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1 Pentateuco 2 Pentateuco IBETEL Site: www.ibetel.com.br E-mail: ibetel@ibetel.com.br Telefax: (11) 4743.1964 - Fone: (11) 4743.1826 R. Gal. Fco. Glicério, 1412 – Centro – Suzano/SP – Cep 08674-002 3 Pentateuco (Org.) Profº. Pr. VICENTE PAULA LEITE Pentateuco 4 Apresentação Estávamos em um culto de doutrina, numa sexta-feira destas quentes do verão daqui de São Paulo e a congregação lotada até pelos corredores externos. Ouvíamos atentamente o ensino doutrinário ministrado pelo Pastor Vicente Paula Leite, quando do céu me veio uma mensagem profética e o Espírito me disse “fale com o pastor Vicente no final do culto”. Falei: - Jesus te chama para uma grande obra de ensino teológico para revolucionar a apresentação e metodologia empregada no desenvolvimento da Educação Cristã. Hoje com imensurável alegria, vejo esta profecia cumprida e o IBETEL transbordando como uma fonte que aciona apressuradamente com eficácia o processo da educação teológico-cristã. A experiência acumulada do IBETEL nessa década de ensino teológico transforma hoje suas apostilas, produtos de intensas pesquisas e eloqüente redação, em noites não dormidas, em livros didáticos da literatura cristã com uma preciosíssima contribuição ao pensamento cristão hodierno e aplicação didática produtiva. Esta correção didática usando uma metodologia eficaz que aponta as veredas que leva ao único caminho, a saber, o SENHOR e Salvador Jesus Cristo, chega as nossas mãos com os aromas do nardo, da mirra, dos aloés, da qual você pode fazer uso de irrefutável valor pedagógico- prático para a revolução proposta na gênese de todo trabalho. E com certeza debaixo das mãos poderosas do SENHOR ser um motor propulsor permanentemente do mandamento bíblico: “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor...”. Por certo esta semente frutificará na terra boa do seu coração para alcançar preciosas almas compradas pelo Senhor Jesus. Dr. Messias José da Silva In memorian 5 Pentateuco Prefácio Este Livro do Pentateuco, parte de uma série que compõe a grade curricular do curso em Teologia do IBETEL, se propõe a ser um instrumento de pesquisa e estudo. Embora de forma concisa, objetiva fornecer informações introdutórias acerca dos seguintes pontos: Pentateuco; Livro de Gênesis; Livro de Êxodo; Livro de Levítico; Livro de Números e Livro de Deuteronômio. Esta obra teológica destina-se a pastores, evangelistas, pregadores, professores da escola bíblica dominical, obreiros, cristãos em geral e aos alunos do Curso em Teologia do IBETEL, podendo, outrossim, ser utilizado com grande préstimo por pessoas interessadas numa introdução ao Pentateuco. Finalmente, exprimo meu reconhecimento e gratidão aos professores que participaram de minha formação, que me expuseram a teologia bíblica enquanto discípulo e aos meus alunos que contribuíram estimulando debates e pesquisas. Não posso deixar de agradecer também àqueles que executaram serviços de digitação e tarefas congêneres, colaborando, assim, para a concretização desta obra. Profº. Pr. Vicente Leite Diretor Presidente IBETEL 6 Declaração de fé O que é doutrina? À luz da Bíblia, doutrina é o ensino bíblico normativo, terminante, final, derivado das Sagradas Escrituras, como regra de fé e prática de vida, para a igreja, para seus membros. Ela é vista na Bíblia como expressão prática na vida do crente. As doutrinas da Palavra de Deus são santas, divinas, universais e imutáveis. A palavra "doutrina" vem do latim doctrina, que significa "ensino" ou "instrução”, e se refere às crenças de um grupo particular de crentes ou mesmo de partidários. O Velho Testamento usa a palavra leqach, que vem do verbo laqach, "receber". O sentido primário é "o recebido". Aparece com o sentido de "doutrina" ou "ensinamento", como lemos "Goteje a minha doutrina como a chuva" (Dt 32.2); "A minha doutrina épura" (Jó 11.4); "Pois vos dou boa doutrina; não deixeis a minha lei" (Pv 4.2). Com o passar do tempo a palavra veio significar o ensino de Moisés que se encontra no Pentateuco. As palavras gregas para "doutrina", no Novo Testamento, são didaque e didaskalia, que significam "ensino". Essas palavras transmitem a idéia tanto do ato de ensinar como da substância do ensino. A primeira aparece para indicar os ensinos gerais de Jesus: "E aconteceu que, concluindo Jesus este discurso, a multidão se admirou da sua doutrina" (Mt 7.28). "Jesus respondeu e disse-lhes: A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é de Deus ou se eu falo de mim mesmo” (Jo 7.16,17). A mesma palavra aparece para "doutrina dos apóstolos" (At 2.42), que parece ser uma indicação das crenças dos apóstolos. A segunda tem o mesmo sentido e aparece em Mateus 15.9 e Marcos 7.7. É, portanto, nas epístolas pastorais que elas aparecem com o sentido mais rígido de crenças ou corpo doutrinal da igreja - a Teologia propriamente dita. O que é Credo? Credo vem do latim e significa "creio", e desde muito cedo na história do Cristianismo é mais que um conjunto de crenças. É uma confissão de fé. Ele tem como objetivo sintetizar as doutrinas essenciais do cristianismo para facilitar as confissões públicas, conservar a doutrina contra as heresias e manter a unidade doutrinária. Encontramos no Novo Testamento algumas declarações rudimentares de confissões fé: A confissão de Natanael (Jo 1.50); a confissão de Pedro (Mt 16.16; Jo 6.68); a confissão de Tomé (Jo 20.28); a confissão do Eunuco (At 8.37); e artigos elementares de fé (Hb 6.1- 2). 7 Pentateuco O IBETEL crê: O IBETEL professa fé pentecostal alicerçada fundamentalmente no que se segue: Cremos em um só Deus eternamente subsistente em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Dt 6.4; Mt 28.19; Mc 12.29). Na inspiração verbal da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé normativa para a vida e o caráter cristão (2Tm 3.14-17). No nascimento virginal de Jesus, em sua morte vicária e expiatória, em sua ressurreição corporal dentre os mortos e sua ascensão vitoriosa aos céus (Is 7.14; Rm 8.34; At 1.9). Na pecaminosidade do homem que o destituiu da glória de Deus, e que somente o arrependimento e a fé na obra expiatória e redentora de Jesus Cristo é que o pode restaurar a Deus (Rm 3.23; At 3.19). Na necessidade absoluta no novo nascimento pela fé em Cristo e pelo poder atuante do Espírito Santo e da Palavra de Deus, para tornar o homem digno do reino dos céus (Jo 3.3-8). No perdão dos pecados, na salvação presente e perfeita e na eterna justificação da alma recebidos gratuitamente na fé no sacrifício efetuado por Jesus Cristo em nosso favor (At 10.43; Rm 10.13; 3.24-26; Hb 7.25; 5.9). No batismo bíblico efetuado por imersão do corpo inteiro uma só vez em águas, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, conforme determinou o Senhor Jesus Cristo (Mt 28.19; Rm 6.1-6; Cl 2.12). Na necessidade e na possibilidade que temos de viver vida santa mediante a obra expiatória e redentora de Jesus no Calvário, através do poder regenerador, inspirador e santificador do Espírito Santo, que nos capacita a viver como fiéis testemunhas do poder de Jesus Cristo (Hb 9.14; 1Pe 1.15). No batismo bíblico com o Espírito Santo que nos é dado por Deus mediante a intercessão de Cristo, com a evidência inicial de falar em outras línguas, conforme a sua vontade (At 1.5; 2.4; 10.44-46; 19.1-7). Na atualidade dos dons espirituais distribuídos pelo Espírito Santo à Igreja para sua edificação conforme a sua soberana vontade (1Co 12.1-12). 8 Na segunda vinda premilenar de Cristo em duas fases distintas. Primeira - invisível ao mundo, para arrebatar a sua Igreja fiel da terra, antes da grande tribulação; Segunda- visível e corporal, com sua Igreja glorificada, para reinar sobre o mundo durante mil anos (1Ts 4.16.17; 1Co 15.51-54; Ap 20.4; Zc 14.5; Jd 14). Que todos os cristãos comparecerão ante ao tribunal de Cristo para receber a recompensa dos seus feitos em favor da causa de Cristo, na terra (2Co 5.10). No juízo vindouro que recompensará os fiéis e condenará os infiéis, (Ap 20.11-15). E na vida eterna de gozo e felicidade para os fiéis e de tristeza e tormento eterno para os infiéis (Mt 25.46). 9 Pentateuco Sumário Apresentação Prefácio Declaração de fé CAPÍTULO 1 Pentateuco 1.1. Introdução ao Estudo da Bíblia 1.2. Introdução ao Estudo do Pentateuco 1.2.1. O termo 1.2.2. Autoria 1.2.3. Teoria documentária da Alta Crítica 1.2.4. Ambiente do mundo bíblico CAPÍTULO 2 Livro de Gênesis 2.1. O título do livro 2.2. A autoria 2.3. Data e ocasião 2.4. Dificuldades de interpretação 2.5. Características e temas 2.6. Estudos no Livro de Gênesis 2.6.1. A Criação 2.6.2. A Imagem de Deus 2.6.3. A Queda (Gn 3.6) 2.6.4. O Dilúvio 2.6.5. A raça humana começa novamente 2.6.6. A torre de Babel 2.6.7. A aliança da Graça de Deus 2.6.8. O concerto de Deus com Abraão, Isaque e Jacó CAPÍTULO 3 Livro de Êxodo 3.1. Autor 3.2. Data e ocasião 3.3. Dificuldades de interpretação 3.4. Características e temas 3.5. Estudos no livro de Êxodo 3.5.1. “Sou o que Sou”: A auto-revelação de Deus (Êx 3.15) 3.5.2. A Páscoa 3.5.3. A Lei do Antigo Testamento (Êx 20.1, 2) 3.5.4. Os Dez Mandamentos (20.1, 2) 3.5.5. O Tabernáculo e suas peças 3.5.6. O Sumo Sacerdote e sua Indumentária 10 CAPÍTULO 4 Livro de Levítico 4.1. O título e destinatário do livro 4.2. Autoria do livro 4.3. Lugar e ocasião 4.4. Características e temas 4.5. Estudos no livro de Levítico 4.5.1. A Presença Divina 4.5.2. Santidade 4.5.3. Expiação através do Sacrifício 4.5.4. O Dia da Expiação 4.6. Os Sacrifícios Levíticos 4.6.1. Ofertas 4.6.2. Holocausto 4.6.3. Oferta de manjares 4.6.4. Sacrifício pacífico 4.6.5. Por expiação do pecado 4.6.6. A oferta pela culpa 4.6.7. As festas solenes ao Senhor (Cap. 16, 23 e 25) CAPÍTULO 5 Livro de Números 5.1. Data e Momento do Livro 5.2. A autoria do livro 5.3. Características principais de Números 5.4. Números e seu cumprimento no Novo Testamento 5.5. Tipos de ilustração de Jesus 5.5.1. O Nazireu 5.5.2. A Fita Azul 5.5.3. A Vara Florescente de Arão 5.5.4. A Novilha Vermelha 5.5.5. As Serpentes Abrasadoras 5.5.6. As Cidades de Refúgio 5.6. Estudos no Livro de Números 5.6.1. O recenseamento militar (1.1-54) 5.7. A Lei dos ciúmes do marido contra sua mulher (5.11-31) 5.7.1. A causa dos ciúmes (5.11-15) 5.7.2. Provas do crime (5.16-31) 5.8. O Voto dos Nazireus (6.1-21) 5.8.1. Condições para o Voto do Nazireu (6.1-8) 5.8.2. Penas destinadas às infrações involuntárias (6.9-12) 5.8.3. Como finda o voto do Nazireu (6.13-21) 5.9. A Coluna de Nuvem e de Fogo (9.15-23) 5.10. A Revolta de Coré, Datã e Abirã (16.1-50) 5.11. Balaão (Cap. 22-25) 5.11.1. Balaão vacila (Cap. 22) 5.11.2. As profecias de Balaão (Cap. 23 e 24) 11 Pentateuco 5.11.3. O ensino de Balaão (Cap. 25) 5.11.4. Lições práticas CAPÍTULO 6 Livro de Deuteronômio 6.1. Título e fundo histórico 6.2. Data e ocasião 6.3. Autoria do livro 6.4. Propósito 6.5. Características e temas 6.6. Importância de Deuteronômio 6.7. Quatro fatos principais caracterizam Deuteronômio 6.8. O livro de Deuteronômio e seu cumprimento no Novo Testamento 6.9. Estudos no livro de Deuteronômio 6.9.1. O concerto de Deus com os Israelitas 6.9.2. O concerto renovado nas planícies de Moabe 6.9.3. Os três propósitos da Lei (Dt 13.10) 6.9.4. Profetas (Dt 18.18) 6.9.5. Deuteronômio Demônios (Dt 32.17) 6.9.6. Shemá e a Trindade 6.9.7. Os Dízimos (14.22-29) 6.9.8. Cidades de Refúgio (19.1-13) 6.9.9. A despedida de Moisés (32.44-33.29) Referências 12 Capítulo 1 Pentateuco 1.1. Introdução ao Estudo da Bíblia A prova concludente do amor divino encontra-se no fato de que Deus se revelou ao homem, e esta revelação ficou registrada na Bíblia. Nascida no Oriente e revestida da linguagem, do simbolismo e das formas de pensar tipicamente orientais, a Bíblia tem, não obstante, uma mensagem para a humanidade toda, qualquer que seja a raça, cultura ou capacidade da pessoa. Contrasta com os livros de outras religiões porque não narra uma manifestação divina de um só homem, mas uma revelação progressiva arraigada na longa história de um povo. Deus revelou-se em determinados momentos da história humana. Diz C. O. Gillis: “Não se pode entender a verdadeira religião... sem entender-se o fundo histórico por via do qual nos chegaram estas verdades espirituais”. A Bíblia é uma biblioteca de 66 livros escritos por 40 autores num período de 1500 anos; não obstante, nela se desenvolve um único tema que une todas as partes, a redenção do homem. O Antigo Testamento foi escrito na maior parte em hebraico (algumas passagens curtas em aramaico). Aproximadamente 100 anos antes da era cristã todo a Antigo Testamento foi traduzido para o grego. O Novo Testamento foi escrito na língua grega. Nossa Bíblia é uma tradução dessas línguas originais. A palavra “Bíblia” vem da palavra grega “biblios”. A palavra “Testamento” quer dizer “aliança” ou pacto. O Antigo Testamento é a aliança que Deus fez com o homem quanto à sua salvação, antes de Cristo vir. No Antigo Testamento encontramos a aliança da lei. No Novo Testamento encontramos a aliança da graça que veio por Jesus Cristo. Uma conduzia à outra (Gl 3.17- 25). O Antigo Testamento começa o que o Novo completa. O Antigo se reúne ao redor do Sinai. O Novo ao redor do Calvário. O Antigo está associado com Moisés. O Novo com Cristo (Jo 1.17). Os autores foram reis e príncipes, poetas e filósofos, profetas e estadistas. Alguns eram instruídos em todo o conhecimento da sua época e outros eram pescadores sem cultura. Alguns livros logo se tornam antiquados, mas este Livro atravessa os séculos. 13 Pentateuco 1.2. Introdução ao Estudo do Pentateuco 1.2.1. O termo O Termo Pentateuco é a denominação mais comum para descrever os primeiros cinco livros da Bíblia. Deriva do grego pente (cinco) e teuchos (rolo) e, dessa forma, descreve o número desses escritos, não o seu conteúdo. Pentateuco é um modo adequado de identificar esses livros. Em virtude dos mais de dois mil anos de uso, ele está profundamente enraizado na tradição cristã. Entretanto, um termo mais preciso e informativo é Torá (hebraico torah). Esse nome baseia-se no verbo yarah, ensinar. Torá é, portanto, ensino. Uma atenção cuidadosa a esse fato levará à apreciação do conteúdo do Pentateuco, bem como do seu propósito fundamental: instruir o povo de Deus acerca do próprio Deus, do povo e dos propósitos divinos concernentes ao povo. A enorme quantidade de material legal no Pentateuco (metade de Êxodo, a maior parte de Levítico, grande parte de Números e praticamente todo o Deuteronômio) levou à designação comum Lei ou Livros da Lei. Essa maneira de ver o Pentateuco desfrutava a sanção do uso que se fazia dele no antigo mundo judaico, e mesmo no Novo Testamento não é de todo sem razão. Entretanto, estudos recentes têm mostrado de modo conclusivo que o Pentateuco é essencialmente um manual de instrução (daí torah) cujo propósito era guiar Israel, o povo da aliança, na peregrinação diante de seu Deus. Por exemplo, Gênesis, embora contenha poucas leis, ainda assim instrui o povo de Deus mediante suas narrativas da história primeva e dos patriarcas. A lei formava“a constituição e os regulamentos” da nação escolhida. Torá é, portanto, a denominação mais adequada para descrever todo o conteúdo e o propósito dessa parte mais antiga da Bíblia. 1.2.2. Autoria Até o iluminismo do século XVIII, havia consenso entre as tradições judaica e cristã de que o testemunho do Pentateuco revelava Moisés como seu autor. Tanto o Antigo (Dt 1.5; 4.44; 31.9; 33.4; Js 8.31-34; 1Rs 2.3; 2Rs 14.6; 23.25; 2Cr 23.18; Ed 3.2; Ne 8.1; Ml 4.4) como o Novo Testamento (Lc 2.22; 24.44; Jo 1.17; 7.19; At 13.39;28.23; 1Co 9.9; Hb 10.28) sustentam a tradição da autoria mosaica. Alguns intérpretes, antes do Iluminismo, levantaram questões incidentes sobre discrepâncias cronológicas. Observaram, por exemplo, a referência aos reis de Israel em Gênesis 36.31, a referência de Moisés a si mesmo como varão “mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra (Nm 12.3), e o relato que ele fez de sua própria morte (Dt 34.5-12). Tais referências, porém, podem ser explicadas ou como resultado da revelação divina sobre o futuro ou mais provavelmente como 14 exemplos de acréscimos posteriores ao texto. Aqueles que aceitam Moisés como personagem histórica, cuja vida e experiência são evidenciadas pelas Escrituras (Êx 2.10-11; Hb 11.23-24) devem admitir a possibilidade genuína de ele ser o autor dos escritos que tradicionalmente levam seu nome”. Muitos estudiosos declaram positivamente as contribuições significativas de Moisés para a formação do Pentateuco, mas sustentam que a forma final desses livros evidencia algum trabalho de edição posterior à época de Moisés. Esses críticos de modo algum negam a inspiração divina do Pentateuco ou a contabilidade de sua história. Antes, afirmam que após a morte de Moisés Deus continuou a estimular o povo da fé de modo que este desenvolvesse com cuidado as verdades ensinadas por Moisés. Entre os indícios de que os relatos foram recontados após a morte de Moisés encontram-se Deuteronômio 34, em especial 34.10-12, que parece refletir uma longa história de experiência com profetas que não conseguiram se igualar a Moisés. Outros indícios são as notas históricas que parecem refletir uma época posterior à conquista da terra dos cananeus por Israel (Gn 12.6; 13.7) e identificam nomes de lugares que aparentemente foram atualizados para os que eram usados depois da morte de Moisés (compare Gn 14.14 com Js 19.47 e Jz 18.29). 1.2.3. Teoria documentária da Alta Crítica Há dois séculos, eruditos de tendência racionalista puseram em dúvida a paternidade mosaica do Pentateuco. Criaram a Teoria Documentária da Alta Crítica, segundo a qual os primeiros cinco livros da Bíblia são uma compilação de documentos redigidos, em sua maior parte, no período de Esdras (444 a.C.) No entender desses autores, o documento mais antigo que se encontra no Pentateuco data do tempo de Salomão. Julgam que o Deuteronômio é uma “fraude piedosa” escrita pelos sacerdotes no reinado de Josias tendo em mira promover um avivamento; que o Gênesis consiste, mormente em lendas nacionais de Israel. Muitos estudiosos conservadores acham provável que Moisés, ao escrever o livro do Gênesis, tenha empregado genealogias e tradições escritas (Moisés menciona especificamente “o livro das gerações de Adão”, em Gênesis 5.1). William Ross observa que o tom pessoal que encontramos na oração de Abraão a favor de Sodoma, no relato do sacrifício de Isaque, e nas palavras de José ao dar-se a conhecer a seus irmãos “é precisamente o que esperaríamos, se o livro de Moisés fosse baseado em notas biográficas anteriores”. Provavelmente, essas valiosas memórias foram transmitidas de uma geração para outra desde tempos muito remotos. Não nos causa estranheza que Deus possa ter guiado Moisés a incorporar tais documentos em seus escritos. Seriam igualmente inspirados e autênticos. 15 Pentateuco Também é notável haver alguns acréscimos e retoques insignificantes de palavras arcaicas, feitos à obra original de Moisés. É universalmente reconhecido que o relato da morte de Moisés (Dt 34) foi escrito por outra pessoa (o Talmude, livro dos rabinos, o atribui a Josué). Gênesis 36.31 indica que havia rei em Israel, algo que não existia na época de Moisés. Em Gênesis 14.14 dá-se o nome “Dã” à antiga cidade de “Laís”, nome que lhe foi dado depois da conquista. Pode-se atribuir isto a notas esclarecedoras, ou a mudanças de nomes geográficos arcaicos, introduzidos para tornar mais claro o relato. Provavelmente foram agregados pelos copistas das Escrituras, ou por algum personagem (como o profeta Samuel). Não obstante, estes retoques não seriam de grande importância nem afetariam a integridade do texto. Assim, pois, são contundentes tanto as evidências internas como a externa de que Moisés escreveu o Pentateuco. Muitos trechos contêm frases, nomes e costumes do Egito, indicativos de que o autor tinha conhecimento pessoal de sua cultura e de sua geografia, algo que dificilmente teria outro escritor em Canaã, vários séculos depois de Moisés. Por exemplo, consideremos os nomes egípcios: Potifar (dom do deus do sol, Ra), Zafnate- Paneá (Deus fala; ele vive), Asenate (pertencente à deusa Neit) e On, antigo nome de Heliópolis (Gn 37.36; 41.45, 50). Notemos, também, que o autor menciona até os vasos de madeira e os de pedra que os egípcios usavam para guardar a água que tiravam do rio Nilo. O célebre arqueólogo W. F. Albright diz que no Êxodo se encontram em forma correta tantos detalhes arcaicos que seria insustentável atribuí-los a invenções posteriores. Também, pelas referências feitas com relação a certos materiais do tabernáculo, deduzimos que o autor conhecia a península do Sinai. Por exemplo, as peles de texugos se referem, segundo certos eruditos, às peles de um animal da região do mar Vermelho; a “onicha”, usada como ingrediente do incenso (Êx 30.34) era da concha de um caracol da mesma região. Evidentemente, as passagens foram escritas por alguém que conhecia a rota da peregrinação de Israel e não por um escritor no cativeiro babilônico, ou na restauração, séculos depois. Do mesmo modo, os conservadores mostram que o Deuteronômio foi escrito no período de Moisés. O ponto de referência do autor do livro é o de uma pessoa que ainda não entrou em Canaã. A forma em que está escrito é a dos tratados entre os senhores e seus vassalos do Oriente Médio no segundo milênio antes de Cristo. Por isso, estranhamos que a Alta Crítica tenha dado como data destes livros setecentos ou mil anos depois. A Arqueologia também confirma que muitos dos acontecimentos do livro do Gênesis são realmente históricos. Por exemplo, os pormenores da tomada de Sodoma, descrita no capítulo 14 do livro de Gênesis, coincidem com assombrosa exatidão com o que os arqueólogos descobriram. (Nisto se 16 incluem: os nomes, movimento dos povos, e a rota que os invasores tomaram chamada “caminho real”. Depois do ano 1200 a.C., a condição da região mudou radicalmente, e essa rota de caravanas deixou de ser utilizada). O arqueólogo Albright declarou que alguns dos detalhes do capítulo 14 nos levam de volta à Idade do Bronze (período médio, entre 2100 e 1560 a.C.). Não é muito provável que um escritor que vivesse séculos. Além do mais, nas ruínas de Mari (sobre o rio Eufrates) e de Nuzu (sobre um afluente do rio Tigre) foram encontradas tábuas de argila da época dos patriarcas. Nelas se descrevem leis e costumes, tais como as que permitiam que o homem sem filhos dessa sua herança a um escravo (Gênesis 15.3), e uma mulher estéril entregasse sua criada a seu marido para suscitar descendência (Gênesis 16.2). Do mesmo modo, as tábuas contêm nomes equivalentes ou semelhantes aos de Abraão, Naor (Nacor), Benjamim e muitos outros. Por isso, tais provas refutam a teoria da Alta Crítica de que o livro do Gênesis é uma coletânea de mitos e lendas do primeiro milênio antes de Cristo. A Arqueologia demonstra cada vez maisque o Pentateuco apresenta detalhes históricos exatos, e que foi escrito na época de Moisés. Há razão ainda para se duvidar de que o grande líder do êxodo foi seu autor? 1.2.4. Ambiente do mundo bíblico Quando Abraão chegou à Palestina, esta já era uma ponte importante entre os centros culturais e políticos daquela época. Ao norte achava-se o império hitita; ao sudoeste, o Egito; ao oriente e ao sul, Babilônia; e ao nordeste o império assírio. Ou seja, que os israelitas estavam localizados em um ponto estratégico e não isolado geograficamente das grandes civilizações. A maioria dos historiadores acha que a planície de Sinar, situada entre os rios Eufrates e Tigre, foi o berço da primeira civilização importante, chamada Suméria. No ano 2800 haviam edificado cidades florescentes e haviam organizado o governo em cidades-estados; também haviam utilizado metais e tinham aperfeiçoado um sistema de escrita chamada cuneiforme. Quase ao mesmo tempo, desenvolvia-se no Egito uma civilização brilhante. É provável que quando Abraão se dirigiu para o Egito, tenha visto pirâmides que contavam mais de 500 anos. A região onde se desenvolveu a primeira civilização é chamada “fértil crescente” (pela forma do território que abrange). Estende-se de forma semicircular entre o Golfo Pérsico e o mar Mediterrâneo, até ao sul da Palestina. O território é regado constantemente por chuvas e rios caudalosos, como o Eufrates, o Tigre, o Nilo e o Orontes, o que possibilita uma agricultura produtiva. No interior desta região está o deserto da Arábia, onde há escassas chuvas e pouca população. Ali, no fértil crescente, surgiram os 17 Pentateuco grandes impérios dos amorreus, dos babilônios, dos assírios e dos persas. O mais importante para nós, todavia, é que ali habitou o povo escolhido de Deus e ali nasceu o Homem que seria o Salvador do mundo. Toda a região compreendida entre os rios Eufrates e Tigre chama-se Mesopotâmia (meso: entre; potamos: rio). No princípio denominava-se “Caldéia” à planície de Sinar, desde a cidade de Babilônia, ao sul, até ao Golfo Pérsico; mas posteriormente o termo “Caldéia” passou a designar toda a região da Mesopotâmia (a mesma área chamava-se também Babilônia). Abrangia muito do território do atual Iraque, e era provavelmente o local da torre de Babel. O território da Palestina é relativamente pequeno. Desde Dã até Berseba, pontos extremos no norte e no sul, respectivamente, há uma distância de apenas 250 quilômetros. O território tem desde o mar Mediterrâneo até ao mar Morto, 90 quilômetros de largura; e o lago de Genesaré (mar da Galiléia) dista aproximadamente 50 quilômetros do mar Mediterrâneo. A área total de Canaã equivale, em tamanho a sétima parte do Uruguai ou a um terço do Panamá. Contudo, nesta porção tão pequena do globo terrestre, Deus revelou-se ao povo israelita, e ali o Verbo eterno habitou entre os homens e realizou a redenção da raça humana. 18 Capítulo 2 Livro de Gênesis Uma introdução ao livro do Gênesis, teria de ser muito extensa e, neste caso, abranger a maior parte das questões relativas à origem e ao autor, ou então demasiadamente concisa de forma a deixar a crítica dos principais pontos ao lugar que lhe compete no respectivo texto. Portanto, optamos em dizer neste intróito, apenas que, as primeiras palavras do Gênesis, que tratam da Cosmogonia, são plenas de solene majestade. Sem adornos nem fantasias inúteis, impressionam justamente por isto. Somente Deus existia naquele tempo, com a sua Onipotência e a sua vontade de criar o mundo. Este conceito tão elevado da realidade e do pensamento humano está expresso de maneira simples e sem nenhum esclarecimento sobre o feito maravilhoso da Criação. 2.1. O título do livro O título “Gênesis”, como aparece em nossas Bíblias, é a tradução em grego, do referido título em hebraico. O título em hebraico deriva da primeira palavra do livro: bereshith (“no princípio”), e significa “origem, fonte, criação, ou começo dalguma coisa”. Gênesis, portanto, é “o livro dos começos”. Caracteriza perfeitamente o conteúdo do livro, ou seja, o princípio do universo, o princípio do homem, o princípio do pecado, o princípio da salvação, o princípio do povo hebraico, e bem assim o princípio de muitos outros acontecimentos e fenômenos ocorridos na história do mundo. 2.2. A autoria Ainda que não é opinião geral atribuir-se o livro a Moisés, esta é a nossa posição. Mesmo porque não foi ainda apresentada qualquer outra teoria bem fundada que nos levasse a pensar o contrário. Não quer isto dizer, no entanto, que Moisés não se tenha servido de fontes de qualquer espécie para a elaboração da sua obra. Uma possível indicação de Moisés ter utilizado registros históricos existentes ao escrever Gênesis, é a repetida expressão através do livro: “estas são as gerações de” (hb. e’lleh toledoth), que também admite a tradução: “estas são as histórias por” (ver 2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10, 27; 25.12, 19; 36.1, 9; 37.2). Portanto, ninguém pode dizer com certeza que esta frase constitua um subtítulo que indique a fonte da qual a informação foi derivada, embora seja de admitir, com reservas, naturalmente, que Moisés 19 Pentateuco teve presente essas fontes, talvez gravadas em tábuas de barro, e procedentes de Noé, Sem, Terá e outros. Mera possibilidade é certa, mas admissível. Não podemos excluir Gênesis do testemunho do Novo Testamento que afirma ser Moisés (século XV a.C.) o autor do Pentateuco. Mais especificamente, nosso Senhor disse “pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão” (Jo 7.22; At 15.1), a qual é mencionada somente em Gn 17. Não surpreende que o fundador da teocracia de Israel tenha lançado este fundamento magistral da lei. A narrativa histórica de Gênesis estabeleceu os fundamentos teológicos e éticos da Torá: o relacionamento ímpar de Israel com Deus mediante a aliança (Dt 9.5) e as suas leis singulares (a lei do sábado). Além do mais, desde que os mitos da criação são básicos nas religiões pagãs, é natural que Moisés tivesse incluído um relato da criação em oposição aos mitos pagãos. Este relato constitui-se, ainda, em alicerce para a lei mediada por Moisés. Embora o autor de Gênesis não seja mencionado em nenhuma parte do livro, o testemunho do restante da Bíblia, é que Moisés foi o autor de todo o Pentateuco (isto é, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) e, portanto, de Gênesis (1Rs 2.3; 2Rs 14.6; Ed 6.18; Ne 13.1; Dn 9.11-13; Ml 4.4; Mc 12.26; Lc 16.29,31; Jo 7.19-23; At 26.22; 1Co 9.9; 2Co 3.15). Além disso, os antigos escritores judaicos e os primeiros dirigentes da igreja são unânimes em testificar que Moisés foi o escritor de Gênesis. Uma vez que o relato de Gênesis no seu todo é de data anterior a Moisés, o papel deste ao escrever Gênesis foi, em grande parte, reunir sob a inspiração do Espírito Santo, todos os registros escritos e orais disponíveis, desde Adão até a morte de José, como os temos hoje preservados em Gênesis. O testemunho da própria Bíblia a favor da autoria mosaica é apoiado por informações extrabíblicas. Os onze primeiros capítulos de Gênesis têm muitos paralelos e diferenças propositais com os mitos do antigo Oriente Próximo anteriores à época de Moisés e conhecidos por ele (os relatos da criação mesopotâmicos tais como Enuma Elish e os relatos do dilúvio tais como os encontrados na Epopéia de Atrahasis e na décima primeira tábua da Epopéia de Gilgamesh). Os nomes e os costumes nas narrativas dos patriarcas (caps. 12-50) refletem acuradamente a era em que viveram, sugerindo um autor antigo que dispunha de documentos confiáveis. Os textos de Ebla (século XXIV a.C.) mencionam Ebrium, que pode ser o mesmo Héber de Gn 10.21, e os textos de Mari (século XVIII a.C.) atestam a existência de nomes como Abraão, Jacó e amorreu. A prática de conceder um direito de primogenitura (istoé, de privilégios adicionais para o filho mais velho, 25.5- 6,32-34; 39.3-4; 43.33; 49.3) era difundida no antigo Oriente Próximo. A venda de uma herança (25.29-34) é documentada em diferentes períodos 20 nesta era. A adoção de um escravo pelo seu senhor (15.1-3) é encontrada em uma carta de Larsa, na antiga Babilônia, e a adoção de Efraim e Manassés por seu avô (48.5) pode ser comparada com uma adoção semelhante de um neto em Ugarit (século XIV a.C.). A doação de uma escrava como parte de um dote e a sua apresentação ao marido pela mulher infértil (16.1-6; 30.1-3 e notas) são mencionadas nas leis de Hamurábi (c. 1750 a.C.). Esses e outros fatos semelhantes corroboram a confiabilidade histórica da narrativa de Gênesis. 2.3. Data e ocasião Considerando as evidências bíblicas e extrabíblicas que relacionam Gênesis e o seu conteúdo a Moisés e a sua era, podemos concluir razoavelmente que o livro remonta ao século XV a.C. Indubitavelmente, por exemplo, desde que Davi (c. 1000 a.C.) compôs o relato da criação de Gn 1 em música (SI 8), requer-se uma data de composição no segundo milênio para Gn 1. Os leitores devem observar, porém, que embora ocasionalmente apareçam no texto palavras conhecidas somente a partir da metade do segundo milênio, a gramática do Pentateuco foi ocasionalmente atualizada, assim como alguns nomes de lugares (14.14). Também a lista de reis em 36.31-43 foi aparentemente acrescentada após a época de Saul. O propósito de Gênesis, a exemplo da sua autoria e data, não pode ser examinado senão com relação ao seu lugar dentro do Pentateuco como um todo. O Pentateuco é uma combinação ímpar de história e lei, uma história que explica as origens de suas leis. Por exemplo, as narrativas de Gênesis explicam o rito da circuncisão (17.9-14). A proibição de comer o músculo ciático (32.32) e a observância do sábado (2.2-3). Ainda mais importante, a sua narrativa apresenta a eleição de Israel por Deus para um relacionamento único mediante a aliança com Deus, a fim de abençoar o mundo caído. Esse relacionamento pactual consiste na promessa feita por Deus aos patriarcas de fazer da sua descendência eleita uma grande nação e no compromisso da nação escolhida em obedecer-lhe para, assim, tornar-se uma luz para os gentios. Gênesis narra as origens dessa nação redentora, retrocedendo aos primórdios da humanidade e do mundo e, assim, do conflito entre o reino de Deus e o reino de Satanás, no qual esta nação haveria de desempenhar um papel crucial. 2.4. Dificuldades de interpretação A tensão entre Gênesis e a ciência moderna sobre as origens do universo e dos seres vivos é, em grande parte, resolvida quando se reconhece que ambas as partes falam a partir de perspectivas diferentes. Gênesis preocupa- se com quem criou e por quê, não com o como e quando. A ciência não pode 21 Pentateuco responder àquelas questões e Gênesis, em grande parte, mantém silêncio quanto a estas (2,5-6,11). Por cerca de um século, os estudiosos adeptos da “hipótese documentária” têm declarado que Gênesis é uma composição de documentos conflitantes: J (de Javé, “o SENHOR”). E (de Elohim, “Deus”). D (de Deuteronomista) e P (de escritor sacerdotal). Muito embora esse esquema ainda seja amplamente aceito, poucos ainda acreditam que esses documentos possam ser usados para reconstruir a história de Israel, uma vez que todos os supostos documentos contêm o que se considera serem matérias “antigas” e “recentes”. Em outras palavras, os quatro alegados documentos de fato compartilham elementos e características que se supunha pertencerem a apenas uma dessas fontes hipotéticas (p.ex. J contém matéria que supostamente seria encontrada somente em E). É certo que, na composição dos documentos no antigo Oriente Próximo, era comum a combinação de documentos escritos mais antigos, e é provável que o próprio Moisés tenha feito uso delas (5.1). Além do mais, muitos estudiosos hoje questionam os critérios usados para identificar essas supostas fontes e enfatizam, ao contrário, a unidade do texto tal como o temos. Por exemplo, o relato do dilúvio, antes apontado como um exemplo clássico da hipótese documentária, é visto hoje como portador de excepcional integridade (6.9-9.29). 2.5. Características e temas Pelo estudo da estrutura literária de Gênesis, destacam-se os aspectos que seguem. Após o prólogo, Gênesis divide-se em dez partes, cujo início é caracterizado pela fórmula: “Esta é a genealogia (ou 'história') de”. Esse título é seguido por uma genealogia da pessoa referida na fórmula ou por episódios envolvendo os seus descendentes mais notáveis. Os primeiros três relatos pertencem ao mundo pré-diluviano e os sete últimos ao período posterior ao dilúvio. Os três primeiros relatos formam um paralelo com o quarto, quinto e sexto relatos: a) narrativas sobre o desenvolvimento universal da humanidade na criação e na recriação após o dilúvio (relatos um e quatro, respectivamente); b) genealogia das linhagens da redenção a partir de Sete e Sem (relatos dois e cinco); c) as narrativas sobre as alianças com Noé e Abraão (relatos três e seis). 22 Os dois pares finais de narrativas expandem a linhagem abraâmica, contrastando os seus filhos rejeitados, Ismael e Esaú (relatos sete e nove). Com as histórias sobre os descendentes eleitos, Isaque e Jacó, respectivamente (relatos oito e dez). A chave para compreensão das narrativas é, geralmente, oferecida em uma revelação que serve de abertura às mesmas: por exemplo, a promessa a Abraão (12.1-3); o sinal pré-natal da rivalidade entre Jacó e Esaú (25.22-23); e os sonhos de José (37.1-11). Uma seção de transição encontra-se ao final dos relatos (p.ex., 4.25-26; 6.1-8; 9.18-29; 11.10-26). A seção que conclui a última narrativa contém fortes vínculos com o Livro de Êxodo, terminando com um juramento que José obteve dos seus irmãos de que, quando Deus viesse em seu socorro e os reconduzisse a Canaã, levariam consigo o seu corpo embalsamado (50.24-25; Ex 13.19). O enfoque do livro nas origens de Israel desdobra-se diante de questões que afetam o mundo. Moisés nos diz que, antes que Deus elegesse os patriarcas, os pais de Israel (caps. 12-50), a humanidade afirmou a sua independência de Deus buscando o conhecimento do bem e do mal à parte de Deus e em desafio ao seu mandamento (caps. 2; 3). Os seres humanos comprovaram a sua depravação pela religiosidade de fachada, fratricídio e vingança irrestrita (Caim, cap. 4); pela tirania, haréns e os contínuos maus desígnios (os reis pré-diluvianos, 6.1-8); e por erguerem um anti-reino contra o próprio Deus (Ninrode e a torre infame, 10.8-12; 11.1-9). O veredicto de Deus sobre a humanidade permanece: “é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade” (8.21). Certamente de forma tão maravilhosa e soberana como Deus transformou a escuridão e o vazio por ocasião da criação da terra (1.2) em um habitat glorioso para a humanidade e lhe trouxera descanso (1.3-2.3), assim também Deus soberanamente elegeu em Cristo o seu povo da aliança para derrotar a Satanás (3.15) e para abençoar o mundo depravado (12.1-3). Ele elegeu incondicionalmente os patriarcas, Abraão, Isaque e Jacó, e prometeu fazer da sua descendência eleita a nação destinada a abençoar a terra, uma promessa que acarretava em uma semente, terra e rei eternos (12.1-3,7; 13.14-17; 17.1-8; 26.2-6; 28.10-15). Antes de Jacó nascer e ter praticado o bem ou o mal. Deus o escolheu, e não a Esaú, o seu irmão gêmeo mais velho (25.21-23). Ele escolheu Jacó, apesar deste ter trapaceado o seu irmão, enganado o seu pai e blasfemado contra Deus (cap. 27). Deus usou até mesmo os delitos escandalosos de Judá contra Tamar, além do ousado ardil a que ela recorreu, para fazer continuar a linhagem messiânica (cap. 38). O Rei celeste demonstrou o seu governo glorioso preservando miraculosamente as matriarcas em haréns pagãos (12.10-20; capo 20)e 23 Pentateuco abrindo os seus ventres estéreis (17.15-22; 18.1-15; 21.1-7; 25.21; 29.31; 30.22). Ele não levou em conta os costumes e tradições quando escolheu o filho mais jovem (Jacó), não o mais velho (Esaú), para herdar a bênção (25.23). Profecias flagrantes e tipos sutis são testemunhos incontestáveis de que Deus dirige a história. Por exemplo, Noé profetizou a submissão de Canaã a Sem (9.24-26), e o grande êxodo liderado por Moisés foi prefigurado quando Deus libertou Abraão e Sara com riquezas da opressão do Egito (12.10-20). Deus inclinou o coração dos seus eleitos a confiarem em suas promessas e a obedecerem aos seus mandamentos. Contra toda esperança, Abraão confiou que Deus lhe daria uma descendência incontável e o legislador diz que Deus lhe imputou isso como justiça (15.6). Confiante nas firmes promessas de Deus, Abraão renunciou aos seus direitos sobre a terra (cap. 13) e Jacó, agora chamado “Israel” e apegando-se somente em Deus (cap. 22), devolveu simbolicamente o direito de primogenitura a Esaú (cap. 33). No começo da narrativa de José, Judá vendeu José como escravo (37.26-27), mas, no fim, o ex-mercador de escravos dispôs-se a tornar-se um escravo em lugar de seu irmão (44.33-34). Firmado na verdade de que o desígnio gracioso de Deus trouxera o bem a partir de pecados tão atrozes como o assassinato e o tráfico de escravos, José perdoou seus irmãos sem recriminação (45.4-8; 50.24). O que começou em Gênesis cumpre-se em Cristo. A genealogia iniciada no cap. 5 prossegue no cap. 11 e termina com o nascimento de Jesus Cristo (Mt 1; Lc 3.23-27). Ele é, em última análise, o descendente prometido a Abraão (12.1-3; GI 3.16). Os eleitos são abençoados nele porque somente ele, por sua obediência ativa e passiva, satisfez as exigências da lei e morreu em lugar deles. Todos os que são batizados em Cristo e unidos com ele pela fé são descendentes de Abraão {GI 3.26-291. As arrojadas profecias e as prefigurações sutis em Gênesis mostram que Deus está escrevendo uma história que conduz ao descanso em Cristo. No limiar da profecia bíblica, Noé predisse que os jafetitas encontrariam salvação através dos semitas, uma profecia que se cumpriu no Novo Testamento (9.27), e Deus mesmo proclamou que o descendente da mulher destruiria Satanás (3.15). Este descendente é Cristo e sua Igreja (Rm 16.20). A apresentação da noiva para Adão prefigura a apresentação da Igreja a Cristo (2.18-25; Ef 5.22-321; o sacerdócio de Melquisedeque é como o do Filho de Deus (14.18-20; Hb 7); e assim como o Israel redimido da escravidão no Egito encontrou descanso, subsistência e refúgio na Terra Prometida, a Igreja redimida do mundo amaldiçoado encontra a vida em Cristo (13.15). O paraíso perdido pelo primeiro Adão é restaurado pelo último Adão. Esta história sagrada, unificada assim de forma tão maravilhosa, certifica que o enfoque de Gênesis é Cristo. 24 2.6. Estudos no Livro de Gênesis 2.6.1. A Criação 2.6.1.1. A Criação do Universo (1.1-2.3) Como considerar a descrição em causa? Ciência, fábula ou revelação? Se, por ciência, entendermos a disposição sistemática dum ramo do saber, diremos, então, que a descrição nada tem de “científico”. E ainda bem, pois se fosse utilizada a linguagem científica do século XX, como a entenderiam os leitores dos séculos precedentes? E mesmo os atuais necessitariam duma adequada preparação científica. Nesse caso ainda, não seria de prever que passados cem ou duzentos anos fosse já considerada antiquada aquela linguagem? A narração do Gênesis não foi, portanto, redigida em moldes científicos, talvez para melhor mostrar a sua inspiração divina. Poderíamos, no entanto, fazer a seguinte interrogação: -- Não sendo científica quanto à forma, será a descrição do Gênesis científica quanto à substância, ou quanto ao conteúdo? Serão de admitir erros ou pelo menos inexatidões na narração bíblica. Graves conflitos têm surgido entre prematuras conclusões da ciência e supostas deduções científicas da Escritura. Mas estudos ulteriores têm vindo provar que, por um lado, não eram válidas as conclusões científicas, ou, então, por outro, eram mal interpretadas no texto as afirmações científicas. Quanto a se supor uma fábula a narração do Gênesis, quer no sentido popular, quer no sentido clássico, não é fácil de admitir-se. Pois no primeiro caso tratar-se-ia duma obra puramente imaginária, e no segundo duma exposição simbólica dum fato com certas verdades abstratas, que de outro modo seriam incompreensíveis. Trata-se, sim, duma narração dos acontecimentos que não seriam compreendidos, se fossem descritos com a precisão formal da ciência. É neste estilo simples mas expressivo que a divina sabedoria se manifestou claramente aos homens, indo assim ao encontro das necessidades de todos os tempos. Os fatos apresentam-se numa linguagem abundante e rica, que é possível incluir todos os resultados das pesquisas científicas. O primeiro capítulo do Gênesis não há dúvida que supõe a revelação divina. Pelas muitas versões, algumas delas correntes já entre os pagãos da Antigüidade, é fácil concluir-se que esta revelação é anterior a Moisés. Não deve, no entanto, considerar-se como uma nova versão das tradições politeístas dos fenícios ou dos babilônicos; porque acima de tudo a obra criadora de Deus só por Deus poderia ser revelada. E essa revelação não deixou de ser preservada de qualquer contaminação pagã ou corrupção supersticiosa, encontrando-se perfeita e inviolável nos cinco livros de Moisés. 25 Pentateuco Sob o aspecto científico nada se sabe acerca da origem das coisas. Mas o certo é que a Geologia, através do estudo dos fósseis, vem confirmar, cada vez mais, as diferentes fases da criação que Gn 1 nos descreve pormenorizadamente. Baseados em motivos meramente teóricos, vários comentadores supõem que a criação original de Deus foi destruída por uma terrível catástrofe. Assim o verso 1 descreve o ato inicial de Deus, que deu a existência ao universo; o verso 2 o estado desse universo arruinado “sem forma e vazio”, se bem que não se faça qualquer alusão à catástrofe provocadora dessa ruína; os restantes versos fazem uma análise da obra de Deus na reconstituição desse universo. Trata-se duma teoria, ainda hoje muito seguida, para resolver certos problemas que, no fim de contas, continuam insolúveis, e é contestada por fortes argumentos lingüísticos. A chamada teoria da “lacuna” não assenta em bases firmes e é desmentida pela própria Geologia. 2.6.1.2. No Princípio (bereshith) No princípio, criou Deus (Gn 1.1). A expressão “No princípio” é enfática, e chama a atenção para o fato de um princípio real. Outras religiões antigas, ao falarem da criação, afirmam que esta ocorreu a partir de algo já existente. Referem-se à história como algo que ocorre em ciclos perpétuos. A Bíblia olha para a história de modo linear, com um alvo final determinado por Deus. Deus teve um plano na criação, o qual Ele levará a efeito. Várias conclusões decorrem da verdade contida no primeiro versículo da Bíblia. Uma vez que Deus é a origem de tudo quanto existe, os seres humanos e a natureza não existem por si mesmos, mas devem a Ele sua existência e a sua propagação. Toda existência e forma de vida são boas se estão corretamente relacionadas com Deus e dependentes dEle. Toda vida e criação pode ter relevância e propósito eternos. Deus tem direitos soberanos sobre toda a criação, em virtude de ser seu Criador. Num mundo caído, Ele reafirma esses direitos mediante a redenção (Êx 6.6; 15.13; Dt 21.8; Lc 1.68; Rm 3.24; Gl 3.13 ;1Pe 1.18). 2.6.1.3. O Deus da criação 2.6.1.3.1. Eterno Deus se revela na Bíblia como um ser infinito, eterno, auto-existente e como a Causa Primária de tudo o que existe. Nunca houve um momento em que Deus não existisse. Conforme afirma Moisés: “Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, sim, de eternidadea eternidade, tu és Deus” (Sl 90.2). Noutras palavras, Deus existiu eterna e infinitamente antes de criar o universo finito. Ele é anterior a toda criação, no céu e na terra, está acima e independe dela (1Tm 6.16; Cl 1.16). 26 2.6.1.3.2. Transcendente Deus é diferente e independente da sua criação homens, anjos, espíritos ou coisas físicas ou materiais (Êx 24.9-18; Is 6.1-3; 40.12-26; 55.8,9; Ez 1). Deus não deve jamais ser nivelado aos seres humanos, ou qualquer outro ser que Ele criou. Seu ser e sua existência pertencem a uma dimensão totalmente diferente. Ele habita numa esfera de vida perfeita e pura, em tudo acima da sua criação. Ele não é parte da sua criação, nem sua criação é parte dEle. Além disso, os crentes não são Deus e nunca serão “deuses” como afirma a Nova Era. Sempre seremos seres limitados e dependentes de Deus, mesmo na era do porvir. Embora exista uma distinção extrema entre Deus e toda criação, Deus também está presente e ativo em todo o mundo. Ele vive e se manifesta entre seus fiéis, que se arrependem dos seus pecados e que vivem pela fé em Cristo (Ex 33.17-23; Is 57.15; ver Mt 10.31; Rm 8.28; Sl 2.20). 2.6.1.3.3. Criador Deus criou todas as coisas em “os céus e a terra” (1.1; Is 40.28; 42.5; 45.18; Mc 13.19; Ef 3.9; Cl 1.16; Hb 1.2; Ap 10.6). O verbo “criar” (hb.”bara”) é usado exclusivamente em referência a uma atividade que somente Deus pode realizar. Significa que, num momento específico, Deus criou a matéria e a substância, que antes nunca existiram. A Bíblia diz que no princípio da criação a terra estava informe, vazia e coberta de trevas (1.2). Naquele tempo o universo não tinha a forma ordenada que tem agora. O mundo estava vazio, sem nenhum ser vivente e destituído do mínimo vestígio de luz. Passada essa etapa inicial, Deus criou a luz para dissipar as trevas (1.3-5), deu forma ao universo (1.6-13) e encheu a terra de seres viventes (1.20-28). O método que Deus usou na criação foi o poder da sua palavra. Repetidas vezes está declarado: “E disse Deus...” (1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Noutras palavras, Deus falou e os céus e a terra passaram a existir. Antes da palavra criadora de Deus, eles não existiam (Sl 33.6,9; 148.5; Is 48.13; Rm 4.17; Hb 11.3). Toda a Trindade, e não apenas o Pai, desempenhou sua parte na criação. O próprio Filho é a Palavra (“Verbo”) poderosa, através de quem Deus criou todas as coisas. No prólogo do Evangelho segundo João, Cristo é revelado como a eterna Palavra de Deus (Jo 1.1). “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3). Semelhantemente, o apóstolo Paulo afirma que por Cristo “foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis... tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1.16). Finalmente, o autor do Livro de Hebreus afirma enfaticamente que Deus fez o universo por meio do seu Filho (Hb 1.2). Semelhantemente, o Espírito Santo desempenhou um papel ativo na obra da criação. Ele é descrito como “pairando” (“se movia”) sobre a criação, preservando-a e preparando-a para as atividades criadoras adicionais de Deus. A palavra hebraica traduzida por “Espírito” (ruah) também pode ser 27 Pentateuco traduzida por “vento” e “fôlego”. Por isso, o salmista testifica do papel do Espírito, ao declarar: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus; e todo o exército deles, pelo espírito (ruah) da sua boca” (Sl 33.6). Além disso, o Espírito Santo continua a manter e sustentar a criação (Jó 33.4; Sl 104.30). 2.6.1.4. O propósito criação Deus tinha razões específicas para criar o mundo. Deus criou os céus e a terra como manifestação da sua glória, majestade e poder. Davi diz: “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Sl 19.1; cf. 8.1). Ao olharmos a totalidade do cosmos criado - desde a imensa expansão do universo, à beleza e à ordem da natureza - ficamos tomados de temor reverente ante a majestade do Senhor Deus, nosso Criador. Deus criou os céus e a terra para receber a glória e a honra que lhe são devidas. Todos os elementos da natureza - o sol e a lua, as árvores da floresta, a chuva e a neve, os rios e os córregos, as colinas e as montanhas, os animais e as aves - rendem louvores ao Deus que os criou (Sl 98.7,8; 148.1-10; Is 55.12). Quanto mais Deus deseja e espera receber glória e louvor dos seres humanos! Deus criou a terra para prover um lugar onde o seu propósito e alvos para a humanidade fossem cumpridos. Deus criou Adão e Eva à sua própria imagem, para comunhão amorável e pessoal com o ser humano por toda a eternidade. Deus projetou o ser humano como um ser trino e uno (corpo, alma e espírito), que possui mente, emoção e vontade, para que possa comunicar-se espontaneamente com Ele como Senhor, adorá-lo e servi-lo com fé, lealdade e gratidão. Deus desejou de tal maneira esse relacionamento com a raça humana que, quando Satanás conseguiu tentar Adão e Eva a ponto de se rebelarem contra Deus e desobedecer ao seu mandamento, Ele prometeu enviar um Salvador para redimir a humanidade das conseqüências do pecado (ver 3.15). Daí Deus teria um povo para sua própria possessão, cujo prazer estaria nEle, que o glorificaria, e que viveria em retidão e santidade diante dEle (Is 60.21; 61.1-3; Ef 1.11, 12; 1Pe 2.9). A culminação do propósito de Deus na criação está no livro do Apocalipse, onde João descreve o fim da história com estas palavras: “... com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles e será o seu Deus” (Ap 21.3). 2.6.1.5. A criação do homem A criação do homem é o apogeu da obra criadora de Deus. É a Trindade quem delibera, sem qualquer intervenção ou consulta feita aos anjos. A expressão “à nossa imagem, conforme à nossa semelhança” no texto, são sinônimos, e compreendem-se à face do paralelismo da poesia hebraica. 28 Trata-se duma semelhança natural e moral. É dessa semelhança com Deus que deriva todo o domínio do homem sobre as criaturas. 2.6.1.5.1. O homem é formado “Formou” 2.7, Heb. yatsar, rigorosamente “formou” ou “fez”. O corpo do homem não é certamente diferente à restante criação material, e Deus aparece agora a formar esse corpo duma substância já existente. A semelhança entre a estrutura física dos animais e a do homem deve atribuir- se, não a uma espécie de desenvolvimento natural, mas a um ato especial de Deus em conformidade com os Seus eternos desígnios, e que poderiam ter sido muito diferentes. A finalidade desta narração é explicar melhor o significado do ato divino indicado por bara' em 1.27, sobretudo para frisar que, ao contrário do que se passara com a criação dos outros seres, Deus formou o homem “soprando-lhe nos narizes o fôlego da vida” (2.7). E assim o formou à Sua imagem e semelhança. Pó da terra (7). Heb. 'adamah, que significa a terra ou solo arável, que se encontra à superfície da terra. E daí deriva o nome do homem. Excetuando os casos do 1.26 e 2.5, onde o artigo seria inadmissível, a narração hebraica emprega sempre o artigo (“o Adão”) até 2.20, onde o termo passou a ser um nome próprio, sem artigo, portanto. Alma vivente (7). Heb. nephesh. Cfr. “criatura vivente” (1.20) e “alma vivente” (1.24. 2.6.2. A Imagem de Deus As Escrituras ensinam (Gn 1.26-27; 5.1; 9.6; 1Co 11.7; Tg 3.9) que Deus fez o homem e a mulher à sua própria imagem, assim de que os seres humanos são semelhantes a Deus, como nenhuma outra criatura terrena é. A dignidade especial dos seres humanos está no fato de, como homens e mulheres, poderem refletir e reproduzir - dentro de sua própria condição de criaturas - os santos caminhos de Deus. Os seres humanos foram criados com esse propósito e, num sentido, somos verdadeiros seres humanos na medida em que cumprimos esse propósito. O que tudo envolve essa imagem de Deus na humanidade não está especificado em Gn 1.26-27, mas o contexto da passagem nos ajuda a defini- lo. Otexto de Gn 1.1-25 descreve Deus como sendo pessoal, racional (dotado de inteligência e vontade), criativo, governando o mundo que criou, e um ser moralmente admirável (pois tudo o que criou é bom). Assim, a imagem de Deus refletirá essas qualidades. Os versículos 28-30 mostram Deus abençoando os seres humanos que acabara de criar, conferindo-lhes o poder de governar a criação, como seus representantes e delegados. A capacidade humana para comunicar-se e para relacionar-se tanto com Deus como com outros seres humanos aparece como outra faceta dessa imagem. 29 Pentateuco Por isso, a imagem de Deus na humanidade, que surgiu no ato criador de Deus, consiste em: a) Existência do homem como uma “alma” e “espírito” (Gn 2.7), isto é, como ser pessoal e autoconsciente, com capacidade semelhante à de Deus para conhecer, pensar e agir; b) Ser uma criatura moralmente correta - qualidade perdida na queda, porém agora progressivamente restaurada em Cristo (Ef 4.24; Cl 3.10); c) Domínio sobre o meio ambiente; d) Ser o corpo humano o meio através do qual experimentamos a realidade, nos expressamos e exercemos domínio e (e) na capacidade que Deus nos deu para usufruir a vida eterna. A queda deformou a imagem de Deus não só em Adão e Eva, mas em todos os seus descendentes, ou seja, em toda a raça humana. Estruturalmente, conservamos essa imagem no sentido de permanecermos seres humanos, mas não funcionalmente, por sermos agora escravos do pecado, incapazes de usar nossos poderes para espelhar a santidade de Deus. A regeneração começa em nossa vida o processo de restauração da imagem moral de Deus. Porém, enquanto não formos inteiramente santificados e glorificados, não podemos refletir, de modo perfeito, a imagem de Deus em nossos pensamentos e ações como fomos criados para fazer e como o Filho de Deus encamado refletiu na sua humanidade (J0 4.34; 5.30; 6.38; 8.29, 46). 2.6.3. A Queda (Gn 3.6) Na Carta aos Romanos, Paulo afirma que toda a humanidade está por natureza sob a culpa e o poder do pecado, sob o reino, da morte e sob a inescapável ira de Deus (Rm 1.18-19; 3.9, 19; 5.17, 21). Ele relaciona a origem desse estado ao pecado de um homem – Adão –, que ele descreve como nosso ancestral comum (At 17.26; Rm 5.12-14; cf. 1Co 15.22). Paulo, como apóstolo, deu sua interpretação autorizada à história registrada em Gn 3, onde encontramos a narrativa da queda, a desobediência humana original, que afastou o homem de Deus e da santidade, e lançou-o no pecado e na perdição. Os principais pontos dessa história, vista pelas lentes da interpretação de Paulo, são: 1) Deus fez do primeiro homem o representante de toda a sua posteridade, exatamente do mesmo modo como faria de Cristo o representante de todos os eleitos de Deus (Rm 5.15-19; cf. 8.29-30; 9.22-26). Em ambos os casos, o representante envolveu aqueles a quem representou nos resultados de sua ação pessoal, quer para o bem (no caso de Cristo), quer para o mal (no caso de Adão). Esse 30 arranjo divinamente estabelecido, pelo qual Adão determinou o destino de seus descendentes, e tem sido chamado de a “aliança das obras”, ainda que essa frase não ocorra nas Escrituras; 2) Deus colocou Adão num estado de felicidade e prometeu a ele e a sua posteridade confiná-los nesse estado permanentemente se, nesse estado, Adão mostrasse fidelidade, obedecendo ao mandamento de Deus, não comendo da árvore descrita como a “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2.17). Aparentemente, a questão era se Adão aceitaria Deus determinar o que era bom e mal ou se procuraria decidir isso por si mesmo, independentemente do que Deus lhe tinha dito; 3) Adão, levado por Eva - que por sua vez foi induzida pela serpente (Satanás disfarçado, 2Co 11.3,14; Ap 12.9) - afrontou a Deus comendo do fruto proibido. Como conseqüência, primeiro de tudo, a disposição mental que se opõe a Deus e se engrandece a si mesmo, expressa no pecado de Adão, tomou-se parte dele e da natureza moral que ele transmitiu aos seus descendentes (Gn 6.5; Rm 3.9-20). Em segundo lugar, Adão e Eva foram dominados por um senso de profanação e culpa, que os levou a ter vergonha e medo de Deus - com justificada razão. Em terceiro lugar, eles foram amaldiçoados com expectação de sofrimento e morte e foram expulsos do Éden. Ao mesmo tempo, contudo, Deus começou a mostrar-lhes graça salvadora. Fez para eles vestimenta para cobrir sua nudez e prometeu-lhes que, um dia, a Semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. Essa promessa prenunciou a Cristo. Ainda que essa história, de certo modo, seja contada em estilo figurado, o Livro de Gênesis pede-nos que a leiamos como história. No Gênesis, Adão está ligado aos patriarcas e, através deles, por genealogia, ao resto da raça humana (caps. 5; 10-11), fazendo dele uma parte da história, tanto quanto Abraão, Isaque e Jacó. Todas as principais personalidades do Livro de Gênesis, depois de Adão - exceto José - são mostradas claramente como pecadoras de um modo ou de outro, e a morte de José, como a morte de quase todos os outros na história, é cuidadosamente registrada (Gn 50.22- 26). A afirmação de Paulo: “em Adão, todos morrem” (1Co 15.22) só torna explícito aquilo que o Gênesis já deixa claramente implícito. É razoável afirmar que a narrativa da queda sozinha dá uma explicação convincente para a perversão da natureza humana. Pascal disse que a doutrina do pecado original parece uma ofensa à razão, porém, uma vez aceita, dá sentido total à condição humana. Ele estava certo; e a mesma coisa poderia e deveria ser dita a respeito da própria narrativa da queda. 31 Pentateuco 2.6.4. O Dilúvio O dilúvio foi o castigo divino universal sobre um mundo ímpio e impenitente. O apóstolo Pedro refere-se ao dilúvio para relembrar a seus leitores que Deus outra vez julgará o mundo inteiro no fim dos tempos, mas agora por fogo (2Pe 3.10). Tal julgamento resultará no derramamento da ira de Deus sobre os ímpios, como nunca houve na história (Mt 24.21). Deus conclama os crentes atuais, assim como Ele fez com Noé na Antigüidade, para avisarem os não-salvos sobre esse dia terrível e instar com eles para que se arrependam dos seus pecados, e se voltem para Deus por meio de Cristo, e assim sejam salvos. 2.6.4.1. A Condição da humanidade Pré-diluviana Nos dias de Noé, o pecado abertamente se manifestava no ser humano, de duas principais maneiras: a concupiscência carnal (Gn 6.2) e a violência (Gn 6.11,12). A degeneração humana não mudou; o mal continua irrompendo desenfreado através da depravação e da violência. Hoje em dia, a imoralidade, a incredulidade, a pornografia e a violência dominam a sociedade inteira. 2.6.4.2. O arrependimento de Deus (Gn 6.6) Deus se revela, já nestes primeiros caps. da Bíblia, como um Deus pessoal para com o ser humano, e que é passível de sentir emoção, desagrado e reação contra o pecado deliberado e a rebelião da humanidade. Aqui, a expressão arrependeu-se significa que, por causa do trágico pecado da raça humana, Deus mudou a sua disposição para com as pessoas; sua atitude de misericórdia e de longanimidade passou à atitude de juízo. A existência de Deus, o seu caráter e seus eternos propósitos traçados permanecem imutáveis (1Sm 15.29; Tg 1.17), porém, Ele pode alterar seu tratamento para com o homem, dependendo da conduta deste. Deus altera, sim, seus sentimentos, atitudes, atos e intenções, conforme as pessoas agem diante da sua vontade (Êx 32.14; 2Sm 24.16; Jr 18.7-10; 26.3,13,19; Ez 18.4-28; Jn 3.8-10). Essa revelação de Deus como um Deus que pode sentir pesar e tristeza, deixa claro que Ele, em relação à sua criação, age pessoalmente, como no recesso de uma família. Ele tem um amor intenso pelos seres humanos e solicitude divina ante a penosa situação da raça humana (Sl 139.7-18). 2.6.4.3. O Varão Chamado Noé (Gn 6.9) Em meio à iniqüidade e maldade generalizadasdaqueles dias (Gn 6.5), Deus achou em Noé um homem que ainda buscava comunhão com Ele e que era 32 varão justo. Reto em suas gerações equivale dizer que ele se mantinha distanciado da iniqüidade moral da sociedade ao seu redor. Por ser justo e temer a Deus e resistir à opinião e conduta condenáveis do público, Noé achou favor aos olhos de Deus (Gn 6.8; 7.1; Hb 11.7; 2Pe 2.5). Essa retidão de Noé era fruto da graça de Deus nele, por meio da sua fé e do seu andar com Deus (Gn 6.9). A salvação no Novo Testamento é obtida exatamente da mesma maneira, isto é, mediante a graça e misericórdia de Deus, recebidas pela fé, cuja eficácia conduz o crente a um esforço sincero para andar com Deus e permanecer separado da geração ímpia ao seu redor (v. 22; 7.5, 9, 16; At 2.40). Hebreus 11.7 declara que Noé foi feito herdeiro da justiça que é segundo a fé. O Novo Testamento também declara que Noé não somente era justo, como também pregador da justiça (2Pe 2.5). Nisso, ele é exemplo do que os pregadores devem ser. 2.6.4.4. A Arca (Gn 6.14) A palavra hebraica aqui traduzida como arca, significa um objeto apropriado para flutuar, e ocorre somente aqui e em Êx 2.3,5 (onde a mesma palavra refere-se ao cesto flutuante em que o nenê Moisés foi colocado). A arca de Noé era semelhante a uma barcaça de tamanho colossal. Sua capacidade de carga corresponde à de mais de 300 vagões ferroviários. Calcula-se que a arca podia comportar cerca de 7.000 tipos de animais. Hebreus 11.7 assinala a arca como um tipo de Cristo, aquele que é o meio de salvação do crente, para livrá-lo do juízo e da morte (1Pe 3.20, 21). 2.6.4.5. O pacto (Gn 6.18) Deus, mediante o seu pacto, prometeu a Noé que este seria salvo do julgamento que ia ocorrer através do dilúvio. Noé correspondeu ao pacto de Deus, crendo nEle e na sua palavra (Gn 6.13; Hb 11.7). Sua fé foi demonstrada quando ele temeu (Hb 11.7) e quando construiu a arca e entrou nela (Gn 6.22; 7.7; 1Pe 3.21). 2.6.4.6. Uso Neotestamentário do dilúvio A referência ao dilúvio encontrada no Novo Testamento serve de advertência de que Deus é o justo juiz de todo o mundo e castigará inexoravelmente o pecado e livrará da prova os piedosos (2Pe 2.5-9). No tempo de Noé, Deus destruiu o mundo com água, mas no futuro vai fazê-lo com fogo (2Pe 3.4-14). Será o prelúdio para estabelecer uma nova ordem, na qual habitará a justiça. O caráter repentino e inesperado do dilúvio exemplifica a maneira pela qual ocorrerá a segunda vinda de Cristo e mostra que o crente deve estar preparado em todos os momentos para aquele dia (Mt 24.36-42). Também o apóstolo Pedro viu um paralelo entre o batismo em água e a salvação de Noé 33 Pentateuco e sua família no meio das águas (1Pe 3.20-22). A água simboliza tanto o juízo de Deus sobre o pecado como seu resultado (o do pecado), a morte. O batismo significa que o crente se une espiritualmente a Jesus em sua morte e ressurreição. À semelhança de Noé na arca, o crente em Cristo passa ileso pelas águas do juízo e morte a fim de habitar em uma nova criação. No Calvário todas as fontes do grande abismo foram rompidas, e as águas do juízo subiram sobre Cristo, porém nenhuma gota alcança o crente porque Deus fechou a porta. 2.6.4.7. Eventos cataclísmicos De conformidade com Gênesis 7.11, 12 dois eventos cataclísmicos precipitaram o dilúvio: a implosão dos imensos reservatórios de águas subterrâneas, talvez causada por terremotos e maremotos, produziu ondas gigantescas em série, geradas nos oceanos, além das chuvas torrenciais que caíram sobre a terra por quarenta dias. Em conseqüência disso, todos os seres viventes fora da arca, que normalmente viviam na terra seca, morreram, tanto homens como animais (vv. 16, 17; 7.21, 22; Mt 24.37-39; 1Pe 3.20; 2Pe 2.5). Foi somente depois de 150 dias que a água começou a baixar (v. 24). A arca finalmente repousou numa das montanhas de Arará (na Armênia), a uns 800 km de onde começou o dilúvio (Gn 8.4). A terra enxugou, e Noé desembarcou da arca 377 dias depois de iniciado o dilúvio (8.13, 14). Em 2 Pedro 3.6 está escrito que o mundo antediluviano pereceu. Esta palavra sugere que, devido às tremendas convulsões ocorridas na terra, sua topografia antediluviana foi grandemente modificada, tanto física quanto geologicamente, em relação à terra que agora existe (2Pe 3.7a). O relato do dilúvio fala-nos, tanto do julgamento do mal, como da salvação (Hb 11.7). O dilúvio, trazendo a total destruição de toda a vida humana fora da arca, foi necessário para extirpar a extrema corrupção moral dos homens e mulheres e para dar à raça humana uma nova oportunidade de ter comunhão com Deus. 2.6.4.8. A extensão do dilúvio Qual foi a extensão do dilúvio? Foi universal ou limitado à área do Oriente Médio? O Gênesis diz que as águas cobriram as montanhas mais altas e destruíram toda a criatura (fora da arca), sob os céus (7.19-23). Não obstante, há diferença de opiniões entre eruditos evangélicos. Alguns pensam que se refere somente à terra habitada daquele tempo, pois o propósito divino era destruir a humanidade pecaminosa. Dizem que o uso bíblico da expressão “toda a terra” amiúde significa a terra conhecida pelo autor (Gn 41.57; Dt 2.25; Rm 10.18). 34 Por outro lado, os que crêem que o dilúvio foi universal notam que o relato bíblico emprega expressões fortes e as repete dando a impressão de um dilúvio universal. Perguntam: Qual era a extensão da população humana? Parece-lhes possível que esta se houvesse estendido até à Europa e África. Além do mais, certos estudiosos crêem que as grandes mudanças na crosta terrestres e repentinas e drásticas alterações no clima de áreas geográficas, como Alasca e Sibéria, podem ser atribuídas ao dilúvio. Talvez, com o transcurso do tempo, os geólogos encontrem evidências conclusivas para determinar qual seja a interpretação correta. Têm sido encontradas em diferentes continentes tradições que aludem a um grande dilúvio, inclusive detalhes da destruição de toda a humanidade, exceto uma única família e a escapatória em um barco. A famosa epopéia de Gilgames, poema babilônico, contém muitas semelhanças com o relato bíblico, embora seja politeísta em seu enfoque. Parece que o dilúvio deixou uma impressão indelével na memória da raça, e que as tradições, por mais corrompidas que estejam, testificam do fato que houve um dilúvio. Em Gênesis 7.19 lê-se: “E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu foram cobertos”. Observa-se que, a água elevou-se a ponto de cobrir todos os altos montes, que havia debaixo de todo o céu; isto é, a terra inteira foi coberta pelas águas. Isto significa um dilúvio universal, e não apenas uma gigantesca inundação local, confinada a uma pequena porção da terra (2Pe 3.6). 2.6.4.9. Estabelece-se a nova ordem do mundo Ao sair da arca, Noé entrou em um mundo purificado pelo juízo de Deus; figurativamente era uma nova criação e a humanidade começaria de novo. A primeira coisa que Noé fez foi oferecer um grande sacrifício a Deus como sinal de sua gratidão pelo grande livramento passado e como consagração de sua vida a Deus para o futuro. Deus estabeleceu a nova ordem dando provisões básicas pelas quais a vida do homem se regeria na terra depois do dilúvio: a) Para dar segurança ao homem prometeu que as estações ficariam restabelecidas para sempre; b) Reiterou o mandamento de que o homem se multiplicasse; c) Confirmou o domínio sobre os animais dando-lhe permissão para comer sua carne, porém, não o seu sangue; d) Estabeleceu a pena capital; e) Fez aliança com o homem prometendo-lhe que jamais voltaria a destruir a terra por meio de um dilúvio. 35 Pentateuco Por que foi proibido comer o sangue? Alguns estudiosos crêem que o sangue é o símbolo da vida, a qual só Deus pode dar; portanto, o sangue pertence a Deus e o homem não deve tomá-lo. Há,porém, uma explicação mais bíblica. A proibição preparou o caminho para ensinar a importância do sangue como meio de expiação (Lv 17.10-14). O sangue representa uma vida entregue na morte. Deus estabeleceu a pena capital para restringir a violência. O homem é de grande valor e a vida é sagrada, pois “Deus fez o homem conforme a sua imagem”. Martinho Lutero viu neste mandamento a base do governo humano. Se o homem recebe autoridade de outros em certas circunstâncias, também tem autoridade sobre coisas menores, tais como propriedades e impostos. O apóstolo Paulo confirma que tal poder é de Deus, e que a pena capital está em vigor (Rm 13.1-7). O magistrado não traz debalde sua espada (instrumento de execução). Deus fez um pacto com Noé e com toda a humanidade prometendo não mais destruir o mundo por um dilúvio. Ao presenciar a terrível destruição pelo juízo de Deus, o homem poderia perguntar-se: “Valerá a pena edificar e semear? Pode ser que haja outro dilúvio e arrase tudo”. Mas, para dar-lhe segurança de que a raça continuaria e o homem teria um futuro garantido, Deus fez aliança com ele. Deixou o arco-íris como sinal de sua fidelidade. É provável que o arco-íris já existisse, mas agora reveste-se de novo significado. Ao ver o arco-íris nas nuvens de tormenta, o homem se lembraria da promessa misericordiosa de Deus. 2.6.5. A raça humana começa novamente Noé surge, sob a bênção de Deus, como o segundo cabeça da raça humana. Observe-se os paralelos entre as bênçãos dadas a Noé e as que foram dadas a Adão (Gn 1.28-29). Houve estimulações divinas também. Primeira, referente ao alimento. Segundo o versículo 3 parece que somente depois do dilúvio é que o alimento animal foi permitido ao homem. Essa permissão talvez tenha sido dada em conexão com o sacrifício de Noé, e é possível que aqui tenhamos a origem da “festa” do holocausto, da qual o próprio adorador participava. A proibição de comer-se sangue nessa festa pode ser equiparada com um instrutivo contraste com a proibição do jardim do Éden. A “árvore” proibida, cuja abstenção era sinal de obediência, estabeleceu a santidade da lei; o “sangue” proibido, cujo derramamento era o sinal da propiciação divina, estabeleceu a santidade da graça. A segunda estipulação dizia respeito ao derramamento do sangue. Essa solene advertência (versículos 5 e 6) preservou a santidade da vida humana. “Sangue” representa aquele mistério que chamamos de “vida”. É uma dádiva exclusiva de Deus, e o homem não tem o direito de tirá-la. O mais alto motivo possível é empregado aqui, “porque Deus fez o homem conforme a sua imagem”. 36 2.6.6. A torre de Babel Babel. Os orgulhosos edificadores da cidade tinham-na chamado de Babel (portão ou corte de Deus), mas o Senhor, aproveitando a palavra usada, e dando-lhe outro significado, derivadamente, baseando a palavra numa raiz semelhante, também a chamou de Babel (confusão). Gn 11.1-4: “E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. E aconteceu que, partindo eles do Oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e habitaram ali. E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos e queimemo- los bem. E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume, por cal. E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra”. Os acontecimentos registrados nesta seção são anteriores às divisões resultantes da humanidade, as quais são esboçadas em Gn 10. A expressão “Duma mesma língua, e duma mesma fala”, lit., “um lábio e uma palavra”, significando que todos falavam da mesma maneira, tanto quanto à pronúncia como quanto ao vocabulário. A unidade original da linguagem humana, embora longe de ser demonstrável, torna-se cada vez mais provável. Sinear é a planície dos rios Tigre e Eufrates. A região do Arará certamente ficava a noroeste de Sinear, pelo que a migração, se é que não tomou uma rota circular, deve ter sido feita da direção oriental. A palavra hebraica, miqqedhem, é bastante vaga, e aparece novamente em Gn 13.11, onde é traduzida novamente como oriente, que é a tradução correta num e noutro lugar. Queimemo-los. Os tijolos eram usualmente secados ao sol, mas em Birs Nimrude ainda podem ser encontrados tijolos queimados. Isso não apenas demonstra o estágio avançadíssimo a que já haviam chegado as artes de edificação antiga, mas também serve para dar testemunho sobre a verdade desta narrativa. O betume aqui mencionado é a mesma coisa que asfalto. Cujo cume toque nos céus. A cidade e a torre tinham a intenção primária de servir de seguridade defensiva e de domínio político. É possível, igualmente, que a torre tivesse uma significação religiosa e astrológica. O hebraico diz literalmente “cujo topo seja o céu”, e isso pode significar que ali eram pintados os sinais do zodíaco e que haviam outros desenhos celestes. Entretanto, em vista do uso dessa frase em Dt 1.28, e também não nos esquecendo do fato que os antigos babilônios se ufanavam da altura de seus templos, esta expressão não contém necessariamente qualquer referência astrológica. O plano de centralização proposto pelo homem parece ter sido considerado por Deus como indesejável: é possível que em seus motivos mais profundos fosse um ato de auto-suficiência humana e de rebelião contra Deus. É 37 Pentateuco altamente significativo que “Babel” (Babilônia), no relato bíblico, representa, em todas as páginas bíblicas, até o Apocalipse, a idéia de federação humana materialista e humanista em oposição a Deus. As razões para Deus ter destruído aqueles planos humanos provavelmente tinham em vista primeiramente tratar de modo eficaz com o perverso motivo da oposição, e, em segundo lugar, realizar Seu desígnio que os homens cobrissem toda a superfície da terra e desenvolvessem seus recursos. Note-se que Deus não destruiu a torre; Ele confundiu a linguagem e espalhou o povo. Não é asseverado aqui um milagre súbito. A confusão da linguagem pode ter sido efetuada mediante a orientação e o apressamento providencial das tendências naturais dos homens formarem dialetos, à base dos quais se separariam em vários grupos com diferentes simpatias e interesses. 2.6.7. A aliança da Graça de Deus Nas Escrituras, as alianças são acordos solenes, negociados ou impostos unilateralmente, que ligam as partes umas às outras em relações permanentes, definidas, com promessas específicas, com reivindicações e obrigações de ambos os lados (p.ex., a aliança do casamento, em MI 2.14). Quando Deus faz uma aliança com suas criaturas, só ele estabelece as condições, como mostra sua aliança com Noé e seus descendentes (Gn 9.9). Quando Adão e Eva fracassaram em obedecer os termos da aliança das obras, Deus não os destruiu, mas revelou a sua aliança da graça, prometendo-lhes um Salvador (Gn 3.15). A aliança de Deus descansa sobre sua promessa, como fica claro da sua aliança com Abraão. Ele chamou Abraão para ir à terra que ele lhe daria e prometeu abençoá-lo e a todas as famílias da terra através dele (Gn 12.1-3). Abraão atendeu a chamada de Deus, porque creu na promessa de Deus; foi a sua fé na promessa de Deus que lhe foi creditada como justiça (Gn 15.6; Rm 4.18-22). A aliança de Deus com Israel, no Sinai, está na forma dos tratados de suserania do antigo Oriente Próximo. Estas são alianças impostas unilateralmente por um rei poderoso sobre um rei vassalo e um povo servo. Ainda que a aliança do Sinai exigisse obediência às leis de Deus, sob a ameaça de maldição, ela era uma continuação da aliança da graça (Ex 3.15; Dt 7.7-8; 9.5-6). Deus deu os mandamentos a um povo que ele já havia redimido e reivindicado como seu (Ex 19.4; 20.2). A graciosa promessa da aliança de Deus foi posteriormente definida por meio de tipos e sombras da lei dada a Moisés. O fracasso dos israelitas em guardar a aliança de Deus mostrou a necessidade de uma nova aliança que assegurasse o
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