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Epidemiologia Introdução A Epidemiologia como ciência - - - - - - - - - - A Epidemiologia se constitui atualmente na principal ciência da informação em saúde, base da medicina, da saúde coletiva e das outras formações profissionais em saúde. Pode-se defini-la como a abordagem dos fenômenos da saúde-doença-cuidado por meio da quantificação, usando bastante o cálculo matemático e as técnicas estatísticas de amostragem e de análise. Entretanto, apesar do uso e até abuso da “numerologia”, a moderno Epidemiologia não se restringe à quantificação. Cada vez mais emprega técnicas diversificadas para o estudo científico da saúde individual e coletiva. De fato, todas as fontes de dados e de informação podem ser válidas para o conhecimento sintético e totalizante das situações de saúde das populações humanas. Tradicionalmente, a Epidemiologia tem sido definida como a ciência que estuda a distribuição das doenças e suas causas em populações humanas. Segundo Jénicek (1995), um dos objetivos principais da Epidemiologia deve ser identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades. De fato, muitas doenças, cujas origens até recentemente não encontravam explicação, têm sido estudadas em suas associações pela metodologia epidemiológica, que aplica o método científico da maneira mais abrangente possível a problemas de saúde da comunidade. A International Epidemiological Association (IEA) define Epidemiologia como “o estudo dos fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas coletividades humanas. Enquanto a clínica dedica-se ao estudo da doença do indivíduo, analisando caso a caso, a Epidemiologia debruça-se sobre os problemas de saúde em grupos de pessoas na maioria das vezes envolvendo populações numerosas”. Devido à complexidade crescente e considerando a abrangência da sua prática atual, não é possível uma definição única e precisa da Epidemiologia enquanto campo científico. De maneira simplificada, pode-se conceituá-la como: - “Ciência que estuda o processo saúde-enfermidade na sociedade, analisando a distribuição populacional e fatores determinantes do risco de doenças, agravos e eventos associados à saúde, propondo medidas específicas de prevenção, 1 Maria Eduarda Santiago Nascimento controle ou erradicação de enfermidades, danos ou problemas de saúde e de proteção, promoção ou recuperação da saúde individual e coletiva, produzindo informação e conhecimento para apoiar a tomada de decisão no planejamento, administração e avaliação de sistemas, programas, serviços e ações de saúde”. Como se pode inferir desta definição, desde seus primórdios no século XIX, a Epidemiologia tem revelado uma forte vocação de ciência aplicada, dirigida para a solução dos problemas de saúde. Trata-se sem dúvida de uma poderosa ferramenta científica, de grande utilidade para a área da Saúde justamente por seu caráter pragmático. A Epidemiologia cada vez mais ocupa o lugar privilegiado de fonte de desenvolvimento metodológico para todas as ciências da saúde. Hoje, a ciência epidemiológica continua ampliando seu importante papel na consolidação de um saber científico sobre a saúde humana, sua determinação e consequências, subsidiando largamente as práticas de saúde. Compreende três aspectos principais: 1. Estudo dos determinantes de saúde-enfermidade. A investigação epidemiológica possibilita o avanço do conhecimento sobre os determinantes do processo saúde-doença, tal como ocorre em contextos coletivos, contribuindo para o avanço correspondente no conhecimento etiológico-clínico. 2. Análise das situações de saúde. A disciplina epidemiológica desenvolve e aplica metodologias efetivas para descrição e análise das situações de saúde, fornecendo subsídios para o planejamento e organização das ações de saúde; isto corresponde ao que antigamente se chamava: “diagnóstico de saúde na comunidade”. 3. Avaliação de tecnologias e processos no campo da saúde. A metodologia epidemiológica pode ser empregada na avaliação de programas, atividades e procedimentos preventivos e terapêuticos, tanto no que se refere a sistemas de prestação de serviços quanto ao impacto das medidas de saúde na população. Aqui consideramos desde estudos de eficiência e efetividade de programas e serviços de saúde até ensaios clínicos de eficácia de processos diagnósticos e terapêuticos, preventivos e curativos, individuais e coletivos. As raízes históricas da ciência epidemiológica podem ser identificadas em uma trilogia de elementos conceituais, metodológicos e ideológicos representados pela clínica, pela estatística e pela medicina social. Para cumprir seu papel de fonte de dados, informação e conhecimento para subsidiar o planejamento, gestão e avaliação de políticas, programas e ações de proteção, promoção ou 2 Maria Eduarda Santiago Nascimento recuperação da saúde, a Epidemiologia precisa repensar seus vínculos com o modelo da prevenção e sua dependência dos conceitos de causalidade e determinação. Do ponto de vista teórico-metodológico, o objeto da Epidemiologia tem sido construído através do conceito de risco. O conceito epidemiológico de risco implica relações de ocorrência de saúde- enfermidade em massa, envolvendo número expressivo de seres humanos, agregados em sociedades, coletividades, comunidades, grupos demográficos, classes sociais, ou outros coletivos humanos. O futuro do conceito de risco dependerá da capacidade de a Epidemiologia atualizar-se, contribuindo com modelos teóricos e estratégias metodológicas sensíveis a objetos complexos emergentes, incorporando a dimensão contingente dos processos de ocorrência de problemas de saúde em populações humanas. Raízes da Epidemiologia na clínica e na estatística - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Medicina Na constituição do saber clínico naturalizado, racionalista, moderno - pilar fundamental para a formação histórica da Epidemiologia - pode-se distinguir três etapas: - Na primeira etapa, leigos e religiosos envolvidos no processo saúde-doença buscavam a legitimação científica e política de uma prática clínica adequada à nova racionalidade que então surgia e que se contrapunha à medicina dos antigos “físicos” medievais; não havia ainda uma distinção muito clara entre as dimensões individual e coletiva da saúde. - Na segunda etapa, a medicina já se consolidava como corporação, com um saber técnico próprio e uma rede de instituições de prática profissional. Nessa fase a arte-ciência da clínica reforçou o estudo do caso, a partir da investigação sistemática dos enfermos nos hospitais. - A terceira etapa vincula-se à emergência da medicina científica quando, já em meados do século XIX, a revolução industrial propiciava espaço e poder para a ascensão do saber científico e tecnológico como ideologia dominante nos países ocidentais. O hospital nem sempre foi um lugar de cura para os enfermos. O termo “hospital” (de onde vem “hospitalidade”) etimologicamente denota simplesmente um local para abrigo ou acolhimento, como os hotéis, hospedarias ou albergues. Os hospitais eram locais protegidos, sob mandato de ordens religiosas, destinados a receber viajantes, necessitados, aqueles que não tinham casa e, só eventualmente, doentes sem família. 3 Maria Eduarda Santiago Nascimento O processo de medicalização do hospital não ocorreu da mesma maneira em todos os tipos de instituição; os manicômios, até meados do século XX, destinavam-se fundamentalmente a isolar os doentes mentais. Na sua fase de constituição como prática profissional, a medicina precisou afirmar-se mediante a unificação do saber técnico próprio da cirurgia com a base conceitual (científico-filosófica) da clínica. A terceira etapa de constituição da medicina como prática científica ocorreu em paralelo (e às vezes em antagonismo) aos primeiros movimentos de constituiçãoda Epidemiologia. Com a teoria microbiana e fisiopatologia, a chamada medicina científica viria a desempenhar importante papel na institucionalização das práticas médicas contemporâneas. A investigação científica sobre as doenças e suas causas à época gerou situações não raro dramáticas, vividas por personagens dignos de textos ficcionais. Estatística Para muitos, o projeto de quantificação das enfermidades representa um elemento metodológico distintivo da nova ciência da saúde que, ao mesmo tempo, poderia servir como garantia da sua neutralidade científica. O fim da Idade Média vê o surgimento do Estado moderno; afirmam-se então os conceitos de governo, nação e povo. O Estado moderno precisava contar, avaliar numericamente a população e o exército; a população porque é fonte de riqueza, o exército porque é fonte de poder. Para que o povo funcionasse como elemento produtivo, e o exército como elemento beligerante, necessitava-se não apenas de disciplina, como também de saúde. E para avaliar a situação de saúde, de novo, números eram necessários. Médico e matemático, Pierre-Charles Alexandre Louis (1787-1872) é considerado um dos fundadores da Epidemiologia. Louis também foi o precursor da avaliação da eficácia dos tratamentos clínicos, utilizando os métodos da nascente estatística. O caráter pioneiro das estatísticas de saúde é atribuído a William Farr (1807-1883). Com o “método numérico” de Louis e a estatística médica de Farr, alcançava-se uma razoável integração entre a clínica e a estatística. Contudo, para que dessa combinação resultasse uma nova ciência da saúde, de caráter essencialmente coletivo, era necessário partir do princípio segundo o qual a saúde é uma questão social e política, princípio este aliado a uma preocupação, e a um compromisso, com os processos de transformação da situação de saúde na sociedade. 4 Maria Eduarda Santiago Nascimento Medicina social No final do século XVIII, o poder político da burguesia emergente consolida-se pela cooptação do regime monárquico, como na Inglaterra e na Alemanha, ou pela ruptura revolucionária, como na França e nos EUA. As bases doutrinárias dos discursos políticos sobre a saúde emergem nessa época, na Europa Ocidental, em um processo histórico de disciplinamento dos corpos e constituição das intervenções sobre os sujeitos. Por um lado, a Higiene, enquanto conjunto de normatizações e preceitos a serem seguidos e aplicados em âmbito individual, produz um discurso sobre a boa saúde francamente circunscrito à esfera moral. Por outro lado, as propostas de uma Política Médica estabelecem a responsabilidade do Estado como definidor de políticas, leis e regulamentos referentes à saúde no coletivo e como agente fiscalizador da sua aplicação social, desta forma remetendo os discursos e as práticas de saúde às instâncias jurídico-políticas. No século seguinte, registra-se nos países europeus um processo macrossocial da maior importância histórica: a Revolução Industrial, que produz um tremendo impacto sobre as condições de vida e de saúde das suas populações. Com a organização das classes trabalhadoras e o aumento da sua participação política, principalmente nos países que atingiram um maior desenvolvimento das relações produtivas, rapidamente incorporam-se temas relativos à saúde na pauta das reivindicações dos movimentos sociais do período. Surgem, nesses países, propostas de compreensão da crise sanitária como um processo fundamentalmente político que, em seu conjunto, recebeu a denominação de Medicina Social. A Revolução Industrial fez emergir o fenômeno concreto do proletariado e o conceito de força de trabalho. A brutal opressão da massa trabalhadora motivou lutas políticas orientada por diferentes doutrinas sociais incluídas na denominação geral de socialismo utópico. Entre 1830 3 1850, uma dessas correntes defendeu o conceito de política como medicina da sociedade e, reciprocamente, da medicina como prática política. Para alguns líderes, a medicina deveria ser um instrumento de transformação social. Um objetivo que tinha (e tem) razão de ser. Postulava-se nesse movimento que a medicina é política aplicada no campo da saúde individual e que a política nada mais é que a aplicação da medicina no âmbito social, curando-se os males da sociedade. A participação política é a principal estratégia de transformação da realidade de saúde, na expectativa de que das revoluções populares deveria resultar democracia, justiça e igualdade, principais determinantes da saúde social. 5 Maria Eduarda Santiago Nascimento A Epidemiologia como ciência - - - - - - - - - - Raízes da Epidemiologia na clínica e na estatística - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
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