Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
21 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA Unidade II 2 A FORMAÇÃO DO CÂNONE DE LÍNGUA INGLESA Nesta unidade, faremos uma menção honrosa a alguns escritores e suas obras que, por diversas razões, despontaram, ao longo dos séculos, no cenário das artes literárias, fosse no terreno da poesia, do teatro ou da ficção. Cabe aqui a ressalva de que o conceito de cânone deve ser sempre problematizado. Como visto, procuramos mensurar os pressupostos que levaram a obra a adquirir um status canônico, em detrimento de tantas outras, relegadas às margens pela elite letrada. Teóricos renomados como Harold Bloom defendem veementemente a normatividade do cânone. Ele não está sozinho. Na capa de seu mais famoso livro O Cânone Ocidental (1995), o elogio de Richar Howard: We have for so long been educated by Harold Bloom that comes as something of a surprise to realize all this time we were skimming the surface: he is our encyclopedist as well. Bloom (2003) propõe uma listagem dos cem escritores mais criativos da história da literatura. Dentre os nomeados estão Platão, Sócrates, Virgílio, Camões, Dante Alighieri, Molière etc. Dentre os escolhidos de terras anglo‑saxônicas, Bloom elenca, por exemplo, Shakespeare, John Donne, John Milton, Jonathan Swift, Alexander Pope, William Blake, William Wordsworth e pouquíssimas mulheres como Jane Austen, as irmãs Charlotte e Emily Brontë, George Eliot (Mary Ann Evans), Emily Dickinson e Virginia Woolf.3 No tópico a seguir, faremos a contextualização das correntes poéticas e, ao final, a interpretação de Bloom (1995) sobre Walter Whitman. Fica designado a você, caro aluno, uma leitura refinada, ao sabor das reflexões já feitas e das que se seguem. 2.1 A poesia canônica de língua inglesa 2.1.1 Contextualização: as origens Para compreendermos a poesia canônica de língua inglesa, tanto aquela produzida na Inglaterra quanto a dos Estados Unidos, é necessário, primeiro, analisar as bases da fundação da nação inglesa. Quando detemos nosso olhar nos primeiros escritos, mergulhamos na diversidade do povo inglês, mais especificamente, no amálgama composto por povos como os anglo‑escandinavos e os romanos. 3 Harold Bloom define os escritores que merecem a canonização. A lista completa está em BLOOM, H. Gênio: os cem autores mais criativos da história da literatura. Trad. José Roberto O´Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. 22 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II A tradição oral trazida pelos invasores da Dinamarca e Suécia, por volta de 700 A.D., é transcrita em verso, no ano 1000 A.D. pelos monges escribas. Dessa forma, elementos cristãos são incorporados ao panteão de deuses nórdicos e a literatura que ressalta força, bravura e lealdade ao rei, alicerçada em valores essenciais para a solidificação de uma identidade nacional, torna‑se cânone. Assim, temos a primeira narrativa de língua inglesa, Beowulf, em que o guerreiro nórdico, imbuído de coragem, defende a integridade de seu povo. Com o passar dos séculos, a tônica da poesia inglesa deixa transparecer os feitos do Império Britânico. A poesia de língua inglesa, em especial: furnishes a clear mirror of the intellectual growth of the nation, this progress is to be regarded, not from a mere insular point of view, exhibiting the march of the Anglo‑Saxon, or any other single element in the constitution of the people, but rather in its European aspect, which shows us the gradual blending of many opposing spiritual forces into the organic conscience that now directs our national life. We have reached a point in the history of our poetry at which it becomes necessary to dwell with emphasis on this design (COURTHOPE, 1904, p. 1‑2). Dessa forma, a expansão territorial da Inglaterra passa a caminhar lado a lado com o crescimento intelectual de seus compatriotas, o que impulsiona, de alguma forma, os escritos poéticos. Nesse tópico, iremos abraçar primeiro os versos de Beowulf, a primeira grande lírica de língua inglesa que se faz canônica, em virtude da ideologia que dissemina; isto é, os valores de honradez, obediência e amor ao reino. A imagem do guerreiro, aparentemente impoluto, é metáfora estendida a todos os nobres cidadãos ingleses que se prezam. 2.1.2 A primeira narrativa de língua inglesa: Beowulf Como dissemos anteriormente, além de cristianizar os anglo‑saxões, os monges recolhem as narrativas orais deles, registrando‑as na forma escrita, por meio do verso, a fim de facilitar a sua memorização. Beowulf possui 3.182 linhas de versos com aliteração divididos em 44 seções. Its language is allusive and embellished and its narrative digressive and complex, but its relatively straightforward plot follows the outlines of a folktale: a young hero fights in isolation from friends and family engages in fabulous battles against monstrous foes, faces three challenges in ascending order of difficulty, and in the end wins glory and fame. The fabulous outline of the story equally recalls the deep undertones of myth: the mighty Beowulf may be a distant cousin of Thor, and his death may contain a hint of Ragnarok, the northern apocalypse (BLACK, 2009, p. 57). 23 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA A principal figura da narrativa é a do guerreiro de mesmo nome, transmutada na luta entre o bem e o mal, que pode ser lida como a luta entre o catolicismo e os deuses pagãos. Por esse motivo, a narrativa apresenta passagens bíblicas e a presença de um único Deus criador. Porém, a luta de Beowulf não é contra homens, mas contra um monstro, chamado Grendel, o qual, por muito tempo, havia atacado o reino de Hrothgar. Além do herói Beowulf e da criatura Grendel, descendente de Caim, o poema traz outros personagens. São eles: a mãe de Grendel, que jura vingança após ver seu filho morto pelas mãos de Beowulf; o rei dinamarquês cujo reino goza de tranquilidade até que Grendel chega para aterrorizá‑lo; Unferth, um guerreiro dinamarquês que se opõe à Beowulf por ser invejoso e covarde; Hygelac, tio de Beowulf, rei dos gautas e marido de Hygd; Ecgtheow, pai de Beowulf, cunhado de Hygelac e amigo de Hrothgar. Vê‑se, por meio dessa descrição, que a linhagem de heróis se torna um predicado; Beowulf é conhecido não somente por seus atos, mas por ser filho de quem é; habita nele o desejo de perpetuar a tradição da família, já que seu pai era um homem destemido e cujas façanhas sobrevivem ao tempo. Há, ainda, elementos míticos como um Dragão, uma criatura milenar que guarda a horda do tesouro. Beowulf luta com o dragão na terceira e última parte do poema, juntamente com Wiglaf, o mais fiel de seus guerreiros. Você já deve ter percebido que Beowulf se assemelha a inúmeras histórias, não é mesmo? Desde Beowulf, a lealdade, a honra, a coragem sobre‑humana e a amizade incondicional são elementos majorados em qualquer narrativa canônica. A saga do herói inspira os mortais, ainda que o perigo seja iminente. Mesmo sabendo que Grendel aterrorizava o reino de Hrothgar, Beowulf e seus homens partem em viagem pelo mar para enfrentar a criatura. A bravura de Beowulf serve de modelo a todos os cidadãos de outrora e aos de hoje. Beowulf honra seu posto e ensina ao leitor como se comportar diante dos desafios para proteger a nação que estava, simbolicamente, subjugada pelo monstro: III With the sorrows of that time the son of Healfdene seethed constantly; nor could the wise hero turn aside his woe‑too great was the stride, long and loathsome, which befell that nation, violent, grim, cruel, greatest of night‑evils4 (GLOVER, 1983, linhas 189‑193). Ao chegar a Hrothgar, o herói e seus guerreiros são parados por estarem vestidos para a guerra e, segundo o homem que guardava a fronteira dinamarquesa, ele nunca havia visto guerreiros tão valentese dispostos a lutar. 4 Com as dores daquele tempo o filho de Healfdene fervia constantemente; nem poderia o herói sábio desviar sua mágoa demasiado grande era o passo, longo e repugnante, que se abateu sobre a nação, violento, desagradável, cruel, o maior dos males noturnos (tradução nossa). 24 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II What are you, warriors in armor, wearing coats of mail, who have come thus sailing over the sea‑road in a tall ship, hither over the waves? Long have I been the coast‑warden, and kept sea‑watch so that enemies with fleets and armies should ever attack the land of the Danes. […] I have never seen a greater earl on earth than that one among you, a man in war‑gear; that is no mere courtier, honored only in weapons‑unless his looks belie him, his noble appearance! Now I must know your lineage, lest you go hence as false spies, travel further into Danish territory […]5 (ibidem, linhas 237‑254). O guardião da fronteira admite jamais haver visto guerreiros tão altivos e destaca, dentre eles, a nobreza e o porte de Beowulf. Notamos, novamente, o peso da ancestralidade, ou seja, a linhagem tem suma importância e justifica a atitude de força do guerreiro, herdadas de uma longa série de outros que o precederam. Fica claro pela postura do herói que ele participa da ideia de nação e tradição, dando a ela sua lealdade. A conformação do cânone se dá porque as culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre “a nação” (HALL, 2007, p. 51), arregimentam para si não apenas as estórias contadas sobre ela, mas ligam as histórias individuais, as memórias, conectando‑as com o passado, fundando origens que se perdem no tempo e no espaço, porém, autenticam‑lhes uma marca de distinção e importância, atribuindo à linhagem sua distinção, como no caso de Beowulf. O herói não é apenas o filho de Hygelac; ele herdou do pai a sua coragem e bravura, que permanecem e se perpetuam além‑túmulo em Beowulf e em sua missão, como descrita por um de seus homens: The eldest one answered him, leader of the troop, unlocked his word‑hoard: “We are men of the Geatish nation and Hegelac’s hearth‑companions, My father was well‑known among men, 5 O que vocês são, guerreiros com armaduras, usando casacos de malha, que vieram assim navegando sobre o mar em um navio alto, cá sobre as ondas? Longo tempo estive na costa e me mantive atento ao mar, de modo que os inimigos com frotas e exércitos nunca pudessem atacar a terra dos dinamarqueses [...]. Eu nunca tinha visto um conde maior na terra do que no meio de vós, um homem da arte das guerras que não é um mero cortesão, honrado somente em armas, a menos que sua aparência o desminta, sua nobre aparência! Agora eu devo saber sua linhagem, para que você vá, portanto, como falsos espiões, viajar mais em território dinamarquês (tradução nossa). 25 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA a noble commander named Ecgtheow; he saw many writers before he passed away, ancient, from the court; nearly everyone throughout the world remembers him well. With a friendly heart have we come seeking your lord, the son of Healfdene, guardian of his people; be of good counsel to us! We have a great mission to that famous man, ruler of the Danes; nor should any of it be hidden, I think. You know, if things are as we have truly heard tell, that among the Scyldings some sort of enemy, hidden evildoer, in the dark nights manifests his terrible and mysterious violence, shame and slaughter. With a generous spirit I can counsel Hrothgar, advise him how, wise old king, he may overcome this fiend− if a change should ever come for him, a remedy for the evil of his afflictions, and his seething cares turn cooler; or forever afterwards a time of anguish he shall suffer, his sad necessity, while there stands and its high place the best of houses” (ibidem, linhas 258‑285). Burgess (1990) corrobora a ideia de que boa parte da força e da violência de Beowulf deriva da própria natureza do inglês arcaico. Era uma língua de consoantes aglomeradas e difíceis de pronunciar. Em suma, a tradição de língua inglesa é forjada, indubitavelmente, em Beowulf. O magnestimo do herói, sua coragem e determinação contra o perigo que atinge a nação, simbolizado por Grendel, servem de exemplo a futuros guerreiros da Inglaterra. Vale lembrar que um dos propósitos dessa história era servir de instrumento para a conversão do povo. Lembrem‑se que os monges da Igreja Católica incorporaram às narrativas orais temas do cristianismo. Até hoje vemos o modelo do herói Beowulf em outras narrativas literárias, teatrais e cinematográficas e até em jogos de RPG (role‑playing game). Um exemplo é a trilogia O Senhor dos Anéis, mais especificamente o segundo filme, As Duas Torres (EUA/ NZE, 2002), que encarna as características do poema épico. Saiba mais O filme Beowulf apresenta Angelina Jolie como a mãe de Grendel. A produção reconta a primeira narrativa de língua inglesa e ressalta os valores de heroísmo e fidelidade que a Inglaterra buscou difundir, utilizando os recursos CG (cinematic graphics). 26 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II BEOWULF. Dir. Robert Zemeckis. EUA: Warner Bros.; Paramount Pictures, 2007. 115 minutos. 2.1.3 Das virtudes: o romance de cavalaria e os Contos da Cantuária A marca de honradez do poema épico perpetua‑se nos romances de cavalaria. Do mesmo sangue dos dinamarqueses, os normandos chegam à ilha inglesa completamente convertidos ao cristianismo. Vindos do que hoje é a França, trouxeram as raízes da literatura francesa consigo. Dessa forma, o francês era falado pela nobreza, enquanto o domínio do latim pertencia à classe mais culta. A língua inglesa fica relegada ao povo. A conquista Normandia resgata o mito do rei bretão, Arthur, e dos Cavaleiros da Távola Redonda. O cavaleiro é um símbolo universal de heroísmo porque expulsa o invasor: é “aquele que sublima seus desejos em prol de seus princípios” (SILVA, 2005). Outro mito poderoso surge na figura de Robin Hood, o fora da lei que não aceita o domínio normando e vai buscar a liberdade na floresta. Vemos que o espírito de união da nação mantém‑se vivo nessas narrativas, as quais se tornaram canônicas, ao ponto de serem recontadas ainda hoje, principalmente pelo cinema. Tanto O Rei Arthur e os Cavaleiro da Távola Redonda como Robin Hood são escritos em middle english (inglês médio), língua de transição. Após a derrota da Normandia pelos ingleses em 1204, o inglês volta a ser falado e abre caminho para os escritos de Geoffrey Chaucer, o primeiro grande poeta inglês. Geoffrey Chaucer nasce por volta de 1340 e falece em 1400. Filho de comerciantes, o escritor vai aprender bastante sobre a aristocracia quando se torna pajem da condessa de Ulster. Serviu no estrangeiro como soldado, foi preso e libertado pelo próprio rei da Inglaterra. Sua obra‑prima, Os Contos da Cantuária, é uma coletânea que versa sobre as virtudes e, principalmente, os vícios do ser humano durante uma peregrinação religiosa. Nesta peregrinação encontram‑se vários tipos sociais, dentre eles um barão, um comerciante, um doutor, alguns religiosos e outros que serão criticados, segundo suas mazelas morais. Leiamos um excerto, em que a habilidade de um médico está a serviço do dinheiro que pretende ganhar: O médico Conosco estava um médico também; Em todo o mundo não existe alguém Tão bom em medicina e cirurgia, E alicerçado assim na astronomia. Previa a hora propícia contra o mal Pelo uso da magia natural. Com firmeza traçava ele o ascendente Dos amuletos para o seu paciente. Via a causa de cada enfermidade 27 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA No frio, calor, secura ou umidade, Onde nascia, e qual o seuhumor; Era um perfeito, um ótimo doutor. Sabendo a fonte de onde o mal provinha, Receitava ao enfermo sua mezinha, Surgiam a seguir os boticários Com suas drogas e remédios vários, Pois a esta classe aquela classe obriga Numa amizade já bastante antiga; Seu Esculápio conhecia bem, Rufus e Deiscórides também, O velho Hipócrates, Ali, Galeno, Serapião, Razis e Damasceno; Avicena, Averróis e Constantino; Bernardo e Gatesden e Gilbertino. Tinha a dieta muito moderada, Pois de supérfluo não comia nada, Mas só alimento rico e digestivo. Em ler a Bíblia parecia esquivo. De vermelho e de azul vinha vestido; De seda e tafetá era o tecido Gastava o seu dinheiro com cuidado, Guardando o que na peste havia lucrado. Como o ouro entre os cordiais tem mais valia, Ao ouro mais que tudo ele queria (CHAUCER, 2014, v. 411‑444). A história dos peregrinos dá, pela tônica do humor, voz a todas as camadas sociais e, em contraponto, serve de ensinamento moral. A partir de Chaucer, o inglês ganha estatuto literário. A linguagem usada por ele é única; apresenta uma retórica elegante que simboliza a maneira aristocrática de falar. Sua obra é canônica porque retrata a vida de pessoas reais, imprimindo uma crítica sagaz a todos os segmentos sociais e resgatando o orgulho do povo inglês. “Chaucer é um poeta vivo: fala para nós hoje com uma voz tão clara como a que foi ouvida em sua própria época. É essa qualidade viva que llhe confere grandeza” (BURGESS, 1990). Daremos, agora, um salto no tempo, em que um jovem inova a maneira pela qual os sonetos são construídos. Estamos falando de William Shakespeare. 2.1.4 A Era de Ouro: a genialidade do soneto shakespeariano Previamente ao reinado de Elizabeth I, a Inglaterra estava economicamente em declínio; os preços subiam vertiginosamente, ao mesmo tempo que a remuneração pelo serviço dos trabalhadores rurais era insatisfatória, o que os levava a engrossar a fileira daqueles que estavam abaixo da linha da pobreza. Banhos de sangue eram empreendidos pela rainha Mary Tudor. 28 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II There were protests not only against the imposition of religious changes but also against the continuing revolution in agriculture: in Devon and Cornwall people rebelled against having to use a prayer book rather than the Latin forms which they have been so long familiar; and in East Anglia in 1547 there was a rebellion, led by Robert Kett, a well‑to‑do landowner, against the growing practices of enclosing land for pasture and of taking over the arable and common land on which poor country people had for long relied for their subsistence (HIBBERT, 1992, p. 113). A sucessora de Mary Stuart, a rainha Elizabeth, filha de Ana Bolena com Henrique VIII, tinha apenas vinte e cinco anos de idade quando assumiu o trono. Moça simples, mas muito inteligente, lia em latim e grego e falava francês, espanhol, italiano, latim e, inclusive, um pouco de galês. Sua corte era: a busy hive of genius where intellectual gifts […] were valued more than high birth, where even those who were its most decorative and dashing denizens […] Musicians, artists and men of letters were encouraged at court as well as such adventurers […] After the miseries of the previous reign it seemed, indeed, a golden age (HIBBERT, 1992, p. 117‑118). Afeita às artes em geral, a monarca passa a incentivar o desenvolvimento principalmente do teatro, pouco prestigiado até então: “By virtue of its wonderful fertility and of the variety and splendor of its production, this period as a whole ranks as one of the greatest in the annals of the world’s literature” (HUDSON, 1966, p. 45). Figura 4 ‑ Henrique VIII 29 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA Observação Henrique VIII foi casado com Catarina de Aragão, com quem teve uma menina. O fato de não ter conseguido um herdeiro levou‑o a pedir o divórcio de Catarina. A igreja católica, sob o comando do Papa Clemente VII, nega o pedido. Henrique, então, se casa – mesmo contra a corte eclesiástica – com Ana Bolena, mãe de Elizabeth. Excomungado, Henrique inicia o processo que manteria a autoridade do rei soberana à autoridade de Roma e a Inglaterra em um país, constitucionalmente, protestante. Henrique VIII tratou os dissidentes religiosos – protestantes e/ou católicos – com extrema violência. A Inglaterra não mais era uma terra de pessoas iletradas, restrita aos poucos que frequentavam as universidades e a Corte. A Renascença floria o intelecto e a estética, enquanto a Reforma acordava a natureza espiritual; a Bíblia inglesa foi colocada nas mãos do povo, e as viagens recém‑empreendidas a outras terras significou, metaforicamente, o alargamento das fronteiras físicas e do conhecimento dos homens, além de marcar o estabelecimento do Império Inglês em lugares como a Índia e os Estados Unidos da América. O país se articulava, agora, como uma nação unida. O resultado foi um intenso patriotism: […] one of the outstanding features of the age, and showed itself in many ways – in a keen interest in England’s past, pride in England’s greatness, hatred of England’s enemies, and extravagant loyalty to England’s queen (HUDSON, 1966, p. 47). A publicação que acentua o início da era dourada elizabetana foi o Shepheardes Calender, de Spencer, em 1579. O período marca a transição do teocentrismo ao antropocentrismo, em que o homem estava no centro de todas as coisas. Neste momento, William Shakespeare, um dos grandes dramaturgos e poetas da era elizabetana, nasce. 2.1.5 Shakespeare, fundador de tradições Parece consenso que William Shakespeare (1564–1616) tenha sido um dos mais renomados escritores de todos os tempos. Sua canonicidade não se deve apenas à originalidade de sua obra, perscrutando os vícios e as virtudes da alma humana, mas na quebra das fórmulas rígidas de se fazer um soneto, por exemplo, ou, ainda, na maneira vívida de se lidar com o público no teatro. Shakespeare propõe novas formas de representação; sabe, como ninguém, trabalhar com as metáforas que associam objetos e elementos da natureza a pessoas. Seus trabalhos, divididos em peças teatrais e poesia – à qual nos atentaremos aqui – intentam interpretações múltiplas que desafiam o leitor. 30 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Observação William Shakespeare nasceu em 23 de abril de 1564 em Stratford‑upon‑Avon, em Warwickshire. Shakespeare foi para a escola local onde aprendeu Latim e aritmética, porém, aos quatorze anos de idade, teve que abandonar os estudos para ajudar no sustento da família, uma vez que seu pai passava por problemas financeiros. Aos 19 anos, Shakespeare desposou Anne Hathaway, oito anos mais velha. Tiveram três filhos: Susannah e os gêmeos Judith e Hamnet. Por volta de 1587, ele deixou sua cidade natal para fazer fortuna em Londres. Naquele momento, o teatro ganhava popularidade rapidamente e logo Shakespeare se volta para o palco, tornando‑se primeiro um ator e depois um dramaturgo. Figura 5 O soneto, ou “pequena música”, foi desenvolvido durante o século XIII, na Itália, sendo difundido na Europa renascentista e tornando‑se a mais prestigiada forma em inglês. Composto por catorze linhas, o soneto é dividido em dez ou doze sílabas por linha. As formas mais populares são o soneto italiano ou petrarquiano, o soneto inglês e o spenceriano. A forma petrarquiana, por exemplo, foi elaborada pelo escritor italiano Francesco Petrarca e, logo, tornou‑se comum: oito linhas criavam ambivalência, seguidas pelo sexteto, seis linhas que, em geral, faziam uma elaboração ou contra‑argumento. O esquema de rimas simples era abba abba cde cde, podendo ocorrer variações, como por exemplo, cdc dcd ou cde dec. No entanto, os poetas ingleses tinham dificuldade em aderir ao soneto petrarquiano. O sonetoshakespereano, por sua vez, tinha três quartenários (um conjunto de quatro linhas), cada uma com a rima abab cdcd efef e um dístico com a rima gg. Quanto à sua função, nota‑se que o soneto shakespeariano irrompe no horizonte da criação poética: 31 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA The quatrains may trace the development of an idea, state the same notion several times, or describe a situation from several angles – the possibilities of this flexible form are nearly endless. The couplet may be a logical conclusion, a further thought, or even a dramatic denial of what has come before (BLACK, 2009, p. 565). Vejamos o “Soneto 18” de Shakespeare, uma variação do molde anteriormente descrito: Sonnet 18 Shall I compare thee to a summer’s day? Thou art more lovely and more temperate: Rough winds do shake the darling buds of May, And summer’s lease hath all too short a date: Sometime too hot the eye of heaven shines, And often is his gold complexion dimm’d; And every fair from fair sometime declines, By chance, or nature’s changing course, untrimm’d; But thy eternal summer shall not fade Nor lose possession of that fair thou ow’st; Nor shall death brag thou wander’st in his shade, When in eternal lines to time thou grow’st; So long as men can breathe or eyes can see So long lives this, and this gives life to thee (SHAKESPEARE, 2009). Vocabulário Thee = you. Hath = have (3ª pessoa/sing. Has). Dimm’d = dimmed (lacking in brightness). Untimm’d = untrimmed (not cut; not trimmed). Thee = you. Na nossa tradução, preferimos que o destinatário fosse uma mulher: Como hei de comparar‑te a um dia de verão? És muito mais amável e mais amena: 32 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Os ventos sopram os doces botões de maio, E o verão finda antes que possamos começá‑lo: Por vezes, o sol lança seus cálidos raios, Ou esconde o rosto dourado sob a névoa; E tudo que é belo um dia acaba, Seja pelo acaso ou por sua natureza; Mas teu eterno verão jamais se extingue, Nem perde o frescor que só tu possuis; Nem a Morte virá arrastar‑te sob a sombra, Quando os versos te elevarem à eternidade: Enquanto a humanidade puder respirar e ver, Viverá meu canto, e ele te fará viver. Quanto à estrutura, o soneto mais em voga pode ser classificado, de acordo com a métrica italiana, com 14 linhas divididas em dois versos com quatro linhas cada. Se você, caro leitor, ler este soneto em voz alta, há de constatar que o autor também impingiu sentido ao som das palavras como se quisesse encantar nossos ouvidos pela música, afora o significado de seus versos. Os primeiros dois deles comparam a mulher amada a um dia de verão, sendo que a amada, no entanto, ainda é mais viva e recatada. A beleza da mulher amada sobrevive ao tempo e, mesmo em sua velhice, seu encanto prevalece. Há outras versões, em que o destinatário é um jovem amigo. Isso denota como a poesia shakespereana é edificada com traços polissêmicos. O gênio verbal de Shakespeare é lírico, musical (SILVA, 2006), embora a excelência de sua técnica tenha se estendido também às tragédias que escrevera. Obviamente que outros escritores também se destacaram durante o “reinado” de Shakespeare. Edmund Spenser (1552‑1599) tratou das aspirações da época elisabetana. Em A Rainha das Fadas, vemos como o poeta fala de Elizabeth I e de outros temas que agradaram o público, dentre eles: as superstições, os ideais nobres, o patriotismo e o cavalheirismo de seu povo. Porém, o traço mais marcante da poética de Edmund Spenser é sua inglesidade. Desde seus primeiros escritos, Spenser se devotou a criar uma poesia que fosse inglesa, quer seja na temática, quer na linguagem. A canonicidade de Spenser se deve à inovação por ele feita na métrica e na forma. Um exemplo de sua inovação pode ser visto nas eclogues, fato sem precedentes na poesia pastoral, o que abriu o terreno para experimentos em prosódia. Outra inovação foi a organização dos poemas em uma progressão sazonal (no caso do poema Calender). Ao seguir um ciclo anual, Spenser consegue usar o mundo exterior para desvendar o mundo interno do pastor Colin Clout, personagem de sua obra poética. O amor de Clout por Rosalind fornece o fio condutor da obra. The concluding eclogue, in which Colin Clout gives a looks back over his happy youth and misfortunes in love became something of a touchstone 33 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA in later treatments of the poetical vocation; countless romantic poets developed this theme, not usually in pastoral verse to be sure, but in the sonnets, odes, and descriptive poems then regarded as the most poetic of literary forms (SPENCER, 1788, p. 297). Segue a última estrofe do poema, em que o Colin dá adeus a Rosalind: Adieu Delights, that lulled me asleep; Adieu my Dear, whose Love I bought so dear; Adieu my little Lambs and loved Sheep; Adieu ye Woods, that oft my Witness were: Adieu good Hobbinol, that was so true, Tell Rosalind, Colin bids her adieu6 (idem). Assim, a canonicidade da obra de Shakespeare e de Spenser residem na originalidade e no teor de “inglesidade”, respectivamente. 2.1.6 Os poetas metafísicos: a canonicidade dos cânones Os poetas metafísicos, por sua vez, obtiveram o mérito canônico, principalmente pelo intuito de suas poesias: levar os assuntos espirituais e filosóficos ao conhecimento de todos. A emoção era, cuidadosamente, trabalhada em versos de temática intelectual; havia sempre o conflito entre fé e razão, pensamento e sentimento. O desejo carnal opunha‑se ao desejo maior: a elevação do espírito. A arte dos metafísicos também consistia no uso de conceitos justapostos e na comparação de objetos dessemelhantes, na argumentação rebuscada, bem como no uso da forma elíptica do verbo. John Donne (1573‑1631), por exemplo, escrevia apaixonadamente suas aventuras amorosas. Termina como deão da Catedral de São Paulo, em Londres, pregador de grandes sermões e usando uma linguagem áspera para exaltar sua devoção a Deus. No man is an island, Entire of itself, Every man is a piece of the continent, A part of the main. If a clod be washed away by the sea, Europe is the less. As well as if a promontory were. 6 Adeus Delícias, que me embalavam no sono; Adeus, minha cara, cujo amor eu comprei tão caro; Adeus meus pequenos inocentes e amados Carneiros; Adeus, sim, madeiras, que muitas vezes foram minhas testemunhas: Adeus bom Hobbinol, isso foi tão verdadeiro, Diga a Rosalind, Colin pede‑lhe adeus (tradução nossa). 34 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II As well as if a manor of thy friend’s Or of thine own were: Any man’s death diminishes me, Because I am involved in mankind, And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee (apud BROWNE, 2012, p. 110). Na tradução para o português: Nenhum homem é uma ilha isolada cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui‑me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti7. John Donne, aqui, ressalta a importância da vida de cada homem e, ao final, aponta para o único por quem “os sinos dobram”: thee; ou seja, Deus. Como o trabalho artístico somente se torna vivo mediante um espectador, podemos dizer que a poesia de John Donne foi reconhecida como genial a partir do século XX. Isso nos mostra como a categorização do que serve ao cânone muda, de acordo com o período histórico‑social. Avançando no tempo e no espaço, deixamos para traz a Inglaterra elizabetana de Shakespearee seguimos rumo ao Romantismo. 2.1.7 Os versos românticos O século XVIII gozava de prosperidade com o Império Britânico em ascensão. A classe média penetrava no espaço aristocrático, em virtude de casamentos “por conveniência”, como veremos no tópico sobre a ficção canônica de língua inglesa, mais especificamente, nos romances de Jane Austen. Portanto, o gênero que melhor retratará este período será o romance. Contudo, grandes precursores do Romantismo, imbuídos do sentimento de liberdade, igualdade e fraternidade, promulgados pela Revolução Americana e, sobretudo, pela Revolução Francesa, fizeram de seus versos instrumento político, social e cultural na disseminação de tais ideais. 7 Tradução nossa. 35 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA Talvez, um dos mais proeminentes desse período tenha sido William Blake (1757‑1827) por rejeitar o poder da razão humana em voga até então. Ora, você, caro aluno, deve se lembrar que a canonicidade de um autor também é atribuída à sua ousadia de mostrar – ao público – algo que vai contra a corrente de uma época, algo até então inimaginado. Blake contrapunha‑se ao conteúdo racionalista dos poemas augustianos, uma vez que recusava a tendência da época em se fazer uma poesia de ordem intelectual e para poucos, em detrimento de uma poesia que refletisse a vida do homem comum. Blake queria a mudança que viria muito mais pelo poder criador da imaginação do que pela razão. Em “The Tyger”, Blake propõe uma reflexão sobre o que é bom e mau no mundo. Nesse sentido, o tigre metaforiza o mau. A estilística usada é a aliteração (repetição de consoantes) e há a insistência do termo “dread”, que significa “horror”. Lido em voz alta, o poema se parece com um canto. Blake ainda faz, ele mesmo, a ilustração do tigre, bravo e taciturno, o que se assoma à compreensão do poema. Dessa forma, temos o conteúdo, em consonância com a estética dos versos, de sua melodia e do ritmo, além do texto imagético, operando em uma plataforma multimodal, a serviço da construção de sentidos a que Blake tanto almeja. A seguir, a primeira estrofe: Tyger! Tyger! burning bright In the forests of the night, What immortal hand or eye Could frame thy fearful symmetry? (BLAKE, 1866, p. 53). Lembrete William Blake é quem faz a ilustração do tigre de seu poema. Ainda criança, Blake vai para uma escola de desenho, na Inglaterra. Figura 6 36 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Observação Em Poetical Sketches (1783), Blake protesta contra a guerra, a tirania e o tratamento dado às colônias americanas pelo rei George III. Blake compartilha do pensamento ilustrado como o de Thomas Paine e Mary Wollstonecraft e reafirma, incessantemente, que a imaginação ou, em outras palavras, a visão íntima é mais relevante do que a observação da natureza. Blake declara também: “I must create a system or be enslaved by another man’s”. Figura 7 ‑ William Blake 2.1.8 A poesia vitoriana Pode‑se chamar o reinado da rainha Vitória de “a era do desenvolvimento”. Entre 1837 e 1901, a Inglaterra experimentou seu momento de maior progresso, tanto na frente econômica quanto na social. O domínio colonial inglês se consolida, definitivamente. No entanto, a época vitoriana apresentava grandes problemas de ordem política e social. Para Anthony Burgess (2006, p. 213), os desafios no campo da ciência e as incertezas geradas pela Teoria de Darwin e pela publicação de O Capital, de Marx, em um cenário puritano, em que temas como o sexo eram tabus, ocasionaram um clima de instabilidade na sociedade inglesa. O gênero literário que melhor expressará essa angústia é o romance, do qual falaremos proximamente. 2.1.9 A poesia do Modernismo O fim da era vitoriana e o trauma da Primeira Guerra Mundial pesam sob os ingleses e, com eles, a desilusão e a desesperança que somente os poetas poderiam redimir pelas palavras. Um mundo esfacelado e incerto era o que eles tentavam retratar em seus poemas. Ouçamos T. S. Eliot: 37 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA The Love‑Song of J. Alfred Prufrock (T. S. Eliot, 1888–1965) Let us go then, you and I, When the evening is spread out against the sky Like a patient etherized upon a table; Let us go, through certain half‑deserted streets, The muttering retreats Of restless nights in one‑night cheap hotels And sawdust restaurants with oyster‑shells: Streets that follow like a tedious argument Of insidious intent To lead you to an overwhelming question... 10 Oh, do not ask, “What is it?” Let us go and make our visit. In the room the women come and go Talking of Michelangelo. The yellow fog that rubs its back upon the window‑panes The yellow smoke that rubs its muzzle on the window‑panes Licked its tongue into the corners of the evening Lingered upon the pools that stand in drains, Let fall upon its back the soot that falls from chimneys, Slipped by the terrace, made a sudden leap, 20 And seeing that it was a soft October night Curled once about the house, and fell asleep. And indeed there will be time For the yellow smoke that slides along the street, Rubbing its back upon the window‑panes; There will be time, there will be time To prepare a face to meet the faces that you meet; There will be time to murder and create, And time for all the works and days of hands That lift and drop a question on your plate; 30 Time for you and time for me, And time yet for a hundred indecisions And for a hundred visions and revisions Before the taking of a toast and tea. In the room the women come and go Talking of Michelangelo. 38 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II And indeed there will be time To wonder, “Do I dare?” and, “Do I dare?” Time to turn back and descend the stair, With a bald spot in the middle of my hair— 40 [They will say: “How his hair is growing thin!”] My morning coat, my collar mounting firmly to the chin, My necktie rich and modest, but asserted by a simple pin— [They will say: “But how his arms and legs are thin!”] Do I dare Disturb the universe? In a minute there is time For decisions and revisions which a minute will reverse. For I have known them all already, known them all; Have known the evenings, mornings, afternoons, 50 I have measured out my life with coffee spoons; I know the voices dying with a dying fall Beneath the music from a farther room. So how should I presume? And I have known the eyes already, known them all— The eyes that fix you in a formulated phrase, And when I am formulated, sprawling on a pin, When I am pinned and wriggling on the wall, Then how should I begin To spit out all the butt‑ends of my days and ways? 60 And how should I presume? And I have known the arms already, known them all— Arms that are braceleted and white and bare [But in the lamplight, downed with light brown hair!] Is it perfume from a dress That makes me so digress? Arms that lie along a table, or wrap about a shawl. And should I then presume? And how should I begin? . . . . . Shall I say, I have gone at dusk through narrow streets 70 And watched the smoke that rises from the pipes Of lonely men in shirt‑sleeves, leaning out of windows?... 39 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA I should have been a pair of ragged claws Scuttling across the floors of silent seas. . . . . . And the afternoon, the evening, sleeps so peacefully! Smoothed by long fingers,Asleep... tired... or it malingers, Stretched on the floor, here beside you and me. Should I, after tea and cakes and ices, Have the strength to force the moment to its crisis? 80 But though I have wept and fasted, wept and prayed, Though I have seen my head (grown slightly bald) brought in upon a platter, I am no prophet–and here’s no great matter; I have seen the moment of my greatness flicker, And I have seen the eternal Footman hold my coat, and snicker, And in short, I was afraid. And would it have been worth it, after all, After the cups, the marmalade, the tea, Among the porcelain, among some talk of you and me, Would it have been worth while, 90 To have bitten off the matter with a smile, To have squeezed the universe into a ball To roll it toward some overwhelming question, To say: “I am Lazarus, come from the dead, Come back to tell you all, I shall tell you all” If one, settling a pillow by her head, Should say, «That is not what I meant at all. That is not it, at all.» And would it have been worth it, after all, Would it have been worth while, 100 After the sunsets and the dooryards and the sprinkled streets, After the novels, after the teacups, after the skirts that trail along the floor— And this, and so much more?— It is impossible to say just what I mean! But as if a magic lantern threw the nerves in patterns on a screen: Would it have been worth while If one, settling a pillow or throwing off a shawl, And turning toward the window, should say: “That is not it at all, That is not what I meant, at all.” 110 40 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II . . . . . No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be; Am an attendant lord, one that will do To swell a progress, start a scene or two Advise the prince; no doubt, an easy tool, Deferential, glad to be of use, Politic, cautious, and meticulous; Full of high sentence, but a bit obtuse; At times, indeed, almost ridiculous— Almost, at times, the Fool. I grow old... I grow old... 120 I shall wear the bottoms of my trousers rolled. Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach? I shall wear white flannel trousers, and walk upon the beach. I have heard the mermaids singing, each to each. I do not think they will sing to me. I have seen them riding seaward on the waves Combing the white hair of the waves blown back When the wind blows the water white and black. We have lingered in the chambers of the sea By sea‑girls wreathed with seaweed red and brown 130 Till human voices wake us, and we drown (ELIOT, 2007, p. 5). Ivan Junqueira traduz o poema de Eliot dessa forma: Canção de amor de J. Alfred Prufrock Sigamos então, tu e eu, Enquanto o poente no céu se estende Como um paciente anestesiado sobre a mesa; Sigamos por certas ruas quase ermas, Através dos sussurrantes refúgios De noites indormidas em hotéis baratos, Ao lado de botequins onde a serragem Às conchas das ostras se entrelaça: Ruas que se alongam como um tedioso argumento Cujo insidioso intento É atrair‑te a uma angustiante questão... 41 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA Oh, não perguntes: “Qual?” Sigamos a cumprir nossa visita. No saguão as mulheres vêm e vão A falar de Miguel Ângelo. A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas, A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo, Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta, Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés, Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou, E ao perceber que era uma tenra noite de outubro, Enrodilhou‑se ao redor da casa e adormeceu. E na verdade tempo haverá Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça, Roçando suas espáduas na vidraça; Tempo haverá, tempo haverá Para moldar um rosto com que enfrentar Os rostos que encontrares; Tempo para matar e criar, E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão; Tempo para ti e tempo para mim, E tempo ainda para uma centena de indecisões, E uma centena de visões e revisões, Antes do chá com torradas. No saguão as mulheres vêm e vão A falar de Miguel Ângelo. E na verdade tempo haverá Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E.. “Ousarei?” Tempo para voltar e descer os degraus, Com uma calva entreaberta em meus cabelos (Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”) ‑ Meu fraque, meu colarinho a empinar‑me com firmeza o queixo, Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete apruma (Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas! “) ‑ Ousarei Perturbar o universo? Em um minuto apenas há tempo Para decisões e revisões que um minuto revoga. 42 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Pois já conheci a todos, a todos conheci ‑ Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes, Medi minha vida em colherinhas de café; Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono Sob a música de um quarto longínquo. Como então me atreveria? E já conheci os olhos, a todos conheci ‑ Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase; Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete, Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede, Como então começaria eu a cuspir Todo o bagaço de meus dias e caminhos? E como iria atrever‑me? E já conheci também os braços, a todos conheci ‑ Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados (Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam Com sua leve penugem castanha!) Será o perfume de um vestido Que me faz divagar tanto? Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam. E ainda assim me atreveria? E como o iniciaria? ....... Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas E vi a fumaça a desprender‑se dos cachimbos De homens solitários em mangas de camisa, à janela debruçados? Eu teria sido um par de espedaçadas garras A esgueirar‑me pelo fundo de silentes mares. ....... E a tarde e o crepúsculo tão docemente adormecem! Por longos dedos acariciados, Entorpecidos... exangues... ou a fingir‑se de enfermos, Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado. Após o chá, os biscoitos, os sorvetes, Teria eu forças para enervar o instante e induzi‑lo à sua crise? Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado, Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada) 43 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA servida numa travessa, Não sou profeta – mas isso pouco importa; Percebi quando titubeou minha grandeza, E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu sobretudo. Enfim, tive medo. E valeria a pena, afinal, Após as chávenas, a geléia, o chá, Entre porcelanas e algumas palavras que disseste, Teria valido a pena Cortar o assunto com um sorriso, Comprimir todo o universo numa bola E arremessá‑la ao vértice de uma suprema indagação, Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos, Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.” ‑ Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro, Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer Não é nada disso, em absoluto.” E valeria a pena, afinal, Teria valido a pena, Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio, Após as novelas, as chávenas de chá, após O arrastar das saias no assoalho ‑ Tudo isso, e tanto mais ainda? – Impossível exprimir exatamente o que penso! Mas se uma lanterna mágica projetasse Na tela os nervos em retalhos... Teria valido a pena, Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às pressas, E ao voltar em direção à janela, dissesse: “Não é absolutamente isso, Não é isso oque quis dizer, em absoluto.” Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê‑lo. Sou um lorde assistente, o que tudo fará Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas, Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil manuseio, Respeitoso, contente de ser útil, Político, prudente e meticuloso; Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso; Às vezes, de fato, quase ridículo Quase o Idiota, às vezes. 44 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Envelheci... envelheci... Andarei com os fundilhos das calças amarrotados. Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um pêssego? Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei. Ouvi cantar as sereias, umas para as outras. Não creio que um dia elas cantem para mim. Vi‑as cavalgando rumo ao largo, A pentear as brancas crinas das ondas que refluem Quando o vento um claro‑escuro abre nas águas. Tardamos nas câmaras do mar Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos (ELIOT, 2006, p. 73). O mundo retratado no poema é descrito em cores esmaecidas e pálidas; o eu lírico é assomado pela dúvida entre a paralisia ou uma total e radical mudança. A questão que ecoa ao longo de todo o poema é: vale ainda a pena viver? O mar, símbolo do movimento e da constante mudança, ao final do poema, é o túmulo no qual o sujeito poético repousará finalmente – o que demonstra ainda a passividade sintetizada no ato de se afogar. Saiba mais T. S. Eliot também escreve Macavity: the Mistery Cat, que inspirou o musical Cats, da Broadway. ELIOT, T. S. Macavity: the mistery cat. Reino Unido: Faber & Faber, 2014. Figura 8 ‑ T. S. Eliot 45 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA 2.1.10 Do outro lado do Atlântico Indo para o outro lado do Atlântico, chegamos aos escritores e escritoras estadunidenses e iniciamos nosso percurso com uma das mais profícuas escritoras: Elizabeth Bishop (1911‑1979). Nascida em Worcester, Massachusetts, em 8 de fevereiro de 1911, Elizabeth Bishop perdeu seu pai quando contava menos de um ano de idade. Logo após, sua mãe foi internada em uma instituição psiquiátrica e Elizabeth, enviada para a casa dos avós maternos na Nova Escócia. Entre os anos de 1935 e 1937, a autora viajou para a França, Espanha, Norte da África, Irlanda e Itália para depois estabelecer‑se em Key West, Flórida, por onde viveu quatro anos. Elizabeth Bishop também morou no Brasil, por muitos anos. Em 1956, a autora foi agraciada com o prêmio Pulitzer, em função da coletânea Poems: North & South/A Cold Spring. Em 1970, a escritora recebeu o National Book Award pela obra Complete Poems. A poética de Bishop evita relatar sua vida, centrando‑se apenas nas suas impressões a respeito do mundo, retratando‑o com grande sutileza, como pode ser constatado no poema “One Art”. One Art The art of losing isn’t hard to master; so many things seem filled with the intent to be lost that their loss is no disaster. Lose something every day. Accept the fluster of lost door keys, the hour badly spent. The art of losing isn’t hard to master. Then practice losing farther, losing faster: places, and names, and where it was you meant to travel. None of these will bring disaster. I lost my mother’s watch. And look! my last, or next‑to‑last, of three loved houses went. The art of losing isn’t hard to master. I lost two cities, lovely ones. And, vaster, some realms I owned, two rivers, a continent. I miss them, but it wasn’t a disaster. —Even losing you (the joking voice, a gesture I love) I shan’t have lied. It’s evident the art of losing’s not too hard to master though it may look like (Write it!) like disaster (BISHOP, 2003, p. 2731). 46 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Estruturalmente, o poema foi escrito com o verso villanelle, ou seja, há nele 19 linhas e um verso, que é repetido ao longo do poema (The art of losing’s not too hard to master). O eu lírico do poema trata da perda, do ato de saber perder, como uma arte, a qual não deve ser difícil dominar. Poderíamos associar o ato de perder ao ato de doação do texto após seu término ao leitor. Dá‑lo voluntariamente ao público, o seu não mais pertencimento ao autor, não é um desastre, visto que o eu lírico já perdeu diversas coisas – as chaves do carro, três amores, dois rios e um continente – porém, mesmo assim, a vida deve continuar e não ser um grande desastre. O poema reafirma que, mesmo havendo reveses na vida, é preciso continuar. Ainda tratando de poemas canônicos estadunidenses, convidamos você a ler Edgar Allan Poe, no tópico “Leituras sugeridas”. 2.1.11 Em foco: Walt Whitman por Harold Bloom Bloom (1995) retrata Walt Whitman (1819‑1892) como o centro do canône americano. Segundo ele, nenhum poeta ocidental, no último século e meio, põe na sombra Walt Whitman, que escreve, em 1855, Leaves of Grass (Folhas da Relva), Song of Myself (Canção de Mim Mesmo) e The Sleepers (Os Adormecidos). Bloom reitera: Nada na segunda metade do século XIX, ou nosso quase concluído século, se iguala à obra de Whitman em poder e sublimidade diretos, a não ser talvez Emily Dickinson [...] ele é um poeta muito difícil, imensamente sutil, que em geral atua fazendo quase o exato oposto do que diz a si mesmo estar fazendo (BLOOM, 1995, p. 345). Whitman é original em seus versos livres, mas o que o torna excepcional é a sua inventividade mitológica e o seu domínio da linguagem figurativa. Suas metáforas e sua métrica são pura inovação: Uma clara meia‑noite Esta é a tua hora, ó Alma, o teu voo livre no sem palavras, Longe dos livros, longe da arte, no fim do dia, com a lição estudada, Quando emerges em plenitude, silenciosa, absorta e pensativa sobre os temas que mais amas. A noite, o sono, as estrelas (WHITMAN, 2005).8 O poeta parece nos dizer que, por entre a solidão, encontra‑se um sentimento de felicidade, de plenitude. Meia‑noite é o ponto de epifania de Whitman, quando a revelação não é perturbada pelas distrações do dia. 8 Clear midnight This is thy hour O Soul, thy free flight into the wordless, Away from books, away from art, the day erased, the lesson done, Thee fully forth emerging, silent, gazing, pondering the themes thou lovest best. Night, sleep, and the stars (WHITMAN, 1855). 47 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA No entanto, é em Song of Myself (WHITMAN, 2005) que o poeta empresta toda a sua genialidade para falar sobre seus dois “eus”: “Celebro a mim mesmo” soa como alta pretensão, um egocentrismo exacerbado ou o culto do que o “eu” sente, e não do que se espera dele. Nos versos, a intencionalidade em mostrar que o homem de desejos é o mesmo homem da religião: “Sou o poeta do corpo / E sou o poeta da alma”; o homem que se coloca no lugar de uma mulher ou que a deseja ou, ainda, que gostaria de estar em seu lugar: “Sou o poeta da mulher tanto quanto do homem / E digo que é tão bom ser mulher quanto ser homem. E digo que não há nada maior que a mãe dos homens”. Whitman sabe que seus versos impactam, proclamando despojamento total das amarras sociais: “Nenhum amigo fica confortável em minha cadeira / Não tenho cátedra, igreja, nem filosofia”. Bloom (1995) critica a visão que considera reduzida, acerca da recepção do autor: uma das maiores ironias atuais da recepção de Whitman é ser ele aclamado como um poeta gay. Sem sombra de dúvida seu impulso mais profundo era homoerótico [...] sua orientação erótica era onanista. Mais ainda que o sadomasoquismo, o autoerotismo parece ser o último tabu ocidental, pelo menos em termos de representação literária, mas Whitman o aclama em alguns de seus poemas mais importantes (BLOOM, 1995, p. 357). A crítica literáriapragmática vê no escritor americano – que ignorava rimas e proclamava sua própria divindade – fonte de inspiração. Como vimos, Bloom sublinha que uma literatura canônica prescinde de temas politicamente engajados como a luta de classes, da opressão racial ou da tirania do gênero sexual. O escritor do Cânone Ocidental muda a representação da cognição. Whitman, por fim, “ocupa o centro do cânone americano porque muda o eu e a religião americanos, mudando a representação de nossos eus não oficiais e nossa persuasiva, embora oculta, religião pós‑cristã” (BLOOM, 1995, p. 371). 2.2 A ficção canônica de língua inglesa Neste tópico, trataremos do gênero “romance”. Primeiro, traçaremos o percurso da ficção na linha do tempo e, depois, comentaremos a análise que Harold Bloom faz de Virginia Woolf, uma das poucas mulheres canônicas mencionadas em seu livro. 2.2.1 Contextualização: crítica e arte Há muitas maneiras de se abraçar a literatura em prosa, seja a partir de suas relações com a tradição literária à qual pertence, das relações com o universo das obras e dos gêneros que a precederam ou lhe são contemporâneos; seja por intermédio da análise da escrita do autor, das interpretações polissêmicas que se podem fazer delas ou do contexto sócio‑histórico‑político na qual está inserida. Nosso intento é mesclar crítica e arte, de forma que possamos avaliar a obra em sua magnitude estética, porém, dentro de um arsenal sócio‑histórico de informações. 48 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Logo, imprimiremos um caráter nem tão canônico de interpretação ao falarmos do próprio cânone, já que o ato de leitura é um fenômeno que exige um diálogo do leitor com o texto e, de certa forma, com o autor; mas inequivocamente do leitor e o repertório que ele traz com sua visão de mundo. Não há, portanto, garantias que o canônico seja, por si só, apreciado, a menos que consideremos o background knowledge de seu potencial leitor. Muitas vezes o discurso dominante procurou impor uma única interpretação, o que revelava o intuito pedagógico dessas obras. No entanto, se elas são lidas é porque invocam, sobremaneira, inúmeros sentidos que as fazem objeto de estudo ainda hoje. A seguir, abordaremos algumas das narrativas literárias da Inglaterra, concebidas como canônicas porque permanecem construindo sentidos ao leitor, que delas faz uso. 2.2.2 Formação literária na Grã‑Bretanha Há certo consenso sobre o papel da literatura inglesa no Cânone Ocidental. É em língua inglesa, por exemplo, que escreve uma plêiade de autores laureados – língua inglesa esta formada pela aglutinação de outras línguas dos povos que habitaram a Grã‑Bretanha, como visto anteriormente. Também vimos como a criação literária nos séculos XIII e XIV vem precedida da história da ocupação romana. A invasão normanda, com Guilherme, o Conquistador, faz com que o inglês arcaico dispute espaço com o francês e o latim da época dos romanos. Mais de um século depois, o gênero predominante passa a ser o drama. O período torna‑se muito promissor durante o reinado de Elizabeth, assunto que será abordado no tópico sobre o Teatro. Falemos, então, sobre a ascensão do gênero literário, oriundo do letramento de uma pequena parcela da burguesia, na qual se concentrava grande parte dos escritores: o Romantismo. 2.2.3 A ascensão do romance Dando um salto na história, iremos enfatizar agora o gênero em prosa que ocorre no século XVIII, período histórico de muitas transformações. Este será palco, por exemplo, das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) e dos ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade que estas ajudaram a difundir. A geração do final do século também reagiu à mecanização da vida e à racionalização das ideias, procurando retomar o contato com a natureza e exaltar a sensibilidade. Intelectuais opuseram‑se, fortemente, à existência da escravidão e às condições precárias de vida dos trabalhadores. Estavam lançadas as bases para o Romantismo, movimento literário que imprimiu um caráter individualista e que ganhou força, mormente, por meio das obras‑primas de mulheres, antes à margem da escrita, como Jane Austen, Mary Shelley e as irmãs Brontë, já no século XIX. O romance inglês dos séculos XVIII e XIX institui‑se como o eixo cultural da sociedade vitoriana, dando à literatura uma nova dimensão: 49 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA In its modern form the concept of “literature” did not emerge earlier than the eighteenth century and was not fully developed until the nineteenth century. Yet the conditions for its emergence had been developing since the Renaissance. The word itself came into English use in the fourteenth century, following French and Latin precedents; its root was Latin littera, a letter of the alphabet. Litterature, in the common early spelling, was then in effect a condition of reading: of being able to read and of having read (WILLIAMS, 1971, p. 46). A subjetividade tornara‑se o traço dominante dessas escritoras que ora denunciavam a vida privada das elites inglesas (do casamento por conveniência, do amor desmedido), ora acusavam a ambição humana como prenúncio de um desfecho de terror, como o fez Mary Shelley. Mary Shelley (1789‑1851) aparentemente estava à sombra de seu marido, Percy Shelley (1792‑1822), poeta renomado do calibre de Lord Byron (1788‑1824). Mary escreve algumas histórias, até que decide dedicar‑se a Frankenstein (SHELLEY, 2012), em 1817, misturando elementos góticos e românticos, aliados ao saber que ela tinha sobre a evolução da ciência. O best‑seller é narrado a partir de três pontos de vista e é envolto por uma teia complexa de eventos. Logo, torna‑se sucesso absoluto. A origem do monstro de Frankenstein remonta às histórias fantásticas alemãs que o casal Shelley costumava ler. Certa noite, o amigo Byron propõe que cada um escrevesse uma história sobrenatural. Mary diz ter sonhado com uma criatura fabricada com membros de cadáveres, a qual se tornaria a mais famosa personagem de terror, ao lado de Drácula, de Bram Stoker. Fato é que o romance – que trazia elementos góticos e científicos da época – passa a ser um enorme sucesso, convertido em várias versões fílmicas, afora as produções literárias nele baseadas. No livro, um jovem estudante de química e filosofia, natural de Ingolstadt, na Alemanha, consome‑se pelo desejo de descobrir o segredo da vida. Vários anos de pesquisa fazem com que ele se convença de tê‑lo descoberto. Victor Frankenstein fica obcecado pela ideia de construir um homem perfeito com partes de cadáveres. A experiência ganha vida e o resultado catastrófico aterroriza o Dr. Victor Frankenstein: ele havia criado um monstro! No decorrer das investigações sobre o assassinato de seu irmão, William, Victor reconhece o seu erro, até porque Justine, sua irmã adotiva, havia sido acusada e executada, injustamente, pelo crime. No encontro com sua criatura, Victor ouve a explanação do monstro que lhe pede ajuda: suas feridas, causadas pelo isolamento são imensas; apenas lhe pede uma companheira, ainda que tão grotesca como ele. Victor, pressionado, chega a criar outra versão macabra de ser‑humano e decide, após um momento de surto, destruí‑la. Mas a promessa descumprida lhe custa a vingança do monstro, justamente na hora em que Victor vai se casar. As consequências são drásticas. Frankenstein (SHELLEY, 2012) fala sobre a responsabilidade dos nossos atos, da ganância que habita o humano, sobre moralidade e sobre os sentimentos de dor, solidão, sofrimento, ódio e remorso. Contudo, a obra propõe, ainda que sutilmente, uma reflexão sobre o diálogo imaginário entre criador e criatura e seu pedido de ajuda face às agruras enfrentadas. 50 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Did I request thee,Maker, from my clay To mould me Man, did I solicit thee From darkness to promote me?9 (SHELLEY, 2005, p. 300). Essas linhas estão presentes como epígrafe e foram retiradas do romance de John Milton, Paradise Lost, quando Adão lamenta sua condição caída. O monstro percebe sua tragédia, comparando‑se a Adão e a Satanás, suplicando misericórdia. Como Adão, o monstro é negligenciado por seu criador e cai em desgraça. As frases sugerem também a revolta existencial do indivíduo sobre sua permanência no mundo, diante das provações cotidianas. A narrativa estrutura‑se com múltiplos narradores e, portanto, múltiplas perspectivas. Cabe ao leitor (re)construir significados ao compor, imaginariamente, a figura de Victor: seria ele um cientista louco clássico, transgredindo todos os limites, ou um estudioso ousado, buscando o progresso da humanidade? A seguir uma citação de Victor, no capítulo 3: So much has been done, exclaimed the soul of Frankenstein—more, far more, will I achieve; treading in the steps already marked, I will pioneer a new way, explore unknown powers, and unfold to the world the deepest mysteries of creation10 (SHELLEY, 2005, p. 329). O pensamento do cientista desvela tanto sua ambição desmedida, seu individualismo, típico da época em que foi escrito o romance, bem como a sua inexperiência em não poder antecipar as consequências de seus experimentos. Observação Você, caro aluno, está convidado a ler mais sobre Percy Shelley. De ideais libertários, o poeta torna‑se amigo de Lord Byron e casa‑se com Mary quando ela tinha apenas 16 anos. Mary Shelley era filha de William Goldwin e Mary Wollstonecraft (1759‑1797). Seu pai tinha propensões anarquistas e era contra mecanismos opressores; sua mãe era romancista e feminista e defendia, já naquela época, a igualdade de oportunidades e educação para homens e mulheres. 9 “Será que vos peço, ó Criador, da minha argila, tornar‑me Homem, (devo) solicitar a vós, promover‑me da escuridão?” (tradução nossa). 10 “Muito tem sido feito, exclamou a alma de Frankenstein, mais, muito mais, conseguirei; pisando os passos já marcados, eu descobrirei uma nova maneira, explorarei poderes desconhecidos e revelarei ao mundo os mais profundos mistérios da criação” (tradução nossa). 51 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA Mas ninguém melhor que Jane Austen (1775‑1817) para expor a vida privada das elites inglesas, em uma sociedade ainda rural. Sob a ótica feminina, temas como o casamento por conveniência e outras relações humanas, mediadas pelo interesse, perfazem sua obra. Bailes, visitas, chás, encontros e desencontros percorrem as narrativas de Austen, servindo de pretexto para as personagens femininas coadjuvantes realizarem o que seria o sonho de toda mulher: o tão planejado encontro com o pretendente ideal, quiçá futuro marido, preferivelmente, cheio de posses. A primeira romancista de grande importância passa a vida na província, solteira. De certa forma, esta condição é mister para que a autora escreva protagonistas com pulso forte, opondo‑se a um contexto de submissão, em que o destino parecia apenas apontar para o casamento. Jane questiona este fardo irreversível com heroínas de personalidade contundente e que vão querer arbitrar, elas mesmas, seu futuro. Se Austen, por um lado, é muitas vezes acusada de ter escrito uma literatura nada politicamente engajada, por outro, a autora aguça o faro, em relação às críticas que faz à sociedade da época, suas convenções rígidas, hostilidades e limitações. A autora de Razão e Sentimento (1811), Orgulho e Preconceito (1813), Mansfield Park (1814), Emma (1816), Northanger Abbey (1818) e Persuasão (1818) utiliza a ironia e a observação apurada como ferramentas para narrar: It is a truth universally acknowledged, that a single man in possession of a good fortune, must be in want of a wife11 (AUSTEN, 2008). A frase inicial do romance Pride and Prejudice (Orgulho e Preconceito) espelha o estilo irônico de Austen, entregando todo o enredo que se segue. As mulheres do século XIX firmavam suas identidades com o casamento e se tornavam subservientes a seus maridos. Era notório que os homens tivessem ciência do fato e que se aproveitassem disso, geralmente escolhendo as jovens mais bonitas e com o mais alto dote a oferecer como moeda de troca. A expressão in want of a wife denota a “necessidade” de se ter uma mulher/esposa, de sentir falta de uma e, contraditoriamente, pontua, em tom irônico, uma preocupação mais feminina do que masculina. A conduta pessoal valorada é a das moças que se casam por amor, ilustrando a moralidade burguesa da época, em que o casamento motivado pelo sentimento de amor passa a ser uma construção ideológica de extrema importância. 11 “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma boa fortuna, deve estar na falta de uma esposa” (tradução nossa). 52 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Saiba mais Embora escrevesse desde a adolescência, os livros de Jane Austen só foram publicados nos últimos anos de sua vida. Muitos deles tornaram‑se filmes, dentre eles Razão e Sensibilidade e Orgulho e Preconceito. ORGULHO e preconceito. Dir. Joe Wright. Inglaterra: Universal Pictures, 2005. 127 minutos. RAZÃO e sensibilidade. Dir. Ang Lee. Reino Unido, EUA: Columbia Pictures, 1996. 135 minutos. Figura 9 – Jane em um retrato do séc. XIX Não só o amor e suas convenções percorrem as veias dos romances vitorianos. Bigamia, ascensão social, violência em diversas esferas, cobiças, casamentos entre grupos raciais distintos, acordos escusos e as incertezas do século XIX configuravam o pano de fundo dos romances de três irmãs letradas que se tornaram famosas: as irmãs Brontë: Anne (1820‑1849), Charlotte (1816‑1855) e Emily (1818‑1848). Filhas de um pastor anglicano de Yorkshire, no norte da Inglaterra, afeiçoaram‑se à vida solitária e morreram jovens. Mas o legado das Brontë, que usavam pseudônimos masculinos, foi uma literatura questionadora do status quo. A saga de amor, ódio, encontros e desencontros, na chave do mistério da eternidade, constitui a trama de um dos maiores romances de literatura inglesa, O Morro dos Ventos Uivantes (1847). A força da paixão entre Heathcliff e Catherine supera os ditames sociais: But Mr. Heathcliff forms a singular contrast to his abode and style of living. He is a dark‑skinned gypsy in aspect, in dress and manners a gentleman, that is, as much a gentleman as many a country squire: rather slovenly, perhaps, yet not looking amiss with his negligence, because he has an erect 53 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA and handsome figure—and rather morose. Possibly, some people might suspect him of a degree of under‑bred pride; I have a sympathetic chord within that tells me it is nothing of the sort: I know, by instinct, his reserve springs from an aversion to showy displays of feeling—to manifestations of mutual kindliness. He’ll love and hate, equally under cover, and esteem it a species of impertinence to be loved or hated again—No, I’m running on too fast—I bestow my own attributes over‑liberally on him (Brontë, 1992, p. 3). Os diálogos enérgicos denotam a intensidade dessa paixão. A seguir, Catherine declara à Nelly, no capítulo IX, seu amor por Heathcliff. It would degrade me to marry Heathcliff now; so he shall never know how I love him; and that, not because he’s handsome, Nelly, but because he’s more myself than I am. Whatever our souls are made of, his and mine are the same (ibidem, p. 57). Os anos dourados do romance transcorrem durante o reinado da rainha Vitória, que começa em 1837 e se estende até 1901. Neste período, a Inglaterra expande seus territórios, transformando países em colônias ese firmando como o maior império do mundo. A riqueza que obtinha das colônias e a opulência da Corte contrastavam com a miséria e a exploração de grande parte dos trabalhadores das metrópoles industriais. É nesse período que Charles Dickens (1812‑1870) desponta como o escritor cuja principal preocupação eram as figuras marginais, em função das injustiças que sofriam, no cenário vitoriano da Revolução Industrial. Charles Dickens passa a escrever grandes narrativas em capítulos semanais, publicados em revistas literárias, que ao final são reunidos como livros. Ainda criança, o pai de Dickens é preso por dívidas e o menino tem de trabalhar em uma fábrica de graxa para sapatos. Muito provavelmente, essa experiência torna‑se o substrato para a criação de histórias sobre crianças, retratadas em condições desumanas. Aos 25 anos, escreve As Aventuras do Senhor Pickwick (1837), que o torna bastante popular. Praticamente todos os seus romances foram adaptados para as telas do cinema; dentre eles, o mais conhecido, Oliver Twist, publicado em fascículos entre 1837 e 1839. A trama, apesar de original, cede lugar à denúncia que Dickens faz das condições a que estavam submetidas as crianças da época. Seus livros mantêm um paralelo com o mundo em que vivemos em muitos lugares, ainda hoje, palcos de severa injustiça e desigualdade social. Em outros romances, a tônica que prevalece é a do fascínio, em contraposição ao temor que se sentia, face às inovações tecnológicas. Vejamos um trecho de Hard Times (Tempos Difíceis), capítulo 11, que ilustra o que dissemos anteriormente: It is known, to the force of a single pound weight, what the engine will do; but not all the calculators of the National debt can tell me the capacity 54 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II for good or evil, for love or hatred, for patriotism or discontent, for the decomposition of virtue into vice, or the reverse, at any single moment in the soul of one of these quiet servants, with the composed faces and the regulated actions (DICKENS, 1992, p. 123). Dickens apresenta o consumismo supérfluo, incentivado pelas facilidades do maquinário, em oposição aos sentimentos como amor e solidariedade. Saiba mais A produção de Roman Polanski, lançada em 2005, irá contar a narrativa do menino órfão que sofre com a fome e o trabalho escravo. Vendido como coveiro, Oliver Twist vai se relacionar com pessoas das camadas mais baixas da sociedade em bairros miseráveis de Londres, onde aprenderá a sobreviver. OLIVER Twist. Dir. Roman Polanski. França; Reino Unido; Itália, República Tcheca: Tristar Pictures, 2005. 130 minutos. Você, caro leitor, já deve ter ouvido falar sobre Um Conto de Natal (1843), outro romance de Dickens. Nele, o espírito natalino contrasta com a ganância de um homem que terá uma segunda chance para retomar sua vida. Aqui, a miséria cede lugar à preocupação que Dickens tinha no que tangia ao desenvolvimento exacerbado e como isso afetava aqueles que se beneficiavam dos abusos sociais na era da industrialização. DICKENS, C. Um conto de Natal. Tradução de Beatriz Viégas‑Faria et al. São Paulo: L&PM Pocket, 2003. Figura 10 – Dickens 55 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 A LITERATURA CANÔNICA DA LÍNGUA INGLESA O século vitoriano também foi pano de fundo para a iminência de outros escritores como Oscar Wilde, Joseph Conrad, Lewis Caroll e Robert Louis Stevenson, que pontuaram as contradições de um império violento dentro e fora de casa. Em outras palavras, o império da aristocracia contrapunha‑se àquele que relegava multidões à miséria das ruas e ao sofrimento imposto aos colonizados. Vimos como o Romantismo tinge seu legado com o resplendor dos bailes e a opulência do dinheiro que fluía, ao mesmo tempo que lançava luz sobre as questões sociais e filosóficas de uma era de mudanças efervescentes. Qualquer que seja a tradição literária, haverá a busca de sentido de um tempo. As narrativas canônicas abrigam os valores, a moralidade, o sistema de crenças e as narrativas de um povo, em um período específico da história. 2.2.4 A tradição da prosa norte‑americana A tradição da literatura norte‑americana se inicia com as lendas, mitos, crenças, histórias e canções das culturas indígenas pré‑colombianas, transmitidas oralmente. Em geral, as tribos reverenciavam a natureza e a cultuavam como mãe espiritual e física. Os principais personagens eram animais ou plantas. Muitas palavras, inclusive, foram incorporadas à língua inglesa, oriundas da tradição oral indígena, a saber: canoe (canoa), tobacco (tabaco), potato (batata), moccasin (mocassim) etc. Em seguida, têm‑se os registros dos povos que invadiram os Estados Unidos e daqueles que tentaram colonizá‑lo. Este tipo de literatura é chamado de literatura de exploração. O primeiro registro ocorre, em decorrência da invasão escandinava, na costa nordeste dos Estados Unidos e do Canadá, na primeira década do século XI. Depois, vieram os relatos de viagem dos espanhóis, no comando de Cristóvão Colombo, e, finalmente, dos ingleses. Os puritanos que chegaram no navio Mayflower manifestavam nas letras de diários caseiros, poesias, de cunho religioso e histórico, a esperança de encontrar a nova Canaã. Contudo, a literatura americana só se consolida quando se desprende das características estruturais da literatura do Império, ou seja, da Inglaterra. E este processo de assumir uma nova forma de narrar suas histórias acontece a partir da independência dos Estados Unidos da América, em 1776. A literatura americana vem, portanto, na esteira do sentimento nacionalista. Assim como na Inglaterra, o iluminismo americano produziu obras que veiculavam a ideia de igualdade, liberdade, fraternidade e justiça, alicerçadas na crença sobre a predestinação e sobre o excepcionalismo estadunidense, a saber: A predestinação era uma ideia forte entre eles. Para manter sua identidade e a coesão do grupo, os puritanos exerceram um controle muito grande sobre todas as atividades dos indivíduos. A ideia de uma moral coletiva onde o erro de um indivíduo pode comprometer o grupo é também um diálogo com a concepção da moral hebraica no deserto. O pacto Deus‑povo é com todos os eleitos (KARNAL, 2007, p. 47). 56 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 9/ 05 /1 5 Unidade II Pelo percurso histórico que fizemos, identificamos eixos importantes para entender uma sociedade que, em grande parte, acreditou‑se guiada por Deus e eleita para um destino especial. Em nome dessa eleição, indivíduos tiveram sua conduta moldada e nações perderam territórios: era “o destino manifesto pela Divina Providência”. O discurso religioso de eleição, também utilizado por muitos outros povos no passado, foi somado a uma reflexão iluminista que serviu de guia para a independência pioneira dos Estados Unidos da América (KARNAL, 2007, p. 278). Observação Os escritos politicamente engajados em nome dos ideais libertários estão, em grande parte, em formato panfletário como The American Crisis e Common Sense, de Thomas Paine (1735‑1813). Figura 11 – Thomas Paine Literatura americana, política e história parecem caminhar juntas – o que não significa dizer que estivessem sempre em concordância, mas é certo que os escritores pioneiros contribuíram para a fixação de uma tradição literária nacional. Porém, quando a nação americana se torna, ela mesma, um império, os escritores não perdem a oportunidade de criticá‑la com destreza e determinação. A liberdade de expressão, enquanto ideal a ser preservado, acaba pincelando a literatura americana com contornos bem precisos. 2.2.4.1 O período romântico (1820‑1860) O Romantismo americano coincidiu com a expansão nacional e entoou sua voz única, carregada de idealismo. Os românticos salientavam a importância da arte e colocavam o individualismo como premissa maior.
Compartilhar