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ISSO_AQUI_NAO_E_GREGO_UMA_APRESENTACAO_D

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André Malta 
 
ISSO AQUI NÃO É GREGO 
Uma Apresentação Descomplicada da Literatura Clássica 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo: Edição do Autor, 2020 
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© André Malta 2020 
Todos os direitos reservados 
 
versão eletrônica disponibilizada em 31/10/2020 – 196 p. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Sumário 
 
Prefácio.....5 
 
1 Clitemnestra e o Sexismo no Agamênon de Ésquilo.....9 
2 Corrupção Humana nos Trabalhos e Dias de Hesíodo.....15 
3 Ironias do Racional e do Irracional no Íon de Platão.....21 
4 As Autoficções de Odisseu na Odisseia de Homero.....27 
5 A Missão do Super-Herói na Eneida de Virgílio.....33 
6 Mais Razão e Menos Emoção na Medeia de Sêneca.....39 
7 Um Novo Esopo em Verso nas Fábulas de Fedro.....45 
8 A Sabedoria da Vida Como Ela É na Poesia de Teógnis.....51 
9 Epidemia, Ciência e Política na História de Heródoto.....65 
10 O Charlatão Desmascarado no Falso Profeta de Luciano.....71 
11 O Amor Enganador na Elegia Erótica de Ovídio.....77 
12 À Procura do Roteiro Perfeito na Poética de Aristóteles.....83 
13 Nem à Esquerda Nem à Direita: O Centro na Poesia de Sólon.....89 
14 Riqueza Para os Justos Já! na Comédia O Deus Dinheiro de Aristófanes.....95 
15 Conciliando Homero e Platão no Como Estudar a Poesia de Plutarco.....101 
16 O Sócrates Sofista nas Memoráveis de Xenofonte.....107 
17 O Transe do Culto e do Palco nas Bacantes de Eurípides.....113 
18 O Desassossego Afrodisíaco na Poesia de Safo.....119 
19 Morte e Vida Heroica no Édipo em Colono de Sófocles.....125 
20 O Ato Final (e Inaugural) de Sócrates na Apologia de Platão.....131 
21 Pinheiros do Paraná na Poesia de Píndaro.....137 
22 O Drama do Macho Traído na Comédia Anfitrião de Plauto.....143 
23 O Trespasse do Poderio Persa na História de Heródoto.....149 
24 Teoria Saturada de Graça na Arte Poética de Horácio.....155 
25 O Silêncio de Ájax no Sobre o Sublime de Longino.....161 
26 Os Caminhos da Tragédia nas Fenícias de Eurípides.....167 
27 Momo e os Memes na Poesia de Arquíloco.....173 
28 A Prosa Espectro-do-Belo no Fedro de Platão / Parte 1.....179 
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29 A Prosa Espectro-do-Belo no Fedro de Platão / Parte 2.....185 
30 Onde Fica o Calcanhar de Aquiles na Ilíada de Homero.....191 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Prefácio 
 
No início da pandemia de 2020, decidi criar um canal no YouTube com episódios 
semanais sobre a literatura greco-latina, sempre no mesmo esquema: destacando um 
tema no conjunto (e/ou em uma obra em particular) de um(a) autor(a) que escreveu 
em grego antigo ou latim. À exceção de dois textos já prontos que precisei apenas 
adaptar ao formato do canal, toda semana, de março a setembro, eu finalizava um 
episódio novo para colocar no ar. Foi assim que nasceu o “ISSO AQUI NÃO É 
GREGO – Uma Apresentação Descomplicada da Literatura Clássica”, agora editado 
em forma de livro, com seus trinta capítulos correspondendo a cada um dos trinta 
episódios, e com alguns detalhes dos títulos e dos textos originais modificados. A 
vantagem, com o acesso possível também via leitura, é permitir que as referências e 
os conteúdos sejam consultados de um jeito mais fácil e absorvidos com calma. 
 
Os capítulos/episódios foram criados a partir da minha experiência em sala de aula 
como professor de língua e literatura grega antiga na Universidade de São Paulo, onde 
atuo desde 2001 (dando, eventualmente, literatura latina também). A intenção era 
explorar elementos que nem sempre podem ser apresentados em obras acadêmicas, 
mas que frequentemente abordo com as turmas nas mais variadas disciplinas que 
tenho ministrado ao longo desse tempo. Misturar Safo com Angélica Freitas, Odisseu 
com Karl Ove Knausgaard, Píndaro com Djavan, Aristóteles com Stanley Kubrick, 
Eneias com os super-heróis, Teógnis com a literatura de autoajuda, Sêneca com o 
budismo, Sólon com a nossa polarização política e Arquíloco com nossos memes – 
esse era um dos objetivos, sem descuidar do rigor. Por mais que me dedique a uma 
área basicamente histórica como são os Estudos Clássicos em suas múltiplas 
ramificações, acredito que conexões livres no tempo e no espaço muitas vezes podem 
iluminar os tópicos discutidos com uma pertinência maior do que minúcias de uma 
tateante reconstrução do passado. Na mesma linha, acho que é possível falar de 
autoficção na Odisseia, lifecoaching em Sócrates, sexismo na tragédia e patriarcado e 
preconceito nas expressões cômicas. Não me ocorreu reduzi-las simplesmente às 
ideologias e bandeiras atuais, mas me ocorreu sim que não havia como ignorar a 
presença de questões tão incômodas em textos tão celebrados. Essa consciência só me 
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levou a querer lê-los com intensidade ainda maior, percebendo que, com suas 
inegáveis qualidades e inevitáveis limitações – mas, principalmente, com suas ricas 
contradições –, podiam ser pontos de partida para as discussões contemporâneas. 
 
Só que essa busca desejável por um contato com as referências atuais, ainda que 
importante, é só a superfície do ISSO AQUI NÃO É GREGO. Por debaixo das 
conexões inusitadas, e da visão panorâmica e introdutória, eu tinha em mente algo 
mais profundo e ambicioso, o esforço de propor, através de um “minicurso virtual”, 
uma relação diferente com a literatura greco-latina, não pautada pelo recorte histórico 
padrão. Dá para notar isso pela ordenação não cronológica entre gregos e latinos. Se 
as histórias da literatura clássica tendem a se abrir com a Ilíada de Homero (fixando, 
de saída, que ela é uma produção anterior à Odisseia), aqui fiz questão de colocá-la 
por último, deliberadamente embaralhando os textos. Essa decisão não deve ser 
interpretada de forma alguma como desprezo pelas historiografias literárias em si, que 
têm norteado o ensino de várias gerações e até hoje são ferramentas didáticas 
importantes. O ponto é outro: o fato de essas historiografias se pautarem por um 
enfoque progressivo e determinista. A princípio, essa até pode ser uma ferramenta 
investigativa útil, quando autores, gêneros, obras e épocas estão bem documentados. 
Requer, de todo modo, cuidado e sensibilidade, porque a literatura nunca é mero 
reflexo, nem da vida nem do ambiente (em suas múltiplas dimensões), a realidade 
nunca é mero avanço (ou decadência) e os gêneros não existem em si mesmos. O 
problema é quando essa ferramenta se torna viciada, cômoda, e a abordagem do texto 
é condicionada por fatores que estão a serviço de uma narrativa já estabelecida. A 
obra se transforma em “sintoma”, porque a meta é historiar cultura, sociedade, fontes 
e gêneros, com seus nexos causais. A situação se agrava quando os dados externos, e 
às vezes os internos, são especulativos em excesso, algo que não é não infrequente 
aqui, uma vez que estamos falando de séculos muito remotos. Para piorar, por causa 
daquela pretensão científica na qual os Estudos Clássicos insistem ainda em se 
escorar, o que é apenas especulação, um consenso entre os especialistas solidificado 
pelo tempo, tende a ser transmitido como fato. 
 
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É esse conjunto de práticas que é posto em xeque, às vezes de forma explícita, às vezes 
silenciosamente, nas próximas páginas: nelas não há etapas nem fases, seja no trato 
com épocas, sociedades, obras ou vidas. Nem há aquelas digressões, muitas vezes 
estéreis, sobre o que é autêntico e o que é espúrio, tampouco as abordagens histórico-
formalistas extremadas sobre as manifestações literárias. Não porque sejam todas 
desinteressantes: elas produziram alguns dos resultados mais instigantes dos Estudos 
Clássicos. A periodização e seus cacoetes não comparecem aqui, na realidade, porque 
estou convencido de que há outras especulações, igualmente ricas, que podem ser 
experimentadas e quasenão são, como a que me interessa em especial, a literária de 
fato, com seus mecanismos, temas e significados. Insistimos demais no aspecto 
extraliterário quando falamos da literatura clássica, nos habituamos a focar no que é 
acessório, lateral. Mesmo os movimentos que querem se distanciar do historicismo 
reincidem nele. Discutimos o que não temos em detrimento do que temos, um 
contrassenso há muito enraizado na área. Teorizamos de forma incessante, por 
exemplo, sobre quem foi Homero, seu tempo, a cronologia relativa das suas obras (e 
da épica) e as diretrizes do gênero que praticava, mas interpretamos muito pouco os 
seus poemas e os comparamos menos ainda, literariamente falando, com outros. 
 
Aqui o foco são os textos: poemas, peças de teatro, narrativas curtas, narrativas longas, 
diálogos em prosa, tratados. Aqui há crítica literária, há apreciação estética e salto 
interpretativo, coisas que o cientificismo tende a ver com desconfiança, por se 
considerar um método objetivo, que trabalha com produtos históricos. Foi abrindo 
espaço a uma subjetividade incontornável que pus esses textos para dialogar de forma 
autônoma, com a história por detrás enquanto referência imprescindível, claro, mas 
sem a camisa de força dos condicionamentos de fora e de debates que nos distraem 
do essencial. Minha esperança é mostrar, ao driblar as bases tradicionais dos Estudos 
Clássicos, com suas certezas frágeis, com suas narrativas já cansadas e recalcitrantes, 
que não anulamos o aporte investigativo – pelo contrário: adotamos uma posição mais 
humilde e interrogativa. Começar a romper com a nossa complacência em relação a 
uma prática consolidada pode estimular a curiosidade de quem lê, inclusive a do 
especialista, e promover a revitalização de obras que primam pela polissemia. Elas 
são mais que épocas, etapas, autores e gêneros, e por isso ainda falamos delas. 
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#1 CLITEMNESTRA E O SEXISMO NO AGAMÊNON DE ÉSQUILO 
 
Agamênon, ou Agamêmnon, ou Agamenão, é o líder do exército grego na expedição 
contra Troia e um personagem de destaque na Ilíada de Homero. É ele que dá título a 
essa tragédia de Ésquilo do século V a.C., talvez a mais bonita de todas as tragédias e 
uma das peças de teatro mais impressionantes já escritas. Ela conta como esse rei, ao 
voltar vitorioso da Guerra de Troia, foi assassinado pela esposa, Clitemnestra, em 
conluio com o seu amante, Egisto. Existem outras duas peças que Ésquilo escreveu 
para servirem de sequência ao Agamênon: nelas ele conta como Orestes mais tarde 
vingou a morte do pai matando a mãe e o amante, e como foi finalmente absolvido 
num tribunal. O conjunto dessas três peças é conhecido como “Oresteia”. 
 
Ésquilo usa essas peças para tratar da violência, da relação entre crime e castigo e da 
implementação da justiça, mas dá para dizer que a discriminação entre os gêneros 
masculino e feminino tem também um papel importante nessa história. Aqui eu quero 
falar sobre como o sexismo aparece no Agamênon, a primeira e mais importante peça 
da trilogia. A própria escolha do título já nos dá uma pista: lendo a tragédia, a gente 
vê que o personagem do Agamênon tem uma participação muito reduzida em 
comparação ao da Clitemnestra. A figura central, do começo ao fim, é ela. A peça 
Agamênon deveria se chamar, na verdade, Clitemnestra. O fato de isso não ter 
acontecido, junto com o fato de Clitemnestra ser, ao mesmo tempo, uma figura 
extraordinária nesse drama, trai uma tensão marcante na criação de Ésquilo, que oscila 
entre o empoderamento da esposa do rei e a sua desqualificação pelo fato de ser 
mulher. 
 
É um pouco a contradição na base da própria cultura grega antiga: ela pôde criar tipos 
femininos fortes e inesquecíveis, como Penélope, Helena, Antígona, Fedra e Medeia, 
mas as histórias envolvendo esses tipos tradicionais eram recontadas por homens, num 
ambiente patriarcal, androcêntrico. As mulheres não tinham a oportunidade de 
compor poemas, criar peças ou trabalhar como atrizes – eram os homens que 
representavam as figuras femininas no teatro. Alguns acreditam que elas nem podiam 
assistir às peças. De um ambiente assim asfixiante e machista a tendência é imaginar 
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que pouca coisa poderia sair sobre o que significava ser mulher, mas não é o que 
acontece. No Agamênon, Ésquilo criou uma Clitemnestra que se sobrepõe a todas as 
figuras masculinas que encontra pela frente, tendo para isso que lidar com as 
dificuldades e os caminhos associados ao seu gênero na Grécia Antiga. Uma 
Clitemnestra que, por tabela, nos ajuda a pensar essas questões nos dias atuais, num 
país tão desigual e violento como o Brasil. 
 
O poder de Clitemnestra na peça tem a ver com uma escolha decisiva feita por 
Ésquilo: ao invés de ela ser, como aparentemente era nas versões correntes dessa 
história tradicional, uma simples ajudante do amante Egisto, a quem se uniu na 
ausência de Agamênon, ela se torna agora a mentora e condutora do assassinato. Mais 
do que isso: estando o trono vago, é ela que detém o poder na cidade de Argos. Com 
a volta do rei da guerra, o conflito deixa de ser assim um conflito entre dois homens 
para se tornar um conflito entre um homem e uma mulher. Desde o princípio da peça, 
fica patente todo o desconforto dos personagens masculinos ao redor de Clitemnestra 
com a sua liderança e a sua infidelidade. Ela é uma figura isolada, mas jamais frágil. 
E está determinada a matar o marido no momento em que este voltar de Troia. O 
motivo? Agamênon tinha sacrificado, dez anos atrás, a filha Ifigênia, para conseguir 
ventos favoráveis e poder partir rumo à guerra. 
 
A estrutura da peça é simples, alternando-se entre algumas poucas cenas e os cantos 
corais. Na abertura, um vigia posto no alto da casa pela senhora vê os sinais de fogo 
que, como uma espécie de telégrafo primitivo, anunciam a vitória grega em Troia. 
Trata-se de um monólogo, Clitemnestra não está no palco ainda, mas o 
descontentamento masculino com o poder dela e com sua traição está bem claro. Já 
sabemos quem manda em Argos, e quem manda é uma mulher que decidiu não se 
submeter às vontades e aos atos do seu senhor. O coro começa a cantar em seguida. 
Ele representa os anciãos da cidade, não por acaso homens que, novamente, são 
contrários a Clitemnestra. Na cena seguinte, já avisada pelo vigia, ela finalmente 
surge, para conversar com os velhos do coro sobre a notícia da volta do rei com seu 
exército. A reação deles é de desconfiança – a notícia só pode ser fantasia de mulher. 
Ela rebate dizendo que é tratada como criança e mostra saber muito mais do que o 
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coro poderia imaginar, tanto sobre o sistema de transmissão dos sinais de fogo, que 
ela descreve em detalhes, quanto sobre o que deve ter se passado nos instantes finais 
da conquista de Troia. O coro reconhece que ela falou bem, mas faz isso com um 
elogio sexista, “você falou como um sábio homem”, e o diálogo termina para dar lugar 
a um novo canto coral. 
 
Clitemnestra já dá provas aí de que a mulher não precisa ficar confinada ao gueto em 
que foi posta pelos homens. Mas os anciãos resistem a equiparar a mulher ao homem. 
Nas duas cenas seguintes da peça, o que se vê é Clitemnestra sendo ainda inferiorizada 
pelas figuras masculinas, mas se aproveitando dessa inferiorização para pôr em prática 
seu plano de vingança. É uma espécie de teatro dentro do teatro: ela tem que fingir 
que é a mulherzinha que todos esperam que seja nesse ambiente, para enfim conseguir 
o que quer: atrair Agamênon para dentro do palácio e matá-lo. Dois homens chegam 
a Argos nessas cenas. Na primeira, o arauto do exército, que anuncia a vinda próxima 
do rei. Na segunda, o próprio rei Agamênon. Dado curioso e muito significativo: em 
ambas as cenas Clitemnestra está no palco desde o princípio, mas é simplesmente 
ignorada;os homens devem primeiro conversar entre si. Ou seja, tanto o arauto quanto 
Agamênon falam antes com o coro masculino, para só depois darem espaço para 
participação de Clitemnestra. 
 
Esse silenciamento inicial, do ponto de vista cênico, é a indicação de um inegável 
sexismo, mas ajuda também na estratégia de Clitemnestra para ultrapassá-lo. A 
mulher deve se recolher ao seu lugar para conseguir sair dele. Na cena com o arauto, 
quando tem finalmente a chance de se manifestar, a rainha diz a ele (que se mostrava 
obviamente feliz com o regresso do exército) que ela também se alegrava. O sentido 
oculto não passa despercebido ao coro, mas os velhos não têm coragem de dizer a 
verdade. A mesma coisa acontece na cena seguinte, a única da peça em que Agamênon 
aparece. Clitemnestra, como eu disse, primeiro deixa que os homens conversem entre 
si, mas depois se insere com muita habilidade no diálogo, apresentando-se como uma 
Penélope lamentosa, que sofreu com a ausência do marido e cujas lágrimas já tinham 
secado de tanto chorar. 
 
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Mas o ponto alto é o convite dela para que Agamênon entrasse no palácio pisando 
num tapete vermelho, símbolo da sua glória. O rei, cheio de si e mais vaidoso do que 
nunca após a vitória, a princípio resiste e tenta se apegar à necessidade de moderação 
e modéstia, mas – como todo macho endeusado pela mulher – acaba por morder a 
isca. Quando representada no palco, é uma cena muito simbólica essa do tapete, 
porque se trata na verdade de um caminho de sangue, uma antecipação da morte de 
Agamênon, que vai ocorrer fora de cena, atrás do palco. Como a história do seu 
assassinato ao voltar da guerra era tradicional, a plateia já sabia o que estava prestes 
a acontecer, e assim Ésquilo pôde sublinhar o contraste entre o homem que se julgava 
poderoso, mas era na verdade a vítima, e a mulher que se pintava passiva, mas era 
senhora absoluta da ação. 
 
Há um dado a mais, evidente para quem assistia à peça: Agamênon não chega sozinho. 
Ele traz junto uma cativa de guerra, a troiana Cassandra. O homem que podia matar a 
filha sem dar a mínima para a opinião da esposa podia também ter livremente suas 
escravas sexuais. Da perspectiva masculina, caberia à mulher apenas aceitar, como 
caberia a Medeia aceitar a traição de Jasão, e a Dejanira aceitar a de Héracles. Mas os 
mitos gregos vão além e falam, como sabemos, de mulheres que não se submetem. 
Cassandra é uma dessas mulheres e será a figura central na cena anterior ao assassinato 
de Agamênon. É ela que dialoga com o coro e leva ao ápice a atmosfera de desastre 
que pairava desde o começo da peça. Sendo alguém que tem o poder da vidência, a 
estrangeira Cassandra é capaz de descobrir os crimes passados e futuros da família. 
Mas junto com esse poder ela obteve uma maldição: a de não ser levada a sério. O 
castigo foi imposto pelo deus Apolo por ela ter resistido ao seu assédio. Sim, na cena 
mais impactante, de novo a violência masculina em relação à mulher entra como dado 
nada desprezível. 
 
A parte final da peça, depois de ouvirmos os gritos do rei enquanto é golpeado pela 
esposa, traz uma transformação de Clitemnestra: ao reaparecer, ela não precisa mais 
fazer o teatro da mulher dócil e pode assumir abertamente seu poder. Nem o vigia, 
nem os anciãos do coro, nem o arauto, nem o próprio Agamênon – nenhuma dessas 
figuras masculinas foi capaz de se contrapor ao desejo dela de vingança. Ela 
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simplesmente não aceitou, de modo passivo, a perda da filha. O recato e o silêncio, 
símbolos da mulher submissa, são postos de lado. Agora ela proclama em alto e bom 
som o sucesso da sua armadilha e a satisfação com o assassinato. O coro, chocado, a 
censura, mas Clitemnestra não se abala. Numa das afirmações mais desconcertantes 
da literatura grega, ela diz que o crime lhe trouxe sabor adicional na cama, uma 
referência explícita à sexualidade e ao prazer feminino. Daria para escrever uma tese 
sobre a dificuldade dos estudiosos – homens, basicamente – em digerir essa fala. Mas 
falta ainda aparecer Egisto, o amante, e é isso que acontece na última cena da peça. O 
fato de ele surgir só no fim é a confirmação daquilo que eu disse antes: nessa versão 
da história, a figura de destaque é Clitemnestra, e é ela ainda que dá as cartas aqui. No 
bate-boca que se forma entre os machos, com os velhos do coro acusando Egisto de 
ter agido como uma mulher, por não ter ousado cometer o crime com as próprias mãos, 
é a mulher, Clitemnestra, que intervém para controlá-los, quase como se fossem 
crianças. A protagonista da peça, tratada como criança pelos homens em boa parte 
dela, fecha a ação reafirmando aquele empoderamento de que deu mostras desde o 
princípio. 
 
O Agamênon é uma peça sobre Clitemnestra, sobre a perspectiva feminina, sobre os 
obstáculos que as mulheres têm de enfrentar, sobre seus silenciamentos. É bem 
verdade que, na sequência da trilogia, com a morte dela e de Egisto, na segunda peça, 
e com Orestes saindo impune do crime terrível do matricídio, na terceira, a mensagem 
parece ser outra: não se pode admitir uma Clitemnestra na sociedade. O assassinato 
da mãe pelo filho pode sim ser perdoado, mas matar o marido é imperdoável; as 
mulheres podem sim ser as vítimas, mas os homens nunca. No entanto, por mais 
apaziguadora que essa mensagem final pudesse soar aos ouvidos dos atenienses, o 
fato é que Clitemnestra pode ser tomada como a grande figura da trilogia. Ela é a 
única, aliás, que aparece nas três peças – na última delas é seu fantasma que surge 
como personagem. A sua presença é tão poderosa que impede que a lição 
provavelmente pretendida por Ésquilo sirva de palavra final. À revelia do autor, a 
divisão entre os sexos, com seus papéis pré-definidos, e com a mulher lutando contra 
a opressão de que era vítima, acaba por se impor como uma questão sem resposta à 
vista, e igualmente trágica. 
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Pra terminar, quero falar sobre a relação entre os sexos num exemplo bem diferente 
do Agamênon de Ésquilo. Todo mundo sabe que a figura feminina mais importante 
da poesia homérica é Penélope, a esposa de Odisseu. Penélope é central na Odisseia: 
espera durante dez anos pela volta do esposo da Guerra de Troia. Como ela se 
comporta durante a ausência do marido? Chorando, lamentando-se, preocupando-se 
com o futuro do filho deles, Telêmaco. Mas também, nos anos finais dessa espera, 
tendo que lidar com mais de cem homens que, imaginando o rei morto, sonhavam em 
tomar o lugar dele e casar com a rainha. Só que Penélope, ao contrário de 
Clitemnestra, é uma esposa fiel. Ela resiste ao avanço dos pretendentes e ainda 
imagina uma estratégia para conseguir esse objetivo: diz que precisa tecer uma 
mortalha para o pai de Odisseu e que só depois disso poderá escolher um novo homem. 
Mas o que ela tecia de dia depois desfazia à noite, tornando o trabalho interminável. 
Claro, ela acaba sendo descoberta e a animosidade no palácio aumenta, mas o que eu 
quero mostrar é como, a princípio, Penélope é uma “anti-Clitemnestra” e, portanto, 
um personagem que se ajustaria bem à visão machista dos gregos. Odisseu trai 
Penélope sem problemas, com Circe e com Calipso, mas Penélope, mesmo cortejada 
por vários jovens, se mantém pura. Ela representaria assim essa linhagem feminina 
íntegra, enquanto Clitemnestra, junto com irmã infiel Helena, representariam a 
linhagem dissoluta. 
 
O poema endossa isso, mas a verdade é que Penélope é mais que esse exemplo 
feminino construído pela misoginia. Como os estudos feministas começaram a 
mostrar a partir da década de 70, Penélope, por causa da estratégia da mortalha e de 
uma esperteza capaz de rivalizar com a do marido, tem outra faceta, nada dócil. Ou 
seja: mesmo na Odisseia, uma obra que, diferentemente do Agamênon de Ésquilo, 
parece pintar um retrato controlado sobre o comportamento feminino tido como ideal, 
mesmo nela esse comportamento, na figurade Penélope, ultrapassa as cercas socias e 
culturais pré-definidas. 
 
 
 
 
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#2 CORRUPÇÃO HUMANA NOS TRABALHOS E DIAS DE HESÍODO 
 
Hesíodo e Homero são os grandes nomes da poesia épica grega antiga. Apesar de 
estarem associados a um mesmo gênero e usarem o mesmo metro, seus poemas são 
bem diferentes. Quando pensamos em Homero pensamos na Ilíada e na Odisseia, que 
são longos poemas narrativos com mais de dez mil versos cada, onde os personagens 
principais são deuses e heróis. Mas quando falamos de Hesíodo estamos falando de 
poemas relativamente curtos para os padrões épicos, e de poemas onde encontramos 
uma narrativa bem reduzida, porque o propósito deles não é tanto o de contar uma 
história, mas sim o de informar e orientar. Homero, com suas figuras poderosas e 
sofridas, seus grandes painéis, quer prender nossa atenção e nos comover. Hesíodo, 
com suas ideias e seus esquemas, quer nos instruir e fazer pensar. 
 
O poema mais famoso de Hesíodo é a Teogonia. Ele traz longas e intermináveis listas, 
com os nomes dos deuses que foram surgindo para dar forma ao mundo. A ideia é de 
que este mundo é resultado não da criação de um deus único todo-poderoso, mas de 
uma série de uniões sexuais divinas, tendo como matriz principal Terra e suas transas 
com os filhos Céu e Mar. Intercalada a essas listas vem uma parte narrativa: ela mostra 
como desde o princípio houve uma disputa pelo poder entre os deuses do sexo 
masculino, até Zeus se tornar o grande rei do mundo e conferir estabilidade e ordem 
à vida sobre a terra. Trabalhos e Dias é o outro poema de Hesíodo, menos conhecido 
e lido. Tem só 828 versos e é um manual de reflexões e instruções. Se o propósito 
didático é mais indireto na Teogonia, aqui ele se torna explícito. É um poema que 
pode ser lido como uma continuação da Teogonia: de que modo a ordem que Zeus 
estabeleceu lá atrás, no desfecho da Teogonia, tem sido mantida – ou tem sido 
ameaçada – na vida humana? 
 
Pra responder a essa questão, Hesíodo optou por um caminho bem diferente daquele 
que encontramos na Teogonia. Nos Trabalhos e Dias já não temos a narrativa em 
terceira pessoa, que a gente costuma associar imediatamente à poesia épica. Agora há 
uma voz que fala em primeira pessoa e essa voz está imbuída de uma missão: 
denunciar os desvios da justiça que foi estabelecida por Zeus e, mais ainda, mostrar 
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que justiça é essa e qual a importância de a respeitarmos. para não dar a esse tema 
uma formulação abstrata demais, sem uma relação clara com o mundo real, Hesíodo 
parte de um drama familiar, a disputa entre o eu poético e o seu irmão, chamado 
Perses, pela herança paterna. Essa opção pela partilha é boa porque se trata de um 
conflito recorrente nos núcleos familiares desde tempos imemoriais. Mas Hesíodo não 
quer falar do direito da família em si: esse é só o ponto de partida para que ele aborde 
questões religiosas e relações sociais de modo mais amplo. 
 
É aí que entra a ideia de trabalho, que está no título do poema. Hesíodo busca mostrar 
que o trabalho é algo a que estamos todos fadados. Quando alguém como Perses tenta 
passar a perna no irmão, ou seja, quando alguém tenta corromper a justiça, esse 
alguém está tentando driblar o suor do labor, a necessidade que temos de prosperar 
pelos nossos próprios esforços, sem roubar dos outros e da comunidade. Na visão do 
poema, mais que uma questão social e jurídica, essa é uma questão cósmica: é ir contra 
a vontade de Zeus, ir contra a divisão de funções que ele estabeleceu para deuses e 
humanos. O trabalho entra assim como item principal de uma discussão muito vasta 
de justiça, porque o justo, mais do que aquilo que está previsto nas relações por um 
código de leis, é simplesmente o mundo como ele é. 
 
É por isso que, na sua segunda metade, o poema vai dar orientações sobre o cultivo 
dos campos. É bom lembrar que o termo grego érga que está no título, e que 
traduzimos por “trabalhos”, têm o sentido também de “lavouras”. “As lavouras e os 
dias”. Hesíodo, ao mesmo tempo que está falando, claro, de trabalho, está falando 
também de sazonalidade, da regularidade das estações, do momento certo para as mais 
variadas ações, ou seja, de uma ordem natural fixada por Zeus. Quem acompanha, no 
ambiente rural, a sucessão dos ciclos, não só está se dedicando ao lote que nos cabe, 
ao suor do trabalho (como em qualquer outra profissão), mas está acatando esta 
ordenação justa da natureza. É por isso também que o poema se fecha com uma 
relação das atividades mais adequadas a cada dia do mês: para nós pode parecer pura 
superstição, mas o princípio é o mesmo das estações – há uma justiça de Zeus por trás 
disso. Hesíodo está ensinando ao leitor que, do menor ao maior elemento, da plantação 
à navegação, das partes do dia às fases do mês, há uma medida e um tempo certo no 
17 
 
mundo que não devem ser desconsiderados. Trabalhar é um entre vários sinais de 
respeito a isso. E, apesar de Hesíodo reconhecer que vários fatores concorrem para 
desestabilizar essa ordem, como os próprios juízes, que a deveriam garantir, mas 
acabam sendo corrompidos, ele acredita que no fim Zeus se sobrepõe. 
 
Mas essa segunda parte do poema que eu acabei de descrever, sobre o cultivo dos 
campos e os dias, é um pouco entediante para o leitor de hoje. A parte mais lida é a 
primeira, onde temos em sequência três mitos que explicam por que trabalhamos e 
por que o trabalho, sendo um entre vários sofrimentos, ainda assim é justo. O primeiro 
mito é o das duas Éris, que vem logo depois da invocação às Musas. Tradicionalmente, 
na mitologia grega Éris é uma divindade só, que representa a discórdia, a luta, sendo 
sempre associada à guerra. Mas nos Trabalhos e Dias Hesíodo resolve brincar com a 
existência de uma segunda Éris, sua irmã, que é benéfica e merece nosso louvor, não 
nossa censura. Das irmãs, é a que leva à rivalidade, à competição, que faz alguém 
trabalhar ao sentir uma espécie de “inveja branca” de quem se esforçou e prosperou. 
Fica claro que essa é uma visão apenas provisória e heterodoxa sobre uma divindade 
que sempre teve, e continuou a ter, aquela existência única e puramente negativa. Mas 
ela funciona aqui justamente porque explora, já de saída, o paralelismo com os dois 
irmãos em disputa pela herança paterna: o corrupto Perses, que não quer saber de 
trabalhar e só quer criar discórdia, e a figura honesta e trabalhadora do eu que diz o 
poema, ciente dos ditames de Zeus e da forma certa de se portar. 
 
A história seguinte é a de Prometeu e Pandora. Ela entra aqui para explicar por que 
trabalhar é necessário. É o tipo de narrativa que chamamos de “etiológica”, muito 
comum nos mitos. Antes os homens viviam uma vida idílica, livre de sofrimentos, 
sem precisar cultivar os campos, até sofrerem sua queda do paraíso. Os personagens 
centrais desse relato são Zeus e Prometeu. Zeus, enquanto rei do universo, estava 
preocupado com a ordenação maior do mundo. Prometeu, enquanto deus menor 
afeiçoado à raça humana, queria protegê-la e beneficiá-la. O primeiro ato de 
Prometeu, numa época em que os deuses e os humanos – que eram exclusivamente 
do sexo masculino – ainda faziam a refeição juntos, foi dividir o boi de um jeito astuto 
e desigual: ossos para os deuses, mas cobertos por uma atrativa camada de gordura, e 
18 
 
carnes para os humanos, só que cobertas por uma repulsiva camada de pele. Zeus finge 
ser enganado pelo brilho da banha e escolhe a parte ruim, não comestível, para os 
deuses. Como punição pela artimanha de Prometeu, não concede mais que os homens 
tenham acesso ao fogo. Prometeu revida roubando o fogo e permitindo que os homens 
o controlem. Zeus contra-ataca então determinando que seja criada a primeira mulher, 
Pandora, um presente de grego: atraente por fora, mas destrutiva por dentro. Como no 
relato de Adão e Eva, a misoginia é evidente. 
 
Pandora é entregue então ao desavisadoirmão de Prometeu, Epimeteu. Junto com ela 
vai um jarro que, assim que é aberto, faz com que todos os males – entre eles o trabalho 
– se espalhem entre os humanos. Acabou a vida boa dos machos. A conclusão é de 
que Zeus, que não era bobo, usou Prometeu desde o começo: ele agiu como agiu 
porque queria, como resultado final, separar os deuses dos humanos. Essa passou a 
ser a justiça do mundo com a qual temos que nos conformar. Se o homem hoje deve 
trabalhar, a culpa é em parte de Prometeu, porque quis ajudar a raça humana e 
imaginou que podia ludibriar a inteligência de Zeus. Ao mesmo tempo que decaiu, 
por causa desse jogo a humanidade também se tornou civilizada e “evoluiu”: agora 
tem religião, seu próprio conhecimento técnico e a instituição do casamento. 
 
O terceiro e último mito na sequência é o das cinco raças, um desdobramento do mito 
anterior, de Prometeu e Pandora. É como se Hesíodo quisesse abandonar o esquema 
simples do antes-e-depois-de-Pandora em favor de um quadro mais amplo da vida 
humana sobre a terra, por fases. para nossa frustração, assim como na Teogonia de 
novo a criação detalhada do primeiro ser humano não é narrada: o poema apenas diz 
que os deuses fabricaram uma primeira raça humana, a de ouro. Ela corresponderia à 
existência paradisíaca, pré-Pandora. Depois disso, ele apresenta mais três raças 
criadas, a de prata, a de bronze e a dos heróis, antes de chegar à raça presente, a de 
ferro. O movimento, pela lógica da desvalorização dos metais, é de declínio, mas vem 
interrompido pela presença da quarta raça, dos heróis, que eram figuras cultuadas 
pelos gregos. Mesmo assim, em todas as raças pós-ouro Hesíodo chama atenção para 
elementos negativos: infantilidade, insolência, insensatez, excesso, violência, guerra. 
Curiosa é a forma como ele aborda a raça atual, a de ferro, à qual nós pertencemos. 
19 
 
Sendo já o poema todo uma descrição dessa raça humana, Hesíodo fica mais 
preocupado em pintar, de um jeito bem apocalíptico, aonde vamos parar se largarmos 
de vez a justiça e a moderação. Valer-se do discurso do medo é uma boa estratégia 
retórica e contribui para reforçar no leitor aquilo que Hesíodo insiste em martelar ao 
longo de todo o poema: a reverência às leis humanas e divinas. 
 
Finalmente, depois dessa sequência de mitos, mas antes ainda de passar para aquela 
segunda parte mais prática referente aos campos, sobre a qual eu já falei, Hesíodo 
emprega uma seção inteira do poema para discorrer sobre a justiça nas relações 
humanas. É o momento mais claramente moral e reflexivo do poema, e por isso ele se 
parece muito com um outro ramo da poesia grega antiga, chamado elegíaco. Dentro 
desse espírito sentencioso, uma das coisas mais interessantes da seção é que, para 
pensar a justiça, ela se abre com uma pequena fábula, a fábula do falcão e do rouxinol. 
Ela conta como o falcão, ao apanhar com suas garras o rouxinol e ouvir seus gritos, 
disse para ele se calar e se conformar, porque o mais forte mandava e o sensato devia 
simplesmente obedecer. A fábula termina e não temos nenhuma moral da história, 
além da fala do próprio falcão. Hesíodo emenda, na sequência, uma série de 
contrapontos entre as ideias de soberba, húbris, e justiça, díke, obviamente mostrando 
a superioridade desta em relação àquela. Mas e que moral devemos extrair da fábula 
enunciada antes? Que justiça existe no fato de o mais forte mandar e o mais fraco se 
curvar? O poema cria um certo suspense e só dá a resposta lá na frente, quando 
compara os seres humanos aos animais. Os bichos, como o falcão e o rouxinol da 
fábula, são regidos pela lei da selva, num vale-tudo onde a força é determinante. Mas 
Zeus estabeleceu a justiça para os homens, para que eles não vivam como animais. 
Essa é a moral. A lei coíbe a força. Sim, Perses quis transformar o próprio irmão em 
sua presa. Sim, os falcões continuam a voar por aí e continuam a tentar impor seu 
poder. Mas, para Hesíodo, precisamos acreditar que existem mecanismos capazes de 
nos garantir que a terra é, no fim das contas, um lugar justo para se viver. 
 
Para concluir, quero falar sobre como situar historicamente a poesia de Hesíodo. Essa 
é uma questão importante para os especialistas. para muitos, decisiva. Será que os 
elementos que Hesíodo aborda em seus poemas refletem um ambiente político, social, 
20 
 
intelectual, específico? Que ambiente seria esse, em linhas gerais? Como ele se 
relacionaria, na Grécia Antiga, com as condições que vieram antes e depois? para 
pegarmos o tópico da justiça, que acabamos de ver nos Trabalhos e Dias. Podemos 
comparar o que Hesíodo diz com o que Homero diz a esse respeito em suas epopeias, 
e também com o que Sólon diz em suas elegias e Ésquilo em suas tragédias. Indo 
além, podemos situar no tempo Homero, Sólon e Ésquilo e, pertencendo eles a épocas 
diferentes da época de Hesíodo, especular que as diferenças entre seus poemas se 
devem ao fato de eles serem de épocas diferentes. Foi mais ou menos isso que a 
historiografia da Grécia Antiga fez: insistiu em diferenças e distribuiu os poetas e suas 
obras ao longo de um arco temporal, de modo que essa distribuição refletisse um 
propósito evolutivo. Primeiro veio Homero, depois Hesíodo, depois Sólon, depois 
Ésquilo, não numa simples sucessão temporal, mas numa progressão profunda. Cada 
um, com cada obra, teria dado sua contribuição rumo à afirmação de visões mais e 
mais complexas. 
 
Para mim, esse olhar tem o grave defeito de ler as obras não como documentos 
literários supratemporais de uma mesma cultura, mas como documentos históricos 
pontuais determinados por momentos estanques, etapas de uma marcha maior pré-
definida. Ele privilegia as obras em seu nascimento e suposto vezo de reportar o 
ambiente, mas esquece o tradicionalismo conservador delas e a sua relação genérica, 
viva, com outras obras ao longo do tempo. A leitura historicista tem valor, se bem 
embasada. Mas na falta de dados precisos sobre Hesíodo e a época dos poemas, prefiro 
lê-lo em diálogo com Homero, Sólon, Ésquilo, sem assumir essa escalada temporal 
transformadora, e entendendo que de perspectivas e lugares diferentes os três falam 
da mesma justiça. 
 
 
 
 
 
 
 
21 
 
#3 IRONIAS DO RACIONAL E DO IRRACIONAL NO ÍON DE PLATÃO 
 
O Íon é um dos cerca de trinta diálogos compostos por Platão, o discípulo de Sócrates 
na Atenas antiga. Sócrates fazia filosofia, na segunda metade do século V a.C., apenas 
conversando com as pessoas. Platão encontrou um modo de fazer filosofia, na 
primeira metade do século IV, através da literatura: criando, por escrito, debates nos 
quais Sócrates é o eixo fundamental e ele mesmo, Platão, está ausente. Nesses 
diálogos, Sócrates se encontra com um ou mais atenienses, ou estrangeiros, e eles 
começam a discutir um tema. Como alternativa, Sócrates pode rememorar uma 
conversa passada, ou algum outro personagem pode fazer isso. No final, somos 
jogados numa controvérsia na qual se destacam o magnetismo de Sócrates e os 
problemas que ele levanta em relação ao conhecimento e ao comportamento humano. 
São cenas teatrais, baseadas no diálogo, e por isso exigem a destreza que um 
dramaturgo precisa ter ao escrever uma peça. Só que Platão não quer apresentar uma 
ação de fato: ao contrário do que vemos, por exemplo, numa tragédia grega, onde as 
coisas se transformam na vida dos protagonistas e daqueles ao seu redor, nos Diálogos 
nada, ou quase nada, acontece de concreto na vida dos envolvidos. Mas, por outro 
lado, no plano do pensamento muita coisa acontece: verdades sólidas deixam de ser 
tão sólidas e verdadeiras, definições aparentemente fáceis se tornam difíceis ou quase 
impossíveis, figuras reconhecidamente sábias são questionadas. 
 
É assim também no Íon, um dos menores textos de Platão e com uma estrutura muito 
simples: Sócrates cruza por acaso com Íon, famoso rapsodo (ou cantor de poemas),e 
eles entabulam uma conversa a princípio banal, mas que acaba os levando a uma 
discussão mais complicada. As falas vão se alternando e somos tragados para dentro 
desse debate. O tema central gira em torno do verdadeiro grau de conhecimento de 
uma figura respeitada como Íon. Se, por sua profissão, ele conhece Homero de cabo 
a rabo, e se Homero é “a” referência de conhecimento para os gregos antigos, resulta 
daí que Íon deve ser realmente visto como autoridade, como uma espécie de 
professor? Para evitar a aridez da discussão filosófica pura, Platão logo de cara nos 
pinta, com rápidas pinceladas, os traços principais de cada personagem. Sócrates, 
habituado a jogar conversa fora, tanto em público quanto em ambientes privados, é 
22 
 
loquaz e gosta de conduzir o diálogo, não sem uma pitada de humor. Já Íon não 
esconde a vaidade com todo o seu sucesso, mas é mais sério e reticente. Com poucas 
páginas, e com ambos se tratando com deferência, Íon de repente já se vê encurralado 
por Sócrates: como é que, sendo um profissional da recitação poética, ele se tornou 
um especialista em Homero, desinteressando-se pelos outros poetas? Não é um 
contrassenso se dedicar a uma atividade tão abrangente, com tantos poetas 
interessantes, e ao mesmo tempo ficar restrito a um só poeta e sua obra? 
 
Íon não se mostra incomodado: para ele, sua experiência concreta com Homero é o 
que vale e ele afinal de contas tem tido êxito com as coisas tais como elas são. Mas 
nesse ponto o rapsodo acaba por morder uma isca que Sócrates, sorrateiramente, tinha 
lançado lá no princípio: e se o motivo para essa restrição ocorrer – e Íon admitiu que 
ela ocorre – for o fato de ele, Íon, não ter conhecimento das coisas e agir simplesmente 
movido por uma inspiração divina? E se essa falta de abrangência decorrer da 
ausência de um domínio técnico do que faz? A figura inspirada não é justamente 
aquela que não consegue fazer o que quer quando quer, porque depende desse lance 
inexplicável, de uma espécie de possessão? Sócrates tenta provar isso a Íon com um 
longo discurso. Ele defende que toda a cadeia criativa poética corresponderia a um 
conjunto de elos interligados entre si a partir de uma única pedra magnética superior, 
a Musa. É esse ímã divino que transmite seu poder aos demais elos que estão abaixo: 
contagia os poetas, como Homero, que por sua vez contagiam os cantores dos seus 
poemas, como Íon, que por sua vez contagiam a plateia. A conclusão de Sócrates, a 
partir dessa metáfora, é de que na sua atividade Íon age fora de si, de forma irracional. 
 
Para alguém mais atento, surgem pelo menos duas desconfianças aqui. A primeira: 
será que é possível descrever assim uma profissão como a do rapsodo, em que o 
aprendizado e o domínio consciente das mais variadas habilidades jamais poderiam 
ser apagados, ainda que se admita um componente divino, um dom? A segunda 
desconfiança tem a ver com o fato de que, no diálogo, Sócrates parece estar possuído 
nesse momento em que descreve como funciona a inspiração poética. Ora, se ele quer 
desqualificar o conhecimento do respeitado Íon, para mostrar por tabela que a 
autoridade cabe ao racional filósofo, por que ele se comporta como alguém inspirado? 
23 
 
Trata-se de uma gozação? E por que nos trechos de Homero que vão surgindo ao 
longo do diálogo, é Sócrates basicamente que faz a recitação, e não Íon, o expert? Íon, 
de qualquer forma, concorda com o quadro geral da inspiração descrito por Sócrates. 
Mas é curioso que, na hora de comentar como, estando fora de si ao cantar Homero, 
precisa ficar atento à plateia, para também deixá-la fora de si, Íon acabe sublinhando 
o controle que tem sobre sua atividade. Ou seja, num momento central, em que 
estariam se opondo o racional Sócrates e o irracional Íon, Platão mostra seu mestre 
filósofo de um modo entusiasmado e meio descontrolado, enquanto faz questão de 
sublinhar a frieza e a lucidez do rapsodo. Por que Platão embaralha os papéis? 
 
Até esse ponto, o diálogo já acumulou algumas dúvidas e questões, não nos 
permitindo chegar a uma conclusão clara a respeito do que está sendo defendido. Mas 
o debate ainda não acabou. Depois de Íon deixar a atividade do canto de lado e dizer 
que, pelo menos quando fala ou comenta sobre Homero, não está enlouquecido, e que 
é capaz de discorrer sobre tudo que está na Ilíada e na Odisseia, Sócrates volta à carga, 
apegando-se agora a esse “tudo”. Como assim, tudo? Há várias profissões retratadas 
nos poemas homéricos, do cocheiro, do médico, do adivinho, do líder militar. Não são 
os especialistas nessas áreas que poderiam discorrer sobre elas? Íon não deveria se 
restringir à sua especialização profissional? Como ele pode alegar conhecimento 
sobre coisas em relação às quais não tem domínio técnico? Íon não se faz de rogado 
e bate o pé: dominando como domina o universo homérico em sua amplitude, e sendo 
Homero uma enciclopédia para os gregos, ele detém sim esse vasto conhecimento das 
mais variadas profissões. Sócrates perde então a paciência e pergunta por que então 
Íon não trabalha como um líder militar, já que ele conhece tão bem a profissão, e tendo 
os gregos muito mais necessidade de um general do que de um rapsodo... 
 
Agora estamos perto do fim do diálogo e parece que finalmente Sócrates esmagou Íon 
e provou sua limitação. Se ele tem alguma habilidade consciente (e será que tem 
mesmo?), seria apenas a do rapsodo, e esta não poderia, claro, ser estendida às outras 
habilidades, só pelo fato de elas estarem retratadas nos poemas que ele sabe cantar e 
conhece tão bem. Íon é uma fraude e não merece a reputação que conquistou. Mas 
aqui de novo, mais do que embarcar nessa leitura e atacar Íon, acho que vale a pena 
24 
 
levantar algumas suspeitas contra Sócrates. Parece estranho que primeiro ele tenha 
criticado o rapsodo por não explorar todo o alcance da sua atividade, ficando restrito 
a Homero, o que seria prova da sua falta de conhecimento, e que depois tenha criticado 
o rapsodo por querer ter justamente o alcance que Homero lhe dava sobre várias 
atividades, o que seria para Sócrates, agora, nova prova de limitação cognitiva. Ou 
seja: primeiro Íon sairia diminuído porque sua técnica era especializada demais e 
talvez nem técnica fosse, e em seguida porque sua técnica não era especializada como 
deveria ser. 
 
Sócrates não está sendo um mau debatedor, usando a especialização ora como algo 
ruim, ora como algo bom, segundo lhe convém? Muitos leitores diriam que não, que 
são casos diferentes. Mas a tirada final de Sócrates no diálogo parece, a meu ver, 
incriminá-lo. Num misto de indignação e sarcasmo, o filósofo diz estar sendo 
ludibriado por Íon, que ele, Íon, é liso e age como um Proteu (a figura mitológica que 
tinha o dom da metamorfose), por não mostrar o conhecimento que diz ter. Afinal, o 
que ele prefere ser: esse enrolador que não comprova o seu saber ou alguém sem 
técnica mas divino, por causa da inspiração que recebe? Acuado, Íon responde que 
com certeza é bem melhor ser considerado divino, e Sócrates fecha o diálogo louvando 
a beleza dessa condição divina, desprovida de técnica. 
 
Tudo estava nebuloso no meio da conversa e tudo termina de forma nebulosa. Sócrates 
venceu o debate? Talvez. Mas Íon é ingênuo e manipulável demais para que essa 
vitória tenha um grande valor. Seria perigoso se alinhar a Sócrates e tirar como lição 
uma oposição pura e simples entre o filósofo que sabe e o pretenso sábio que no fundo 
é uma farsa. O diálogo não demonstrou que a poesia é só inspiração. O diálogo não 
demonstrou que o conhecimento é apenas habilidade racional. Será que mostrou que 
Íon é superior a Sócrates, por ser divino, e que esse é o valor supremo? O que ele com 
certeza mostrou é que esses temas são escorregadios e que podemos cair em becos 
sem saída no momento em que nos lançamos à tarefa de entender alguma coisa. As 
aparências enganam.O mais fascinante no Íon, como em toda a filosofia platônica, é 
que ela está sempre em movimento. Não quer só doutrinar ou polarizar. Platão 
conseguiu esse efeito ímpar por causa de pelo menos duas escolhas que fez ao 
25 
 
construir seus Diálogos. A primeira e mais radical foi desparecer do texto, não ter voz 
nas conversas, seja como narrador, seja como personagem, e assim não enunciar 
diretamente uma filosofia. A segunda escolha, talvez a mais difícil de pôr em prática, 
foi reelaborar o personagem de Sócrates para que ele fosse o herói das suas obras de 
um jeito muito especial. Mais que a figura impecável e exemplar do sábio, ele teria de 
ser um sábio cuja sabedoria na prática viesse sempre posta em xeque: diferentemente 
dos sábios de plantão, Sócrates não é um poço de conhecimentos, certezas, acertos. 
Ele desconfia do que sabe. E essa desconfiança pode ter o efeito de nós também 
desconfiarmos dele. Mais que o farol que a tudo ilumina, ele é a lanterna bruxuleante 
que acende e apaga, para assim dar vida nova à investigação. 
 
Se a gente pensar numa outra imagem, a da gangorra, talvez fique mais fácil entender. 
Para muitos, o Íon é o típico diálogo que começa com Sócrates adotando uma posição 
humilde e com seu oponente cheio de si, para aos poucos eles irem trocando de 
posição, até Sócrates surgir como alguém com autoridade maior em comparação à 
agora rebaixada figura do seu interlocutor, finalmente desmascarado em suas 
limitações. Como no movimento da gangorra, quem estava por cima desceu, enquanto 
quem estava embaixo subiu. Mas existe uma outra possibilidade, também válida: a de 
imaginar que a gangorra está sempre se mexendo, subindo e descendo, sem que haja 
uma posição estática inicial e final, e que seus participantes podem ficar trocando de 
lugar, sendo contrapostos e também nivelados. Como Platão consegue alcançar isso? 
Exatamente porque constrói um Sócrates oscilante e que se reparte em vários planos. 
Ele é sábio, mas não é sábio como os demais sábios, porque sabem com segurança e 
gravidade. É o contrário disso que acontece. E essa contradição, do sábio sátiro, é algo 
que só Platão conseguiu nos fazer admirar em Sócrates. 
 
Para terminar, quero falar sobre como situar o Íon no conjunto da obra de Platão. A 
visão quase consensual hoje é a seguinte: a produção de Platão passou por três fases. 
Na primeira, ele produziu diálogos em que a influência de Sócrates era clara. A 
filosofia platônica ainda não tinha tomado corpo e o propósito era retratar o mestre. 
Numa segunda fase, Sócrates permaneceu como personagem central, mas a discussão 
assumiu outras cores, revelando ideias não mais associáveis ao Sócrates histórico. 
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Finalmente, numa última fase, Platão se permitiu diminuir a importância de Sócrates 
na discussão, ou até eliminá-lo, com seu edifício filosófico já plenamente constituído. 
Essa visão, super prática porque agrupa os Diálogos por etapas e direciona já de saída 
a leitura, é uma narrativa. Uma entre muitas possíveis. Tem nos ajudado a ler Platão 
há décadas, mas não raro esquecido de como seus pressupostos são discutíveis. Por 
ela, o Íon seria um diálogo da primeira fase, porque é breve, não faz alusão a tópicos 
filosóficos mais densos associados a Platão, além de ser bem-humorado e 
inconclusivo. Corresponderia à infância intelectual de Platão. O paralelismo biológico 
não é casual. Haveria escondido nos Diálogos um desenvolvimento lógico e linear, da 
juventude à velhice, só à espera de ser descoberto. 
 
Mas as obras de qualquer pensador prolífico, as que podemos datar com precisão, 
apresentam sempre um desenvolvimento lógico e linear? As primeiras são sempre 
mais curtas e menos densas? São as que apresentam maior interferência dos mestres 
que as inspiraram? Todo autor ruma em direção ao aperfeiçoamento, de modo que sua 
criação começa vacilante, atinge o apogeu e, depois, um inevitável remanso? A de 
alguns autores sim. Mas não é uma regra. Os Diálogos de Platão não trazem data: não 
sabemos quando nem como cada um foi escrito. A meu ver, o esquema das três fases 
é uma hipótese interessante. Mas o Íon pode ter sido criado em qualquer momento da 
vida de Platão: não precisamos lê-lo em função de uma cronologia para que suas 
questões sejam relevantes. O Íon não precisa ser uma preparação para a evolução de 
Platão. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
27 
 
#4 AS AUTOFICÇÕES DE ODISSEU NA ODISSEIA DE HOMERO 
 
“Madame Bovary sou eu.” 
 
A famosa fala de Gustave Flaubert, o escritor francês do século XIX, autor do clássico 
Madame Bovary, talvez seja um bom ponto de partida para se discutir a ideia de 
autoficção e a sua relação inusitada com a Odisseia de Homero, um dos grandes épicos 
da antiguidade. Num primeiro momento, a fala de Flaubert aponta para a identificação 
possível entre o romancista e os seus personagens, ou mais precisamente para a 
identificação entre o romancista e o seu personagem central. Mesmo numa narrativa 
em terceira pessoa, como é o caso de Madame Bovary, e mesmo numa história sobre 
uma mulher elaborada por alguém do sexo masculino, como não pensar nas fontes 
reais e imediatas que alimentam a ficção, ainda mais a ficção realista? Como não 
pensar no texto enquanto um reflexo, direto ou indireto, do seu criador ou da sua 
criadora? 
 
Num livro saído em 1961, A Morte da Tragédia, o crítico George Steiner afirmou que, 
ao contrário do homem clássico, o homem romântico, o tipo de artista surgido há mais 
de duzentos anos, é um Narciso em perseguição e afirmação exaltada da sua única 
identidade. No mesmo livro Steiner disse ainda que toda arte clássica, a arte anterior 
ao romantismo, empenhava-se no ideal da impessoalidade, para separar a obra da 
contingência do artista, mas que o romantismo almeja o contrário, porque na 
imaginação romântica a expressão invariavelmente tende para o autorretrato. Sim, 
ainda somos todos românticos. Talvez nunca tenhamos sido tão românticos quanto 
agora. Steiner, no seu livro, queria falar especificamente do drama clássico e do autor 
que aí é, por natureza, elusivo, ou seja, escorregadio e inapreensível, um autor que 
deseja desaparecer e que, portanto, é muito diverso do modelo que admiramos e 
cultivamos na nossa modernidade e pós-modernidade. Mas, mesmo assim, mesmo 
com Steiner querendo falar de outro tema, nós podemos utilizar seus dizeres para 
pensar em como, nos dias de hoje, a exacerbação da nossa sensibilidade tão 
autocentrada, mais do que simplesmente apontar para possíveis identificações entre 
autor e personagem, ou para o tão conhecido subjetivismo projetado largamente na 
28 
 
nossa poesia, deu origem a um subgênero narrativo popular cujo combustível é, 
abertamente, a própria vida de quem escreve: a autoficção. 
 
Rigorosamente falando, a autoficção é uma narrativa em primeira pessoa na qual o 
narrador tem o mesmo nome do autor. Seu objetivo é combinar autobiografia com 
liberdade de criação. Firma-se com o leitor o pacto de que o autor vai relatar sua 
própria vida, em trechos ou na íntegra, mas sem historiá-la com absoluto rigor factual 
– antes se permitindo aquelas liberdades próprias da escrita criativa. Ou seja, no final 
das contas, o autoficcionista flerta com os papéis de cronista, autobiografista e 
romancista, não sendo nenhum deles exatamente. A existência reconhecida desse 
formato novo, a autoficção, já há algumas décadas pelo menos, pode assim ser tomada 
como uma espécie de confirmação, mas sob uma feição agora nova, do individualismo 
narcísico surgido com a ascensão burguesa de fins do século XVIII, como Steiner 
apontou de passagem em sua obra. 
 
Mas a autoficção, apensar da definição que apresentei, está longe de ser uma realidade 
textual simples. Ela se desdobra em inúmeras direções, comporta diferentes graus e 
formatos, e no final extrapola o próprio texto impresso, porque depende de dados 
extratextuais que tambémfazem parte da relação leitor-obra. Estou pensando, por 
exemplo, no posicionamento que o autor em geral assume publicamente em relação 
ao seu texto, e o modo como este é apresentado no ato da publicação. São elementos 
que afetam a recepção, porque a leitura não se dá no vazio. A obra pode ser vista como 
mais ou menos fantasiosa, mais ou menos verdadeira, mais ou menos polêmica. Ou 
esses aspectos podem ser simplesmente ignorados. Ou os conceitos de verdade e 
ficção podem variar radicalmente de cultura para cultura. 
 
O fato é que, para além de termos a simples constatação nome-do-narrador igual a 
nome-do-autor, no tradicional formato em primeira pessoa, e um ponto equidistante 
entre fato e fantasia, podemos ter na autoficção variadas combinações. Pode haver a 
ficcionalização do nome do personagem e das muitas situações que atravessa, ficando 
ainda assim mantida para o público a ideia de que se trata de uma narrativa alimentada 
pela realidade do autor. Há os casos em que o autor se inclui como observador de uma 
29 
 
história alheia, que ele narra quase como repórter, sem descartar o dado ficcional, uma 
mistura entre jornalismo e literatura que teve como um de seus expoentes Truman 
Capote, com seu A Sangue Frio, um non-fiction novel, um “romance de não-ficção”. 
 
Aqui, com o objetivo de traçar um paralelo entre a autoficção e o Odisseu da Odisseia, 
me interessam especificamente, nesse universo amplo e talvez inclassificável, 
algumas modalidades da combinação verdade-mentira. Provisoriamente, pensei em 
quatro tipos de autoficção, distintas entre si, de épocas e culturas diferentes: 
 
a. O primeiro tipo seria aquele em que o autor nega a presença no texto de verdades 
factuais/pessoais, no intuito de criar um universo puramente ficcional, mas sem 
sucesso, uma vez que o alter-ego é facilmente detectado. Um exemplo possível seria 
o nosso Lima Barreto com o seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, 
de 1909. É bom registrar que essa sua dificuldade em separar criação e vida foi vista 
com maus olhos pela crítica, como uma limitação na sua atividade. 
 
b. O segundo tipo seria aquele em que o autor, ao contrário, nega a princípio a presença 
de mentiras e invenções, imaginando que a sua narrativa, ainda que operando com 
uma elaboração que é claramente ficcional, seria verdadeira. O melhor exemplo aqui 
seria a série Minha Luta, em seis volumes, do norueguês Karl Ove Knausgaard. O 
relato foi contestado por pessoas envolvidos na narrativa antes mesmo da publicação, 
produzindo controvérsia à época do lançamento, a partir de 2009, e obrigando o autor 
a trocar os nomes reais de alguns personagens. 
 
c. O terceiro tipo seria aquele em que o autor assume a mistura deliberada de verdades 
e mentiras, sem traçar uma fronteira clara entre o que aconteceu e o que foi inventado, 
e – dado importante – mantendo seu personagem central anônimo. Exemplo recente é 
o romance Maternidade, da canadense Sheila Heti, de 2018. 
 
d. Finalmente, há aquele quarto formato em que aquilo que se apresenta como 
memória fidedigna é pura ficção, subgênero chamado, pelos que denunciam essa 
fraude editorial, de “fake memoirs”. Porém os autores, em defesa própria, preferem 
30 
 
qualificar esse procedimento de ficção biográfica. Exemplo famoso é Misha: Uma 
Memória dos Anos do Holocausto, de Misha Defonseca, pseudônimo de Monique de 
Wael. O livro saiu em 1997 e foi inicialmente recebido com aclamação, tornando-se 
um best-seller, para depois ser desmascarado como engodo. 
 
Estou tratando essas obras aqui, muito livremente, como autoficções, pelo simples 
fato de no momento de seus lançamentos, ou na recepção posterior, a relação entre 
vida pessoal e ficção ter sido um elemento abordado por leitores e críticos, ou pelos 
envolvidos, mesmo que essa relação problemática não tenha sido colocada 
abertamente pelos autores. A autoficção, nesse sentido, mais que uma categoria 
desprovida de problema, toca no cerne das fronteiras movediças que separam a 
experiência do criador dos resultados da sua criação. Por um lado, quem escreve é 
sempre, inescapavelmente, parafraseando o batido Fernando Pessoa, um FINGE-
DOR, um inventor, um ficcionista, porque a literatura não é o mesmo que a realidade, 
é sempre outra coisa, algo construído, mediado pela linguagem e suas regras e 
convenções – por mais naturais e espontâneas que pareçam a cada tempo e a cada 
cultura. Por outro lado, e esse lado nunca deve ser desprezado na atualidade, o criador, 
ao escrever, ao construir com palavras e apenas com palavras, finge ou ficcionaliza a 
partir da dor que ele ou ela DEVERAS SENTE, ou seja, vale-se da experiência vivida 
enquanto propulsor essencial do trabalho. 
 
Esse conceito, portanto, pode ter alguma utilidade quando pensamos em Odisseu, que 
não é, claro, um escritor, mas um exímio narrador em primeira pessoa. Mais do que 
isso: é alguém que fala constantemente do seu passado na Odisseia. Nela existem, 
como se sabe, dois grupos de narrativas do herói nesse formato. Temos no miolo do 
poema, entre os Cantos 9 e 12, aquelas aventuras que Odisseu conta aos feácios, o 
chamado “apólogo”, e na segunda metade do poema, em diferentes momentos (penso 
aqui especialmente nos Cantos 14 e 19), as histórias que Odisseu inventa para seus 
interlocutores em Ítaca, já disfarçado de mendigo. Tradicionalmente, elas são vistas 
como antagônicas: o apólogo traria a mais pura verdade sobre o que Odisseu 
vivenciou nas suas perambulações pelo mar Egeu, em sua volta de Troia, enquanto o 
31 
 
segundo grupo de histórias seria tão real quanto a sua identidade de velho pedinte. Só 
que em Homero as coisas não são tão simples assim. 
 
Para começar, é fácil perceber que as mentiras ditas pelo Odisseu-mendigo, além de 
serem no geral muito mais verossímeis que as passagens bastante fantasiosas do 
apólogo, são em seus detalhes moldadas em alguns elementos oriundos desse mesmo 
apólogo. São “alomorfos” seus, como diz Irene de Jong, autora do mais importante 
comentário ao poema. O resultado disso é duplo. Em primeiro lugar, essa ficção dita 
em Ítaca acaba por não ser tão ficcional assim. Através das bases que estruturam 
algumas das mentiras em questão, que já conhecemos a partir do apólogo, Odisseu 
quer sinalizar para o leitor que sua ficção é em certa medida autobiográfica, que ele, 
o herói astuto, está ali presente por detrás da máscara do estrangeiro errante. Por outro 
lado, e esse é o segundo efeito, ainda que esse movimento reforce o dado factual do 
apólogo em que se baseia, ele não deixa de, paradoxalmente, contaminar as verdades 
ditas antes aos feácios, porque Odisseu mostra ser um habilíssimo mentiroso, capaz 
de convencer qualquer um do que diz (e eu lembro que nenhum amigo sobreviveu 
para confirmar o que ele relata). 
 
Sim, há passos externos da narrativa principal que confirmam pontos narrados pelo 
herói no apólogo como reais – seriam reais, por exemplo, o encontro com o Ciclope, 
o gigante de um olho só, e o episódio do gado do Sol, quando seus companheiros 
mataram os animais sagrados e acabaram morrendo por isso. Mas, conforme alguns 
estudiosos apontaram, não há como negar o lado mais retórico do apólogo, isto é, o 
fato de que ele está a serviço da sedução dos feácios e da construção da imagem de 
quem narra. Odisseu depende da nau deles para voltar para casa. Em outras palavras: 
por detrás da autobiografia do apólogo, não há uma ficção presente ao menos na forma 
como essa narrativa é organizada e apresentada? Nas suas ênfases e nas suas escolhas? 
No que ela prefere omitir, no que prefere não contar à sua audiência? No uso que faz 
dos muitos discursos diretos? No trabalho, enfim, do herói como um verdadeiro editor 
ou copidesque de si mesmo? 
 
32 
 
Não é o caso de dizer que Odisseu assume para si (e para nós) que o apólogo é, ainda 
que em parte, ficcional. Homero não toca nessaquestão. Os feácios apenas louvam e 
se encantam com a beleza da sua história. E, como eu disse, aquelas aventuras 
comprováveis externamente, pelo narrador do poema, meio que estendem a verdade 
para o conjunto do apólogo, em bloco, sem que notemos. Porém, dada a astúcia que 
caracteriza o herói, é possível pensar em como ele controla editorialmente tais dados 
factuais e como esse próprio controle é sim, pelo menos do nosso ponto de vista 
contemporâneo, um indício de ficcionalização. 
 
No final das contas, seria possível afirmar que a ideia de autoficção, mais do que uma 
categoria moderna da escrita literária, talvez seja, em germe, a ferramenta a serviço 
da construção de uma imagem em primeira pessoa – da autoimagem de quem fala de 
si. Acima do entroncamento impreciso entre falsidade e realidade, essa imagem, em 
certo sentido, certamente num nível psicológico, é sempre verdadeira, como há 
verdade na figura do Odisseu que emerge da rememoração dos piores momentos da 
sua vida, por mais editados que sejam. Ou como há verdade nas minúcias dos diálogos 
e dos eventos do dia a dia relatados por Knausgaard na sua séria épica Minha Luta, 
apesar da empreitada memorialística ter mais de duas mil páginas e, pela sua enorme 
abrangência no tempo, não se sustentar somente enquanto registro factual. 
 
Só que o Odisseu narrador da Odisseia não é um autor romântico, um autor do nosso 
tempo. Como personagem que se volta sobre si mesmo, pode ser antes um protótipo, 
ou arquétipo, dessa nossa autoindulgência narrativa, do narcisismo pelo qual nos 
moldamos em frente ao espelho. O que ajuda a entender o fascínio maior que a 
Odisseia tem exercido desde o século XIX, e a própria relação fecunda que esse épico 
estabeleceu com a forma moderna do romance. 
 
 
 
 
 
 
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#5 A MISSÃO DO SUPER-HERÓI NA ENEIDA DE VIRGÍLIO 
 
Se existe uma obra que ocupa o centro da tradição literária no Ocidente, essa obra é a 
Eneida de Virgílio. Tudo que veio antes e depois dela, tudo converge, de uma forma 
ou de outra, para esse épico majestoso escrito em latim no final do século I a.C. É 
como se ele fosse um ímã que atraísse para si a energia criativa dispersa por séculos. 
Das epopeias de Homero, passando pela tragédia e pela filosofia, atravessando as mais 
variadas formas poéticas helenísticas e latinas, até o fim do paganismo e criações 
como a Divina Comédia de Dante, o Paraíso Perdido de John Milton, os Lusíadas de 
Camões e o romance moderno, a Eneida guarda dentro de si as principais linhas de 
força do que tem sido essa tarefa contínua de contar e recontar uma história ambiciosa 
e plena de sentido. 
 
Se a princípio ela surgiu para imitar a Ilíada e a Odisseia, imitar num sentido criativo, 
sem preconceito algum, com o tempo ganhou tamanha reputação e influência que 
tornou Homero, seu antecessor, o poeta secundário. E ainda que do século XIX para 
cá a gente venha lendo e traduzindo bem mais Homero que Virgílio, e ainda que 
Homero represente hoje a espontaneidade criativa que supera o artifício de Virgílio, 
ainda assim a Eneida continua a ser a nossa matriz maior, a fundação sólida sobre a 
qual se assenta qualquer representação séria e estendida de uma ação. 
 
Seria possível entender isso de várias maneiras. A gente poderia pensar no modo como 
Virgílio adensou a linguagem épica de Homero, trazendo-a para o plano letrado, 
deixando apenas alguns poucos vestígios propositais do seu ambiente oral. Ou no 
modo como reformatou o metro hexamétrico, aquele de seis pés, para lhe dar 
polimento, uma sonoridade ímpar e um ritmo menos caprichoso. Ou como abriu 
espaço para modalidades diegéticas variadas, aproximando, por exemplo, a voz do 
narrador da voz dos seus personagens, explorando a abundância dos monólogos ou 
ainda empregando o presente histórico. Ou como assumiu temas apenas entrevistos 
em Homero – o amoroso, o político, o filosófico. Todas essas características já 
mostrariam o peso da herança deixada por Virgílio, e eu digo deixada por Virgílio não 
tanto porque ele foi o primeiro a empregar esses recursos, mas porque ele foi o mais 
34 
 
importante e influente a fazê-lo. Foi a partir de Virgílio que pudemos ler Homero 
como um poeta em larga medida não-virgiliano, e foi a partir de Virgílio que pudemos 
ler incontáveis outros, antes e depois dele, como extremamente virgilianos. Mas não 
vou seguir aqui nenhum desses possíveis caminhos. O tópico principal que quero 
abordar é a construção do herói em Virgílio, a construção do Eneias da Eneida, esse 
herói grego que tinha em Homero um molde diferente, mas que nas mãos do poeta 
romano virou não só outro Eneias, mas O herói por excelência. 
 
Quem é Eneias? Na Ilíada, é uma figura que luta ao lado do troiano Heitor contra os 
gregos. Faz parte do “segundo escalão” de heróis que encontramos em Homero. Mas 
há um detalhe que o diferencia: já na mitologia grega antiga profetizava-se que Eneias, 
como sobrevivente da Guerra de Troia, seria responsável por dar continuidade à raça 
troiana. Há outro elemento que ajuda a dar mais relevo ainda a ele: como Aquiles, 
Eneias é filho de um homem mortal com uma deusa – no seu caso, de Anquises com 
a deusa Afrodite, ou com a deusa Vênus, no panteão romano. Entre os heróis, é bom 
lembrar, ser descendente direto de uma figura divina ajudava a reforçar seu pedigree. 
Mas é bom lembrar também que isso não lhe dava poderes especiais. Os heróis em 
Homero, por mais que pudessem apresentar capacidades sobre-humanas, eram no 
final do dia encarados como demasiadamente humanos, pelo simples fato de estarem 
sujeitos ao mesmo desfecho incontornável de todos os demais seres terrenos. 
 
Pois bem, esse Eneias, já antes de Virgílio, tinha sido explorado por outros narradores 
em língua latina como o elo perdido entre o passado grego e o poderio romano: seriam 
os primórdios da nação romana que ele na verdade viria a fundar após sobreviver à 
Guerra de Troia. Assim como a destruição de Troia está entrevista na Ilíada mas não 
é narrada no poema, a grandeza de Roma – a Troia reconstruída – está entrevista na 
Eneida sem ser narrada nela. Essa escolha de Eneias como um elo, feita pela primeira 
vez não sabemos por quem, nem quando, era uma escolha feliz para um povo que 
queria absorver, como uma esponja, a tradição grega que tanto admirava. Eneias, o 
herói de Homero, continuava vivo séculos depois numa outra cultura. 
 
35 
 
Mas essa escolha ajudava não só a marcar a continuidade, mas também a explicitar a 
rivalidade: Eneias era adversário dos gregos em Homero e a sua sobrevivência 
acabava por assinalar o contraste com as figuras de Aquiles e Odisseu, os 
protagonistas da Ilíada e da Odisseia. Ou seja: na figura de Eneias, era a mesma 
tradição heroica que perdurava, como se um fio contínuo ligasse Grécia e Roma, mas 
era ao mesmo tempo outra tradição heroica que nascia, contrária, que trazia no seu 
bojo um discurso de ruptura. A indumentária geral, na superfície, era a da épica grega, 
mas tudo mais se mostrava, ao olhar atento, não grego. O herói derrotado pelos gregos 
em Troia iria agora impor sua vitória, uma vitória que Virgílio não queria nem podia 
formular nos termos gregos e que deveria ter um valor próprio. 
 
Lendo a Eneida, não é difícil reconhecer os traços essenciais que formam o herói 
Eneias e como eles divergem do que encontramos no Aquiles da Ilíada e no Odisseu 
da Odisseia. Sim, os seis primeiros livros da Eneida são uma espécie de Odisseia 
condensada, porque contam as viagens de Eneias até chegar à Itália; e os seis livros 
da segunda metade, voltados para a guerra, uma condensação da Ilíada e o seu espírito 
bélico. Mas nem por isso, por vagar de lá para cá e por se lançar ao combate, o 
personagem de Eneias é uma simples fusão de Odisseu e Aquiles. Odisseu é um líder 
racional e sofrido, que fracassa em preservar a vida dos seus comandados depois de 
partirem juntosde Troia, e que restabelece a paz em Ítaca ao custo, de novo, de muitas 
mortes no seu currículo de chefe. Dá para dizer que é um herói justo e resiliente; não 
dá para dizer que é um herói simplesmente exemplar. Aquiles, menos ainda. Passional 
e teimoso, às vezes parece ser o vilão da história em que deveria ser o herói. No final, 
não é nem uma coisa nem outra. Provoca incontáveis mortes, provoca a morte do seu 
mais querido amigo e acaba encaminhando a sua própria. O que torna Aquiles 
admirável é essa força destrutiva tão reconhecível que ele concentra em si. 
 
Não é nenhum desses moldes homéricos que emerge da leitura da Eneida. Eneias é 
construído em uma outra fôrma, que pode ser resumida por três palavras presentes no 
poema: uirtus, pietas e cura, “virtude”, “devoção” e “cuidado”. Ele não é um herói 
que luta por si mesmo, por sua glória e vaidade, pela preservação da própria vida e 
pela volta ao lar. Eneias não é o herói da violência bruta, que a Eneida associa a 
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Aquiles e ao filho de Aquiles, nem da esperteza traiçoeira, que o épico latino atribui 
a Odisseu. Eneias age em nome de uma causa, que é ao mesmo tempo familiar, 
religiosa e política, e mobiliza essas três ideias às vezes quase inseparáveis entre si, 
“virtude”, “devoção”, “cuidado”. Essa causa não é isolada nem individual porque, 
como a Eneida gosta de profetizar repetidas vezes, ela tem a ver com o eventual 
estabelecimento de um império que imporia a paz e a harmonia na terra. Esse império 
é o império fundado por Otávio Augusto durante a idade madura de Virgílio. A Eneida 
é o poema encomendado para celebrá-lo com a mesma monumentalidade e 
complexidade dos poemas homéricos. Engana-se quem imagina que é um poema de 
alguma forma maculado pela intimidade com o poder oficial. 
 
Para começar, a Eneida não é uma narrativa apenas situada no passado, como são as 
epopeias de Homero: é uma narrativa que aponta também para o futuro. A Ilíada e a 
Odisseia são retrospectivas somente, olham para trás. A Eneida é retrospectiva E 
prospectiva, olha para trás E, de lá de trás, olha para frente. O peso desse círculo que 
se fecha é carregado nas costas de Eneias sob a forma de um novo heroísmo, o 
heroísmo de alguém que representa uma causa e é responsável por uma nação. Virgílio 
aproveitou a oportunidade dada a ele por essa encomenda para imaginar como seria 
uma figura não mais norteada pelo individualismo puro, mas por fatores que o 
ultrapassam e de algum modo anulam a própria vontade individual do herói. Virtude, 
devoção, cuidado – essas são como que qualidades impostas a Eneias pelo destino, 
outra palavra fundamental na Eneida. O destino do herói é se lançar a essa missão que 
assume, de estabelecer as bases do que viria a ser a grande Roma. Tudo é menor e 
desaparece diante dessa imposição, que ele é obrigado a acatar porque, como eu disse, 
é familiar, religiosa e política. 
 
Duas cenas famosas do poema resumem bem isso. No Livro 2, quando ele narra para 
Dido, sua anfitriã em Cartago, a destruição de Troia pelos gregos, Eneias relembra 
como na fuga carregou nas costas o pai idoso, Anquises. A imagem é memorável e 
diz muito sobre o espírito que norteia o herói. Mais à frente, no Livro 4, depois de se 
envolver com a própria Dido e vê-la apaixonada, Eneias comunica que vai ser 
obrigado a partir para dar continuidade à sua missão, e faz isso de um jeito que 
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exprime mais resignação do que contrariedade. É um episódio onde o herói se torna 
secundário perante o personagem da rainha; como ele mesmo diz a ela, os fados não 
permitem que ele conduza sua vida seguindo os seus desejos. Nos dois casos, a gente 
percebe que Eneias é um herói diferente: ele se sacrifica pelos outros, ele descuida de 
si para cuidar de um bem maior. Ele é, em outras palavras, o instrumento de algo 
grandioso e tem plena consciência disso. A sua grandeza, portanto, não está tanto na 
valorização de qualidades pessoais vistosas, como Aquiles com sua força ou Odisseu 
com sua inteligência: ela está em se colocar a serviço, como líder de fato, de 
realizações das quais ele mesmo não vai desfrutar. Eneias suprime os seus anseios e 
carrega o próprio pai nas cosas, mas ele suprime e carrega nas costas muito mais, 
como pai de todos aqueles que tem sob o seu comando. 
 
Quando a gente enxerga dessa maneira o Eneias da Eneida, a gente vê a grande 
distância que o separa do heroísmo homérico. Alguém poderia lembrar que o Heitor 
da Ilíada, o grande guerreiro troiano, seria em Homero o que Eneias é em Virgílio. 
Com certeza o patriotismo de Heitor, obrigado a defender sua família e sua cidade do 
ataque grego, lembra alguma coisa do Eneias na Eneida. Mas, ainda assim, o horizonte 
pelo qual Heitor luta é menos amplo do que o de Eneias, e ele em nenhum momento 
tem o peso da responsabilidade de fundar algo substancial e abrir mão da sua própria 
vontade. Eneias não pode pensar em si mesmo, no seu próprio patriotismo. Ele tem 
que pensar no outro, agir pelo outro, cuidar do outro. 
 
Essa é a referência maior que Virgílio funda na Eneida e não é difícil perceber a sua 
influência para a construção geral do herói moderno, em sentido amplo. A cultura pop 
norte-americana, em particular, ao longo do século XX retrabalhou esse modelo 
virgiliano criando um tipo de heroísmo que conhecemos hoje como sendo o do super-
herói. Elementos oriundos do cientificismo dão a esses novos heróis poderes 
especiais, fazendo com que sejam dotados de capacidades que os heróis da mitologia 
antiga nem sonhavam ter, habilidades inusitadas. A isso se junta ainda a insinuação 
de que estão livres da morte e do tempo, o que mostra que a questão central grega se 
tornou menos relevante, como já acontecia com Virgílio. O relevante agora é esse 
herói pensar menos em si, na sua vida e em quando e como vai morrer, e mais na 
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comunidade que deve defender. O que o Super-Homem, o Homem-Aranha e outros 
tantos buscam é estabelecer a justiça no mundo onde vivem. 
 
De algum jeito, a formulação que estava lá na Eneida permanece conosco: a de que o 
verdadeiro herói trabalha para um mundo que quer e que pode ser melhor. É a ideia 
ambiciosa de que há uma construção por fazer, de que podemos sublimar o que há de 
pior no ser humano por causa dela. Eneias seria assim o precursor desse ser humano 
ideal, uma figura heroica rara, e amada por ser tão distante de nós. Sim, Eneias e os 
super-heróis podem fraquejar, podem falhar ou vacilar, mas no final eles devem 
superar essas limitações momentâneas, porque eles têm uma obrigação e ela aponta 
para longe do próprio umbigo. Os heróis homéricos fascinam por serem autocentrados 
demais, verdadeiros demais nas suas egotrips. 
 
Mas Eneias é um herói muito mais influente e representativo, precisamente porque é 
essa idealização, essa meta fixada por Virgílio: o super-homem que se pôs acima dos 
demais para trabalhar por todos eles; o antepassado de Augusto que anunciava o 
advento do próprio. Em sua dimensão política, esse herói virgiliano não deixa de ser 
ainda uma possível inspiração para conter o individualismo galopante e o vácuo do 
nosso tempo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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#6 MAIS RAZÃO E MENOS EMOÇÃO NA MEDEIA DE SÊNECA 
 
Como devemos lidar com nossos sentimentos mais descontrolados? Paixão, ódio, 
ambição, luto, desespero com a passagem do tempo – a lista de coisas que podemos 
sentir e que podem nos tirar do prumo é grande. Como encarar o desfio de não 
sucumbir a impulsos que podem nos destruir ou que podem destruir os outros aos 
quais se dirigem? Qual o perfil psicológico de quem experimenta cada um desses 
sentimentos? O escritor Sêneca, que viveu no século I d.C., tentou responder a essas 
questões, questões no fundo filosóficas, de duas maneiras bem diferentes. A primeira 
foi escrevendo ensaios morais na forma de conversas com os amigos, ensaios muito

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