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@STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 1 Historicamente, os agentes inalatórios utilizados inicialmente apresentam características indesejáveis, pois, além de serem explosivos e inflamáveis, eram responsáveis por altas taxas de mortalidade. Assim, os anestésicos gerais intravenosos foram empregados em algumas circunstâncias no lugar dos agentes inalatórios, principalmente na Medicina Veterinária. Com o advento do halotano e de outros anestésicos halogenados foram incrementadas as técnicas de anestesia. Para que ocorra anestesia é necessária a presença dos seguintes fatores: Hipnose, em que há perda de consciência, que facilita procedimentos cirúrgicos como intubação e ventilação. Analgesia, que é essencial para o procedimento cirúrgico. Ausência de respostas reflexas autonômicas frente ao estímulo nociceptivo; Relaxamento muscular, nem sempre presente, porém facilita a cirurgia e os procedimentos cirúrgicos por reduzir o tônus muscular. Até o momento não se dispõe de um anestésico geral que preencha perfeitamente todos os requisitos supracitados de forma equilibrada, sendo pouco provável que se encontre uma substância que induza anestesia geral com total perda de consciência e suficiente relaxamento muscular sem promover depressão cardiovascular e respiratória importantes. Guedel, com base nas observações de alguns sinais que refletiam a profundidade da anestesia geral em pacientes que recebiam éter ou clorofórmio e em outros sinais, dividiu a anestesia geral em quatro estágios e o terceiro deles – a anestesia cirúrgica – em quatro planos. Sua proposta foi feita inicialmente para o éter, cuja indução anestésica é bastante lenta. Este esquema varia na dependência do anestésico empregado e é totalmente modificado pelo uso de medicação pré-anestésica e associações de agentes anestésicos. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 2 A divisão proposta por Guedel consiste nos seguintes estágios: → Estágio I – analgesia Esta fase inicia-se com a administração do anestésico geral e termina com a perda de consciência. O paciente perde progressivamente a sensação da dor, porém a atividade motora e os reflexos estão presentes → Estágio II – delírio Esta fase se segue à perda de consciência e apresenta como característica respiração irregular e espástica, findando com o retorno à respiração regular e automática. O animal pode apresentar aumento da atividade motora e do tônus muscular, debatendo-se intensamente. Os reflexos palpebrais estão presentes; observam-se movimentos oculares erráticos, pupilas dilatadas, porém que reagem à luz, e, às vezes, movimentos de deglutição, náuseas e vômitos. Com frequência, esta fase apresenta riscos para os animais, tanto na indução anestésica como na recuperação da anestesia. Uma das funções mais importantes da medicação pré-anestésica é evitar ou minimizar esta fase ao máximo. A excitação observada parece ser consequente à inibição de vias inibidoras reticuloespinais, ou, segundo alguns autores, decorrente da liberação paradoxal de um neurotransmissor excitatório → Estágio III – anestesia cirúrgica Estende-se do final do estágio II, quando cessam os movimentos espontâneos e a respiração torna-se automática e regular, e termina com @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 3 o aparecimento de movimentos erráticos do globo ocular. Além disso, os reflexos desaparecem gradativamente, advém um relaxamento muscular completo e, com o aumento da concentração do anestésico, a respiração torna-se pouco a pouco mais superficial. Esta fase foi dividida em quatro planos, cujos sinais físicos são específicos para cada um deles. Para diferenciá-los levam-se em conta: tipo de respiração, movimentos do globo ocular, presença ou ausência de reflexos e tamanho das pupilas. No 1º plano: observam-se respiração regular e automática, associada a movimentos errantes do globo ocular (nistagmo), observados principalmente no cavalo, o desaparecimento dos reflexos laringotraqueal e interdigital. Ainda no equino verificasse lacrimejamento. No 2º plano: verifica-se que a respiração gradativamente se torna menos profunda e cessam os movimentos do globo ocular. O reflexo palpebral se torna ausente no final deste plano, assim como o laringotraqueal nos gatos. No 3º plano: a respiração se torna preferencialmente abdominal, com esforço inspiratório torácico. O reflexo corneal torna-se ausente neste plano. No 4º plano: o animal apresenta respiração exclusivamente abdominal, pupilas dilatadas, sem reação à luz, e total flacidez muscular → Estágio IV – paralisia respiratória Esta fase se inicia com a parada respiratória e termina com insuficiência respiratória. Este último sintoma é característico desta fase, porém poderá ocorrer também colapso vasomotor, se a respiração for suprida artificialmente. As pupilas ficam dilatadas, podendo sobrevir a morte caso se mantenha a administração do anestésico e a respiração não seja assistida. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 4 É importante lembrar que estes sinais podem variar de acordo com o anestésico empregado. Assim, o óxido nitroso não é capaz de induzir bom grau de relaxamento muscular quando utilizado isoladamente ao passo que o enflurano produz mioclonias e mais excitação do que os demais, dificultando a avaliação correta do plano de anestesia. O emprego do anestésico inalatório isoladamente não é usual; as associações com medicamentos com outras propriedades farmacológicas é uma prática mais sensata, pois se utilizam menores doses dos agentes individualmente minimizando a ocorrência de efeitos adversos. Na anestesia clínica, deseja-se que a anestesia produza perda de consciência, analgesia e relaxamento muscular, diminuindo ou bloqueando a resposta adrenérgica frente ao estímulo doloroso. Assim sendo, pode-se induzir a anestesia com um anestésico geral intravenoso, como, por exemplo, o propofol associado ou não a um hipnótico como o midazolam e mantê-la com anestésico inalatório, como, por exemplo, o isoflurano, com a suplementação de um analgésico opioide forte ou de anestésico local; o relaxamento muscular pode ser promovido por um bloqueador neuromuscular, por exemplo, o vecurônio. Muitas substâncias apresentam atividade anestésica, porém o seu emprego como medicamento na clínica é restrito a apenas algumas delas. Neste sentido, verifica-se que, embora apresentem propriedades requeridas para serem consideradas um bom anestésico, exibem outras que as tornam inadequadas para tal procedimento. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 5 Classificação Os anestésicos inalatórios podem ser divididos, do ponto de vista físico, em gasosos e voláteis e, quimicamente, em orgânicos e inorgânicos. Os anestésicos gerais inalatórios mais empregados em Medicina Veterinária são o óxido nitroso, o halotano, o enflurano e o isoflurano. O metoxiflurano já não é utilizado há alguns anos, pela sua toxicidade. Dentre os mais modernos, citam-se o sevoflurano e o desflurano Potência Para a comparação das potências anestésicas dos anestésicos gerais inalatórios, introduziu-se a unidade denominada CAM, isto é, concentração alveolar mínima. É definida como a concentração alveolar mínima de anestésico que produz imobilidade em 50% dos seres humanos ou de animais submetidos a estímulos dolorosos, como os de uma incisão cirúrgica. ACAM pode ser expressa como dose anestésica – DA50. A CAM de um anestésico é determinada em laboratório, com animais hígidos e sem a utilização de qualquer outro medicamento, como tranquilizantes, analgésicos e agentes de indução. Normalmente, varia muito pouco em animais da mesma espécie, não sofrendo interferência importante em decorrência do sexo, duração da anestesia, anemia moderada, hipotensão e dentro de uma faixa de pressão parcial de dióxido de carbono @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 6 no sangue arterial (PaCO2) de 21 a 95 mmHg e pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (PaO2) de 40 a 500 mmHg. No entanto, alguns fatores fisiológicos e a administração conjunta de determinados medicamentos podem alterar a CAM. Outro aspecto importante com relação à CAM é o fato de que esta unidade varia entre as diferentes espécies animais. Deve ser enfatizado que a CAM reflete a concentração alveolar do anestésico e não a concentração inspirada ou aquela demonstrada pelo vaporizador. No entanto, valor muito próximo da concentração alveolar e que pode ser facilmente obtido com os analisadores de gases anestésicos é a concentração do anestésico no ar expirado. Assim sendo, conhecendo-se a CAM de determinado anestésico para cada espécie animal, pode-se estimar a concentração anestésica necessária tanto para a indução como para a manutenção da anestesia. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 7 Normalmente, para que se alcance a anestesia cirúrgica propriamente dita, empregam-se valores 1,2 a 1,4 maiores que 1 CAM. Farmacocinética Os anestésicos inalatórios são administrados pela via pulmonar, por onde o ar alveolar, saturado com o anestésico, entra em contato com o sangue alveolar, sendo assim captado, distribuído e, em última instância, levado ao sistema nervoso central por difusão passiva. Para que isto seja possível, o anestésico inalatório deve possuir pressão de vapor suficiente para fornecer um número adequado de moléculas no estado de vapor para promover anestesia. Quanto mais alta a pressão de vapor, maior a concentração do anestésico administrado. Da mesma forma, quanto mais baixo o ponto de ebulição de um anestésico inalatório, maior a facilidade com que ele se vaporiza, e maior a sua pressão de vapor. Dentre os agentes anestésicos, o desflurano apresenta pressão de vapor mais alta. Seu ponto de ebulição é muito baixo (22,2 °C), de tal maneira que ele não pode ser administrado por vaporizadores convencionais, como os demais anestésicos halogenados. Também é importante ressaltar que, devido ao baixo ponto de ebulição, o desflurano líquido vaporiza-se instantaneamente quando o frasco é aberto e exposto à temperatura ambiente. Por isso, os frascos deste agente devem apresentar um dispositivo que impeça seu contato com o ar ambiente. Este problema não ocorre com os demais anestésicos halogenados. O coeficiente de partição ou solubilidade em um dado meio @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 8 influencia tanto a captação, a distribuição, como a eliminação destes agentes no organismo. Esse coeficiente reflete a proporção do anestésico que é encontrada em dois meios distintos após ter ocorrido o equilíbrio. No estado de equilíbrio, a pressão de vapor nos dois meios é igual, mas a concentração pode variar bastante. O coeficiente de partição, na verdade, indica a magnitude de tal variação. São três os coeficientes de partição que mais influenciam a dinâmica dos anestésicos inalatórios: coeficiente de partição sangue:gás, óleo:gás e borracha:gás. O coeficiente de partição sangue:gás indica a solubilidade de um anestésico no sangue. Por exemplo, se o coeficiente de partição de determinado agente no sangue é 12, isto indica que, no equilíbrio, a concentração deste agente no sangue é 12 vezes maior do que na fase gasosa (alvéolo). Assim, quanto mais alto este coeficiente, maior o tempo de indução da anestesia, pois o anestésico se dissolve muito no sangue e o tempo necessário para ocorrer o equilíbrio do anestésico entre o sangue e o ar alveolar é, portanto, muito maior. Este coeficiente também influencia o tempo de recuperação da anestesia. O coeficiente de partição óleo:gás está relacionado com a potência dos anestésicos inalatórios, bem como com o tempo de recuperação da anestesia. Os anestésicos que apresentam solubilidade alta em gorduras são lentamente liberados para a corrente circulatória, sendo, portanto, eliminados pelo sistema respiratório de forma mais tardia, quando comparados aos agentes pouco solúveis. Assim, a recuperação anestésica com estes agentes se processa de maneira muito mais lenta. O coeficiente de partição borracha:gás reflete a quantidade de anestésico que é absorvida pela borracha. A perda de anestésico na borracha implica diminuição da concentração que é administrada ao paciente. Fatores como ventilação pulmonar e débito cardíaco também influenciam a captação, distribuição e eliminação dos anestésicos inalatórios. Assim, a captação dos anestésicos inalatórios se processa de forma eficiente quando o volume minuto é adequado; se, por exemplo, após indução da anestesia com tiopental, ocorrer depressão respiratória evidenciada por diminuição da frequência respiratória (fato que é muito comum com este agente), @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 9 certamente a captação do anestésico inalatório será inadequada. A condição de higidez pulmonar também garante adequada transferência do anestésico dos alvéolos para o sangue. Em contrapartida, quando os alvéolos se encontram mal perfundidos (p. ex., no enfisema pulmonar), a transferência do anestésico dos alvéolos para o sangue é reduzida, pois neste caso a pressão parcial do agente está baixa. Da mesma forma, a circulação sanguínea pulmonar afeta a taxa de transferência dos anestésicos inalatórios. Portanto, em situações de baixo débito cardíaco, a transferência é invariavelmente menor. A distribuição do anestésico para os diferentes tecidos depende, sobretudo, do fluxo sanguíneo tecidual. Assim, a concentração do anestésico no cérebro rapidamente equivale à da corrente sanguínea, visto tratar-se de tecido muito vascularizado, o que não ocorre, por exemplo, com o tecido adiposo. Os mesmos fatores que afetam a captação dos anestésicos inalatórios alteram também a velocidade de eliminação. A solubilidade no tecido adiposo, como foi dito anteriormente, tem grande influência na eliminação dos agentes inalatórios, pois, devido à vascularização deficiente, há lenta liberação do agente para a corrente circulatória e, portanto, para o sistema respiratório, acarretando recuperação anestésica tardia Por muitos anos os anestésicos inalatórios foram tidos como gases quimicamente inertes e resistentes a biotransformação no organismo. Atualmente, sabe-se que os anestésicos inalatórios, apesar de serem eliminados a priori pelo sistema respiratório, sofrem graus diversos de biotransformação, que varia de acordo com cada agente. A biotransformação ocorre primariamente no fígado, mas também, em menor grau, nos pulmões, rins e sistema digestivo. A biotransformação não altera a taxa ou a velocidade de indução da anestesia. No entanto, sabe-se que a biotransformação influencia de maneira qualitativa a recuperação da anestesia, especialmente em se tratando de anestésicos muito solúveis no sangue e/ou gorduras. HALOTANO Aproximadamente 60 a 80% do halotano absorvidosão eliminados inalterados no gás exalado, nas @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 10 primeiras 2 h após sua administração; o restante continua a ser expirado durante vários dias ou mesmo semanas. O halotano é hepatotóxico. A biotransformação do halotano ocorre no sistema do citocromo P- 450. Portanto, agentes que produzem indução enzimática interferem na biotransformação do halotano. Este anestésico, bem como o enflurano e o metoxiflurano podem também produzir indução enzimática. Além disso, outros agentes podem modificar a biotransformação do halotano; por exemplo, a cimetidina, anti-histamínico do tipo H2, inibe o processo de redução, sem alterar o processo oxidativo. A exposição prévia ou simultânea a um anestésico que também interage com o sistema do citocromo P-450 pode modificar a biotransformação de um outro agente. Assim, pode-se verificar, por exemplo, que a exposição prévia ao isoflurano pode inibir a biotransformação do halotano. Em animais muito jovens ou muito idosos nos quais existe uma atividade reduzida do citocromo P-450, a taxa metabólica é também alterada. ENFLURANO Cerca de 80% do enflurano administrado podem ser recuperados inalterados no gás expirado; do restante, cerca de 2 a 5% são biotransformados no fígado. Além disso, por apresentar coeficientes sangue:gás e óleo:gás mais baixos que o halotano, o enflurano é liberado mais rapidamente do tecido adiposo no período pós- operatório, estando exposto à biotransformação por período mais curto. Alguns medicamentos podem alterar a biotransformação do enflurano. Relata-se que o fenobarbital pode aumentar a biotransformação deste agente. A isoniazida induz fortemente a taxa de defluoretação dos anestésicos fluorados, como enflurano, metoxiflurano, isoflurano e sevoflurano. ISOFLURANO Com relação ao isoflurano, sabe-se que apenas 0,2% do total deste anestésico inalado é biotransformado. A pequena quantidade de fluoreto e ácido trifluoroacético gerada como produto de degradação do isoflurano é insuficiente para causar dano celular, fato responsável pela ausência de toxicidade renal ou hepática deste agente. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 11 SEVOFLURANO Menos de 5% do sevoflurano que é captado sofrem biotransformação. Os principais produtos da biotransformação são os fluoretos inorgânicos, que são rapidamente excretados pela urina. A relativa insolubilidade deste agente, a pequena taxa de biotransformação, bem como a rápida eliminação, que impedem níveis séricos elevados de fluoreto, diminuem a possibilidade de ocorrer disfunção renal ou hepática. Entretanto, na dependência das condições nas quais o sevoflurano é armazenado, ele pode ser degradado em diferentes substâncias, produzindo vários compostos, como o ácido fluorídrico, substância sabidamente nefrotóxica e irritante para mucosas e sistema respiratório. DESFLURANO Cerca de 99% do desflurano que é absorvido são eliminados inalterados pelos pulmões. Uma pequena quantidade é metabolizada por oxidação pelo citocromo P-450. Estabilidade frente à cal sodada Os anestésicos podem ser degradados por álcalis, como a cal sodada. Quanto maior a sua estabilidade molecular, menor a porcentagem de degradação. A estabilidade molecular dos halogenados parece decrescer da seguinte maneira: desflurano > isoflurano > enflurano > halotano > sevoflurano. Os filtros dos sistemas circulares de anestesia são providos de substância denominada cal sodada, que é capaz de absorver o dióxido de carbono (CO2) proveniente da expiração. Mecanismo de ação O mecanismo pelo qual os agentes anestésicos inalatórios produzem anestesia é, até os dias de hoje, controvertido. Algumas teorias, agrupadas como clássicas, tentam explicar o fenômeno por meio das propriedades físico- químicas dos anestésicos, ao passo que as chamadas teorias modernas ocupam-se com os efeitos destes anestésicos sobre as propriedades bioquímicas e biofísicas das células TEORIAS CLÁSSICAS Na teoria da lipossolubilidade ou dos lipídios sugere-se a existência de uma grande correlação entre a potência do anestésico e sua lipossolubilidade. Assim, a hipnose se iniciaria quando uma determinada concentração do agente fosse atingida nos lipídios da @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 12 membrana celular, a qual seria então deprimida. Esta teoria, no entanto, não explica o mecanismo pelo qual ocorre a anestesia A teoria da adsorção estabelece uma correlação entre a capacidade do anestésico inalatório de reduzir a tensão superficial e sua potência anestésica. No entanto, nem todos os agentes que produzem redução da tensão superficial levam à anestesia e alguns anestésicos não têm esta propriedade. A teoria coloidal propõe que o agente anestésico produziria uma coagulação reversível dos coloides celulares, causando hipnose. Esta ideia originou-se da observação de que o clorofórmio aumenta a densidade óptica do tecido muscular. A teoria da permeabilidade celular afirma que o anestésico produz alteração na permeabilidade da membrana celular a íons, sendo esta a causa da anestesia Todas estas teorias relatam propriedades importantes dos anestésicos inalatórios, porém não explicam o mecanismo pelo qual o anestésico interrompe a transmissão do estímulo nervoso. A ideia geral é de que as moléculas do anestésico primeiro se dissolveriam nos lipídios da membrana celular, mudando suas propriedades físico- químicas e alterando proteínas importantes como os receptores e canais iônicos TEORIAS MODERNAS Dentre as teorias físicas, a teoria dos hidratos sugeriu que os anestésicos teriam a capacidade de formar um complexo com a água próxima da membrana, estabilizando microcristais produzidos pela água do próprio cérebro. Haveria uma grande correlação entre esta propriedade do anestésico e sua potência. Atualmente, já se mostrou que mesmo substâncias que não formam hidratos são muito potentes em induzir anestesia. As teorias bioquímicas derivam de observações de que anestésicos gerais, como os barbitúricos e o halotano, reduzem o consumo de oxigênio do cérebro, bem como a formação de substâncias ricas em energia. Estes fenômenos, no entanto, poderiam ser produzidos pelos anestésicos, mas não serem a causa da anestesia. A teoria da expansão das membranas propõe que os alvos do anestésico inalatório seriam as próprias proteínas das membranas. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 13 Assim, estes se ligariam a porções hidrofóbicas das proteínas e modificariam sua conformação. Estudos recentes com o isoflurano em camadas puras lipídicas mostraram que este anestésico altera sítios estereosseletivos de canais iônicos neuronais Efeitos gerais dos anestésicos inalatórios SISTEMA NERVOSO CENTRAL O óxido nitroso é anestésico muito pouco potente, podendo, no máximo, levar ao estágio II de anestesia proposto por Guedel. Por outro lado, quando associado ao halotano ou isoflurano, pode ser útil, pois colabora com a redução da concentração destes agentes, diminuindo, portanto, os efeitos cardiodepressores dos anestésicos inalatórios. O óxido nitroso é rapidamente captado pelo sistema nervoso central e as concentrações necessárias para produzir anestesia estão em torno de 50 a 75%. Como este agente é muito pouco solúvel no sangue, quando eliminado de forma brusca, pode causar redução da concentração alveolar do oxigênio, ocasionando hipoxia e lesões irreversíveis do cérebro. Para evitareste efeito, normalmente, institui-se a interrupção da administração do óxido nitroso 10 min antes do término da cirurgia, realizando-se a ventilação do paciente com oxigênio a 100%. Por possuir pressão de vapor extremamente alta e coeficiente de partição sangue:gás baixo, este anestésico se difunde para espaços que contêm gás de maneira muito mais rápida que o nitrogênio. Há, consequentemente, aumento do volume destes espaços, que se traduz em distensão excessiva das vísceras abdominais. Assim sendo, em equinos e nos herbívoros em geral, não se recomenda o emprego deste agente, pois, além do risco de promover hipoxemia grave, há relatos da ocorrência de cólica no pós- operatório. A associação deste agente a outros anestésicos inalatórios pode ser realizada em pequenos animais, principalmente nos procedimentos cirúrgicos de longa duração, porém não é uma prática comum na anestesia veterinária. Os anestésicos voláteis causam redução do metabolismo cerebral, sendo o isoflurano o mais depressor e o halotano o menos. Promovem também aumento no fluxo sanguíneo cerebral, por vasodilatação, causando um estado de hiperperfusão. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 14 Neste aspecto, o halotano é o mais potente e o isoflurano o menos. Em planos profundos de anestesia, o isoflurano aumenta o fluxo sanguíneo cerebral e, consequentemente, a pressão intracraniana, mas ainda assim em menor extensão do que a observada com o halotano. Esta informação é particularmente importante, pois, na vigência de trauma cranioencefálico, o anestesiologista deverá evitar o halotano, dando preferência ao isoflurano. Todos os anestésicos inalatórios modernos são potentes depressores do sistema nervoso central, sendo capazes de produzir todos os planos de anestesia de forma similar ao éter. Porém, ocasionam grau de analgesia leve. SISTEMA CARDIOVASCULAR Todos os anestésicos inalatórios alteram a função cardiovascular. A magnitude de tal alteração dependerá sobretudo do agente em questão e da concentração empregada, razão pela qual o uso de vaporizadores calibrados associados aos monitores de gases anestésicos é importante para assegurar uma anestesia mais segura. Vários outros fatores contribuem para ocorrência de maior depressão cardiovascular durante a anestesia inalatória, como, por exemplo: a concentração anestésica, o valor da PaCO2, a ventilação mecânica, o tempo de anestesia, a volemia, o uso concomitante de outros agentes e o grau de estimulação nociceptiva Dos anestésicos inalatórios, o óxido nitroso é o que causa menos efeitos adversos no sistema cardiovascular, apresentando atividade adrenérgica moderada Os anestésicos halogenados diminuem a pressão arterial de maneira dose- dependente, sendo a magnitude desta queda muito semelhante entre os diferentes agentes. O mecanismo responsável pela hipotensão inclui vasodilatação, diminuição do débito cardíaco e diminuição do tônus do sistema nervoso autônomo simpático. No caso do halotano, a diminuição do débito cardíaco, é o principal fator contribuinte para a queda da pressão arterial, ao passo que o isoflurano e o sevoflurano podem promover diminuição da pressão arterial por maior queda da resistência vascular sistêmica A depressão do débito cardíaco é maior com o halotano que com os outros anestésicos, tendo como causa a interação deste anestésico com os canais de cálcio do retículo sarcoplasmático e, provavelmente, com outros componentes celulares @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 15 que regulam a concentração de cálcio no citoplasma. Halotano, isoflurano, sevoflurano e óxido nitroso deprimem a sensibilidade dos barorreceptores; portanto, a frequência cardíaca sofre pouca alteração na vigência de hipo ou hipertensão. Com relação à capacidade destes agentes de modificar a frequência cardíaca, sabe-se que o halotano a altera muito pouco e o isoflurano e o sevoflurano promovem taquicardia. Este efeito do isoflurano e do sevoflurano contribui para a menor queda do débito cardíaco verificada após seu uso. Em relação às funções sistólica e diastólica, os efeitos destes agentes são distintos havendo muitos resultados conflitantes entre os diferentes estudos. De maneira geral, considera-se que tanto o isoflurano quanto o sevoflurano prejudicam a função sistólica. Quanto à fase inicial da diástole (relaxamento isovolumétrico), tanto isoflurano, sevoflurano e desflurano não alteram estes índices, porém promovem significativo comprometimento do enchimento ventricular ao final da diástole ocasionado pela contração atrial Todos estes agentes causam, ainda, sensibilização do miocárdio aos efeitos das catecolaminas, ou seja, no transcorrer da anestesia inalatória, menores concentrações de epinefrina podem desencadear arritmias, em comparação aos animais que não recebem os anestésicos inalatórios. O halotano é o que mais sensibiliza o miocárdio a este efeito Essa informação é muito importante pois em várias ocasiões no decorrer da anestesia, medicamentos vasoativos podem ser necessários para controlar a hipotensão, ou sua concentração pode aumentar por liberação endógena, contribuindo para ocorrência de arritmias. Entretanto, o isoflurano e o sevoflurano praticamente não sensibilizam o miocárdio a esta ação. O desflurano produz depressão da função cardiovascular semelhante àquela observada com o isoflurano e o sevoflurano. SISTEMA RESPIRATÓRIO Todos os anestésicos inalatórios deprimem a função respiratória de modo significativo, e o óxido nitroso é o agente com menor efeito. O volume minuto diminui em 20% com o óxido nitroso, 28% com o halotano, 34% com o isoflurano e em 71% com o enflurano. A resposta ventilatória, a hipercapnia e a hipoxia encontram-se diminuídas em @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 16 decorrência da depressão da atividade dos quimiorreceptores. Este efeito dos anestésicos inalatórios é muito importante no decorrer da anestesia, pois, pelo fato de o paciente perder a capacidade de responder de forma adequada às alterações da PaCO2 e da PaO2, o monitoramento da função respiratória torna-se imprescindível Nos animais de risco, que muitas vezes já se apresentam no exame pré-anestésico com distúrbios do equilíbrio acidobásico, o agravamento da hipercapnia e da acidose contribui para o óbito. O sevoflurano promove as mesmas alterações no sistema respiratório observadas com os demais agentes inalatórios: aumento da PaCO2 e diminuição do volume minuto SISTEMA NEUROMUSCULAR O óxido nitroso não produz efeitos significativos na fisiologia da musculatura esquelética e o fluxo sanguíneo para o músculo não se modifica. O halotano provoca relaxamento da musculatura esquelética por mecanismos centrais e na placa mioneural. Relaxa também a musculatura uterina, sendo útil nas manobras de parto. No entanto, este agente pode inibir contrações eficazes e, por isso, prolongar o tempo de trabalho de parto. Além disso, age sinergicamente com relaxantes musculares despolarizantes O enflurano e o isoflurano agem de forma semelhante ao halotano FÍGADO E OUTROS ÓRGÃOS O óxido nitroso não interfere de maneira importante no trato gastrintestinal, no fígado e nos rins. Ocorrem vômitos e náuseas em pequena proporção. O óxido nitroso é capaz de inibir a síntese da metionina, substância importante para a síntese de DNA e de várias proteínas. Pode ocorrer inibição da divisão celular e já se relatou a ocorrência de leucopenia e anemia após administração deste gás.O halotano é associado a aumento na ocorrência de lesões hepáticas. Estas ocorrem eventualmente após a anestesia e cirurgia, sem aparente relação tempo-efeito, sendo uma das principais razões que motivou o declínio do uso deste agente Sugere-se que certos fatores acentuem os riscos de hepatotoxicidade fatal induzida pelo halotano: por exemplo, exposição múltipla, obesidade, sexo (fêmeas são mais suscetíveis) e senilidade. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 17 Há controvérsias acerca da causa desta toxicidade Um dos fatores limitantes do emprego do metoxiflurano, bem como do enflurano, foi a capacidade destes agentes em lesar o rim, ocorrendo a formação de fluoreto em proporções tóxicas. Esta nefrotoxicidade se caracterizava pela incapacidade de concentrar urina. Não foram relatadas evidências de toxicidade renal para o isoflurano. Em relação ao sevoflurano recomendou-se o emprego de fluxo de gases frescos maior que 1 l/min para procedimentos de até uma hora de duração e de 2 l/min para procedimentos acima de duas horas, para evitar a formação do composto A, que poderia ocasionar nefrotoxicidade. Muitos países não têm essa recomendação, não havendo relatos atuais de toxicidade renal associada ao emprego do sevoflurano. Em relação ao desflurano, como sua taxa de metabolização é inferior a 0,02%, praticamente não há qualquer chance de ocorrer lesão renal ou hepática Os anestésicos inalatórios são capazes de induzir hipertermia maligna. Nesta síndrome observa-se rápido aumento da temperatura, taquicardia, hipotensão, cianose e lesão muscular. Ocorre em indivíduos predispostos geneticamente, que apresentam regulação deficiente de cálcio na membrana do retículo sarcoplasmático. É mais comum em suínos e no homem; entretanto, outras espécies também são suscetíveis. Fatores como estresse, temperatura ambiente alta, infecção, lesão muscular, exercício, uso de bloqueadores neuromusculares, anestésicos gerais e os potentes anestésicos voláteis podem desencadear esta síndrome. O halotano é o agente que apresenta maior potencial para o desenvolvimento da hipertermia maligna, e a administração prévia de tiopental e succinilcolina aumenta sua incidência. Os anestésicos sevoflurano e desflurano também podem desencadear esta síndrome. O tratamento restringe-se à administração de dantroleno (potente relaxante muscular), bicarbonato de sódio para correção da acidose metabólica, antiarrítmicos e, sobretudo, o resfriamento do paciente. Com a sistematização das técnicas de monitoramento durante a anestesia, a capnografia passou a ser um importante aliado no diagnóstico precoce da hipertermia maligna, pois o aumento gradativo da PaCO2, sem @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 18 que haja sinais de ventilação inadequada, pode ser indicativo da ocorrência desta síndrome. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 19 Em anestesia inalatória, a preocupação com a duração da cirurgia não existe; a adequação do plano de anestesia é muito mais fácil do que quando se utilizam apenas anestésicos injetáveis. Atualmente, na realização de determinados procedimentos cirúrgicos, principalmente aqueles em que não há previsão da duração da cirurgia, torna-se fundamental a utilização da anestesia inalatória. Quando são considerados os agentes injetáveis disponíveis, fica mais fácil ainda compreender as vantagens da anestesia inalatória. Os medicamentos injetáveis possuem período hábil extremamente curto e, com exceção dos anestésicos dissociativos, que promovem analgesia somática, são desprovidos de qualquer efeito analgésico; aliado a isto, são amplamente biotransformados pelo fígado e eliminados pelo rim, fato que não ocorre com os modernos agentes inalatórios. Hoje, no Brasil, o emprego dos anestésicos inalatórios é muito difundido, sendo amplamente utilizados em clínicas e hospitais veterinários Os anestésicos voláteis frequentemente são utilizados após indução anestésica com os agentes injetáveis, visando à manutenção da anestesia. São empregados também em determinados pacientes para a indução, quando, por qualquer motivo, o uso de agentes injetáveis é desaconselhável. Podem ser empregados conjuntamente com todos os agentes utilizados para a medicação pré- anestésica, bloqueadores neuromusculares, anestésicos gerais e agentes dissociativos. São sempre administrados com oxigênio, e, em pequenos animais, a proporção anestésico:oxigênio é variável; em grandes animais recomendasse o uso de oxigênio a 100%. O halotano, devido ao seu baixo custo em comparação aos outros agentes, foi, durante muitos anos, o anestésico volátil mais utilizado na Medicina Veterinária. Entretanto, seu emprego hoje quase não se justifica pois há fármacos com propriedades muito mais adequadas para a anestesia inalatória. Os profissionais especialistas em anestesiologia dão preferência ao isoflurano por suas características de indução e recuperação mais rápidas, menor biotransformação e menos efeitos deletérios no sistema cardiovascular. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 20 Sua utilização, no entanto, não é destituída de riscos, sendo a hipotensão o principal efeito adverso. A administração de medicamentos vasoativos, como o halotano, para o controle da pressão arterial durante a anestesia é comum. Também se recomenda a realização de análise hemogasométrica durante a anestesia, devido à ocorrência frequente de hipercapnia e acidose, mesmo nos pacientes hígidos. O isoflurano é o agente de eleição nos pacientes de alto risco, principalmente nos portadores de nefro ou hepatopatias. A indução e a recuperação da anestesia são particularmente rápidas com este agente. Nos neonatos ou em pacientes gravemente enfermos que já se encontram com algum grau de depressão do sistema nervoso central, a indução anestésica com máscara constitui uma excelente opção, porém deve-se ter em mente que o isoflurano tem odor pungente e a indução em animais despertos pode ser difícil. É utilizado em todas as espécies animais. A experiência com o desflurano em animais é ainda pequena. O alto custo deste medicamento e o fato de exigir vaporizador especial para seu emprego, uma vez que facilmente se volatiza, contribuem para a pequena aceitação deste agente no mercado. O sevoflurano, por outro lado, já foi extensivamente utilizado nas mais diferentes espécies de animais, sendo especialmente interessante o fato de promover rápida indução e recuperação da anestesia. Por esta razão, pode ser utilizado na indução anestésica que ocorre normalmente em 1 a 2 min, principalmente naqueles pacientes nos quais o uso de agentes injetáveis é por algum motivo desaconselhável. A vantagem do emprego do sevoflurano na máscara é que este agente é muito bem tolerado pelos animais por possuir odor agradável, além de apresentar baixo coeficiente de partição sangue:gás. @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 21 @STDSELVAGEM FARMACOLOGIA E TERAPÊUTICA II 22 SPINOSA, H. S., et al. (2017). Farmacologia aplicada à Medicina Veterinária. 6ª edição. Rio de Janeiro: Guanabara. Koogan Capítulo 10 – Anestésicos Inalatórios.
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