sobre Édipo Rei, de Sófocles (496-406 a.C.), e sobre as obras de Franz Kafka (1883-1924), entre outras. A literatura comparada tem nesse caso um papel a desempenhar, como veremos: ela estuda as relações de contato entre obras e literatura diversas, por exemplo. No romance japonês, o protagonista chama-se Kafka e tem uma forte semelhança biográfica com o escritor tcheco, na relação tensa com o pai. No romance de Murakami, o personagem Kafka tem uma espécie de “amigo imaginário” que se chama Corvo (é o significado da palavra kafka em tcheco); e o romance ainda diz textualmente, no diálogo entre o protagonista Kafka Tamura e seu amigo Oshima: – Kafka Tamura?– É o meu nome. – Que estranho. – Mas é o meu nome – insisto. – Presumo que você já tenha lido algumas obras do escritor Franz Kafka. Confirmo com um aceno de cabeça: – O Castelo, O Processo, A Metamorfose e mais aquela história em que aparece uma máquina de execuções estranha. – Na Colônia Penal – diz Oshima. – Gosto desta história. Existem milhares de escritores no mundo, mas só mesmo Kafka seria capaz de escrever esta. – Das novelas de Kafka, essa é a de que mais gostei. – Verdade? Confirmo com um aceno. – Quais aspectos você aprecia? Penso um pouco a respeito. Pensar me toma tempo. – Em vez de tentar explicar nossa condição, Kafka prefere explicar, em termos mecânicos simples, esse complexo aparelho. Ou seja... – paro para pensar novamente. – Ou seja, assim ele conseguiu explicar de maneira mais eloquente que qualquer outro escritor a condição em que vivemos. Isto é, expressou melhor não falando da nossa condição, mas das particularidades da máquina. – Resposta bem formulada – diz Oshima. Depois, põe a mão no meu ombro. Percebo no seu gesto uma espécie de simpatia natural por mim. – Realmente, acho que Franz Kafka concordaria com você. (MURAKAMI, 2008, p. 73-74) Literatura Comparada 15 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer Parece não restar dúvida de que seja relevante uma leitura de Kafka à Beira- -Mar que compare o romance à obra do escritor judeu tcheco de língua alemã. Ou melhor, parece ser relevante uma leitura do romance à luz da obra de Kafka, com destaque para as possíveis relações entre ambas. Além disso, no entanto, o romance japonês fala também de outros assun- tos que não são estritamente literários. Ele aborda as relações entre o Japão e o Ocidente, a presença norte-americana naquele país durante o pós-guerra, e questões de interesse geral, como adolescência e amor. Quem recomenda Kafka à Beira-Mar a um amigo e depois conversa com ele sobre os traços adolescentes da personagem Kafka Tamura, os supostos con- flitos dele com o pai e o papel desses conflitos na caracterização da persona- gem, por exemplo, participa, junto com Murakami, de um discurso mais amplo sobre a adolescência e as possibilidades de formação individual na sociedade contemporânea. Se o livro é discutido sob esse viés em um congresso de psicologia comporta- mental dedicado ao trabalho com adolescentes, por exemplo, o discurso acerca do romance integra-se a um outro discurso formal sobre o assunto, entre psicó- logos. E aí também entra em cena a literatura comparada, quando se trata de aproximar a literatura de outras áreas do saber. Mas isso significa que a literatura fala sobre a realidade? Significa que ela tem um “valor de verdade”? Mas como, se os textos literários apenas figuram situações imaginárias, no ambiente da ficção, do fingir? Será que o poeta chega mesmo a “fingir que é dor a dor que deveras sente?”, segundo o conhecido poema de Fer- nando Pessoa (1888-1935)? E, mesmo fingindo, diz algo relevante sobre a vida concreta das pessoas e da sociedade? Literatura e mimese Cabe introduzir aqui um segundo conceito fundamental para nossa reflexão: o conceito de mimese. Durante muito tempo, traduziu-se mimese (ou mímesis) – termo usado por Aristóteles já nas primeiras linhas de sua Poética – por “imitação”. 16 Esse entendimento do termo levou a pensar que a literatura imita a realidade, criando uma espécie de “mundo paralelo”, autônomo em relação ao contexto em que a obra surge ou é recebida. O pensador brasileiro Luiz Costa Lima, já nos anos 1980, acompanhou de perto a longa discussão e pesquisa filológica que ajudou a compreender melhor o conceito aristotélico. Hoje, como resultado dessa pesquisa e discussão, ten- de-se a traduzir e entender mimese como “emulação” (sentimento de rivalidade construtiva que incita alguém a imitar o outro, igualar-se a ele ou mesmo exce- dê-lo). Por coincidência, é a mesma palavra que se usa em informática para falar dos ambientes que imitam situações em um meio digital. Para treinar pilotos de avião, por exemplo, criam-se emulações da cabine e das situações de pilotagem, como se a pessoa em formação estivesse dentro de um avião de verdade. Mas não se está imitando a realidade, e sim, tornando possível que alguém vivencie uma realidade própria, com os elementos que haveria na realidade propriamen- te dita, mas em uma situação única e nova. Vamos entender o raciocínio de Costa Lima e em seguida voltar ao nosso exemplo do romance japonês. Para o pensador brasileiro, desde fins da Idade Média, a produção de textos ficcionais vem sendo acompanhada pelo exercício de um controle por parte da verdade dominante na sociedade em que se dá tal produção. As regras poéticas e um lugar bem delimitado para a literatura seriam instrumentos desse controle, que se notava de modo muito claro e formalizado no período entre o Renasci- mento e o Iluminismo, mas que até hoje ainda se faz notar. Esse controle, que as- sumiu faces diversas em momentos históricos e circunstâncias sociais diferentes, deve-se à própria natureza da ficção literária: como ela cria uma forma discursiva diferenciada, insubmissa à verdade empírica, está sempre “passível de entrar em choque com o que lhe permite o discurso no poder, o assim chamado discurso da verdade” (LIMA, 1988, p. 3). Vejamos a definição e a caracterização da mimese que Costa Lima oferece. De início, ele estabelece alguns pressupostos que devolvem à mimese seu ca- ráter de participação no tecido comunicativo e social. Para ele, “todo fenômeno é recebido pelo agente humano de acordo com um conjunto de expectativas, apreendido a partir da cultura a que o agente pertence” (LIMA, 1986, p. 361). Ou seja, nada “cai do céu”, mas surge para nós no ambiente cultural em que vivemos, segundo o que esperamos ver. É por isso que certos gestos inesperados impres- sionam e marcam tanto. Um líder religioso, de quem se espera que seja contido e sisudo, pode causar sensação se, ao chegar em um país estrangeiro e descer do avião, de repente se agacha e beija o chão; ou da mesma forma um cientista genial, se de repente mostra a língua diante das câmeras. Literatura Comparada 17 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer D iv ul ga çã o. O papa João Paulo II (1920-2005) beijando o chão ao chegar ao país que visitava, conforme costume por ele iniciado. O físico alemão Albert Einstein (1879-1955), em sua foto mais famosa. D om ín io p úb lic o. Mas essas são exceções. O receptor do texto ficcional (o leitor) geralmen- te estará orientado por uma expectativa culturalmente socializada do que se deverá ver; e o produtor (o escritor), por sua vez, terá sempre o costumeiro como ponto de partida para a representação do que deseja criar. A mimese movimen- ta-se em uma rede social de representações, pautada pelo conjunto de expec- tativas comuns. 18 Assim, a atividade literária, como qualquer outra, dá-se primeiro como uma atualização de noções comuns às pessoas que constituem o ambiente social e cultural de quem produz as obras. Luiz Costa Lima escreve que “a primeira sensa- ção que a mimese provoca, a sensação de semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e expectativas daí resultantes” (LIMA, 1989, p. 68). Quando as obras são recebidas, porém, encontram contextos e grupos sociais sempre diversos. Ou seja: a sensação de semelhança, que se repete apesar de os quadros de referência poderem variar, não esgota a experiência da mimese lite- rária. Há ainda o acordo tácito entre escritor e leitor, segundo o qual se destaca a percepção da diferença entre realidade e ficção. Por isso, o resultado da mimese é o oposto de mera imitação: “A mimesis [...] é produção da diferença e não o império da semelhança” (LIMA, 1988, p. 359). A mimese, “ao contrário da falsa tradução, imitatio, não é produção da semelhança, mas produção da diferença. Diferença, contudo, que se impõe a partir de um horizonte de expectativas de semelhança” (LIMA, 1986, p. 361).Segundo o estudioso brasileiro, essa diferença se estabelece por conta de dois fatores: a resposta individual e criativa de cada um dos produtores e a pró- pria variação dos quadros históricos e sociais, que impõem novas questões, às vezes inadequadas às formas já existentes. Isto é, o escritor impõe sua criatividade subjetiva, e assim faz irromper o novo no discurso social. Poderíamos dizer que ele “beija o chão” ou “mostra a língua diante das câmeras”. (E para inovar coloca em questão até mesmo sua individu- alidade, como veremos.) De outra parte, às vezes são o contexto e as relações do discurso que mudam e atualizam de forma inesperada o texto literário (ou pretensamente literário). Quem poderia supor que bruxos e magos dominariam as preferências do mercado editorial adolescente e adulto na virada do século XX para o XXI?... Assim, um aspecto muito importante para Costa Lima é que a literatura dissi- pa as regras generalizadas quanto ao uso da linguagem. Mas ela dissipa também uma pretensa “expressão do eu”. O autor deixa de expressar uma opinião ou uma posição única, e encena diversas possibilidades em suas histórias ou poemas. No meio literário ficcional, segundo Costa Lima, “o eu se torna móvel, ou seja, sem se fixar em um ponto, assume diversas nucleações”; essa diversidade, no entanto, é possibilitada “pelo ponto que o autor empírico ocupa” (LIMA, 1986, p. 238). E disso conclui-se que Literatura Comparada 19 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer A imaginação permite ao eu irrealizar-se enquanto sujeito, para que se realize em uma proposta de sentido. Pois, se é verdade que a unidade do eu é uma ilusão “cartesiana”, não é menos verdade que a procura de uma unidade, nunca acabada e sempre provisória, é a condição necessária para não nos desagregarmos no contínuo das experiências. [...] pela ficção, o poeta se inventa possibilidades, sabendo-se não confundido com nenhuma delas; possibilidades contudo que não se inventariam sem uma motivação biográfica. Menos do que disfarce, a ficção, poemática ou em prosa, é uma produção direcionada pela unidade (instável) do eu. (LIMA, 1986, p. 358-359) Voltemos ao nosso exemplo. Assim como supusemos que Kafka à Beira-Mar pudesse ser relevante para psicólogos que discutem comportamento adoles- cente, o romance de Murakami também integra de maneira calculada (pelo pró- prio autor) um debate sobre a identidade cultural japonesa a partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Como se sabe, o Japão precisou mudar muito a partir do fim da Segunda Guerra, quando foi derrotado pelos Estados Unidos, depois de haver cometido o erro histórico de tornar-se o mais importan- te aliado da Alemanha nazista. Os leitores percebem a participação de Murakami nesse debate delicado e buscam interpretar imagens e metáforas do livro sob esse viés, perguntando-se o que essas imagens e metáforas poderiam significar na discussão sobre o assunto. De maneira muito própria à literatura, no entanto, não há como afirmar com base no romance o que Murakami pensa em definitivo sobre o assunto, porque ele não emite opiniões fixas, mas cria situações ficcionais em que o problema aparece. Como escritor, lança mão de recursos especiais da linguagem para propor perguntas sobre a questão da identidade cultural japonesa. Ele propõe “enigmas” literários, por assim dizer, que levam os leitores a pensar sobre o assunto. Como Murakami cria um texto autônomo, com personagens, tempo e espaço próprios, é possível ler seu texto e entrar nesse debate a qualquer momento, desde que se disponha, como leitor, de conhecimentos mínimos sobre a participação do Japão na Segunda Guerra Mundial e as consequências de sua derrota. A dicção literária, a voz proferida sob a forma de literatura, destaca de maneira especial as condições concretas de pensamento e interação em que ela mesma surge. O texto literário enuncia algo e ainda figura, em si mesmo, as condições e os elementos dessa enunciação. Haruki Murakami, de dentro do Japão contem- porâneo, figura uma história no contexto japonês, para pensar sobre seu país. O Japão que ele discute, embora seja ficcional, não é “fictício”, não é “de mentira”. E aqui surge uma distinção importante, que o pensador alemão Heinz Schlaffer explica da seguinte maneira: 20 Ao substantivo ficção relacionam-se dois adjetivos: fictício e ficcional. Denominam-se fictícias as noções que não resistem a um exame crítico, quando se trata de verificar se elas são verdadeiras; denominam-se ficcionais as noções que renunciaram à pretensão de serem verdadeiras e apenas brincam com essa pretensão. Fictício é uma qualidade negativa, ficcional é uma qualidade positiva. Que algo seja fictício só se descobre depois; que algo seja ficcional aceita-se desde o início. Fictício é um juízo emitido pelo saber; ficcional designa um ato voluntário da consciência. (SCHLAFFER, 1990, p. 145, tradução nossa) Um romance contém e revela marcas reais de quem o enuncia e das con- dições sob as quais se enuncia. Ele não narra uma história que vamos desco- brir ser uma inverdade, no final da leitura – já de antemão sabemos que não se trata disso: “ficção não é sinônimo de falsidade, mas de suspensão do limite que separa os conceitos de falso e de verdadeiro” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 19). Por isso o texto literário contém uma dimensão tão forte de relação com o real, embora seja irreal: ele se refere a coisas no mundo, à pessoa que se refere a elas e aos processos de comunicação dessa referência – um tempo, um lugar, perso- nagens concretas, e não apenas ideias abstratas. A verdade do texto ficcional é devida à sua concretude e à sua especificidade. O texto literário não finge ser a enunciação de uma voz neutra e objetiva, como se fosse a “embalagem” de um mero conteúdo de saber, opinião, sen- timento... O que a literatura faz é explicitar em si o fato de ser enunciada por um sujeito diante de outros sujeitos, e sob condições materiais e comunicati- vas muito concretas. Com isso, a literatura se despe das ilusões de objetividade (como se a verdade surgisse de um sujeito único e ideal diante de um objeto). Ao contrário, na literatura, só existe enunciação marcada pelas condições concretas do discurso, do debate em que se diz algo. E por isso o texto literário se torna mais “objetivo”: ele reconhece, figura e manifesta os limites e as possibilidades de sujeitos mergulhados em uma comunidade de comunicação, a qual simples- mente não existe fora de um contexto social, material e cultural. Como vimos até aqui, o dizer literário acontece em meio ao discurso de uma comunidade de comunicação. A literatura usa recursos da ficção e da mimese, da emulação de um ambiente concreto em que os personagens se movem, en- cenando situações e debates. E essas situações e debates são reconhecidos pelo escritor e pelos leitores como suas, já que o interesse que marca os atos da escri- ta e leitura é entender o mundo e pensar sobre a realidade humana. De seu lugar discreto, cada poema, cada conto, cada romance resiste à pre- valência de usos da linguagem natural que se limitam à simples repetição e ao controle social. A literatura, sob certo aspecto, é um reduto para o sujeito criativo no tecido social comunicativo. Por ser a voz de um sujeito, revela a cada um o po- tencial de renovação das formas de comunicação e de compreensão do mundo. Literatura Comparada 21 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer Os textos literários carregam em si conhecimentos sobre a vida e a experiência humana e aguçam a consciência (individual e social) quanto a certas formas de conhecer: ativam a sensibilidade e a imaginação, chamam a atenção do sujeito para sua participação no mundo material partilhado com os outros, para sua participação em uma comunidade de comunicação que se imagina e se reconfi- gura a todo momento. Literatura e estética Resta explicar um terceiro aspecto do texto literário que para nós será muito importante.Trata-se aqui de uma característica central da literatura, que torna possível aos escritores e leitores questionar e inovar as formas de comunicação no discurso de que participam, bem como interagir com outras tradições artísti- cas: a dimensão estética do texto literário. A noção de estética que nos interessa está diretamente relacionada com sua origem grega: aisthesis significava, em grego, “sensação”, “percepção proporcio- nada pelos sentidos” (visão, audição, tato etc.). A palavra anestesia, por exemplo, tem a mesma origem que a palavra estética. Se alguém sofre um corte grave na mão e precisa levar pontos, toma uma anes- tesia local e deixa de ter sensações ali, para não sentir dor. Deixa de sentir dor e também quaisquer outras sensações. Anestesia, portanto, quer dizer sem (an-) sensação (aesthesis). Estética, portanto, tem a ver – de um jeito positivo – com as sensações proporcionadas pelos sentidos, pelo aparato de nosso corpo que nos permite perceber o mundo à nossa volta. Na literatura, importa muito ativar as sensações físicas, ao contrário do que acontece em outros registros neutros e abstratos da linguagem. Há poemas, por exemplo, em que a sonoridade é no mínimo tão importante quanto o que se diz. Ou seja, o que percebemos com nossa audição (os sons mesmo, desprovidos de conteúdo intelectual, abstrato) é significativo para a fruição do poema, como se ao lê-lo estivéssemos ouvindo música. Veja-se a co- nhecida estrofe do poema “Violões que choram...”, do catarinense Cruz e Sousa (1861-1898), que foi escrito em 1897 e cujas repetições de v e l, organizadas em um ritmo regular, tornam presente a regularidade rítmica do violão e aludem à sonoridade do vento. Mesmo quem não fale português pode, sem nada enten- der, perceber a riqueza sonora do texto: 22 Vozes veladas, veludosas vozes, volúpias dos violões, vozes veladas, vagam nos velhos vórtices velozes dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. (SOUSA, 2009) Há outros poemas em que a visão desempenha papel central, pois é necessá- rio ver a forma gráfica do poema para fruí-lo bem. Esse recurso já é explorado há séculos pela literatura. O texto a seguir é de 1672 e foi escrito pelo poeta barroco Johannes Praetorius. Nesse poema, a disposição dos versos imita o objeto de que eles falam: o trevo. D om ín io p úb lic o. A dimensão visual dos textos alcançou papel central na produção e discussão dos poetas concretistas brasileiros a partir dos anos 1950. A produção e debate teórico de autores como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ronaldo Azeredo mereceram grande atenção na cena literária internacional. O poema “Velocidade”, a seguir, que Ronaldo Azeredo (1937-2006) publicou em 1958, explora a dinâmica visual da letra v e demais letras. Cria, assim, jus- tamente a impressão de um deslocamento dinâmico da palavra na superfície da página e se proporciona a sensação visual da velocidade de um objeto em movimento. Literatura Comparada 23 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer D om ín io p úb lic o. Mas também a leitura silenciosa de um texto linear e “bem comportado” na sua forma gráfica ou sonora apela o tempo todo para nossas sensações. Os textos literários de maneira geral lançam mão da matéria mais tênue e gratuita do nosso repertório de bens culturais (a linguagem natural, que nos é dada na infância) e com isso estimulam nosso pensamento, mesmo sem a presença de dados figurativos como imagens e sons. É como se a literatura afirmasse: naquilo que se diz há mais do que se diz, e não devemos nos limitar aos conteúdos estabelecidos e prontos. Estamos imer- sos no mundo de corpo e alma e por isso podemos interferir em nosso ambien- te. Até mesmo a palavra, que parece tão abstrata e imutável, tem uma dimensão concreta, material e inovadora. Quando o escritor cria espaços, cores, luminosi- dades, dados “físicos” do mundo que cerca seus personagens, opera com a lin- guagem natural disposto a revelar o funcionamento dela no ambiente discursi- vo. E torna viva a dinâmica da consciência individual que essa mesma linguagem faz presente no ambiente social. O autor e o leitor de textos literários mantêm-se atentos à dimensão formal e à materialidade da linguagem. Quando lemos e escrevemos, figuramos os diver- sos fatores e operações presentes na situação discursiva em que o próprio texto 24 surge e se atualiza. O romance destaca as formas de construção do mundo que cerca as personagens, a temporalidade e circunstância histórica em que vivem, as formas e convenções das relações interpessoais, sentimentos e motivações, pulsões e cálculos dos participantes envolvidos nas comunidades de comunica- ção ali presentes. No romance Kafka à Beira-Mar, há um momento em que o adolescente Kafka Tamura pensa ter visões de uma menina imaginária, que lhe aparece durante a noite. Ele começava a se apaixonar por uma mulher bem mais velha, a senhora Saeki, e por isso passa a fantasiar a presença dela, só que muito mais jovem. O trecho do romance em que o adolescente reflete sobre o que lhe acontecia talvez seja uma metáfora muito bonita para explicar a literatura: Sinto o cheiro do mar no vento que me chega através do bosque de pinheiros. O que vi na noite anterior foi sem dúvida alguma a senhora Saeki de 15 anos de idade. Ela está viva, naturalmente. Vive no mundo real, como uma mulher real de mais de 50 anos. E neste exato momento trabalha sentada à escrivaninha da sala existente no andar superior. Se eu sair daqui e subir as escadas, posso me encontrar com ela. E também conversar com ela. Não obstante, o que vi ontem à noite tinha sido o “fantasma” dela. Uma pessoa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, dissera Oshima. Pode sim, em algumas situações. Agora sei disso com certeza. Pessoas vivas se transformam em “fantasmas”. E outro fato importante: o “fantasma” me atrai. Não é a senhora Saeki presente aqui e agora que me atrai, mas a senhora Saeki ausente, de 15 anos. Uma atração forte, além do mais. Inexplicavelmente forte. E isso é real, não há como negar. Pode ser que a garota não seja real. Mas o que palpita com força é o meu coração real. (MURAKAMI, 2008, p. 275) Essa metáfora – em que o “fantasma” imaginário, mesmo sendo irreal, faz pal- pitar com força o coração real em busca de alguém – talvez ajude a entender o que move milhões de pessoas a ler e valorizar a literatura, mesmo em um tempo de tantas outras alternativas de entretenimento e informação. Sendo uma espé- cie de “máquina” muito sofisticada, cada texto literário mostra-se capaz de ativar nossa consciência e nossos sentidos e de conectar-nos a uma comunidade de comunicação ilimitada (até com quem está do outro lado do mundo...). A literatura comparada, como disciplina acadêmica, mostra-se particular- mente atenta ao potencial de formação individual e integração coletiva dos textos literários. E talvez ela de fato represente “mais que uma disciplina acadê- mica”, como escreveu François Jost, um dos grandes comparatistas, em ensaio memorável, de 1974: A literatura comparada representa uma filosofia das letras, um novo humanismo. [...] é uma visão globalizante da literatura, do mundo das letras, uma ecologia humanística, uma Weltanschauung2 literária, uma visão globalizante da literatura, englobante e abrangente. (JOST, 1994, p. 344) 2 Weltanschauung: visão de mundo. Literatura Comparada 25 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer Texto complementar Autopsicografia (PESSOA, 2009) O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. Atividades 1. Qual a diferença entre fictício e ficcional? 26 2. Apresente com suas palavras o conceito de mimese proposto por Luiz Costa Lima. 3. Qual arelação entre as palavras estética e anestesia? 4. Relacione o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, apresentado como texto complementar, e a última citação do romance Kafka à Beira-Mar (p. 275, no original). O que ambos têm em comum? Literatura Comparada 27 Literatura: dizer sobre o mundo, dizer sobre o dizer Dica de estudo <www.poesiaconcreta.com.br/> Financiado por grandes fundos e empresas estatais brasileiras, este site ofe- rece material de excelente qualidade sobre os poetas e obras da poesia concreta brasileira. Não deixe de visitar, ler os textos e apreciar o material audiovisual dis- ponível em excelente qualidade. A literatura entre as nações (e para além) Erro de português Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português Oswald de Andrade Trataremos do surgimento e percurso histórico da literatura comparada como área acadêmica. Procuraremos esboçar de maneira breve os dados mais importantes das discussões conduzidas na Europa e nos Estados Unidos em torno das tarefas e teorias dessa área de estudos, para então nos concentrarmos na realidade latino-americana e brasileira. Contexto e percurso da literatura comparada Em primeiro lugar, é preciso ter claro que, como área acadêmica, a lite- ratura comparada nasce de uma concepção de literatura fortemente mar- cada pelo cultivo das culturas nacionais nas universidades e meios cultu- rais de países que se consolidam (e também concorrem entre si) ao longo dos séculos XIX e XX. Como relata a professora Sandra Nitrini, em Literatura Comparada: história, teoria e crítica (2000, p. 20), nas universidades francesas o ensino da disciplina teve início no final da década de 1820. Um nome impor- tante na época foi, por exemplo, o do historiador da literatura Philarète 30 Chasles. Para ele, sob um espírito otimista, importava refletir sobre as influ- ências que, a partir dos trânsitos das literaturas, um caráter nacional pudesse exercer sobre outro. Nessa época, as conquistas do Romantismo – como o reconhecimento da li- berdade criadora individual e a atenção às formas na natureza e na cultura – tor- navam muito importantes para a reflexão artística as transformações das obras ao longo da história e a existência de realizações distintas em diferentes regiões. Diferenças e características particulares eram um fator central para a definição de estilos, períodos e obras literárias. No entanto, pelas circunstâncias daquele contexto histórico, acabava sendo mais importante para os estudiosos reunir as obras literárias sob uma mesma categoria, segundo a ideia de identidade nacional. As obras de um mesmo país eram vistas e valorizadas como manifestação de um caráter e de um destino nacional. A história literária estabeleceu-se como instrumento de unificação na- cional. Tomaram-se obras do passado medieval (como a Chanson de Roland, na França; A Divina Comédia, de Dante Alighieri, na Itália; ou a Canção dos Nibelungos, na Alemanha) e sobre elas se impôs uma aura de originalidade, como se represen- tassem, desde um tempo remoto, o caráter nacional francês, italiano ou alemão. Sob esse espírito, as filologias nacionais se consolidaram nas universidades e, a partir do advento do positivismo (fim do século XIX), mesmo a necessida- de de uma “cientificidade” para a disciplina de letras não colocou em questão a perspectiva de que literatura é sempre literatura de um país, manifestação de nacionalidade. Entretanto, no viés assumido pela literatura comparada havia elementos au- tocríticos e antecipadores de outras possibilidades. Assim, a própria disciplina se via de modo crítico e percebia que ela mesma intuía algo para além do naciona- lismo. Em 1893, o professor Joseph Texte, que lecionava literatura comparada na Universidade de Lyon, escreveu que Produz-se há alguns anos em torno de nós, na Alemanha, Inglaterra e Itália, nos estudos de história literária, um movimento voltado para o estudo comparativo das literaturas modernas. De nacional ou local, como o era geralmente até aqui, a história literária possui uma tendência manifesta de se tornar europeia e internacional. As relações das diversas literaturas entre elas, as ações e reações que elas exercem ou sofrem, as influências morais ou simplesmente estéticas que derivam destas trocas de ideias, tudo isto constitui um campo de estudos ainda quase novo e que, acredita-se, preocupará cada vez mais os historiadores. Talvez haja nisso o gérmen de um novo método em história literária. (TEXTE, 1994, p. 26) Assim, embora tenha nascido e se consolidado sob o signo da vinculação entre literatura e nacionalidade, a literatura comparada pôde antever que iria Literatura Comparada 31 A literatura entre as nações (e para além) ser questionada, no futuro, a premissa de que essas duas coisas estivessem ne- cessariamente ligadas, como se houvesse para ambas uma “essência” comum. Culturas nacionais e globalização Um marco importante nos estudos da área foi La Littérature Comparée (1931) de Paul van Tieghem, uma obra de referência para se entender a assim chamada escola francesa, que está visceralmente ligada a essa valorização do caráter na- cional das literaturas. Tieghem formulou a distinção entre literatura comparada e literatura geral, e Sandra Nitrini explica que a literatura comparada [...] tem por objeto o estudo das relações entre duas ou mais literaturas. Tais conexões são argamassadas por contatos binários entre obra e obra, obra e autor, autor e autor etc. Mas uma série de contatos binários, por exemplo, Schiller na França, Rousseau na Alemanha, não dá conta de movimentos mais gerais nem integra uma história do romantismo. Daí a função da literatura geral, que faria uma síntese dos “fatos comuns a várias literaturas”. (NITRINI, 2000, p. 25) Ainda sob forte convicção positivista, Thiegem acreditava que, com base em cuidados metodológicos, seria possível fazer uma clara distinção entre dois campos do saber autônomos. Vamos entender essa distinção a partir de exem- plos concretos: a literatura comparada estudaria, por exemplo, a influência específica do � escritor escocês Walter Scott1 na França; a literatura geral refletiria sobre o desenvolvimento do romance histórico � de maneira “geral”, sem restringir-se a um exemplo específico de contato entre dois polos (como no primeiro exemplo do item), procurando chegar, portanto, a considerações abrangentes sobre essa forma literária, que po- tencialmente seriam válidas para qualquer ocorrência dessa forma. Como se percebe, a concepção de Thiegem ainda supunha a existência de conceitos e formas universalmente válidos, no espírito da ciência positivista. Essa distinção entre literatura comparada e literatura geral foi um dos pontos de partida para o diálogo crítico entre a literatura comparada e os estudos de caráter formalista. Ninguém menos que René Wellek (1903-1995), o pai do New Criticism, criticou essa distinção, de maneira aberta e direta, no Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada realizado em 1958. Wellek afirmou que 1 Sir Walter Scott (1771-1882) é considerado o criador do romance histórico, que se baseia em pesquisa e reconstrução de dados e fatos do passado. É de sua autoria, entre outros, o romance Ivanhoé (1819), que narra a história de um cavaleiro durante os conflitos realmente ocorridos entre saxões e normandos no século XII. 32 Essa distinção, sem dúvida, é insustentável e impraticável. Por que se poderia, por exemplo, considerar literatura “comparada” a influência de Walter Scott na França, enquanto um estudo do romance histórico durante o período romântico seria visto como literatura “geral”? [...] as tentativas de se estabelecer fronteiras especiais entre a literatura comparada e a literatura geral devem desaparecer, porque a história literária e as pesquisas literárias têm um único objeto de estudo: a literatura. (WELLEK, 1994,p. 109) René Wellek considera uma incoerência desvincular o estudo dos casos parti- culares e do estudo dos processos gerais. Ele mesmo, no entanto, resolveu o pro- blema de maneira também questionável ao reduzir o estudo da literatura a as- pectos formais dos textos, sem dedicar a devida atenção à história e a dinâmicas implicadas na inserção da obra em discursos sociais (nacionais e internacionais). Afinal, a história e as dinâmicas sociais é que vão considerar qualquer obra um “texto literário”. E, somente depois de a ela conferir esse status, a tornarão capaz de influir em processos formais de desenvolvimento de determinado gênero. É também limitador e simplificador dizer que existe “a” literatura “e ponto final”. Assim, não é absurda a distinção entre o estudo de casos particulares (casos de contato entre obras, autores e tradições) e o estudo de possíveis característi- cas gerais dos fenômenos literários. Na verdade, esse movimento de formular a relação entre o caso específico e uma conclusão mais geral supõe, isso sim, um esforço de teorização muito grande. Nesse sentido, Hutcheson Macaulay Posnett, um dos primeiros teóricos da literatura comparada, escreveu de maneira muito perspicaz (já em 1886!) que A teoria de que a literatura é uma obra separada de indivíduos que devem ser adorados como imagens caídas do céu, que não são conhecidos como artífices da linguagem e ideias de sua época e de seu lugar, e a teoria semelhante de que a imaginação transcende as associações de espaço e tempo, muito fizeram para ocultar a relação entre ciência e literatura e prejudicar o trabalho de ambas. [...] A questão central [dos estudos comparativos] é a relação do indivíduo com o grupo. Encontramos nossas principais justificativas para considerar a literatura passível de explicação científica nas alterações ordenadas pelas quais esta relação passou [...]. (POSNETT, 1994, p. 24-25) Mesmo sob as limitações teóricas da época, Possnet percebe o caráter dis- cursivo da literatura como dado central para a justa apreensão das obras. Uma abordagem adequada não esgota as obras nem como produtos de uma subje- tividade “inspirada”, nem como objetos desvinculados de uma época e de um lugar. Assim, a consideração da obra como meio de “relação do indivíduo com o grupo” lhe faz jus como voz discursiva que estabelece um diálogo privilegiado com o cotidiano das pessoas e também com o mundo da ciência e das artes. Isso explica por que uma outra corrente de estudos veio, dali a pouco tempo, oferecer uma alternativa à escola francesa – que, muito restrita, aceitava pesqui- Literatura Comparada 33 A literatura entre as nações (e para além) sas no âmbito exclusivamente literário e com isso restringia os “trânsitos” da literatura em seu diálogo com outras áreas do saber e outras artes. No artigo “Comparative literature: its definition and function” (1961), Henry H. H. Remak deu a melhor definição da assim chamada escola americana e sua abertura para uma interlocução mais ampla: Literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico, e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as Artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura e a música), a Filosofia, a História, as Ciências Sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as Ciências, a Religião etc. Em suma, é a comparação da literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK, 1994, p. 1) Décadas de estudos fundados sobre a tradição europeia haviam trazido re- sultados valiosos, não resta dúvida. A perspectiva de consideração das literatu- ras de diversos países sob uma óptica internacional havia colocado os pesquisa- dores diante de um imenso e integrado conjunto de obras, e diante de questões históricas e teóricas importantes, que receberam soluções válidas até hoje. Nesse sentido, também é preciso mencionar aqui a vertente comparatista dos países do Leste europeu, que, na tradição do Círculo de Praga, do formalismo russo e seus desdobramentos, prestou contribuição importante aos estudos e debates mais recentes na disciplina. É o caso da obra de Dionys Durisin, para quem, nas palavras de Sandra Nitrini, “a relação do estudo da literatura comparada com a historiografia literária é também automaticamente determinado por sua re- lação com a teoria literária” (NITRINI, 2000, p. 90). Um bom exemplo disso é a reflexão sobre gêneros literários. Mencionamos há pouco esse aspecto quando nos referimos rapidamente à recepção do romance histórico na França, depois de ele ter sido lançado por Walter Scott, no início do século XIX. Ora, os estudos sobre a influência exercida pela obra de Scott na França e em outros países (em Portugal, por exemplo, com o romance Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano) faz perceber que alterações e constâncias de certa forma literária no processo de sua recepção pela tradição literária de outros países podem revelar traços fundamentais de determinado gênero. Mesmo que havendo transformações, alguns traços permanecem e reve- lam-se mais “essenciais” para a caracterização do gênero, que vai sendo aceita e fixada pela comunidade literária internacional. Ou seja, o estudo da aceitação e das transformações de um gênero em diversas literaturas nacionais permi- te aos teóricos e historiadores da literatura tirar conclusões duradouras sobre ele, já que tais conclusões são partilhadas e legitimadas por uma comunidade muito ampla. 34 No entanto, a discussão sobre as complexas relações entre a narrativa literária e a narrativa histórica – tema muito em voga até hoje – só se tornou bem-vinda na área dos estudos literários a partir do fortalecimento da escola americana, como vínhamos dizendo. Os comparatistas norte-americanos acrescentaram ao modelo da disciplina – até então muito fixado nas literaturas (consequência da segmentação positivis- ta-cientificista do saber) e nas literaturas nacionais (herança tácita do idealismo nacionalista romântico) – algo novo: a abertura para o diálogo com outras áreas do saber e com outras artes. Isso rendeu conquistas interdisciplinares e transdisciplinares (o diálogo com a história, por exemplo), inaugurou o importante campo dos estudos interartes (relações entre literatura e pintura, literatura e música etc.) e fez jus, afinal, à li- berdade dos textos literários de estabelecer diálogo com as comunidades de co- municação que eles integram sem que a pesquisa acadêmica venha impor-lhes limites de cima para baixo, por razões metodológicas que nada têm a ver com as dinâmicas sociais e comunicativas da literatura. Após certo período de oposição entre as escolas francesa, americana e eslava, as questões que surgiram desse embate foram sendo resolvidas e resultaram em abertura para a área dos estudos literários, e em particular da literatura compa- rada. Ganharam (e ganham) com as contribuições comparatistas diversas espe- cialidades e tendências na área de Letras, como: a teoria literária; � os estudos de gêneros textuais; � os estudos de temas e motivos; � os estudos de recepção da literatura; � os estudos das influências (de um autor sobre outro, de uma literatura so- � bre outra) como parte da história literária; os estudos de periodização literária; � os estudos da tradução literária (atividade imprescindível para o contato � entre literaturas e autores de comunidades linguísticas diversas); os estudos interartes; � os estudos culturais sobre as relações entre literatura e cultura popular; � os estudos sobre literatura e sociedade. � Literatura Comparada 35 A literatura entre as nações (e para além) Entre essas diversas áreas de atividade, vamos destacar uma que se tornou particularmente importante na América Latina, e que talvez consista na contribui- ção mais importante de nosso continente aos estudos de literatura comparada. A contribuiçãolatino-americana Entre os estudos sobre as relações entre literatura e sociedade e literatura e cultura popular, devem ser mencionados o brasileiro Antonio Candido (*1918) e o uruguaio Angel Rama (1926-1983), com destaque para Transculturación Narrativa en América Latina (1984), obra póstuma de Rama, que morreu jovem, em um acidente aéreo nas proximidades de Madri. Je su an e Sa lv ad or . Antonio Candido. D iv ul ga çã o <h tt p: // le tr as -u ru gu ay .e sp ac io la tin o. co m >. Angel Rama. As ideias fundamentais de Antonio Candido mostram-se produtivas no Brasil (e para além da cena brasileira) desde meados do século XX, quando produziu e publicou Formação da Literatura Brasileira (1959), sua principal obra, direcionan- do-se para uma abordagem crítica própria, central para os estudos comparatis- tas. Sob o olhar da realidade brasileira, Candido revaloriza o conceito de influên- cia, talvez o mais importante na discussão sobre literatura comparada. Esse conceito esteve muito marcado por noções de hierarquia e causalidade no comparatismo tradicional. Ou seja, sob uma perspectiva europeia (nacionalista e, afinal, eurocêntrica) supunha-se, grosso modo, que autores precedentes exerciam 36 influência sobre seus sucessores, determinando, de certa forma, os desenvolvi- mentos de literaturas mais jovens ou periféricas, como se costuma dizer hoje. Havia aí uma noção hierárquica, tanto temporal (importava quem escreveu antes) e causal (a literatura recebida determina as reações de quem a recebe). Isso se explicava pela concorrência que havia entre as nações e também por uma concepção da história pautada pela linearidade: supostamente, a história levava a cabo uma evolução natural da humanidade, e cabia às nações de destaque conduzir as outras pelo caminho que já conheciam. A obra de Antonio Candido nasce no contexto de uma nação jovem e peri- férica e versa sobre o Brasil do século XIX, época em que o nosso meio cultural fez um grande esforço para encontrar soluções próprias não apenas no âmbito literário mas também no que diz respeito à sua identidade cultural como um todo. A nossa língua oficial era (e continua sendo) o português e o país estava em condições de receber a literatura portuguesa no original, mas sentia neces- sidade de distinguir-se de Portugal, a ex-metrópole. Havia no Brasil várias etnias representadas e, para marcar a própria identidade, seria preciso figurá-las nos textos literários de um modo agregador. Diante do desafio de pensar a formação de uma literatura brasileira, Candido, desenvolveu uma forma de pensar que concebe um sistema literário com exis- tência concreta (autores, obra, meio editorial, público) e se afasta portanto de uma ingênua concepção “essencialista”, que se baseia sobre um conceito idealis- ta de nação. Por seu cuidado histórico, e por observar o discurso literário em sua concretude, ele também pensou acerca do desenvolvimento da cena literária, levando em conta as predominâncias de períodos (o realismo que se opõe ao romantismo, por exemplo), fases, gerações de escritores etc., mas sem esquecer que estava tratando de generalizações que poderiam conter lacunas. A atenção do crítico precisa estar redobrada para perceber a relação entre o elemento externo à literatura (as dinâmicas sociais) e seu papel na constituição da forma da obra analisada, ou seja, sua transformação em elemento interno da obra. Uma de suas discussões centrais é a consideração das influências “à luz da dependência causada pelo atraso cultural” (CANDIDO, 1987, p. 151). Em virtude de sua história anterior de submissão à metrópole, os países latino-americanos teriam se afastado das antigas metrópoles, buscando modelos nas literaturas de outros países, especialmente a França. E essa é a razão, inclusive, para o conti- nente não se chamar América Ibérica e sim América Latina, pelo peso, na época, que se atribuía à latinidade como componente da identidade cultural francesa. Literatura Comparada 37 A literatura entre as nações (e para além) Assim, mesmo buscando diferenciar-se da Europa, os escritores e intelectuais brasileiros e latino-americanos buscam modelos e interlocução com literaturas europeias. E mesmo o diálogo com Portugal e Espanha prossegue, apesar dos sinais de distância e estranhamento. Por isso, Candido considera inevitável des- tacar que o uso de formas importadas continuou sendo uma marca da literatura em nosso continente, mas que ali se teriam manifestado temas e sentimentos pró- prios. Isso possibilitaria superar uma relação de dependência, e então se passaria a cultivar uma relação de “participação e de contribuição a um universo cultu- ral ao qual pertencemos, que ultrapassa as nações e os continentes” (CANDIDO, 1987, p. 152). As deformações impostas às formas importadas, vistas de maneira positiva como força criadora, romperiam as noções de causalidade e de hierar- quia. E com isso a perspectiva comparatista de Candido ganharia uma dimensão nova. Sobre a questão, Sandra Nitrini comenta que O conceito de influência [de Antonio Candido] se libera da carga semântica determinista, colonialista, positivista e etnocêntrica, tornando-se um instrumento comparatista independente da chamada “escola francesa” da primeira metade [do século XX] ou de qualquer outra. (NITRINI, 2000, p. 209) Assim, essa tensão entre as soluções locais da cena brasileira (o indigenismo de um José de Alencar, por exemplo) e internacionais (como a relação dessa obra com o indigenismo francês e o reconhecimento dos romances de Alencar na Europa e na América) seriam um motor importante para a constituição da litera- tura em nosso país e, de maneira geral, em nosso continente. Como vemos, tal exercício da literatura comparada ganha dimensões novas, por revelar a maneira como as dinâmicas sociais se cristalizam nas formas literárias, e como a literatura é também agente no discurso social em que nasce e do qual participa. Nesse sentido, um grande interlocutor de Antonio Candido no mundo his- pano-americano foi o uruguaio Angel Rama. Também ele confrontou-se com conceitos de independência e originalidade, estando particularmente preocupa- do com as vinculações entre literatura e cultura. Com grande erudição sobre as literaturas de língua espanhola no continente, e considerando em suas reflexões vários autores e pensadores brasileiros, como Guimarães Rosa e Gilberto Freyre, Rama colocou no centro de suas reflexões o conceito de transculturação narrati- va, que em vários pontos coincide com noções e intuições de Candido. No sentido da superação dos limites da abordagem comparatista europeia tradicional, Rama antecipa aspectos importantes da presença das muitas vozes do povo e da cultura popular que ganham forma entre os escritores de nosso continente: 38 [...] na originalidade da literatura latino-americana está presente, como um norte, seu afã internacionalista, movediço e inovador, que mascara outra fonte de alimentação mais vigorosa e persistente: a peculiaridade cultural desenvolvida no interior, que não foi obra única de suas elites literárias, mas sim o esforço dedicado de vastas sociedades construindo suas linguagens simbólicas. (RAMA, 2007, p. 17, tradução nossa) Na percepção de Rama, em relação aos processos coletivos que a literatura do continente passava a incorporar, confirmava-se uma vez mais o caráter discursi- vo da literatura, seu afã, sua vontade de figurar mais que uma voz subjetiva. Esse esforço das “sociedades do interior” por fundar, elas mesmas, um discurso sobre questões tão suas talvez conquistasse na literatura brasileira e hispano-ameri- cana, pela primeira vez, forma apta para a discussão de um problema urgente no debate internacional: a contribuição de nosso continentente – multicultu- ral e multiétnico – antecipava desafios da internacionalização em nível global e apontava para possibilidades e riscos da preservação ou desaparecimento de muitas vozes locais diante daunificação de comportamentos e estruturas cada vez mais complexas, reguladas e padronizadas. Textos complementares O Estado nacional europeu: sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade (HABERMAS, 2002) Como revela a designação Nações Unidas, hoje a sociedade mundial é constituída por Estados nacionais. O tipo histórico decorrente da Revolução Francesa e da Revolução Norte-americana impôs-se em todo o mundo. E essa circunstância não é nada trivial. As nações-Estado clássicas no Norte e Oeste Europeus surgiram no inte- rior de Estados territoriais já existentes. Eles eram parte do sistema estatal europeu que já havia tomado forma na Paz Westfaliana de 1648. Em contra- partida, as nações “tardias”, a Itália e a Alemanha em primeiro lugar, assumi- ram um outro desenvolvimento, típico também para as formações nacionais da Europa Central e Oriental. Aqui, a formação do Estado seguiu os vestígios de uma consciência nacional precipitada e disseminada com recursos de propaganda. A diferença dessas duas trilhas (from state to nation versus from Literatura Comparada 39 A literatura entre as nações (e para além) nation to state) reflete-se na origem dos atores que constituíam a vanguarda na formação do Estado ou da nação, caso a caso. De um lado estavam ju- ristas, diplomatas e militares que pertenciam ao Estado-maior em torno do rei e que criaram uma “entidade estatal” racional; de outro, havia escritores e historiadores, sobretudo eruditos e intelectuais, que, com a propagação da unidade mais ou menos imaginária de uma “nação cultural”, estiveram ocupados em preparar a unificação estatal imposta (apenas em um segundo momento) por via diplomático-militar (por Cavour ou Bismarck, por exem- plo). Uma terceira geração de Estados nacionais muito diversos surgiu após a Segunda Guerra Mundial, como decorrência do processo de descolonização, sobretudo na África e na Ásia. Não raro, esses Estados fundados nos limites do domínio colonial precedente já reclamavam soberania antes mesmo que as formas de organização estatais importadas pudessem lançar raízes sobre o substrato de uma nação – que ultrapassava os limites tribais. Nesses casos, Estados artificiais tiveram que ser “preenchidos” com nações que iam cres- cendo posteriormente. Por fim, a tendência à formação de Estados nacionais independentes continuou na Europa Oriental e Meridional, após o colapso da União Soviética, na trilha de secessões mais ou menos violentas; na situ- ação social e econômica precária desses países, os velhos apelos etnonacio- nais foram suficientes para mobilizar populações vacilantes de modo que assumissem a luta pela independência. Hoje, portanto, o Estado nacional impôs-se definitivamente sobre as for- mações políticas mais antigas. [...] também reapareceram as estruturas dos impérios da Antiguidade, inicialmente sob a forma do Sacro Império Roma- no-germânico, e mais tarde nos Estados pluriétnicos dos impérios russo, oto- mano e austro-húngaro. Mas nesse ínterim, o Estado nacional recalcou essas heranças pré-modernas. No momento, observamos a profunda transforma- ção da China, o último dos antigos impérios. Na concepção de Hegel, toda formação histórica, a partir do momento de sua maturidade, está condenada à decadência. Não é preciso adotar sua filosofia da história para reconhecer que essa marcha vitoriosa do Estado nacional tem também sua face irônica. A seu tempo, o Estado nacional foi uma resposta convincente ao desafio histórico de encontrar um equivalente funcional às formas de integração social tidas na época como em processo de dissolução. Hoje, estamos novamente diante de um desafio análogo. A globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu 40 financiamento, da transferência de tecnologia e poderio bélico, em especial dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via habitual do acordo entre Estados soberanos. Salvo melhor juízo, tudo indica que continuará avançando o esvaziamento da soberania de Estados nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e ampliação das capaci- dades de ação política em um plano supranacional que, conforme já vimos observando, ainda está em fase incipiente. Na Europa, na América do Norte e na Ásia, estão se constituindo formas de organização supraestatal para “re- gimes” continentais, que poderiam até mesmo ceder a infraestrutura neces- sária às Nações Unidas, ainda hoje muito ineficientes. Contudo, esse passo abstrativo ainda incompleto dá apenas continui- dade a um processo para o qual a atuação integradora do Estado nacional constitui um primeiro grande exemplo. Por isso defendo a opinião de que podemos nos orientar nesse caminho incerto rumo às sociedades pós-nacio- nais justamente segundo o modelo da forma histórica que estamos prestes a superar. Candido e Rama (MARTINEZ, 2009) Uma obra fundamental para compreensão dessa coerência de um legado crítico interno é Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, de An- tonio Candido. Desde a sua primeira publicação, em 1959, a obra do crítico brasileiro estabeleceu um divisor de perspectivas crítico-histórica e analítica na questão da origem da literatura brasileira utilizando os conceitos meto- dológicos de manifestações literárias e sistemas literários. Segundo o autor, a literatura é um sistema dinâmico que tem como componente a relação inter- -humana estabelecida entre autor e leitor mediante a linguagem simbólica da literatura. Em conjunção, os três elementos (autor – obra – público) esta- belecem a diferenciação entre os conceitos metodológicos propostos por Antonio Candido. Em linhas gerais, o autor igualmente reflete a literatura brasileira como um processo formativo que leva em consideração quando há Literatura Comparada 41 A literatura entre as nações (e para além) uma tradição literária interna e a constituição de um público leitor legitimado nesse espaço, como também a configuração de particularidades que definem a literatura brasileira como individual no legado literário universal, havendo, assim, a consolidação do sistema literário brasileiro. Nota-se nos trabalhos de Antonio Candido a sua visão sociológica no sentido de que a literatura é fruto da sociedade, logo, é importante para a sua cultura. Tal perspectiva é correlata a dos estudos de Angel Rama, que tratava a literatura como elemento integrante da cultura, e não como um mero objeto artístico independente do sistema cultural das civilizações. A partir da mul- tidisciplinaridade, os estudos de Angel Rama sobre as narrativas latino-ame- ricanas transcendem o objeto artístico (a obra literária). Em outras palavras, inserindo a obra em contextos literários e avaliando-a como parte de um processo histórico-cultural, Angel Rama discutiu sobre a importância da lite- ratura na sociedade da América Latina. Assim, a noção de cultura serve como postulado teórico e metodológico que o crítico em questão teve como base de toda sua produção intelectual. Igualmente, os estudos de Angel Rama de- senvolveram os conceitos de comarcas e de geração para tratar das especi- ficidades dos sistemas literários latino-americanos. Em linhas gerais, o termo comarcas refere-se ao território geográfico, social e cultural das regiões da América Latina que, em alguns estudos, correlacionam as dimensões geo- gráficas do Brasil e da América Hispânica. Se o termo nação era insuficiente para analisar as literaturas latino-americanas – devido à própria amplitude do território geográfico e cultural – o termo comarcas analisaria como que as especificidades culturais, territoriais e sociais das regiões do continente lati- no-americano são elementos constituintes desses sistemas literários. A razão e a importância do conceito criado por Rama visam a apreciar como que as obras literárias que abordam a tradição regional em paralelo com a tradição universal partemda concepção de homogeneidades (cultural, geográfica e linguística) para a construção da cosmovisão literária que, simbolicamente, representaria o universo cultural da América Latina. Nessa avaliação, há nos estudos de Rama, por exemplo, a apresentação de que na literatura da Amé- rica Latina predominaram as abordagens das macrorregiões (ou sistemas nacionais) e das microrregiões (ou subsistemas regionais), sendo que o pro- cesso de transculturação na narrativa no século XX ocorre a partir dos subsis- temas culturais para chegar ao significado das comarcas da América Latina. 42 Em outras palavras, isso significa que um sistema não exclui o outro, mas sim o engloba. O resultado dessa união é a apresentação de um sistema orgânico que Rama classificou como cultura integrada. Quanto ao significado do con- ceito geração, Angel Rama buscou compreender como que determinados grupos de intelectuais constroem conscientemente projetos culturais, tais como os escritores das gerações romântica e realista da América Hispânica que reivindicavam a autonomia da literatura hispano-americana na grande maioria do século XX. Ou seja, para o autor, os escritores não são apenas su- jeitos contemporâneos, sobretudo são grupos de intelectuais engajados na promoção da cultura interna das sociedades. Por essa razão, o crítico trabalha sob a visão de cultura militante que seria justamente essa atitude consciente e também política dos escritores de se fazer projetos culturais que indicas- sem o progresso das novas nações. Quanto a essa questão, destacamos a cor- relação com a proposta de Antonio Candido no que diz respeito à tradição e consciência entre os autores nessa construção de uma literatura própria. Segundo Angel Rama, os impulsos modeladores dos sistemas literários his- pano-americanos – independência, originalidade e representatividade – são inteligíveis nas perspectivas da crise de identidade e de autonomia literária. Nos dois últimos séculos (XIX e XX), os impulsos modeladores estão regidos pelo movimento pendular entre o polo externo (Ocidente) e o interno (Amé- rica). A partir do impulso da representatividade da região, que modelou a visão nacionalista dos realistas do século XIX na medida em que a região era concebida como cultura, a literatura hispano-americana dos primeiros decênios do século posterior apresenta duas perspectivas: a primeira, cos- mopolita e a segunda, realista-crítica. Em resumo, a visão cosmopolita dos regionalistas promovia o mito da pátria das nações emancipadas, ao tempo em que na geração realista-crítica o progresso das nações, sobretudo das metrópoles (a capital urbana), esbarra nas questões políticas e econômicas. A disputa entre os regionalistas e os vanguardistas ocasionou na intensifica- ção da ambivalência narrativa: campo versus cidade, rural versus metrópoles, tradição versus modernização. Porém, segundo Angel Rama, a importância das divergências literárias entre os dois grupos deve-se à modernização da representatividade das regiões e de suas culturas. Literatura Comparada 43 A literatura entre as nações (e para além) Atividades 1. O que distingue as escolas francesa e norte-americana na área de Literatura Comparada? 44 2. Qual a restrição feita por René Wellek à literatura comparada e como se resol- ve o impasse decorrente de sua crítica? 3. A literatura comparada precisou superar que grande restrição conceitual, he- rança do Romantismo, para abrir-se e desenvolver-se como disciplina? Literatura Comparada 45 A literatura entre as nações (e para além) 4. Explique qual a contribuição especial do pensamento latino-americano para os estudos de Literatura Comparada. Dicas de estudo Para uma boa compreensão da história recente dos Estudos Literários, em que a Literatura Comparada ocupa um lugar especial, recomenda-se a leitura das três obras a seguir: NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Edusp, 1997. TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica Literária no Século XX. Rio de Janeiro: Bertrand, 1992. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Autores multiculturais: Franz Kafka O contexto histórico-cultural de Franz Kafka Franz Kafka nasceu em 1883 e morreu em 1924. Embora não tenha che- gado em vida sequer ao final do primeiro quarto do século XX, é um dos escritores mais característicos e conhecidos de todo esse período. E certa- mente um dos mais lidos, em especial seus textos breves e enigmáticos, como A Metamorfose, de que vamos nos ocupar mais adiante, recebem a atenção de milhões e milhões de leitores até hoje, em todo o mundo. Sem ter vivido os horrores do totalitarismo fascista (Hitler subiu ao poder na Alemanha em 1933), Kafka anteviu os horrores e o absurdo de uma so- ciedade dominada pela burocracia e controlada por sistemas de poder autonomizados e violentos. Soube tratar essa situação com formas inova- doras, combinando a criação de personagens e histórias surpreendentes, relatadas, porém, com linguagem sóbria e distante, às vezes perpassada de um humor fino e ácido, às vezes marcada por desespero e agonia. Kafka nasceu em Praga, a “cidade das mil torres”, capital da atual Repú- blica Tcheca. Era uma cidade milenar, de grande tradição cultural, e mar- cadamente eslava. A maioria da população falava o idioma tcheco (kafka é a palavra tcheca para “corvo”). D iv ul ga çã o. D om ín io p úb lic o. As torres de Praga. 48 Durante quase toda a vida do escritor, no entanto, a cidade e toda a Boêmia (região de que Praga era capital) fizeram parte do Império Áustro-Húngaro, que era, também ele, um “caldeirão” de etnias, línguas e povos: a população era com- posta por austríacos, tchecos, morávios, poloneses, eslovacos, húngaros, rome- nos, bósnios, croatas, entre outros. O domínio político na Boêmia era exercido por Viena, capital da Áustria, e por isso a elite da cidade falava alemão. Assim, o alemão era a língua de maior prestígio, usada pela administração, pelos jornais, pelas melhores escolas e universidades. IE SD E Br as il S. A . O Império Áustro-Húngaro em 1914. Vindos do interior, os familiares de Kafka haviam migrado para Praga poucos anos antes de ele nascer. Eram judeus e, como a grande parte dos integrantes de seu povo, durante séculos haviam sido proibidos de viver nas cidades. Por isso, habitavam áreas rurais, tinham uma cultura e uma religião próprias e fala- vam também outra língua, o ídiche (uma mistura de hebraico e dialeto alemão medieval). Literatura Comparada 49 Autores multiculturais: Franz Kafka Ou seja, Franz Kafka nasceu como judeu, em uma cidade tcheca, marcado por um ambiente linguístico e cultural de fala alemã. Estava sempre fora de lugar, porque as tensões e preconceitos entre esses três universos eram muito grandes: os tchecos eram desprezados pelos austríacos de fala alemã e odiavam seus do- minadores vindos de Viena, mas partilhavam com eles os fortes preconceitos e hostilidade contra os judeus. (Vale lembrar que não foram os nazistas que inven- taram o antissemitismo: eles apenas se aproveitaram dos preconceitos e ódios raciais contra os judeus, que já graçavam na Europa havia muito tempo, e de modo particular na Europa Central.) Assim, a obra de Kafka, escrita em alemão, nasce dessa “desterritorialização”, desse deslocamento e falta de identidade do escritor, em tensão e diálogo com as tradições das literaturas e culturas de língua alemã, eslava e judaica, em um tempo de enormes transformações sociais, polí- ticas e econômicas. Os grandes textos de Kafka foram escritos entre os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial (principalmente 1912) e o fim desse conflito, que durou de 1914 a 1918. Depois de quatro anos de horrores, na guerra lenta e dolorosa nas trincheiras, a Europa mudou radicalmente: o mundo deixava para trás a era das grandes monarquias e avançava para a modernidade, sob o ritmo de um processo de industrialização e urbanização.
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