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GESTÃO DE SEGURANÇA . SEGURANÇA FÍSICA. SISTEMAS DE PROTEÇÃO. HISTÓRIA, METODOLOGIA E DOUTRINA. 3ª EDIÇÃO - REVISTA E AMPLIADA (ISBN: 85-7579-027-7) Paulo Roberto Aguiar Portella RIO DE JANEIRO JANEIRO/2011 SUMÁRIO CAPÍTULO I – RAÍZES HISTÓRICAS E CONCEITOS. 1.1 – Introdução ........................................................................................................ 5 1.2 – A Segurança Física .......................................................................................... 31 1.3 – Segurança e garantia. Elementos de doutrina ................................................... 32 1.4 – Segurança Física. Campos de atividades .......................................................... 34 1.5 – Conceitos fundamentais .................................................................................... 34 CAPÍTULO II – A SEGURANÇA PRIVADA. 2.1 – Antecedentes .................................................................................................... 36 2.2 – O futuro da segurança privada .......................................................................... 38 2.3 - A doutrina da segurança privada.........................................................................40 2.4 – A segurança privada no Brasil 40 2.5 - O mercado clandestino e ilegal .......................................................................... 47 2.6 - Ética .................................................................................................................. 50 CAPÍTULO III – DECISÃO E RESPONSABILIDADE. 3.1 – O processo decisório ......................................................................................... 54 3.2 – Responsabilidades. Caráter endógeno e exógeno. ............................................ 55 3.3 – Criticidade e vulnerabilidade ............................................................................ 57 3.4 – A corrente de proteção, seus elementos e sistemas .......................................... 59 3.5 – Uma organização de segurança física. .............................................................. 61 CAPÍTULO IV – RESPONSABILIDADES E RISCOS. 4.1 – As responsabilidades. Os incidentes e os acidentes. ......................................... 64 4.2 – Os riscos 67 4.3 – A Proteção necessária. Defesa em Profundidade. 84 4.4 - A prevenção de riscos …………………………………………………….…. 89 4.5 – Conceitos fundamentais……………………………………………………... 90 CAPÍTULO V – BARREIRAS PERIMETRAIS. 5.1 – Generalidades ................................................................................................... 91 5.2 – Especificações ................................................................................................... 93 5.3 – Postes e extensões ............................................................................................. 93 5.4 – Outras barreiras ................................................................................................. 95 5.5 – Portões e outras aberturas ................................................................................. 96 5.6 – Zonas livres ....................................................................................................... 97 CAPÍTULO VI – ILUMINAÇÃO DE PROTEÇÃO. 6.1 – Generalidades .................................................................................................... 98 6.2 – Tipos ................................................................................................................ 99 6.3 – Unidades de iluminação .................................................................................... 100 6.4 – Padrões de iluminação ..................................................................................... 101 6.5 – Controles e manutenção .................................................................................... 103 CAPÍTULO VII – ALARMES. 7.1 – Alarmes e sensores de proteção ....................................................................... 105 7.2 – Tipos ................................................................................................................. 106 7.3 – Condições .......................................................................................................... 110 CAPÍTULO VIII – COMUNICAÇÕES DE PROTEÇÃO. 8.1 – Generalidades .................................................................................................... 113 8.2 – Tipos ................................................................................................................. 114 8.3 – Os recursos ........................................................................................................ 115 CAPÍTULO IX – GUARDAS. 9.1 – Generalidades .................................................................................................... 117 9.2 – Efetivo de guardas ............................................................................................ 118 9.3 – Limitações ......................................................................................................... 119 9.4 – Qualificações .................................................................................................... 120 9.5 – Treinamento ...................................................................................................... 123 9.6 – Organização ...................................................................................................... 125 9.7 – Ordens ............................................................................................................... 126 9.8 – Relatórios .......................................................................................................... 127 9. 9 –Conduta e estratégia de emprego ………………………………………… 128 9.10 – Emergências .................................................................................................... 129 9.11 – Forças de fins múltiplos .................................................................................. 130 9.12 – Cães de guarda ................................................................................................ 131 9.13 – Supervisão …………………………………………………...……………. 132 9.14 - A questão das drogas ………………………………………………...…… 135 CAPÍTULO X – IDENTIFICAÇÃO E CONTROLES DE EMPREGADOS E VISITANTES. 10.1 – Identificação .................................................................................................... 138 10.2 – Fiscalização ..................................................................................................... 143 10.3 – Controles e registros ....................................................................................... 144 CAPÍTULO XI – CONTROLE DE VEÍCULOS, DOCUMENTOS E MATERIAIS ESPECIAIS. 11.1 – Controle de veículos ....................................................................................... 149 11.2 – Monitoração ................................................................................................... 151 11.3 – Controle de documentos e materiais especiais……………………..………. 151 CAPÍTULO XII – BLINDAGENS. 12.1 – Generalidades ………………………………………..…………………….. 156 12.2 – Blindagem e seus materiais ……………………………………………… 156 12.3 – Normatização ………………………………………………………….… 158 CAPÍTULO XIII – SEGURANÇA DE DADOS E SISTEMAS. 13.1 – As ameaças ....................................................................................................160 13.2 – As medidas ..................................................................................................... 161 13.3 – Os dispositivos legais ……………………….……………………………. 164 CAPÍTULO XIV – SEGURANÇA FÍSICA E SEGURANÇA PÚBLICA. 14.1 – A segurança das instalações ............................................................................ 166 CAPÍTULO XV – PLANEJAMENTO DE SEGURANÇA FÍSICA 15.1 – Técnicas de redação ........................................................................................ 168 15.2 – O processo de planejamento ........................................................................... 170 15.3 – Relatório inicial (memento) ............................................................................ 175 15.4 – Informações gerais sobre o memento ............................................................. 177 15.5 – Análise de riscos ............................................................................................. 178 15.6 – Diagnóstico ..................................................................................................... 180 15.7 – Planejamento das garantias ............................................................................. 182 CAPÍTULO XVI – POSIÇÃO DOUTRINÁRIA…………………………………………….186 BIBLIOGRAFIA: ................................................................................................................... 191 5 CAPÍTULO I – RAÍZES HISTÓRICAS E CONCEITOS 1.1 – INTRODUÇÃO O conhecimento acadêmico a respeito das instituições de segurança, até o quartel final do século passado, foi restrito praticamente ao que seus integrantes haviam escrito e se constituíam de histórias contadas ou de breves notícias. Até muito recentemente, salvo poucas e pontuais exceções, nem historiadores nem cientistas sociais haviam reconhecido a existência dessas instituições, nem mesmo do importante papel que elas representaram e ainda representam na vida social. É dentro dessas limitações que procuraremos abordar o surgimento e o desenvolvimento dessas instituições, conceituadas muito amplamente como conjunto de pessoas autorizadas ao uso de força física (real ou por ameaça), para regular as relações interpessoais dentro de um grupo social, mediante autorização desse grupo, muito provavelmente como a grande conquista do processo civilizatório da humanidade, quando a urbanização da sociedade fez o homem experimentar a alteridade, a segurança material e afetiva e a proteção social. A palavra segurança é derivada dos advérbios latinos secure e securus, originalmente significando sem preocupação, em segurança ou isento de perigo. Modernamente tanto é utilizada significando um estado de ausência de perigo, como uma atividade para afastamento de riscos/perigos e até mesmo para denominar os próprios instrumentos de proteção. A atividade segurança, entendida como capacidade de ação humana, teve provavelmente início na transição da Era Paleolítica 1 para a Era Mesolítica 2 , quando o homem percebeu a necessidade de se proteger contra os riscos oferecidos pela natureza e por seus semelhantes. Essa atividade evoluiu gradativamente ao longo da história humana, até configurar-se como função vital para a sobrevivência da espécie, provavelmente entre o final da Era Mesolítica e o início da Era Neolítica 3 , quando o homem passou a obedecer a códigos de conduta e procurar mediação para resolver suas demandas, abolindo a barbárie das primeiras comunidades agrícolo- pastoris e iniciando uma fase civilizatória na qual habitaria cidades, nas quais construiria casas, templos, túmulos e palácios, para abrigar um conjunto social instituído em hierarquias de governantes e governados, onde as regras que regulariam o comportamento humano em sociedade 1 - Em torno de 60.000 anos a.C. 2 - Em torno de 12.000 anos a.C. 3 - Em torno de 7.000 anos a.C. Inicialmente regulado por códigos de conduta religiosa e costumeira, depois por códigos escritos, cujo exemplar mais antigo é o Código de Hamurabi, na antiga Mesopotâmia, por volta do ano 1.700 a.C. 6 usariam como vias de operação ou como cadeia de transmissão, os mitos, a religião, as tradições e os costumes, até desembocar na coerção institucional escrita. A função segurança, entendida como capacidade de ação humana organizada, se desenvolve como processo evolutivo originado na atividade individual e isolada, adquirindo aspectos mais elaborados dentro dos grupos, até aparecer como responsabilidade administrativa ou de governo, como observado nas cidades gregas do século VI a.C. sendo ampliada no Império Romano 4 , entrando em decadência na Idade Média Inicial 5 , vindo a recuperar-se no final da Alta Idade Média 6 , consolidando-se durante o Absolutismo, para se aperfeiçoar e se modernizar a partir do Renascimento europeu. O que aqui se almeja é a identificação do início da atividade e da função segurança, caracterizando instituições que, de alguma forma, tiveram como atribuição a execução de ações que hoje identificam a atividade genérica de segurança: as ações de inteligência (informação/investigação), de prevenção, de coerção/dissuasão/mediação e de assistência. Para tanto é necessário que se compreenda essa função e sua dupla originalidade. Se por um lado é instituição de proteção e controle social, por outro lado se constitui em clara afirmação de autoridade. Os historiadores de uma forma geral, costumam relacionar a capacidade de pensamento abstrato e do uso da linguagem com a forma de vida grupal cooperativa e o possível começo grosseiro das instituições sociais num período histórico em torno da Era Paleolítica Inferior. Nesta ocasião o homem primitivo abandonou suas práticas nômades de coletor e pilhador de alimentos e paulatinamente assumiu a atitude de caçador, agricultor e de pastor, estabelecendo vida sedentária. É nesta fase organizativa da vida social, onde já domestica alguns animais (o cão, com uma razoável margem de certeza), que o homem primitivo passa a conviver com suas primeiras preocupações a respeito da natureza como suprema expressão da espontaneidade, que indiferente à vida humana, não raro é hostil aos seres pertencentes ao seu reino, causando-lhes dano e desconforto. O homem, preocupado em proteger-se das intempéries e tendo já noções incipientes de segurança/insegurança, interessado em proteção relacionada ao que consumia, ao que acumulava e com a preservação de suas primitivas instituições grupais, ergue construções primitivas com o objetivo de proteger-se. Movido pelo sentimento gregário, organiza agrupamentos de moradia ainda ordenadas por mero instinto, dando origem às primeiras aldeias, sendo que algumas dessas se 4 - Do séc. I a.C. ao séc. V d.C. 5 - Do final do Império Romano do Ocidente ao séc. X. 6 - Séc. X I ao séc. XIII. 7 desenvolvem, alcançando um grande número de edificações e seguindo uma disposição mais ordenada. Com o passar do tempo e com os avanços do conhecimento humano, novos parâmetros de ordem, funcionalidade e segurança chegam como expressão de racionalidade, apesar do cenário físico da vida urbana tanto propiciar padrões de organização social, quanto propiciar violência, poluição e exposição de desigualdades. É muito provável que esteja localizada entre a Era Neolítica 7 e a Idade dos Metais 8 a utilização do cão já domesticado e de algum tipo de paliçada ou cercamento como elementos de segurança desses agrupamentos, o que ficou registrado em pinturas rupestres. Provavelmente nesta época, grupos de indivíduos foram autorizados a empregar a força física (real ou por ameaça) para regular as relações interpessoais dentro do grupo social a que pertenciam(famílias, clãs, tribos, grupos de interesse, comunidades territoriais, etc.). É muito provável que, desde o final da pré-história 9 os grupamentos humanos estivessem sujeitos a diferentes tipos de sistemas de segurança, cada qual definido por um tipo diferente de unidade social existente, onde o uso interno da força (dentro da unidade social) fosse aceito como legítimo. É também muito provável, que a mente humana tenha evoluído dentre outras coisas, para acreditar e aceitar o sobrenatural, decorrendo que essa aceitação significou uma grande vantagem por toda a pré-história, quando o cérebro humano estava evoluindo. Com a crescente organização e complexidade das diversas sociedades que se formavam, a fé tornou-se um poderoso fator de união, pois acreditar nos mesmos deuses foi a base do surgimento das primeiras civilizações, onde ser estrangeiro significava antes de tudo, venerar outros deuses. A fé religiosa como fenômeno humano, tornou-se um instrumento de coesão social, mas também de dominação interna e de conquistas externas. Os sistemas religiosos criados representaram uma enorme vantagem para os que governavam, pois o regramento que a todos submetia tinha origem admitidamente divina, provindo de um mesmo núcleo sagrado da mesma origem dos governantes, cujas origens funcionais encontram-se nas funções sagradas e sobrenaturais dos primitivos xamãs ou sacerdotes, que ao conduzir a prática religiosa e estabelecer as ligações com as divindades, acabaram pela prática, poderes e autoridade acumuladas, tornando-se também os condutores das guerras, da mediação dos conflitos e por fim, da administração da sociedade que se formava. Nas sociedades que se formaram neste alvorecer da humanidade, num período compreendido pela Era Paleolítica Superior 10 e o final da última Glaciação 11 e como conseqüência 7 -Em torno de 7.500 a 5.000 a.C. 8 -Após 3.500 a.C. 9 - Era ágrafa, isto é, sem escrita. 10 - Entre 20.000 e 15.000 a.C. 11 - Entre 10.000 e 7.500 a.C. 8 de funções cognitivas superiores, muitas atividades humanas dentre elas uma agricultura primitiva e atividades de pastoreio começaram a ser praticadas e a produzir excedentes acumuláveis, que por conseqüência passaram a requerer uma atividade que assegurasse suas integridades, seja contra os efeitos da natureza, seja contra ações de seus semelhantes. Provavelmente nessa época estão localizadas as primeiras noções de atividade de segurança como capacidade de ação humana para preservar bens e valores, fundamentalmente diferente dos procedimentos anteriores, baseados no natural instinto de preservação e de defesa, comum a todo reino animal. Essa nova prática, embrionariamente fundamentada em proteção e controle, era apoiada no conceito de autoridade, um racionalismo cujos rudimentos já se faziam presentes na vida social da pré-história. Não importa aqui discutir o problema filosófico da autoridade, no que diga respeito à sua justificação 12 , pois qualquer que seja o fundamento admitido, os conceitos de proteção, controle e autoridade estarão presentes e unidos, a partir daí e ao longo de toda a história do homem. As primeiras civilizações ocidentais, surgidas nos vales dos rios Tigre, Eufrates e Nilo, que nos legaram memória tradicional ou escrita, registram a existência de leis, tribunais e de impostos ou tributos. Para impor o cumprimento dessas leis, para que os tribunais cumprissem suas funções e executassem suas decisões e para possibilitar a cobrança de impostos, essas civilizações teriam que possuir um corpo de proteção, que embora não tivesse essa destinação exclusiva, a executava de forma quase rotineira. Essas sociedades ainda pouco complexas, de uma forma geral, tiveram por costume atribuir a um grupo de pessoas escolhidas ou a funcionários administrativos e a seus exércitos, as funções de execução das leis, de cobrança de tributos e de manutenção da ordem. Os governantes, de uma forma geral, mantinham grupos armados. Por vezes para repelir invasores e sempre para manter a ordem instituída e defender a autoridade do Estado. Assim ocorreu nas civilizações Mesopotâmica e Persa, como também nas Hebraica, Egípcia, Hitita, Minóica e Miceniana, até o apogeu das sociedades ditas complexas, como a grega e a romana. Isto diz respeito tanto às instituições públicas quanto às instituições privadas, sendo razoável acreditar-se que as organizações de segurança tiveram originalmente caráter privado (compostas por cidadãos), não eram especializadas (possuíam outras atribuições) e não eram de caráter profissional (no sentido de não possuir preparo específico para realizar atividades de segurança e exercer habitualmente outra ocupação). É desse período histórico, possivelmente em torno do século VI a.C, que Fustel de Coulanges, citando o político e orador ateniense 12 - São distintas as seguintes doutrinas fundamentais: a Natureza ( o mais forte ou dominante), a Divindade (a ligação com o sobrenatural) e o Contrato (o consenso daqueles sobre os quais a autoridade é exercida). 9 Demóstenes 13 , in Timotheum, nos informa da existência da função polícia, dentre as magistraturas de Atenas, no período chamado de Democracia: “Vinham a seguir, os magistrados especialmente criados pela democracia, que não eram sacerdotes e velavam pelos interesses materiais da cidade. Primeiro os dez estrategos que se ocupavam dos problemas da guerra e da política; depois os dez astínomos que cuidavam da polícia; os dez agorânomos, que vigiavam os mercados da cidade e do Pireu; os quinze sitofilaces, que cuidavam da venda do trigo; os quinze metrônomos, que controlavam os pesos e as medidas; os dez guardas do tesouro; os dez recebedores de impostos e os onze encarregados da execução das sentenças.” Fustel de Coulanges (2000, p.262). A fundação da República em Roma 14 já encontrou na cultura romana as Guardas Pretorianas 15 , os Lictores e os Magistrados encarregados de ministrar justiça, cumprir éditos e guardar tribunais e prisões. Essas guardas também executavam a função de proteção dos seus generais e das famílias patrícias. Durante o período republicano, cabia ao Senado de Roma a responsabilidade pela manutenção da ordem na capital e nas províncias; em Roma uma das magistraturas era atribuída a um Senador, que exercia a função de Prefeito 16 e era responsável pela ordem na capital. No século III a.C. a aplicação da Lei romana era deixada a cargo dos cidadãos. As vítimas e seus familiares tinham permissão para capturar os que lhes tivessem feito mal e administrar a punição correspondente ou levar os acusados aos magistrados, geralmente com a ajuda de parentes e amigos, que então decidia ou não pela culpa e os devolvia aos seus captores para aplicação da punição que a Lei 17 permitia, inclusive morte, escravidão ou pagamentos financeiros Quando Otaviano 18 tornou-se Princeps no ano 27 a.C., liberou o Senado romano da responsabilidade da administração civil do Império, assumindo ele mesmo essa responsabilidade e para tal, criou o cargo de Praefectus Urbi, que tinha a responsabilidade dentre outras, de 13 -Considerado o maior dos oradores da antigüidade grega, viveu entre 384 e 322 a.C. 14 - Século VI a.C. 15 -Milícias no sentido primitivo do termo. Tropa diretamente sob as ordens do Comandante supremo do exército romano (magistrado supremo ou pretor). Na era imperial, tropas que salvaguardavam o poder imperial e protegiam fisicamente o Imperador, no formato criado por Otávio Augusto (Otaviano), em 27 a.C. 16 - Em latim Praefectus, part.pass. do verbo praeficio, significando por à frente ou estabelecer como chefe. Prefeito, governador, administrador, intendente ou chefe.Título também atribuído aos governadores de províncias romanas. 17 -Ius Civile e a Lei das Doze Tábuas. 18 - César Augusto, sobrinho-neto e herdeiro de Júlio César. 10 manutenção da ordem, contando para isso com um Praefectus Vigilium 19 que dispunha de uma tropa composta por três coortes (regimentos). Por volta do ano 6 d.C., Roma institucionalizou uma força de segurança, que ficou conhecida por Vigiles, a qual por volta do século III d.C. já estava instalada por toda a capital, em postos fixos e ocupando-se do patrulhamento diurno e noturno, sendo essa a primeira estrutura pública de segurança, suficientemente documentada. Nos séculos I e II da nossa era, a segurança pública no Império Romano teve um caráter distintamente militar. Nas cidades ficavam aquarteladas tropas militares, denominadas Coortes 20 , com efetivo variável de 600 a 700 homens. As que executavam funções de polícia metropolitana eram chamadas de Vigiles e seus membros atuavam como policiais e como bombeiros, por vezes auxiliadas por milícias convocadas pelos magistrados, entre os cidadãos. Aos governos das Províncias romanas cabia o dever de perseguir os saqueadores de templos, salteadores de estradas, raptores e ladrões e puni-los, segundo a transgressão cometida. Quando a integração jurídica do império foi completada no séc. III. 21 , ampliando o direito de cidadania romana para todos os súditos livres, cabia a funcionários civis da administração imperial e às guarnições provinciais do exército romano a função de manutenção da ordem. No século I na Judéia, então província romana governada por Poncio Pilatos, além das centúrias romanas, também atuavam nas tarefas de segurança as guardas e milícias locais, como a guarda do templo do Sumo Sacerdote, em Jerusalém, conforme citado no Novo Testamento, no evangelho segundo São João (Jo, 18, 3.12), quando narra a prisão de Jesus, por ordem do Sumo Sacerdote Caifás: "………………………………………………………………… 3. Judas, tomando um destacamento de soldados e alguns guardas cedidos pelos Sumo Sacerdote e fariseus, veio com lanternas e fachos e armas. ………………………………………………………………… ………………………………………………………………… 12. Então o destacamento de soldados com o seu comandante, bem como os guardas judeus, prenderam Jesus e o amarraram. " Em pontos mais afastados do império, como na Ásia Menor, as tarefas de segurança eram atribuídas a um funcionário civil denominado Irenarca, que dirigia um corpo de segurança 19 - Correspondente a Chefe de Polícia. 20 - Geralmente Coortes Auxiliares, encarregadas de deveres policiais (Vigiles), compostas por 06 Centúrias, cada uma. 21 -Decreto Imperial do ano 212 d.C. 11 não-militar. Também no Egito sob dominação romana, havia uma força policial bastante elaborada, bem distinta das tropas de ocupação, resultado da herança Ptolomáica 22 . A rede de estradas do império, já bastante sofisticadas e eficientes para a época, recebia a proteção de tropas que ocupavam seus pontos de convergência, denominados de stationes. A queda do Império Romano do Ocidente 23 , com a invasão dos povos bárbaros e a dissolução do poder imperial (central) possibilitou, se não condicionou, o surgimento do Feudalismo 24 no espaço físico europeu e que caracterizou o que se convencionou chamar de Idade Média 25 . O enfraquecimento do poder central possibilitou que os senhores feudais fizessem guerras, cobrassem impostos, cunhassem moedas e administrassem justiça, o que anteriormente era prerrogativa imperial. O comércio passou a ter características locais e as populações ficaram a mercê dos saques e pilhagens, às vezes por parte do feudo vizinho ou dos estrangeiros, caso não tivessem a proteção do senhor do seu feudo. O colapso do Império Romano destruiu o sistema de segurança estatal e os grupos sociais passaram a valer-se de sistemas privados descentralizados ao extremo, como também passaram a ser a soberania política e a autoridade para criar leis. A partir da segunda metade do século IX e início do século X, os senhores feudais constituíram guardas ou estruturas militares para garantir seus domínios sem dependência de mercenários, inicialmente nas cidades, vilas e seu entorno, depois em campanhas pelo interior. No século XI observou-se um acentuado aumento da população européia, o renascimento da indústria, a ressurreição do comércio de longa distância e o aparecimento da burguesia, fatos que iriam modificar profundamente as relações existentes nos séculos seguintes. Nos séculos XII e XIII as vilas e cidades tiveram grande crescimento e desenvolvimento urbano, passando a cercar-se por muralhas. O mercado consumidor cresce vertiginosamente e aparecem as primeiras Comunas 26 ; nelas organizaram-se as primeiras milícias, sendo instituída a vigilância noturna no interior das cidades medievais, que nesta época, foram cercadas por muralhas (muitas só o foram sob o efeito de guerras). Em conseqüência, muitas aldeias e vilas foram fortificadas, sendo a muralha o elemento mais importante da realidade física e simbólica das cidades medievais. Embora seja provável que motivos de segurança tenham dado origem à sua construção, nem por isso deixaram de constituir – inspirados nos modelos dos muros antigos ou lendários que definiam o espaço sagrado da cidade – o elemento essencial da tomada de consciência 22 - Algumas dessas eram tropas mais ou menos romanizadas de governantes-clientes dos romanos; outras foram recrutadas e formadas pelos próprios romanos. 23 --Século V d.C. 24 -Sistema sócio-político-econômico fundamentado na desigualdade social, na hierarquização da sociedade e nas relações servis de produção. 25 -Séculos V ao XV. 26 -Cidades que possuíam maior grau de autonomia em relação ao senhor feudal. 12 urbana na Idade Média. Nesta época em que a violência tornou-se endêmica, a segurança era um encargo do senhor feudal, em contrapartida ao dever que os servos tinham em relação ao senhor. O fato de estar ou não sob a proteção nominal de um senhor feudal, não significava porém estar livre de perigos, daí o surgimento e proliferação de Ordens Religiosas Militares entre os séculos XII e XIV, que atuaram como forças policiais ou de segurança, tanto nas vilas e cidades como principalmente na escolta armada para peregrinos, dignitários e para a transferência de valores. Dentre essas ordens, ressaltam as dos Templários, dos Hospitalários e dos Cavaleiros Teutônicos, pelo papel que desempenharam durante as Cruzadas 27 . Na Alta Idade Média, com o crescimento das cidades e como conquista do seus habitantes, estes assumiram por vontade própria e por concessão dos senhores feudais os encargos de vigilância e manutenção das muralhas e de suas portas, que em geral foram distribuídos entre as corporações de ofícios nela existentes. Porém, as cidades permaneceram sob a sombra do castelo senhorial, com as funções de repressão conservadas através da distribuição da alta justiça do senhor, das prisões, do pelourinho e do patíbulo. O prefeito da cidade e os escabinos (conselheiros), símbolos do exercício do poder da cidade, encarregavam-se da vigilância das portas e da vigilância noturna, recrutavam e comandavam a milícia comunal, bem como provinham o pagamento destes. Le Goff 28 retrata o quadro existente em Paris na época: “A cidade empreende em meados do século XIII, a instauração de um sistema de policiamento, que coloca em primeiro plano o princípio do inquérito, em que a perseguição do crime se torna uma obrigação pública”. Jacques Le Goff (1992, p.175). O urbanismo medieval que caminha a passos lentos, segue agora visando quatro vetores principais: a limpeza, a regularidade, a beleza e a segurança. O grande perigo naquelas cidades era o incêndio;os quatro maiores crimes a evitar eram o incêndio, o roubo, o homicídio e o estupro. O século XIV é marcado pelo fortalecimento do poder real, que impõe a moeda real como meio de troca; que institui os tribunais reais superiores aos tribunais do feudo; a burguesia é fortalecida em detrimento da nobreza, surgindo os Estados Nacionais com seus exércitos encarregados da proteção do território, dos súditos e da manutenção da ordem interna. É dessa época a instituição do cheque bancário, inicialmente por necessidade de segurança, para evitar o transporte à longa distância de grandes valores, por caminhos inseguros; as casas bancárias já operantes desde o século anterior, começam a autorizar seus clientes a transferir fundos entre si, de praças diversas, sem que o dinheiro real mudasse de mãos; essas transferências escriturais, iniciadas 27 -Nome dado às expedições empreendidas entre os séculos XI e XII pela Europa cristã, contra os turcos muçulmanos que ocupavam Jerusalém. 28 -O mais importante historiador francês contemporâneo. 13 por ordens verbais por volta do ano de 1400, passaram a ser feitas mediante ordens escritas, como antecessoras do cheque atual. Por outro lado é o período marcado por guerras, fome e pestes. Já nesta época, às forças militares competiam a captura e a guarda dos infratores da Lei, a guarda das cidades (perímetro amuralhado e das portas), a guarda dos tribunais, auxílio aos magistrados e arrecadadores de impostos, patrulha das estradas e caminhos e uma incipiente atividade de guarda territorial. Em regra, nos idos entre a queda do Império Romano do Ocidente e o despertar medieval, os governos desconheceram teoria, estrutura ou instrumentalidade além do puro exercício da força do arbítrio, o que gerou precárias condições sociais e desordem. Neste quadro, o ato de governar começou a tomar forma na Idade Média como função reconhecida, com princípios, métodos, agências, parlamentos e burocracias, através das quais reagrupou autoridade, criou meios e adquiriu capacidade 29 . Gradualmente a soberania e a autoridade foram sendo reagrupadas com o aparecimento dos Estados Nacionais e possibilitando o aparecimento de cargos públicos diretamente providos pelo poder dos soberanos. Na Inglaterra do século XII apareceram os Xerifes 30 nomeados pelos reis normandos, para administrar a segurança do reino. Para tal, poderiam contar com todos os homens saudáveis com idade superior a quinze anos e cobrar impostos daqueles que cometessem crimes. Na França do século XII, o Superintendente de Paris auxiliado por Comissários Investigadores e Sargentos, comandava uma pequena divisão de tropas militares montadas e patrulhas noturnas, das quais participavam todos os cidadãos do sexo masculino. Nessa mesma época, foram instituídos pelo monarca Felipe Augusto (1180 a 1223) os Prebostes, oficiais senhoriais ou da monarquia, com funções de aplicação da justiça. No século XIV foi criado o cargo de Intendente, nomeado e pago pelo Rei, para manter a ordem, administrar a justiça e coletar impostos em todo o reino; em Paris e nas demais grandes cidades foi criado o cargo de Tenente- Geral da Polícia para dirigir uma guarda montada. O final da Idade Média, marcado pela queda do Império Romano do Oriente 31 , marca também o fortalecimento do poder real em detrimento dos senhores feudais e a consolidação dos Estados Nacionais, estabelecendo finalmente a falência do feudalismo e o surgimento do Estado Absolutista. É neste cenário que encontramos na França, uma organização chamada Marechausses, criada como conseqüência do aparecimento do Estado francês, força militar que durante séculos exerceu funções de segurança em todo o território. 29 - Com base em Tuchman, (p.17). 30 -Termo derivado de Shire-Reeve ou Prefeito de Distrito. Funcionário real e encarregado de velar pela Ordem Pública, nos Condados. 31 -Tomada de Constantinopla pelos turcos muçulmanos, em 29 de maio de 1453, sob o comando do Sultão Mehmed II. 14 Colocada pelos reis sob a responsabilidade dos Marechais, essa organização composta por guerreiros disciplinados era encarregada de controlar e vigiar outros guerreiros fugidos e entregues a pilhagens e saques. Progressivamente a competência desse gens d’ armes foi alargada ao conjunto da população. Sua denominação deriva da sua origem como polícia militar dos Marechais em campanha. No século XVI, o Rei Francisco I (1515 a 1547) incumbiu-a de velar pela tranqüilidade pública do reino, capturando os bandos de assaltantes e os assassinos que aterrorizavam os campos e escapavam à justiça dos tribunais das cidades. Nos séculos XVI e XVII, a atividade da organização em muito concorreu para assegurar a autoridade real e para a consolidação do Estado nacional. Comandada por um Preboste 32 com poderes judiciários, julgavam eles próprios determinados delitos de menor gravidade e apresentavam aos tribunais os acusados de faltas mais graves. No final do século XVIII, a instituição já estava desdobrada em todo o território francês, implantada em postos fixos com pequenos efetivos e organizada em Brigadas e Companhias. Como conseqüência do processo revolucionário de 1789, bem como pelo reconhecimento dos constituintes revolucionários, teve sua denominação alterada para Gendarmerie National, designação que até hoje guarda. Ainda no século XVII, na sua segunda metade, já existia no reino de França, a função de Intendente de Polícia do Reino, com seus comissários e policiais, como nos informa Cathala (1975, p.13). Como conseqüência das Guerras Napoleônicas, a maior parte dos Estados europeus adaptaram ou criaram suas organizações de segurança com base no modelo operado em França 33 , excetuando-se neste caso a Inglaterra, os Estados Alemães e o sul da Itália 34 . Ainda como conseqüência da tendência da formação dos Estados nacionais e do absolutismo europeu, a europeização do Império Russo levada a efeito por Pedro, o Grande, no final do século XVII e início do século XVIII, ao firmar seu poder absoluto sobre toda a autonomia regional, criou um sistema de polícia nacional em todo o império, como forma de demonstração da autoridade imperial e para centralizar a modernização que pretendia realizar na função segurança. As dimensões privada e pública da atividade segurança, não como antagônicas mas como complementares, de uma forma geral e até o século XVII, nunca foram claramente distintas ou de fácil identificação. Nas antigas civilizações pré-helênicas, nas suas contemporâneas e nos impérios que depois se consolidaram, nem sempre a atividade pública era claramente distinta da atividade privada, se considerado o status dos agentes executores e o locus da execução. A começar 32 -Um preposto a quem eram delegadas autoridade e competência legal. 33 -No período consular de Napoleão, entre 1799 e 1804, já existia na estrutura do governo, o cargo de Ministro de Polícia. 34 -Somente adotado na totalidade do território após a unificação italiana, em 1861. 15 pelo próprio conceito de Justiça, se pública ou privada. Com a dissolução do Império Romano (ocidente) e a instalação do regime feudal, esta noção tornou-se ainda mais confusa, já que o Estado Feudal confundia-se com a propriedade do senhor. Foi a época da ambigüidade por excelência, inclusive nas relações de poder, onde o rei era senhor de seus vassalos e estes eram propriedade sua, mas que por sua vez possuíam seus próprios vassalos. Essa cadeia de obrigações e serviços pessoais se estendia ao próprio rei, que poderia ser vassalo de outro rei no que se referia a parte de suas terras. No grau mais baixo desta cadeia ficavam os escravos, que pouco a pouco evoluíram paraa condição de servos, homens não livres, presos ao solo do feudo onde nasceram, mas detentores de certos direitos. Em torno do século XIV, o despontar de um Estado principesco ou monárquico-centralizador começa a criar condições objetivas para o estabelecimento de diferenças entre estruturas públicas e privadas, com a ascensão da burguesia ao poder. Dificuldades de natureza política, econômica, administrativa e principalmente financeira, acumuladas nos três séculos seguintes, irão desaguar em descontentamento com o status quo que se cristalizou em duas teorias particulares, expressando as preocupações e as aspirações da burguesia européia, já rica e ascendente. A primeira delas foi a Teoria Liberal, de Loche, Voltaire e Montesquieu. A segunda, foi a Teoria Democrática de Rousseau. Embora antagônicas, muito tiveram em comum. Ambas se basearam na premissa de que o Estado era um mal necessário e que o governo deveria repousar numa base contratual. Cada qual tinha sua doutrina de soberania popular, ainda que com visões diferentes. Ambas sustentavam, em certa medida, os direitos fundamentais dos indivíduos e ambas encerravam elementos de atração para os que, por variados motivos, estavam insatisfeitos com o estado de coisas vigentes à época. A conseqüência foi revolucionária a partir da Independência Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789), com a tripartição dos poderes do Estado, a separação do religioso e do laico, bem como a separação do público e do privado. A distinção entre as atividades públicas e privadas cria condições objetivas também para a fixação de critérios distintivos entre os segmentos empenhados nas atividades de segurança, permitindo distinguir com maior clareza as iniciativas estatais (segurança pública) e as iniciativas particulares (segurança privada). Em se tratando do Novo Mundo os esquemas vigentes na Europa se reproduzem, só que num espaço de tempo menor. Os colonizadores, até por questão cultural, tratam de reproduzir no Continente Americano os esquemas já consagrados e por eles dominados, vigentes nos reinos colonizadores que afinal representavam. No que é hoje os EUA, no inicio do século XVI, a 16 colonização se dá com a ocupação francesa ao sul e a inglesa ao norte da costa leste, com a instalação de feitorias e colônias. No século XVII e em grande parte do século XVIII, a responsabilidade por fazer cumprir as leis foi sendo transferida gradativamente do cidadão comum para o especialista policial, com o aparecimento das primeiras organizações do gênero, em ambiente urbano. Nova Iorque, ainda com o nome de Nova Amsterdã, criou uma Vigilia Burguesa em 1643, um ano após ter sido fundada, porém só passou a pagar por esses serviços em 1712. A Guerra de Independência Americana (1776) e a unificação das Treze Colônias favoreceram a formação de forças de segurança para a defesa do território e o cumprimento das leis, ainda que baseada na idéia de defesa urbana. No interior, meio século depois da independência, as pequenas comunidades (núcleo da vida americana) ainda viviam à margem de toda autoridade central, unidas às comunidades vizinhas tão somente pelos laços de comércio, religião e cultura, onde prevalecia a idéia da capacidade individual e da associação dos cidadãos para cumprir e fazer cumprir as leis. Este quadro, que marcou a vida americana nos três primeiros séculos de ocupação territorial e que pontificou durante o período da unificação jurídico-administrativa do país, foi possível graças a três fatores que puderam superar a contradição entre liberalismo e estrutura política: a religião livremente fiel às tradições; a economia sã fundada na moral religiosa e a uma elite de homens conscientes dos valores básicos da civilização. Uma religião tanto mais arraigada na alma do povo quanto mais livre da contaminação estatal, pois fora justamente para proteger seu culto religioso de qualquer interferência governamental que os pioneiros trocaram o velho pelo novo mundo. Essa religião, popular e não oficial mas ao mesmo tempo conservadora e apegada às tradições, deu unidade moral mais profunda e mais decisiva, abrindo espaço a uma sociedade de confiança estruturada numa ética de lealdade, espontânea, de todos para com todos, fundada na liberdade para comprar e vender. Essa conjugação de fatores se condicionou e embasou a decisão político-jurídico-administrativa que deu margem a um estado totalmente inovador, condicionou também as instituições que lhe serviram como aparato estatal, dentre elas o aparelho de segurança à disposição do estado, onde conviviam e ainda convivem as organizações privadas e as organizações públicas. No século XIX, com a marcha para o Oeste, a ocupação do Meio-Oeste e da fronteira do Norte, bem como pela ocorrência da Guerra da Secessão (1861), as organizações de segurança foram ampliadas e disseminadas pelo território, com a missão principal de patrulha ostensiva preventiva e captura de criminosos. A missão de investigação ficava a cargo dos particulares (agentes privados), através de detetives contratados e caçadores de recompensas. Nova Iorque, a 17 maior cidade americana no início do século XIX, somente organiza sua força policial no ano de 1845, com base no Departamento de Polícia criado em 1783. Já no final do século XIX e início do século XX, as forças de segurança pública se reorganizam e passam a importar modelos europeus de organização e prática policial, primeiramente da França e depois da Inglaterra, cuja força policial de Londres fora totalmente reformulada em 1829, por iniciativa do Ministro Robert Peel, baseada numa estrutura organizacional civil e estável, eficaz, militarmente organizada e sob controle do governo, em contraponto ao modelo napoleônico. O que se viu foi um confronto de distintos modelos de policiamento: de um lado o modelo anglo-saxão, com polícia descentralizada, não militar e que exercia a coerção por consenso; de outro o modelo francês, com polícia de estado, centralizada, militar e com baixa aprovação pública. É interessante ressaltar que somente em 1748 foi instituída na Inglaterra uma força de segurança de caráter permanente, profissional e remunerada com impostos recolhidos dos cidadãos, encarregada das patrulhas nas cidades e estradas, contando com investigadores e criadas as cortes de polícia, num modelo claramente inspirado na experiência francesa de substituir as milícias privadas dos grandes empresários e proprietários de terras. Sabemos que o instinto de autoproteção é comum aos integrantes do reino animal, dentre eles o homem. Antropólogos e sociólogos observam que o homem, desde seus representantes mais primitivos, experimentaram cuidados relativos tanto com a segurança individual como a do seu grupo de pertencimento face seus predadores, dentre eles, os seus semelhantes. Como atividade individual, os procedimentos de segurança evoluíram na medida das tecnologias que descobriu e passou a usar, facilitada pelo comportamento gregário que por instinto de defesa passou a adotar. Como função protetiva evoluiu, desde as formas mais primitivas de Estado até estruturas mais sofisticadas e modernas, ora como função senhorial, ora como função pública, sendo que em determinados períodos, de forma indistinta. As instituições de segurança de caráter público são dominantes nos dias de hoje, mas já vimos que uma grande parte delas foi originalmente de caráter privado, tendo convivido por um bom período como híbridos. Ao longo da história, conviveram estruturas de poder com hierarquias concorrentes. De um lado a hierarquia tradicional ou senhorial, caracteristicamente patrimonialista, pessoal e individualizada. De outro lado a hierarquia moderna, caracteristicamente pública, impessoal e padronizada. É evidente que apesar das instituições de segurança de caráter público dos dias atuais sejam, na sua maior parte pagas edirigidas pelos governos, este fato não inibe o emprego de instituições privadas de segurança, cujo emprego cresce enormemente, em particular nos países mais industrializados e mais avançados, o que permite concluir que as instituições 18 públicas não suplantaram permanentemente as instituições privadas e que o processo observado seja plenamente reversível. As instituições de segurança que existiram no Brasil desde o inicio da ocupação européia do território, também enquadram-se na questão dicotômica da natureza pública/privada de suas organizações. Coexistiram no Brasil durante a época colonial até a independência, diversas instituições com encargos de segurança sendo as principais a tropa regular da coroa portuguesa, os Regimentos de Milícias e as Companhias de Ordenanças 35 , além do serviço prestado pelos “Quadrilheiros.” 36 A tropa regular era um serviço militar, remunerado pela administração colonial e as demais, uma conseqüência da política de estímulo ao serviço militar não remunerado e não profissional, que apoiava-se essencialmente na distribuição de privilégios e recompensas aos detentores dos cargos superiores. O serviço militar não remunerado, prestado como dever cívico pelos cidadãos, foi um fenômeno registrado em variados períodos históricos da humanidade. Desde os tempos mais remotos e em épocas de crises, a população masculina fisicamente apta viu-se obrigada a participar de atividades militares, armadas e equipadas às suas próprias custas, que uma vez cessada a crise retornava à vida civil e aos seus afazeres. Tratava-se pois de um antigo sistema de recrutamento militar, baseado na solidariedade tribal e na responsabilidade coletiva. Este quadro se prolonga com pequenas variações no tempo e no espaço colonial, até o inicio do século XIX, quando a chegada da família real ao Brasil (em 1808), muda profundamente o quadro e favorece às alterações provocadas pela brusca sofisticação ocorrida na ex-colônia, transformada em sede do Reino. Ainda no ano de 1808 foi criada a Intendência Geral da Corte e do 35 - A estrutura militar no Brasil Colonial, compreendia três tipos específicos de força: os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha ou de 1 ª linha), as Milícias (conhecidas também por Corpo de Auxiliares ou de 2ª linha) e as Ordenanças (conhecidas também por Corpos Irregulares ou de 3ª linha). Os Corpos Regulares eram a única força paga pela Fazenda Real. As Milícias ou Corpos de Auxiliares ou de 2ª linha, eram serviços não remunerados e obrigatório para os civis, constituindo-se em forças deslocáveis que prestavam serviço de apoio às Tropas Pagas, mas não ficavam ligados permanentemente à função militar como ocorria nas Tropas Regulares. As Ordenanças ou Corpos Irregulares ou de 3ª linha, atuavam como auxiliares do Exército Regular (1ª linha) e das Milícias (2ª linha), compreendendo todos os homens livres válidos entre 18 e 60 anos que ainda não tivesse sido recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os privilegiados. Isso excluía as mulheres, os jovens, os escravos e os indígenas mesmo aculturados. Seus componentes também não recebiam soldo e permaneciam em seus serviços particulares, até serem convocados. As Milícias e as Ordenanças estruturavam-se nas freguesias dos municípios, de acordo com o domicílio dos habitantes. Eram organizadas nas cidades e nas vilas, mas com instrução militar rudimentar ou inexistente e com escasso armamento. Geralmente seus integrantes faziam parte de grupos de segurança dos grandes proprietários de terra, comerciantes, exploradores de minas, etc. 36 - - Instituidos no Brasil em 1626, pelo Ouvidor Geral Luiz Nogueira de Brito, teve como modelo a atividade existente em Portugal desde 1383, atuando do anoitecer ao alvorecer. O Quadrilheiro nomeado para uma freguesia, chefiava vinte vizinhos para isso eleitos, para controlar uma área determinada da cidade, com o objetivo de evitar delitos, controlar desordens e auxiliar na captura e castigo dos culpados. Era serviço obrigatório e não remunerado. Citado por Francis Albert Cotta, em “Os quadrilheiros no caleidoscópio: um exercício de história comparada”, disponível em WWW.fafich.ufmg.br 19 Estado do Brasil, que absorveu e centralizou as atribuições de segurança de várias autoridades menores e foi o núcleo da instituição hoje conhecida como Polícia Civil. No ano seguinte foi criada uma instituição chamada de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, repetindo no Brasil idêntica organização existente em Lisboa, que passando por diversas denominações ao longo dos anos, hoje é conhecida por Polícia Militar. As duas inovações traziam para o Brasil estruturas mais modernas, resultado da experiência francesa espalhada na Europa, com organizações já profissionalizadas, centralizadas e especializadas, visando objetivamente a ordem pública na Corte do Brasil e que acabaram por favorecer o aparecimento de instituições de idêntica organização, no restante do território brasileiro. Com o retorno da família real ao continente europeu, foi criada no Brasil em 1822, uma instituição denominada Corpo de Guarda Cívica, organização não regular, não profissionalizada e não especializada, que seria reunida e atuaria em ações de segurança, apenas quando convocadas e que teve breve existência. A Independência em 1822 ocasionou uma divisão dentro da sociedade brasileira e também dentro das instituições de segurança existentes, motivadas pela perda ou obtenção de privilégios, pelo sentimento de lealdade ao reino antigo ou ao novo império que se instalava e por uma ainda pouco nítida idéia republicana, o que originou inúmeros movimentos separatistas e revoltas armadas ao longo de todo o Primeiro Império, alimentadas pelas características pessoais do Imperador D. Pedro I, sua visão absolutista de administrar e pelas novas regras do império que procurava consolidar, que alterou radicalmente a estrutura municipalista e de poderes locais da antiga colônia. A vida municipal no Brasil-Colônia era orientada pelas cartas de doação aos donatários das Capitanias, assim como pelas Ordenações do Reino, complementadas em muitos casos por acréscimos legais impostos para resolver questões tipicamente locais, tolerados pela administração do reino, desde que os interesses da metrópole portuguesa não fossem prejudicados. Com a Independência, houve uma nova orientação de governo no sentido de restringir os poderes municipais, sujeitando os Municípios aos poderes das Províncias (as ex-Capitanias), transformando as Câmaras Municipais em executoras do poder do Presidente da Província, nomeado pelo poder imperial. Com a abdicação de D. Pedro I em 1831, teve inicio um período de regências, até a declaração da maioridade de D. Pedro II, o segundo Imperador. Durante o primeiro período regencial, foi criada em 18 de agosto de 1831, uma milícia denominada de Guarda Nacional, a qual foi modelada com base em milícias já existentes em França e nos Estados Unidos. A nova organização teve intensa atuação no campo militar e de segurança, dentro do princípio de que as milícias seriam a melhor opção para a manutenção da ordem interna, deixando aos exércitos as tarefas de ataque e defesa. Essa tendência para utilizar forças de milícias não remuneradas pelo 20 governo e não profissionais, contrariava uma tendência já observada na Europa para empregar forças profissionais, especializadas e remuneradas pelo Estado em substituição as milícias privadas, movimento esse originado na Inglaterra em 1829, quando da iniciativa de Sir Robert Peel em reformular a polícia de Londres. A nova instituição criada em substituição aos corpos auxiliares das Milícias, Ordenanças e Guardas Municipais, tornou-se um importante elemento de emprego na manutenção da ordem interna e da integridade nacional,até 1850 quando foi reformulada, tendo inicio um longo período de declínio e praticamete desaparecido depois da Guerra do Paraguai 37 , até ser formalmente extinta em 1917. Seus remanescentes, não mais como cidadãos-soldados mas como "coronéis" da política local, até recentemente desenvolviam atuação político-partidária em determinadas regiões do interior brasileiro. A Guarda Nacional como instituição não pública (no sentido de não onerar o Estado com o pagamento de seus integrantes), não profissional e não especializada, foi aplicada intensamente em ações de segurança, juntamente com as instituições oficiais, de natureza pública, profissionais e especializadas existentes à época, assim como eram aplicadas as estruturas essencialmente privadas, principalmente no interior e zonas rurais, onde forças organizadas e mantidas por grandes proprietários e comerciantes, eram empregadas em segurança pessoal, patrimonial e na defesa de seus interesses. As primeiras referências sobre a necessidade de criação de uma milícia cívica, não profissional e composta por cidadãos, para atuar sob a autoridade de um Juiz, com a finalidade de representar a "força física" daquela autoridade, em substituição às desgastadas Ordenanças, tiveram lugar na Câmara dos Deputados por volta de 1830, dando margem a diversas propostas e discussões. As agitações de julho de 1831, os movimentos revoltosos do Exército e da Polícia, bem como a ineficiência da atuação das forças auxiliares (Milícias, Ordenanças e Guardas Civis) na manutenção da ordem interna, criaram as condições objetivas para que em agosto do mesmo ano fosse criada a Guarda Nacional e fossem extintos os corpos auxiliares das Milícias, Ordenanças e Guardas Municipais. A nova instituição foi incumbida da manutenção da ordem interna, para a defesa da Constituição, da liberdade, da independência, da integridade do Império, para manter a obediência às leis, conservar ou restabelecer a ordem e a tranqüilidade pública, como também para auxiliar o Exército na defesa das fronteiras e costas, tendo sido vista inicialmente como uma alternativa à própria existência de um exército nacional. A Guarda Nacional composta por cidadãos que prestavam seus serviços gratuitamente à nação, cujos serviços eram de natureza permanente, obrigatória e pessoal, englobava todos os cidadãos brasileiros até a idade máxima de sessenta anos, que fossem "filhos de família" e que 21 tivessem renda que os qualificasse como eleitores. A instituição foi organizada por Província do Império e distribuída pelos municípios, paróquias e curatos, estando subordinada sucessivamente aos Juizes de Paz, aos Juizes Criminais, aos Presidentes das Províncias e ao Ministro da Justiça do Império. Cabia à Câmara Municipal sua distribuição territorial por Seções de Companhia, Companhias, Batalhões e Legiões, possuindo organização variável de infantaria, cavalaria e artilharia, quando necessário. A originalidade da nova instituição estava na sua legislação que previa um sistema eletivo para os postos de Oficiais, através escrutínio individual e secreto, prevendo ainda o sistema da maioria absoluta de votos para os postos mais elevados, sendo a eleição válida por quatro anos, permitida a reeleição. As despesas do governo com a corporação eram de pequena monta, restringindo-se à distribuição do armamento, instrumentos musicais, material de escritório e pagamento dos instrutores contratados. Os uniformes eram encargos dos próprios recrutados, que deveriam prestar serviços, preferencialmente no distrito onde residissem. A ideologia que sustentou o nascimento da Guarda Nacional, deu continuidade ao pensamento colonial do emprego de forças auxiliares não profissionais, que não onerassem o Estado e compostas por cidadãos interessados na manutenção da ordem. O seu emprego em muito contribuiu para a ordem interna, principalmente no aspecto de prevenção e repressão a anarquia e a homicídios, mas a falta de uma legislação adequada e a superposição de atribuições legais, veio a ocasionar conflitos com as instituições militares e policiais. Em setembro de 1850 o governo procedeu uma substancial modificação na legislação da corporação, que transformou sua característica básica de organização descentralizada e eletiva, para centralizada e hierarquizada, que somadas às alterações já realizadas para separar a função policial da função judicial e ao excesso de encargos atribuídos à Guarda Nacional, como escolta de valores, condução de presos, inspetores de quarteirão, guarda de alfândega, serviço de barreiras, de oficiais de justiça, sentinela de chafarizes, participações em paradas e desfiles militares, etc. , praticamente iniciou seu longo declínio, sendo praticamente desativada após a Guerra do Paraguai (1870), para ser extinta em 1917, como já mencionado. A história da Guarda Nacional refletiu as contradições da sociedade brasileira no século XIX. Naquela sociedade agrária de mentalidade familiar-patriarcal dominante, pensava-se em termos de privilégios pessoais e de classe. A obediência às leis em benefício do Estado, tinha pouca significação numa sociedade escravocrata e hierarquizada. As dificuldades de distribuição de justiça em regiões distantes dos grandes centros da época, as vinganças, as lutas pessoais e partidárias e a organização das forças políticas locais, afetaram fundamentalmente a própria estrutura da milícia. 37 -Travada entre dezembro de 1864 e março de 1870. 22 À medida que a Guarda Nacional foi perdendo sua característica de força paramilitar e de segurança e se transformando em força político-partidária, transformou-se também numa tropa de oficiais sem soldados, oficiais indicados e não mais eleitos, quase sempre escolhidos dentre os elementos de prestígio social e econômico, com finalidade político-eleitoral. E isso foi fatal para a corporação. A realidade exposta pela deflagração da Guerra do Paraguai deixou patente tanto a carência do Exército para enfrenta-la, como a incapacidade das Guardas Nacionais (já dominadas pelas elites regionais) para suprir essas carências e atuar como força auxiliar. A milícia sem treinamento satisfatório, enfraquecida e limitada desde as alterações introduzidas em 1850, pouco produzia e muito atrapalhava as atividades profissionais dos seus membros, sendo que no interior do país servia principalmente como instrumento de dominação política. As dificuldades vividas e as mazelas observadas no período de guerra (1864-1870), provocaram mudanças radicais no pós- guerra, com o reconhecimento do valor das forças armadas e a valorização e o desenvolvimento das forças policiais profissionais, políticas governamentais adotadas no ocaso do império e no nascente período republicano que lhe seguiria. A proclamação republicana em 1889 transformou as antigas Províncias Imperiais em Estados, cuja união formava a nova federação. O conceito de federação deu margem ao entendimento equivocado de Estados independentes ou soberanos e não de Estados autônomos, o que concorreu para o aparecimento de um corpo legislativo estadual que consagrava organização judiciária independente do governo central, uma certa autonomia em matéria processual e também, maior ou menor separação da atividade policial da magistratura, no âmbito dos Estados. A idéia de Estados fortes para sustentar o ideal de uma união federalista, provocou uma corrida para o fortalecimento das forças policiais profissionais, estadualizadas com o advento da República. Assim sendo, alguns Estados passaram a ver suas forças policiais como verdadeiras forças armadas estaduais e as armaram como pequenos (alguns não tão pequenos) exércitos, alguns com artilharia,veículos blindados de combate e aviação de guerra. O treinamento passou a incluir táticas de infantaria e a organização foi militarizada, com evidentes prejuízos para sua aplicação no policiamento, o que veio a acarretar o aparecimento de diversas corporações, de efêmero emprego policial no âmbito dos Estados, como as Guardas Civis, Polícia de Vigilância, de Trânsito, Rodoviária, Especial e outras, que passaram a dividir com as forças policiais tradicionais (Militar e Civil), a responsabilidade pelo policiamento. A última década do século XIX e as duas primeiras do século XX, foram marcadas pelo confronto de correntes ideológicas que buscavam consolidar-se no cenário político-institucional da república nascente. Monarquistas versus Republicanos. Positivistas contra Liberais. Federalistas 23 antepondo-se a Centralistas. As transformações sociais decorrentes da abolição da escravatura e da mão de obra agora livre, chocando-se numa sociedade ainda escravocrata, com a dificuldade dos imigrantes e a novidade das ideologias libertárias por eles introduzidas. O aumento significativo da população e a sua urbanização, deu margem a uma tentativa de controle que já se fazia necessária. Em 1890, o país contava com 14 milhões de habitantes, que em 1900 já eram 17 milhões e que em 1920 se elevaram para mais de 30 milhões de habitantes, com significativa parcela de imigrantes. Estes e outros problemas decorrentes agravaram o cenário onde conviviam um novo e híbrido Código Penal, aprovado em 1890 e que vigorou até 1942, cuja estrutura clássica remetia ao livre- arbítrio, embora consagrando princípios positivistas, operando em conjunto com uma Constituição promulgada em 1891, totalmente inspirada na tradição liberal anglo-americana. É desse período, a criação da Escola de Polícia do Distrito Federal (em 1907), a regulamentação do Serviço Policial (em 30 de março de 1907) e a iniciativa (em 1908) de identificação universal da população, com a utilização do método Vucetich de datiloscopia. Foi também um período conturbado por rebeliões sucessivas e desestabilizadoras. A sublevação das fortalezas de Lages e Santa Cruz, em 1892. A Revolta de Canudos, a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul e a Revolta da Armada, em 1893. Os levantes da Escola Militar, em 1895, 1904 e 1905. A Revolta da Chibata, em 1910. O levante do Forte de Copacabana, em 1922, nos primórdios do Movimento Tenentista. A revolução do Rio Grande do Sul contra Borges de Medeiros, em 1923. A Revolução Paulista, em 1924. A Coluna Prestes, até 1926 e a Revolução de 1930, que encerraria este ciclo penoso que se chamaria de República Velha. Não só no quadro estatal as organizações de segurança se multiplicaram. Também novos organismos privados passaram a atuar na prestação de serviços para atividades comerciais e industriais, se bem que de maneira rudimentar e concentrada em vigilância patrimonial orgânica. Num aspecto mais largo e já em meados do século passado, as Guardas Noturnas - organizações privadas e tipicamente urbanas - passaram a operar, num limbo divisório e muito pouco nítido entre a atividade pública e a atividade privada, em praticamente todo o país, atendendo tanto necessidades individuais quanto coletivas, sempre remuneradas por entes privados e prestando um serviço de natureza pública. De uma maneira geral este quadro se repete por todo o país, principalmente nos centros urbanos e suas periferias, atravessando o final do Estado Novo quando no Rio de Janeiro, a Polícia Civil do Distrito Federal foi transformada em Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), por força do Decreto-Lei Nº 6.378, de 28 de fevereiro de 1945. O quadro pouco foi alterado nos períodos subseqüentes, conhecidos como redemocratização e desenvolvimentista até que nos anos sessenta e o movimento revolucionário de março de 1964, alterou fundamentalmente a história 24 republicana, tanto pelo ciclo de governos militares que lhe foi conseqüente, quanto pela reação de grupos políticos de esquerda que os contestaram de forma violenta. O final da década de sessenta e o inicio da década de setenta foi marcado por roubos a bancos e a outras instituições financeiras, bem como seqüestros e outras modalidades criminosas afins, com os objetivos de levantar fundos para financiar e divulgar a luta armada contra o regime militar. No inicio do ano de 1969 a luta armada achava-se em pleno curso, contando com organizações clandestinas operando principalmente em ambiente urbano, situação favorecida pela precariedade e pelo amadorismo com que as instituições financeiras, carros-fortes, paióis de explosivos e casas de armas eram protegidas. Foi sem dúvida, um período fértil para a atividade de guerrilha urbana, sendo que durante o ano de 1968 contabilizou-se um assalto a cada três semanas, contra carros-fortes e agencias bancárias, em São Paulo. Este número foi suplantado nos últimos cinco meses do ano de 1969, quando verificou-se a ocorrência de um assalto a cada seis dias. Foi a era do mito do "bandido-herói" e do banditismo visto como protesto político- social, levando a extremos não só pelo culto da "malandragem" já tradicional na nossa cultura, mas também pela entronização das teses do sociólogo Eric Hobsbawn. Foi no Rio de Janeiro no inicio da década de 1980, a era do “bandido-cidadão” e da “favela como solução e não como problema”, o que colocou as favelas em área de exclusão da atuação policial. Foi também a era da acelerada e descontrolada favelização das maiores cidades brasileiras e da explosão dos índices de criminalidade, com ênfase nos homicídios e no tráfico de drogas. Com respeito a questão das drogas, é necessário apontar que antes de tornar-se um comércio com a amplitude e desenvoltura que hoje apresenta, o uso de drogas foi primeiramente considerada um prática marginal 38 , só assumindo ares de modismo e prática socialmente tolerada após ser defendida por parte da intelectualidade brasileira 39 , ora como um "caminho para a libertação" ora como "anestésico existencial", daí irradiando-se para a classe média urbana e para o povo em geral. Essa ideologia enganosamente “social,” que justificava atos criminosos como expressões naturais de uma sociedade injusta e desigual, passou a nortear um discurso falacioso que se apoiava na pobreza como razão de ser da criminalidade, sendo reforçado pela ideologização feita por políticos, intelectuais e outros formadores de opinião, na defesa dos “direitos humanos,” na verdade uma apropriação indevida e usada na defesa daqueles que atentavam contra o estado de direito. 38 - Embora a proibição do uso de ópio no Brasil seja de 1737, o uso sistemático de drogas como cocaína, morfina, ópio e outros derivados só começou a ser observado ao final da Primeira Grande Guerra (1918), sendo sua proibição oriunda do Decreto Federal N.º 4.294, de 06 de julho de 1921. 39 - Ver artigo do escritor João Ubaldo Ribeiro, membro da ABL, sob o título “Tirem suas próprias conclusões”, publicada no jornal O Globo, edição de 09 de maio de 2004, p. 07. 25 Essa fraude semântica e o uso demagógico do adjetivo “social” para distorcer os conceitos fundamentais de estado de direito e de justiça, deram margem a que, até hoje, organizações criminosas como o Comando Vermelho, PCC, MST e outras, possam ameaçar vidas e propriedades em nome de “direitos” e “justiça social,” atuando rotineiramente como instrumentos de chantagem e intimidação política. Criado o mercado, os traficantes aproveitaram a oportunidade, usando a violência como garantidora de seus mercados e a impunidade como fomento de suas atividades. Para que se entenda as conseqüências da onda de violência desse período, necessário se torna conhecer o quadro mais amplo formado pela época que a antecedeu e pela que lhe sucedeu. Ou seja, conhecera marcha da criminalidade ao longo do século XX, pelo menos nos seus aspectos mais gerais. Na cidade do Rio de Janeiro, a Taxa de Homicídios 40 demorou cinqüenta anos (1900 a 1950) para crescer cerca de duas vezes e meia. Em 1900 a taxa apurada foi de 1.8 homicídios por grupo de 100.000 habitantes, tendo pulado para 4.5 homicídios por grupo de 100.000 habitantes em 1950, ocasião em que o país alcançou a marca de 50 milhões de habitantes e o Rio de Janeiro era a Capital Federal. Mais vinte anos se passaram para a Taxa de Homicídios praticamente dobrar, considerando a taxa de 4.5 em 1950 e a taxa de 8.6 em 1970. Note-se que na década seguinte, a Taxa de Homicídios dobrou novamente, sendo apurada a taxa de 17.3 em 1980. A situação agravou- se na década seguinte (1980 a 1990), quando praticamente triplicou, saltando descontroladamente de 17.3 por grupo de 100.000 habitantes em 1980, para assustadores 58.9 em 1990. Essas são informações valiosas e apuradas pelo pesquisador brasileiro Ib Teixeira (p. 118/119). Em números mais concretos e palpáveis, no Estado do Rio de Janeiro ocorreram por dia, no ano de 1983, cerca de oito mortes provocadas por disparo de arma de fogo, número que praticamente triplicou em 1994, com cerca de vinte e duas mortes por dia. Quase uma por hora. Se comparadas as situações dos Estados Federados em que estão localizadas as duas maiores cidades do país, isto é São Paulo e Rio de Janeiro, teremos que a Taxa de Homicídios (número de homicídios por grupo de 100.000 habitantes), nos anos de 1947 e 2000, apresentou um salto significativo em ambos os Estados, sendo apurado para o Rio de Janeiro um aumento de 9.3 para 60.3 (quase sete vezes) e para São Paulo um aumento de 5.4 para 52.8 (quase dez vezes). Esse quadro poderá ser melhor entendido, se considerado face ao que ocorreu no território brasileiro como um todo e comparado a dados de mesma natureza, apurados em outros países do continente. Segundo dados divulgados pelo pesquisador Ib Teixeira (p. 194), no período compreendido entre o final dos anos setenta e o inicio dos anos oitenta, o Brasil apresentava uma Taxa de Criminalidade 40 -Corresponde ao número de homicídios registrados numa determinada área física delimitada, divididos pela população da área considerada, multiplicado por 100.000. 26 estimada em 11.5, que será tomada como referencial para comparações com as taxas de outros países, sendo quase a mesma taxa apurada para a Venezuela (11.7), quase a metade da taxa mexicana (18.2), pouco superior a taxa americana (10.7), praticamente o triplo da taxa argentina (3.9) e quase cinco vezes as taxas uruguaia e chilena (2.6). A explosão descontrolada da criminalidade no Brasil, elevou a taxa brasileira apurada no período compreendido entre o final dos anos oitenta e o final dos anos noventa para 32.0, praticamente triplicando a taxa do período anterior (11.5) e representando no período considerado, o dobro da taxa venezuelana (15.2) e mexicana (17.8), o triplo da taxa americana (10.1), sete vezes a taxa argentina (4.8), oito vezes a taxa uruguaia (4.4) e quase onze vezes maior que a taxa chilena (3.0). Toda esse carga de violência teve custos elevados e crescentes, como por exemplo o custo da violência brasileira para o ano de 1995, estimado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em 5% do Produto Interno Bruto (PIB) e o mesmo custo para o ano de 1999 estimado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 10.5% do PIB. Sobre estes custos com perdas de vidas, prejuízos diversos, prêmios de seguros, aparatos de segurança, etc., que montam a bilhões de reais, o IBGE estima que na última década foram cometidos no Brasil cerca de 250.000 homicídios, o que nos da uma medida da conjuntura na qual vivemos. Essa estimativa foi confirmada pela UNESCO 41 , com as publicações do Mapa da Violência III (referente ao ano de 2000) e do Mapa da Violência IV(referente ao ano 2002), que mostram uma consistente tendência de expansão da Taxa de homicídios no período 2000-2002, como também no período mais longo (1993-2002), onde foi constatado um salto em números absolutos de 30.586 para 49.640 homicídios no Brasil e um aumento na Taxa de Homicídios no Estado do Rio de Janeiro, de 41.2 por 100.000 habitantes (1993), para 56.5 por 100.000 habitantes (2002), com aumento de 55.2%. Tomando como exemplo o Estado de São Paulo, foram gastos pela União, pelo Estado e pelos Municípios do Estado de São Paulo, no ano de 1995, cerca de R$ 2 bilhões, gastos esses duplicados em 1999, sendo que o número absoluto de homicídios subiu de 9.821 em 1995, para 12.930 em 1999, um aumento de quase 40%. Em se tratando de crimes contra o patrimônio, a situação também evoluiu de forma desfavorável, pois se na conjuntura de 1995 no Estado registrados 162.341 casos, em 2001 esse número subiu em quase 60%, sendo registrados 254.571 casos. Nesta última década no Estado do Rio de Janeiro com relação à Taxa de Homicídios 42 , a situação mostra uma tendência de queda. Números do ano de 2007 já mostravam esse viés de baixa, 41 -Publicado em O Globo, edição de 08 de junho de 2004, p.03. 42 - A OMS considera patamar aceitável, uma Taxa de Homicídios de até 10 homicídios/ano, por grupo de 100 mil habitantes. Ver em “Las Condiciones de la Salud em las Américas”, Washington(DC), 1994 – OPS – Publicacion Científica, 549,v.I. Essa taxa apurada pelo IBGE em 2007 (BRASIL) correspondeu a 25,4 homicídios/100 mil 27 com taxa apurada de 39,4 por 100.000 habitantes. No ano de 2009, com taxa nacional de 25 homicídios por 100.000 habitantes, o Estado do Rio de Janeiro apurou taxa de 34,6, sendo projetada para o corrente ano de 2010 uma taxa entre 29/30 e estimada para o ano da Copa do Mundo (2014), uma taxa não superior a 22 por 100.000 habitantes. A questão da violência e da criminalidade urbanas está intimamente ligada à questão das favelas 43 e da sociedade operada nesses conjuntos de habitações precárias. Conceituadas (IBGE) muito elasticamente como um conjunto de habitações construídas em áreas públicas ou privadas, geralmente ocupadas ilegalmente (invadidas) e de forma desordenada, com infra-estrutura precária, onde os lotes não obedecem a um desenho regular, os acessos são tortuosos, geralmente não permitem a circulação de veículos e que caracterizam-se como locais onde as pessoas vivem apinhadas. A favelização como fenômeno tipicamente urbano, cresce a taxas muito elevadas e no Estado do Rio de Janeiro está presente em 48 dos seus 92 municípios, o que corresponde em 2003, a 52% dos municípios. Dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais, do IBGE (1999 a 2003), mostram um crescimento de 35% no número de domicílios cadastrados em favelas do Estado, se consideradas os dados relativos aos anos de 1999 e 2003, o que corresponde no Município do Rio de Janeiro a 24.181 domicílios ou cerca de 1,6 milhão de pessoas residindo nas 618 favelas cadastradas na cidade. Estudo divulgado em 2009 pelo Instituto Pereira Passos/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, aponta o aumento de 218 novas favelas na cidade, em relação ao número de favelas cadastradas em 2004 (750 favelas), perfazendo um total de 968 “comunidades”. A Fundação João Pinheiro/MG, em estudo elaborado para o Ministério das Cidades (2009), destaca que o Estado do Rio de Janeiro apresenta cerca de 400.000 domicílios em favelas, sendo que 327.500 na sua Região Metropolitana. Em julho de 2010, o Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais (Morar Carioca/Prefeitura do Rio de Janeiro) tornou pública uma nova classificação metodológica, reconhecendo 144 grandes complexos de favelas e 481 favelas isoladas, num total de 625 unidades, sendo 122 não urbanizáveis, pois localizadas ou em áreas de
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