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1 André Malta ISSO AQUI NÃO É GREGO Uma Apresentação Descomplicada da Literatura Clássica São Paulo: Edição do Autor, 2020 2 © André Malta 2020 Todos os direitos reservados versão eletrônica disponibilizada em 31/10/2020 – 196 p. 3 Sumário Prefácio.....5 1 Clitemnestra e o Sexismo no Agamênon de Ésquilo.....9 2 Corrupção Humana nos Trabalhos e Dias de Hesíodo.....15 3 Ironias do Racional e do Irracional no Íon de Platão.....21 4 As Autoficções de Odisseu na Odisseia de Homero.....27 5 A Missão do Super-Herói na Eneida de Virgílio.....33 6 Mais Razão e Menos Emoção na Medeia de Sêneca.....39 7 Um Novo Esopo em Verso nas Fábulas de Fedro.....45 8 A Sabedoria da Vida Como Ela É na Poesia de Teógnis.....51 9 Epidemia, Ciência e Política na História de Heródoto.....65 10 O Charlatão Desmascarado no Falso Profeta de Luciano.....71 11 O Amor Enganador na Elegia Erótica de Ovídio.....77 12 À Procura do Roteiro Perfeito na Poética de Aristóteles.....83 13 Nem à Esquerda Nem à Direita: O Centro na Poesia de Sólon.....89 14 Riqueza Para os Justos Já! na Comédia O Deus Dinheiro de Aristófanes.....95 15 Conciliando Homero e Platão no Como Estudar a Poesia de Plutarco.....101 16 O Sócrates Sofista nas Memoráveis de Xenofonte.....107 17 O Transe do Culto e do Palco nas Bacantes de Eurípides.....113 18 O Desassossego Afrodisíaco na Poesia de Safo.....119 19 Morte e Vida Heroica no Édipo em Colono de Sófocles.....125 20 O Ato Final (e Inaugural) de Sócrates na Apologia de Platão.....131 21 Pinheiros do Paraná na Poesia de Píndaro.....137 22 O Drama do Macho Traído na Comédia Anfitrião de Plauto.....143 23 O Trespasse do Poderio Persa na História de Heródoto.....149 24 Teoria Saturada de Graça na Arte Poética de Horácio.....155 25 O Silêncio de Ájax no Sobre o Sublime de Longino.....161 26 Os Caminhos da Tragédia nas Fenícias de Eurípides.....167 27 Momo e os Memes na Poesia de Arquíloco.....173 28 A Prosa Espectro-do-Belo no Fedro de Platão / Parte 1.....179 4 29 A Prosa Espectro-do-Belo no Fedro de Platão / Parte 2.....185 30 Onde Fica o Calcanhar de Aquiles na Ilíada de Homero.....191 5 Prefácio No início da pandemia de 2020, decidi criar um canal no YouTube com episódios semanais sobre a literatura greco-latina, sempre no mesmo esquema: destacando um tema no conjunto (e/ou em uma obra em particular) de um(a) autor(a) que escreveu em grego antigo ou latim. À exceção de dois textos já prontos que precisei apenas adaptar ao formato do canal, toda semana, de março a setembro, eu finalizava um episódio novo para colocar no ar. Foi assim que nasceu o “ISSO AQUI NÃO É GREGO – Uma Apresentação Descomplicada da Literatura Clássica”, agora editado em forma de livro, com seus trinta capítulos correspondendo a cada um dos trinta episódios, e com alguns detalhes dos títulos e dos textos originais modificados. A vantagem, com o acesso possível também via leitura, é permitir que as referências e os conteúdos sejam consultados de um jeito mais fácil e absorvidos com calma. Os capítulos/episódios foram criados a partir da minha experiência em sala de aula como professor de língua e literatura grega antiga na Universidade de São Paulo, onde atuo desde 2001 (dando, eventualmente, literatura latina também). A intenção era explorar elementos que nem sempre podem ser apresentados em obras acadêmicas, mas que frequentemente abordo com as turmas nas mais variadas disciplinas que tenho ministrado ao longo desse tempo. Misturar Safo com Angélica Freitas, Odisseu com Karl Ove Knausgaard, Píndaro com Djavan, Aristóteles com Stanley Kubrick, Eneias com os super-heróis, Teógnis com a literatura de autoajuda, Sêneca com o budismo, Sólon com a nossa polarização política e Arquíloco com nossos memes – esse era um dos objetivos, sem descuidar do rigor. Por mais que me dedique a uma área basicamente histórica como são os Estudos Clássicos em suas múltiplas ramificações, acredito que conexões livres no tempo e no espaço muitas vezes podem iluminar os tópicos discutidos com uma pertinência maior do que minúcias de uma tateante reconstrução do passado. Na mesma linha, acho que é possível falar de autoficção na Odisseia, lifecoaching em Sócrates, sexismo na tragédia e patriarcado e preconceito nas expressões cômicas. Não me ocorreu reduzi-las simplesmente às ideologias e bandeiras atuais, mas me ocorreu sim que não havia como ignorar a presença de questões tão incômodas em textos tão celebrados. Essa consciência só me 6 levou a querer lê-los com intensidade ainda maior, percebendo que, com suas inegáveis qualidades e inevitáveis limitações – mas, principalmente, com suas ricas contradições –, podiam ser pontos de partida para as discussões contemporâneas. Só que essa busca desejável por um contato com as referências atuais, ainda que importante, é só a superfície do ISSO AQUI NÃO É GREGO. Por debaixo das conexões inusitadas, e da visão panorâmica e introdutória, eu tinha em mente algo mais profundo e ambicioso, o esforço de propor, através de um “minicurso virtual”, uma relação diferente com a literatura greco-latina, não pautada pelo recorte histórico padrão. Dá para notar isso pela ordenação não cronológica entre gregos e latinos. Se as histórias da literatura clássica tendem a se abrir com a Ilíada de Homero (fixando, de saída, que ela é uma produção anterior à Odisseia), aqui fiz questão de colocá-la por último, deliberadamente embaralhando os textos. Essa decisão não deve ser interpretada de forma alguma como desprezo pelas historiografias literárias em si, que têm norteado o ensino de várias gerações e até hoje são ferramentas didáticas importantes. O ponto é outro: o fato de essas historiografias se pautarem por um enfoque progressivo e determinista. A princípio, essa até pode ser uma ferramenta investigativa útil, quando autores, gêneros, obras e épocas estão bem documentados. Requer, de todo modo, cuidado e sensibilidade, porque a literatura nunca é mero reflexo, nem da vida nem do ambiente (em suas múltiplas dimensões), a realidade nunca é mero avanço (ou decadência) e os gêneros não existem em si mesmos. O problema é quando essa ferramenta se torna viciada, cômoda, e a abordagem do texto é condicionada por fatores que estão a serviço de uma narrativa já estabelecida. A obra se transforma em “sintoma”, porque a meta é historiar cultura, sociedade, fontes e gêneros, com seus nexos causais. A situação se agrava quando os dados externos, e às vezes os internos, são especulativos em excesso, algo que não é não infrequente aqui, uma vez que estamos falando de séculos muito remotos. Para piorar, por causa daquela pretensão científica na qual os Estudos Clássicos insistem ainda em se escorar, o que é apenas especulação, um consenso entre os especialistas solidificado pelo tempo, tende a ser transmitido como fato. 7 É esse conjunto de práticas que é posto em xeque, às vezes de forma explícita, às vezes silenciosamente, nas próximas páginas: nelas não há etapas nem fases, seja no trato com épocas, sociedades, obras ou vidas. Nem há aquelas digressões, muitas vezes estéreis, sobre o que é autêntico e o que é espúrio, tampouco as abordagens histórico- formalistas extremadas sobre as manifestações literárias. Não porque sejam todas desinteressantes: elas produziram alguns dos resultados mais instigantes dos Estudos Clássicos. A periodização e seus cacoetes não comparecem aqui, na realidade, porque estou convencido de que há outras especulações, igualmente ricas, que podem ser experimentadas e quasenão são, como a que me interessa em especial, a literária de fato, com seus mecanismos, temas e significados. Insistimos demais no aspecto extraliterário quando falamos da literatura clássica, nos habituamos a focar no que é acessório, lateral. Mesmo os movimentos que querem se distanciar do historicismo reincidem nele. Discutimos o que não temos em detrimento do que temos, um contrassenso há muito enraizado na área. Teorizamos de forma incessante, por exemplo, sobre quem foi Homero, seu tempo, a cronologia relativa das suas obras (e da épica) e as diretrizes do gênero que praticava, mas interpretamos muito pouco os seus poemas e os comparamos menos ainda, literariamente falando, com outros. Aqui o foco são os textos: poemas, peças de teatro, narrativas curtas, narrativas longas, diálogos em prosa, tratados. Aqui há crítica literária, há apreciação estética e salto interpretativo, coisas que o cientificismo tende a ver com desconfiança, por se considerar um método objetivo, que trabalha com produtos históricos. Foi abrindo espaço a uma subjetividade incontornável que pus esses textos para dialogar de forma autônoma, com a história por detrás enquanto referência imprescindível, claro, mas sem a camisa de força dos condicionamentos de fora e de debates que nos distraem do essencial. Minha esperança é mostrar, ao driblar as bases tradicionais dos Estudos Clássicos, com suas certezas frágeis, com suas narrativas já cansadas e recalcitrantes, que não anulamos o aporte investigativo – pelo contrário: adotamos uma posição mais humilde e interrogativa. Começar a romper com a nossa complacência em relação a uma prática consolidada pode estimular a curiosidade de quem lê, inclusive a do especialista, e promover a revitalização de obras que primam pela polissemia. Elas são mais que épocas, etapas, autores e gêneros, e por isso ainda falamos delas. 8 9 #1 CLITEMNESTRA E O SEXISMO NO AGAMÊNON DE ÉSQUILO Agamênon, ou Agamêmnon, ou Agamenão, é o líder do exército grego na expedição contra Troia e um personagem de destaque na Ilíada de Homero. É ele que dá título a essa tragédia de Ésquilo do século V a.C., talvez a mais bonita de todas as tragédias e uma das peças de teatro mais impressionantes já escritas. Ela conta como esse rei, ao voltar vitorioso da Guerra de Troia, foi assassinado pela esposa, Clitemnestra, em conluio com o seu amante, Egisto. Existem outras duas peças que Ésquilo escreveu para servirem de sequência ao Agamênon: nelas ele conta como Orestes mais tarde vingou a morte do pai matando a mãe e o amante, e como foi finalmente absolvido num tribunal. O conjunto dessas três peças é conhecido como “Oresteia”. Ésquilo usa essas peças para tratar da violência, da relação entre crime e castigo e da implementação da justiça, mas dá para dizer que a discriminação entre os gêneros masculino e feminino tem também um papel importante nessa história. Aqui eu quero falar sobre como o sexismo aparece no Agamênon, a primeira e mais importante peça da trilogia. A própria escolha do título já nos dá uma pista: lendo a tragédia, a gente vê que o personagem do Agamênon tem uma participação muito reduzida em comparação ao da Clitemnestra. A figura central, do começo ao fim, é ela. A peça Agamênon deveria se chamar, na verdade, Clitemnestra. O fato de isso não ter acontecido, junto com o fato de Clitemnestra ser, ao mesmo tempo, uma figura extraordinária nesse drama, trai uma tensão marcante na criação de Ésquilo, que oscila entre o empoderamento da esposa do rei e a sua desqualificação pelo fato de ser mulher. É um pouco a contradição na base da própria cultura grega antiga: ela pôde criar tipos femininos fortes e inesquecíveis, como Penélope, Helena, Antígona, Fedra e Medeia, mas as histórias envolvendo esses tipos tradicionais eram recontadas por homens, num ambiente patriarcal, androcêntrico. As mulheres não tinham a oportunidade de compor poemas, criar peças ou trabalhar como atrizes – eram os homens que representavam as figuras femininas no teatro. Alguns acreditam que elas nem podiam assistir às peças. De um ambiente assim asfixiante e machista a tendência é imaginar 10 que pouca coisa poderia sair sobre o que significava ser mulher, mas não é o que acontece. No Agamênon, Ésquilo criou uma Clitemnestra que se sobrepõe a todas as figuras masculinas que encontra pela frente, tendo para isso que lidar com as dificuldades e os caminhos associados ao seu gênero na Grécia Antiga. Uma Clitemnestra que, por tabela, nos ajuda a pensar essas questões nos dias atuais, num país tão desigual e violento como o Brasil. O poder de Clitemnestra na peça tem a ver com uma escolha decisiva feita por Ésquilo: ao invés de ela ser, como aparentemente era nas versões correntes dessa história tradicional, uma simples ajudante do amante Egisto, a quem se uniu na ausência de Agamênon, ela se torna agora a mentora e condutora do assassinato. Mais do que isso: estando o trono vago, é ela que detém o poder na cidade de Argos. Com a volta do rei da guerra, o conflito deixa de ser assim um conflito entre dois homens para se tornar um conflito entre um homem e uma mulher. Desde o princípio da peça, fica patente todo o desconforto dos personagens masculinos ao redor de Clitemnestra com a sua liderança e a sua infidelidade. Ela é uma figura isolada, mas jamais frágil. E está determinada a matar o marido no momento em que este voltar de Troia. O motivo? Agamênon tinha sacrificado, dez anos atrás, a filha Ifigênia, para conseguir ventos favoráveis e poder partir rumo à guerra. A estrutura da peça é simples, alternando-se entre algumas poucas cenas e os cantos corais. Na abertura, um vigia posto no alto da casa pela senhora vê os sinais de fogo que, como uma espécie de telégrafo primitivo, anunciam a vitória grega em Troia. Trata-se de um monólogo, Clitemnestra não está no palco ainda, mas o descontentamento masculino com o poder dela e com sua traição está bem claro. Já sabemos quem manda em Argos, e quem manda é uma mulher que decidiu não se submeter às vontades e aos atos do seu senhor. O coro começa a cantar em seguida. Ele representa os anciãos da cidade, não por acaso homens que, novamente, são contrários a Clitemnestra. Na cena seguinte, já avisada pelo vigia, ela finalmente surge, para conversar com os velhos do coro sobre a notícia da volta do rei com seu exército. A reação deles é de desconfiança – a notícia só pode ser fantasia de mulher. Ela rebate dizendo que é tratada como criança e mostra saber muito mais do que o 11 coro poderia imaginar, tanto sobre o sistema de transmissão dos sinais de fogo, que ela descreve em detalhes, quanto sobre o que deve ter se passado nos instantes finais da conquista de Troia. O coro reconhece que ela falou bem, mas faz isso com um elogio sexista, “você falou como um sábio homem”, e o diálogo termina para dar lugar a um novo canto coral. Clitemnestra já dá provas aí de que a mulher não precisa ficar confinada ao gueto em que foi posta pelos homens. Mas os anciãos resistem a equiparar a mulher ao homem. Nas duas cenas seguintes da peça, o que se vê é Clitemnestra sendo ainda inferiorizada pelas figuras masculinas, mas se aproveitando dessa inferiorização para pôr em prática seu plano de vingança. É uma espécie de teatro dentro do teatro: ela tem que fingir que é a mulherzinha que todos esperam que seja nesse ambiente, para enfim conseguir o que quer: atrair Agamênon para dentro do palácio e matá-lo. Dois homens chegam a Argos nessas cenas. Na primeira, o arauto do exército, que anuncia a vinda próxima do rei. Na segunda, o próprio rei Agamênon. Dado curioso e muito significativo: em ambas as cenas Clitemnestra está no palco desde o princípio, mas é simplesmente ignorada;os homens devem primeiro conversar entre si. Ou seja, tanto o arauto quanto Agamênon falam antes com o coro masculino, para só depois darem espaço para participação de Clitemnestra. Esse silenciamento inicial, do ponto de vista cênico, é a indicação de um inegável sexismo, mas ajuda também na estratégia de Clitemnestra para ultrapassá-lo. A mulher deve se recolher ao seu lugar para conseguir sair dele. Na cena com o arauto, quando tem finalmente a chance de se manifestar, a rainha diz a ele (que se mostrava obviamente feliz com o regresso do exército) que ela também se alegrava. O sentido oculto não passa despercebido ao coro, mas os velhos não têm coragem de dizer a verdade. A mesma coisa acontece na cena seguinte, a única da peça em que Agamênon aparece. Clitemnestra, como eu disse, primeiro deixa que os homens conversem entre si, mas depois se insere com muita habilidade no diálogo, apresentando-se como uma Penélope lamentosa, que sofreu com a ausência do marido e cujas lágrimas já tinham secado de tanto chorar. 12 Mas o ponto alto é o convite dela para que Agamênon entrasse no palácio pisando num tapete vermelho, símbolo da sua glória. O rei, cheio de si e mais vaidoso do que nunca após a vitória, a princípio resiste e tenta se apegar à necessidade de moderação e modéstia, mas – como todo macho endeusado pela mulher – acaba por morder a isca. Quando representada no palco, é uma cena muito simbólica essa do tapete, porque se trata na verdade de um caminho de sangue, uma antecipação da morte de Agamênon, que vai ocorrer fora de cena, atrás do palco. Como a história do seu assassinato ao voltar da guerra era tradicional, a plateia já sabia o que estava prestes a acontecer, e assim Ésquilo pôde sublinhar o contraste entre o homem que se julgava poderoso, mas era na verdade a vítima, e a mulher que se pintava passiva, mas era senhora absoluta da ação. Há um dado a mais, evidente para quem assistia à peça: Agamênon não chega sozinho. Ele traz junto uma cativa de guerra, a troiana Cassandra. O homem que podia matar a filha sem dar a mínima para a opinião da esposa podia também ter livremente suas escravas sexuais. Da perspectiva masculina, caberia à mulher apenas aceitar, como caberia a Medeia aceitar a traição de Jasão, e a Dejanira aceitar a de Héracles. Mas os mitos gregos vão além e falam, como sabemos, de mulheres que não se submetem. Cassandra é uma dessas mulheres e será a figura central na cena anterior ao assassinato de Agamênon. É ela que dialoga com o coro e leva ao ápice a atmosfera de desastre que pairava desde o começo da peça. Sendo alguém que tem o poder da vidência, a estrangeira Cassandra é capaz de descobrir os crimes passados e futuros da família. Mas junto com esse poder ela obteve uma maldição: a de não ser levada a sério. O castigo foi imposto pelo deus Apolo por ela ter resistido ao seu assédio. Sim, na cena mais impactante, de novo a violência masculina em relação à mulher entra como dado nada desprezível. A parte final da peça, depois de ouvirmos os gritos do rei enquanto é golpeado pela esposa, traz uma transformação de Clitemnestra: ao reaparecer, ela não precisa mais fazer o teatro da mulher dócil e pode assumir abertamente seu poder. Nem o vigia, nem os anciãos do coro, nem o arauto, nem o próprio Agamênon – nenhuma dessas figuras masculinas foi capaz de se contrapor ao desejo dela de vingança. Ela 13 simplesmente não aceitou, de modo passivo, a perda da filha. O recato e o silêncio, símbolos da mulher submissa, são postos de lado. Agora ela proclama em alto e bom som o sucesso da sua armadilha e a satisfação com o assassinato. O coro, chocado, a censura, mas Clitemnestra não se abala. Numa das afirmações mais desconcertantes da literatura grega, ela diz que o crime lhe trouxe sabor adicional na cama, uma referência explícita à sexualidade e ao prazer feminino. Daria para escrever uma tese sobre a dificuldade dos estudiosos – homens, basicamente – em digerir essa fala. Mas falta ainda aparecer Egisto, o amante, e é isso que acontece na última cena da peça. O fato de ele surgir só no fim é a confirmação daquilo que eu disse antes: nessa versão da história, a figura de destaque é Clitemnestra, e é ela ainda que dá as cartas aqui. No bate-boca que se forma entre os machos, com os velhos do coro acusando Egisto de ter agido como uma mulher, por não ter ousado cometer o crime com as próprias mãos, é a mulher, Clitemnestra, que intervém para controlá-los, quase como se fossem crianças. A protagonista da peça, tratada como criança pelos homens em boa parte dela, fecha a ação reafirmando aquele empoderamento de que deu mostras desde o princípio. O Agamênon é uma peça sobre Clitemnestra, sobre a perspectiva feminina, sobre os obstáculos que as mulheres têm de enfrentar, sobre seus silenciamentos. É bem verdade que, na sequência da trilogia, com a morte dela e de Egisto, na segunda peça, e com Orestes saindo impune do crime terrível do matricídio, na terceira, a mensagem parece ser outra: não se pode admitir uma Clitemnestra na sociedade. O assassinato da mãe pelo filho pode sim ser perdoado, mas matar o marido é imperdoável; as mulheres podem sim ser as vítimas, mas os homens nunca. No entanto, por mais apaziguadora que essa mensagem final pudesse soar aos ouvidos dos atenienses, o fato é que Clitemnestra pode ser tomada como a grande figura da trilogia. Ela é a única, aliás, que aparece nas três peças – na última delas é seu fantasma que surge como personagem. A sua presença é tão poderosa que impede que a lição provavelmente pretendida por Ésquilo sirva de palavra final. À revelia do autor, a divisão entre os sexos, com seus papéis pré-definidos, e com a mulher lutando contra a opressão de que era vítima, acaba por se impor como uma questão sem resposta à vista, e igualmente trágica. 14 Pra terminar, quero falar sobre a relação entre os sexos num exemplo bem diferente do Agamênon de Ésquilo. Todo mundo sabe que a figura feminina mais importante da poesia homérica é Penélope, a esposa de Odisseu. Penélope é central na Odisseia: espera durante dez anos pela volta do esposo da Guerra de Troia. Como ela se comporta durante a ausência do marido? Chorando, lamentando-se, preocupando-se com o futuro do filho deles, Telêmaco. Mas também, nos anos finais dessa espera, tendo que lidar com mais de cem homens que, imaginando o rei morto, sonhavam em tomar o lugar dele e casar com a rainha. Só que Penélope, ao contrário de Clitemnestra, é uma esposa fiel. Ela resiste ao avanço dos pretendentes e ainda imagina uma estratégia para conseguir esse objetivo: diz que precisa tecer uma mortalha para o pai de Odisseu e que só depois disso poderá escolher um novo homem. Mas o que ela tecia de dia depois desfazia à noite, tornando o trabalho interminável. Claro, ela acaba sendo descoberta e a animosidade no palácio aumenta, mas o que eu quero mostrar é como, a princípio, Penélope é uma “anti-Clitemnestra” e, portanto, um personagem que se ajustaria bem à visão machista dos gregos. Odisseu trai Penélope sem problemas, com Circe e com Calipso, mas Penélope, mesmo cortejada por vários jovens, se mantém pura. Ela representaria assim essa linhagem feminina íntegra, enquanto Clitemnestra, junto com irmã infiel Helena, representariam a linhagem dissoluta. O poema endossa isso, mas a verdade é que Penélope é mais que esse exemplo feminino construído pela misoginia. Como os estudos feministas começaram a mostrar a partir da década de 70, Penélope, por causa da estratégia da mortalha e de uma esperteza capaz de rivalizar com a do marido, tem outra faceta, nada dócil. Ou seja: mesmo na Odisseia, uma obra que, diferentemente do Agamênon de Ésquilo, parece pintar um retrato controlado sobre o comportamento feminino tido como ideal, mesmo nela esse comportamento, na figurade Penélope, ultrapassa as cercas socias e culturais pré-definidas. 15 #2 CORRUPÇÃO HUMANA NOS TRABALHOS E DIAS DE HESÍODO Hesíodo e Homero são os grandes nomes da poesia épica grega antiga. Apesar de estarem associados a um mesmo gênero e usarem o mesmo metro, seus poemas são bem diferentes. Quando pensamos em Homero pensamos na Ilíada e na Odisseia, que são longos poemas narrativos com mais de dez mil versos cada, onde os personagens principais são deuses e heróis. Mas quando falamos de Hesíodo estamos falando de poemas relativamente curtos para os padrões épicos, e de poemas onde encontramos uma narrativa bem reduzida, porque o propósito deles não é tanto o de contar uma história, mas sim o de informar e orientar. Homero, com suas figuras poderosas e sofridas, seus grandes painéis, quer prender nossa atenção e nos comover. Hesíodo, com suas ideias e seus esquemas, quer nos instruir e fazer pensar. O poema mais famoso de Hesíodo é a Teogonia. Ele traz longas e intermináveis listas, com os nomes dos deuses que foram surgindo para dar forma ao mundo. A ideia é de que este mundo é resultado não da criação de um deus único todo-poderoso, mas de uma série de uniões sexuais divinas, tendo como matriz principal Terra e suas transas com os filhos Céu e Mar. Intercalada a essas listas vem uma parte narrativa: ela mostra como desde o princípio houve uma disputa pelo poder entre os deuses do sexo masculino, até Zeus se tornar o grande rei do mundo e conferir estabilidade e ordem à vida sobre a terra. Trabalhos e Dias é o outro poema de Hesíodo, menos conhecido e lido. Tem só 828 versos e é um manual de reflexões e instruções. Se o propósito didático é mais indireto na Teogonia, aqui ele se torna explícito. É um poema que pode ser lido como uma continuação da Teogonia: de que modo a ordem que Zeus estabeleceu lá atrás, no desfecho da Teogonia, tem sido mantida – ou tem sido ameaçada – na vida humana? Pra responder a essa questão, Hesíodo optou por um caminho bem diferente daquele que encontramos na Teogonia. Nos Trabalhos e Dias já não temos a narrativa em terceira pessoa, que a gente costuma associar imediatamente à poesia épica. Agora há uma voz que fala em primeira pessoa e essa voz está imbuída de uma missão: denunciar os desvios da justiça que foi estabelecida por Zeus e, mais ainda, mostrar 16 que justiça é essa e qual a importância de a respeitarmos. para não dar a esse tema uma formulação abstrata demais, sem uma relação clara com o mundo real, Hesíodo parte de um drama familiar, a disputa entre o eu poético e o seu irmão, chamado Perses, pela herança paterna. Essa opção pela partilha é boa porque se trata de um conflito recorrente nos núcleos familiares desde tempos imemoriais. Mas Hesíodo não quer falar do direito da família em si: esse é só o ponto de partida para que ele aborde questões religiosas e relações sociais de modo mais amplo. É aí que entra a ideia de trabalho, que está no título do poema. Hesíodo busca mostrar que o trabalho é algo a que estamos todos fadados. Quando alguém como Perses tenta passar a perna no irmão, ou seja, quando alguém tenta corromper a justiça, esse alguém está tentando driblar o suor do labor, a necessidade que temos de prosperar pelos nossos próprios esforços, sem roubar dos outros e da comunidade. Na visão do poema, mais que uma questão social e jurídica, essa é uma questão cósmica: é ir contra a vontade de Zeus, ir contra a divisão de funções que ele estabeleceu para deuses e humanos. O trabalho entra assim como item principal de uma discussão muito vasta de justiça, porque o justo, mais do que aquilo que está previsto nas relações por um código de leis, é simplesmente o mundo como ele é. É por isso que, na sua segunda metade, o poema vai dar orientações sobre o cultivo dos campos. É bom lembrar que o termo grego érga que está no título, e que traduzimos por “trabalhos”, têm o sentido também de “lavouras”. “As lavouras e os dias”. Hesíodo, ao mesmo tempo que está falando, claro, de trabalho, está falando também de sazonalidade, da regularidade das estações, do momento certo para as mais variadas ações, ou seja, de uma ordem natural fixada por Zeus. Quem acompanha, no ambiente rural, a sucessão dos ciclos, não só está se dedicando ao lote que nos cabe, ao suor do trabalho (como em qualquer outra profissão), mas está acatando esta ordenação justa da natureza. É por isso também que o poema se fecha com uma relação das atividades mais adequadas a cada dia do mês: para nós pode parecer pura superstição, mas o princípio é o mesmo das estações – há uma justiça de Zeus por trás disso. Hesíodo está ensinando ao leitor que, do menor ao maior elemento, da plantação à navegação, das partes do dia às fases do mês, há uma medida e um tempo certo no 17 mundo que não devem ser desconsiderados. Trabalhar é um entre vários sinais de respeito a isso. E, apesar de Hesíodo reconhecer que vários fatores concorrem para desestabilizar essa ordem, como os próprios juízes, que a deveriam garantir, mas acabam sendo corrompidos, ele acredita que no fim Zeus se sobrepõe. Mas essa segunda parte do poema que eu acabei de descrever, sobre o cultivo dos campos e os dias, é um pouco entediante para o leitor de hoje. A parte mais lida é a primeira, onde temos em sequência três mitos que explicam por que trabalhamos e por que o trabalho, sendo um entre vários sofrimentos, ainda assim é justo. O primeiro mito é o das duas Éris, que vem logo depois da invocação às Musas. Tradicionalmente, na mitologia grega Éris é uma divindade só, que representa a discórdia, a luta, sendo sempre associada à guerra. Mas nos Trabalhos e Dias Hesíodo resolve brincar com a existência de uma segunda Éris, sua irmã, que é benéfica e merece nosso louvor, não nossa censura. Das irmãs, é a que leva à rivalidade, à competição, que faz alguém trabalhar ao sentir uma espécie de “inveja branca” de quem se esforçou e prosperou. Fica claro que essa é uma visão apenas provisória e heterodoxa sobre uma divindade que sempre teve, e continuou a ter, aquela existência única e puramente negativa. Mas ela funciona aqui justamente porque explora, já de saída, o paralelismo com os dois irmãos em disputa pela herança paterna: o corrupto Perses, que não quer saber de trabalhar e só quer criar discórdia, e a figura honesta e trabalhadora do eu que diz o poema, ciente dos ditames de Zeus e da forma certa de se portar. A história seguinte é a de Prometeu e Pandora. Ela entra aqui para explicar por que trabalhar é necessário. É o tipo de narrativa que chamamos de “etiológica”, muito comum nos mitos. Antes os homens viviam uma vida idílica, livre de sofrimentos, sem precisar cultivar os campos, até sofrerem sua queda do paraíso. Os personagens centrais desse relato são Zeus e Prometeu. Zeus, enquanto rei do universo, estava preocupado com a ordenação maior do mundo. Prometeu, enquanto deus menor afeiçoado à raça humana, queria protegê-la e beneficiá-la. O primeiro ato de Prometeu, numa época em que os deuses e os humanos – que eram exclusivamente do sexo masculino – ainda faziam a refeição juntos, foi dividir o boi de um jeito astuto e desigual: ossos para os deuses, mas cobertos por uma atrativa camada de gordura, e 18 carnes para os humanos, só que cobertas por uma repulsiva camada de pele. Zeus finge ser enganado pelo brilho da banha e escolhe a parte ruim, não comestível, para os deuses. Como punição pela artimanha de Prometeu, não concede mais que os homens tenham acesso ao fogo. Prometeu revida roubando o fogo e permitindo que os homens o controlem. Zeus contra-ataca então determinando que seja criada a primeira mulher, Pandora, um presente de grego: atraente por fora, mas destrutiva por dentro. Como no relato de Adão e Eva, a misoginia é evidente. Pandora é entregue então ao desavisadoirmão de Prometeu, Epimeteu. Junto com ela vai um jarro que, assim que é aberto, faz com que todos os males – entre eles o trabalho – se espalhem entre os humanos. Acabou a vida boa dos machos. A conclusão é de que Zeus, que não era bobo, usou Prometeu desde o começo: ele agiu como agiu porque queria, como resultado final, separar os deuses dos humanos. Essa passou a ser a justiça do mundo com a qual temos que nos conformar. Se o homem hoje deve trabalhar, a culpa é em parte de Prometeu, porque quis ajudar a raça humana e imaginou que podia ludibriar a inteligência de Zeus. Ao mesmo tempo que decaiu, por causa desse jogo a humanidade também se tornou civilizada e “evoluiu”: agora tem religião, seu próprio conhecimento técnico e a instituição do casamento. O terceiro e último mito na sequência é o das cinco raças, um desdobramento do mito anterior, de Prometeu e Pandora. É como se Hesíodo quisesse abandonar o esquema simples do antes-e-depois-de-Pandora em favor de um quadro mais amplo da vida humana sobre a terra, por fases. para nossa frustração, assim como na Teogonia de novo a criação detalhada do primeiro ser humano não é narrada: o poema apenas diz que os deuses fabricaram uma primeira raça humana, a de ouro. Ela corresponderia à existência paradisíaca, pré-Pandora. Depois disso, ele apresenta mais três raças criadas, a de prata, a de bronze e a dos heróis, antes de chegar à raça presente, a de ferro. O movimento, pela lógica da desvalorização dos metais, é de declínio, mas vem interrompido pela presença da quarta raça, dos heróis, que eram figuras cultuadas pelos gregos. Mesmo assim, em todas as raças pós-ouro Hesíodo chama atenção para elementos negativos: infantilidade, insolência, insensatez, excesso, violência, guerra. Curiosa é a forma como ele aborda a raça atual, a de ferro, à qual nós pertencemos. 19 Sendo já o poema todo uma descrição dessa raça humana, Hesíodo fica mais preocupado em pintar, de um jeito bem apocalíptico, aonde vamos parar se largarmos de vez a justiça e a moderação. Valer-se do discurso do medo é uma boa estratégia retórica e contribui para reforçar no leitor aquilo que Hesíodo insiste em martelar ao longo de todo o poema: a reverência às leis humanas e divinas. Finalmente, depois dessa sequência de mitos, mas antes ainda de passar para aquela segunda parte mais prática referente aos campos, sobre a qual eu já falei, Hesíodo emprega uma seção inteira do poema para discorrer sobre a justiça nas relações humanas. É o momento mais claramente moral e reflexivo do poema, e por isso ele se parece muito com um outro ramo da poesia grega antiga, chamado elegíaco. Dentro desse espírito sentencioso, uma das coisas mais interessantes da seção é que, para pensar a justiça, ela se abre com uma pequena fábula, a fábula do falcão e do rouxinol. Ela conta como o falcão, ao apanhar com suas garras o rouxinol e ouvir seus gritos, disse para ele se calar e se conformar, porque o mais forte mandava e o sensato devia simplesmente obedecer. A fábula termina e não temos nenhuma moral da história, além da fala do próprio falcão. Hesíodo emenda, na sequência, uma série de contrapontos entre as ideias de soberba, húbris, e justiça, díke, obviamente mostrando a superioridade desta em relação àquela. Mas e que moral devemos extrair da fábula enunciada antes? Que justiça existe no fato de o mais forte mandar e o mais fraco se curvar? O poema cria um certo suspense e só dá a resposta lá na frente, quando compara os seres humanos aos animais. Os bichos, como o falcão e o rouxinol da fábula, são regidos pela lei da selva, num vale-tudo onde a força é determinante. Mas Zeus estabeleceu a justiça para os homens, para que eles não vivam como animais. Essa é a moral. A lei coíbe a força. Sim, Perses quis transformar o próprio irmão em sua presa. Sim, os falcões continuam a voar por aí e continuam a tentar impor seu poder. Mas, para Hesíodo, precisamos acreditar que existem mecanismos capazes de nos garantir que a terra é, no fim das contas, um lugar justo para se viver. Para concluir, quero falar sobre como situar historicamente a poesia de Hesíodo. Essa é uma questão importante para os especialistas. para muitos, decisiva. Será que os elementos que Hesíodo aborda em seus poemas refletem um ambiente político, social, 20 intelectual, específico? Que ambiente seria esse, em linhas gerais? Como ele se relacionaria, na Grécia Antiga, com as condições que vieram antes e depois? para pegarmos o tópico da justiça, que acabamos de ver nos Trabalhos e Dias. Podemos comparar o que Hesíodo diz com o que Homero diz a esse respeito em suas epopeias, e também com o que Sólon diz em suas elegias e Ésquilo em suas tragédias. Indo além, podemos situar no tempo Homero, Sólon e Ésquilo e, pertencendo eles a épocas diferentes da época de Hesíodo, especular que as diferenças entre seus poemas se devem ao fato de eles serem de épocas diferentes. Foi mais ou menos isso que a historiografia da Grécia Antiga fez: insistiu em diferenças e distribuiu os poetas e suas obras ao longo de um arco temporal, de modo que essa distribuição refletisse um propósito evolutivo. Primeiro veio Homero, depois Hesíodo, depois Sólon, depois Ésquilo, não numa simples sucessão temporal, mas numa progressão profunda. Cada um, com cada obra, teria dado sua contribuição rumo à afirmação de visões mais e mais complexas. Para mim, esse olhar tem o grave defeito de ler as obras não como documentos literários supratemporais de uma mesma cultura, mas como documentos históricos pontuais determinados por momentos estanques, etapas de uma marcha maior pré- definida. Ele privilegia as obras em seu nascimento e suposto vezo de reportar o ambiente, mas esquece o tradicionalismo conservador delas e a sua relação genérica, viva, com outras obras ao longo do tempo. A leitura historicista tem valor, se bem embasada. Mas na falta de dados precisos sobre Hesíodo e a época dos poemas, prefiro lê-lo em diálogo com Homero, Sólon, Ésquilo, sem assumir essa escalada temporal transformadora, e entendendo que de perspectivas e lugares diferentes os três falam da mesma justiça. 21 #3 IRONIAS DO RACIONAL E DO IRRACIONAL NO ÍON DE PLATÃO O Íon é um dos cerca de trinta diálogos compostos por Platão, o discípulo de Sócrates na Atenas antiga. Sócrates fazia filosofia, na segunda metade do século V a.C., apenas conversando com as pessoas. Platão encontrou um modo de fazer filosofia, na primeira metade do século IV, através da literatura: criando, por escrito, debates nos quais Sócrates é o eixo fundamental e ele mesmo, Platão, está ausente. Nesses diálogos, Sócrates se encontra com um ou mais atenienses, ou estrangeiros, e eles começam a discutir um tema. Como alternativa, Sócrates pode rememorar uma conversa passada, ou algum outro personagem pode fazer isso. No final, somos jogados numa controvérsia na qual se destacam o magnetismo de Sócrates e os problemas que ele levanta em relação ao conhecimento e ao comportamento humano. São cenas teatrais, baseadas no diálogo, e por isso exigem a destreza que um dramaturgo precisa ter ao escrever uma peça. Só que Platão não quer apresentar uma ação de fato: ao contrário do que vemos, por exemplo, numa tragédia grega, onde as coisas se transformam na vida dos protagonistas e daqueles ao seu redor, nos Diálogos nada, ou quase nada, acontece de concreto na vida dos envolvidos. Mas, por outro lado, no plano do pensamento muita coisa acontece: verdades sólidas deixam de ser tão sólidas e verdadeiras, definições aparentemente fáceis se tornam difíceis ou quase impossíveis, figuras reconhecidamente sábias são questionadas. É assim também no Íon, um dos menores textos de Platão e com uma estrutura muito simples: Sócrates cruza por acaso com Íon, famoso rapsodo (ou cantor de poemas),e eles entabulam uma conversa a princípio banal, mas que acaba os levando a uma discussão mais complicada. As falas vão se alternando e somos tragados para dentro desse debate. O tema central gira em torno do verdadeiro grau de conhecimento de uma figura respeitada como Íon. Se, por sua profissão, ele conhece Homero de cabo a rabo, e se Homero é “a” referência de conhecimento para os gregos antigos, resulta daí que Íon deve ser realmente visto como autoridade, como uma espécie de professor? Para evitar a aridez da discussão filosófica pura, Platão logo de cara nos pinta, com rápidas pinceladas, os traços principais de cada personagem. Sócrates, habituado a jogar conversa fora, tanto em público quanto em ambientes privados, é 22 loquaz e gosta de conduzir o diálogo, não sem uma pitada de humor. Já Íon não esconde a vaidade com todo o seu sucesso, mas é mais sério e reticente. Com poucas páginas, e com ambos se tratando com deferência, Íon de repente já se vê encurralado por Sócrates: como é que, sendo um profissional da recitação poética, ele se tornou um especialista em Homero, desinteressando-se pelos outros poetas? Não é um contrassenso se dedicar a uma atividade tão abrangente, com tantos poetas interessantes, e ao mesmo tempo ficar restrito a um só poeta e sua obra? Íon não se mostra incomodado: para ele, sua experiência concreta com Homero é o que vale e ele afinal de contas tem tido êxito com as coisas tais como elas são. Mas nesse ponto o rapsodo acaba por morder uma isca que Sócrates, sorrateiramente, tinha lançado lá no princípio: e se o motivo para essa restrição ocorrer – e Íon admitiu que ela ocorre – for o fato de ele, Íon, não ter conhecimento das coisas e agir simplesmente movido por uma inspiração divina? E se essa falta de abrangência decorrer da ausência de um domínio técnico do que faz? A figura inspirada não é justamente aquela que não consegue fazer o que quer quando quer, porque depende desse lance inexplicável, de uma espécie de possessão? Sócrates tenta provar isso a Íon com um longo discurso. Ele defende que toda a cadeia criativa poética corresponderia a um conjunto de elos interligados entre si a partir de uma única pedra magnética superior, a Musa. É esse ímã divino que transmite seu poder aos demais elos que estão abaixo: contagia os poetas, como Homero, que por sua vez contagiam os cantores dos seus poemas, como Íon, que por sua vez contagiam a plateia. A conclusão de Sócrates, a partir dessa metáfora, é de que na sua atividade Íon age fora de si, de forma irracional. Para alguém mais atento, surgem pelo menos duas desconfianças aqui. A primeira: será que é possível descrever assim uma profissão como a do rapsodo, em que o aprendizado e o domínio consciente das mais variadas habilidades jamais poderiam ser apagados, ainda que se admita um componente divino, um dom? A segunda desconfiança tem a ver com o fato de que, no diálogo, Sócrates parece estar possuído nesse momento em que descreve como funciona a inspiração poética. Ora, se ele quer desqualificar o conhecimento do respeitado Íon, para mostrar por tabela que a autoridade cabe ao racional filósofo, por que ele se comporta como alguém inspirado? 23 Trata-se de uma gozação? E por que nos trechos de Homero que vão surgindo ao longo do diálogo, é Sócrates basicamente que faz a recitação, e não Íon, o expert? Íon, de qualquer forma, concorda com o quadro geral da inspiração descrito por Sócrates. Mas é curioso que, na hora de comentar como, estando fora de si ao cantar Homero, precisa ficar atento à plateia, para também deixá-la fora de si, Íon acabe sublinhando o controle que tem sobre sua atividade. Ou seja, num momento central, em que estariam se opondo o racional Sócrates e o irracional Íon, Platão mostra seu mestre filósofo de um modo entusiasmado e meio descontrolado, enquanto faz questão de sublinhar a frieza e a lucidez do rapsodo. Por que Platão embaralha os papéis? Até esse ponto, o diálogo já acumulou algumas dúvidas e questões, não nos permitindo chegar a uma conclusão clara a respeito do que está sendo defendido. Mas o debate ainda não acabou. Depois de Íon deixar a atividade do canto de lado e dizer que, pelo menos quando fala ou comenta sobre Homero, não está enlouquecido, e que é capaz de discorrer sobre tudo que está na Ilíada e na Odisseia, Sócrates volta à carga, apegando-se agora a esse “tudo”. Como assim, tudo? Há várias profissões retratadas nos poemas homéricos, do cocheiro, do médico, do adivinho, do líder militar. Não são os especialistas nessas áreas que poderiam discorrer sobre elas? Íon não deveria se restringir à sua especialização profissional? Como ele pode alegar conhecimento sobre coisas em relação às quais não tem domínio técnico? Íon não se faz de rogado e bate o pé: dominando como domina o universo homérico em sua amplitude, e sendo Homero uma enciclopédia para os gregos, ele detém sim esse vasto conhecimento das mais variadas profissões. Sócrates perde então a paciência e pergunta por que então Íon não trabalha como um líder militar, já que ele conhece tão bem a profissão, e tendo os gregos muito mais necessidade de um general do que de um rapsodo... Agora estamos perto do fim do diálogo e parece que finalmente Sócrates esmagou Íon e provou sua limitação. Se ele tem alguma habilidade consciente (e será que tem mesmo?), seria apenas a do rapsodo, e esta não poderia, claro, ser estendida às outras habilidades, só pelo fato de elas estarem retratadas nos poemas que ele sabe cantar e conhece tão bem. Íon é uma fraude e não merece a reputação que conquistou. Mas aqui de novo, mais do que embarcar nessa leitura e atacar Íon, acho que vale a pena 24 levantar algumas suspeitas contra Sócrates. Parece estranho que primeiro ele tenha criticado o rapsodo por não explorar todo o alcance da sua atividade, ficando restrito a Homero, o que seria prova da sua falta de conhecimento, e que depois tenha criticado o rapsodo por querer ter justamente o alcance que Homero lhe dava sobre várias atividades, o que seria para Sócrates, agora, nova prova de limitação cognitiva. Ou seja: primeiro Íon sairia diminuído porque sua técnica era especializada demais e talvez nem técnica fosse, e em seguida porque sua técnica não era especializada como deveria ser. Sócrates não está sendo um mau debatedor, usando a especialização ora como algo ruim, ora como algo bom, segundo lhe convém? Muitos leitores diriam que não, que são casos diferentes. Mas a tirada final de Sócrates no diálogo parece, a meu ver, incriminá-lo. Num misto de indignação e sarcasmo, o filósofo diz estar sendo ludibriado por Íon, que ele, Íon, é liso e age como um Proteu (a figura mitológica que tinha o dom da metamorfose), por não mostrar o conhecimento que diz ter. Afinal, o que ele prefere ser: esse enrolador que não comprova o seu saber ou alguém sem técnica mas divino, por causa da inspiração que recebe? Acuado, Íon responde que com certeza é bem melhor ser considerado divino, e Sócrates fecha o diálogo louvando a beleza dessa condição divina, desprovida de técnica. Tudo estava nebuloso no meio da conversa e tudo termina de forma nebulosa. Sócrates venceu o debate? Talvez. Mas Íon é ingênuo e manipulável demais para que essa vitória tenha um grande valor. Seria perigoso se alinhar a Sócrates e tirar como lição uma oposição pura e simples entre o filósofo que sabe e o pretenso sábio que no fundo é uma farsa. O diálogo não demonstrou que a poesia é só inspiração. O diálogo não demonstrou que o conhecimento é apenas habilidade racional. Será que mostrou que Íon é superior a Sócrates, por ser divino, e que esse é o valor supremo? O que ele com certeza mostrou é que esses temas são escorregadios e que podemos cair em becos sem saída no momento em que nos lançamos à tarefa de entender alguma coisa. As aparências enganam.O mais fascinante no Íon, como em toda a filosofia platônica, é que ela está sempre em movimento. Não quer só doutrinar ou polarizar. Platão conseguiu esse efeito ímpar por causa de pelo menos duas escolhas que fez ao 25 construir seus Diálogos. A primeira e mais radical foi desparecer do texto, não ter voz nas conversas, seja como narrador, seja como personagem, e assim não enunciar diretamente uma filosofia. A segunda escolha, talvez a mais difícil de pôr em prática, foi reelaborar o personagem de Sócrates para que ele fosse o herói das suas obras de um jeito muito especial. Mais que a figura impecável e exemplar do sábio, ele teria de ser um sábio cuja sabedoria na prática viesse sempre posta em xeque: diferentemente dos sábios de plantão, Sócrates não é um poço de conhecimentos, certezas, acertos. Ele desconfia do que sabe. E essa desconfiança pode ter o efeito de nós também desconfiarmos dele. Mais que o farol que a tudo ilumina, ele é a lanterna bruxuleante que acende e apaga, para assim dar vida nova à investigação. Se a gente pensar numa outra imagem, a da gangorra, talvez fique mais fácil entender. Para muitos, o Íon é o típico diálogo que começa com Sócrates adotando uma posição humilde e com seu oponente cheio de si, para aos poucos eles irem trocando de posição, até Sócrates surgir como alguém com autoridade maior em comparação à agora rebaixada figura do seu interlocutor, finalmente desmascarado em suas limitações. Como no movimento da gangorra, quem estava por cima desceu, enquanto quem estava embaixo subiu. Mas existe uma outra possibilidade, também válida: a de imaginar que a gangorra está sempre se mexendo, subindo e descendo, sem que haja uma posição estática inicial e final, e que seus participantes podem ficar trocando de lugar, sendo contrapostos e também nivelados. Como Platão consegue alcançar isso? Exatamente porque constrói um Sócrates oscilante e que se reparte em vários planos. Ele é sábio, mas não é sábio como os demais sábios, porque sabem com segurança e gravidade. É o contrário disso que acontece. E essa contradição, do sábio sátiro, é algo que só Platão conseguiu nos fazer admirar em Sócrates. Para terminar, quero falar sobre como situar o Íon no conjunto da obra de Platão. A visão quase consensual hoje é a seguinte: a produção de Platão passou por três fases. Na primeira, ele produziu diálogos em que a influência de Sócrates era clara. A filosofia platônica ainda não tinha tomado corpo e o propósito era retratar o mestre. Numa segunda fase, Sócrates permaneceu como personagem central, mas a discussão assumiu outras cores, revelando ideias não mais associáveis ao Sócrates histórico. 26 Finalmente, numa última fase, Platão se permitiu diminuir a importância de Sócrates na discussão, ou até eliminá-lo, com seu edifício filosófico já plenamente constituído. Essa visão, super prática porque agrupa os Diálogos por etapas e direciona já de saída a leitura, é uma narrativa. Uma entre muitas possíveis. Tem nos ajudado a ler Platão há décadas, mas não raro esquecido de como seus pressupostos são discutíveis. Por ela, o Íon seria um diálogo da primeira fase, porque é breve, não faz alusão a tópicos filosóficos mais densos associados a Platão, além de ser bem-humorado e inconclusivo. Corresponderia à infância intelectual de Platão. O paralelismo biológico não é casual. Haveria escondido nos Diálogos um desenvolvimento lógico e linear, da juventude à velhice, só à espera de ser descoberto. Mas as obras de qualquer pensador prolífico, as que podemos datar com precisão, apresentam sempre um desenvolvimento lógico e linear? As primeiras são sempre mais curtas e menos densas? São as que apresentam maior interferência dos mestres que as inspiraram? Todo autor ruma em direção ao aperfeiçoamento, de modo que sua criação começa vacilante, atinge o apogeu e, depois, um inevitável remanso? A de alguns autores sim. Mas não é uma regra. Os Diálogos de Platão não trazem data: não sabemos quando nem como cada um foi escrito. A meu ver, o esquema das três fases é uma hipótese interessante. Mas o Íon pode ter sido criado em qualquer momento da vida de Platão: não precisamos lê-lo em função de uma cronologia para que suas questões sejam relevantes. O Íon não precisa ser uma preparação para a evolução de Platão. 27 #4 AS AUTOFICÇÕES DE ODISSEU NA ODISSEIA DE HOMERO “Madame Bovary sou eu.” A famosa fala de Gustave Flaubert, o escritor francês do século XIX, autor do clássico Madame Bovary, talvez seja um bom ponto de partida para se discutir a ideia de autoficção e a sua relação inusitada com a Odisseia de Homero, um dos grandes épicos da antiguidade. Num primeiro momento, a fala de Flaubert aponta para a identificação possível entre o romancista e os seus personagens, ou mais precisamente para a identificação entre o romancista e o seu personagem central. Mesmo numa narrativa em terceira pessoa, como é o caso de Madame Bovary, e mesmo numa história sobre uma mulher elaborada por alguém do sexo masculino, como não pensar nas fontes reais e imediatas que alimentam a ficção, ainda mais a ficção realista? Como não pensar no texto enquanto um reflexo, direto ou indireto, do seu criador ou da sua criadora? Num livro saído em 1961, A Morte da Tragédia, o crítico George Steiner afirmou que, ao contrário do homem clássico, o homem romântico, o tipo de artista surgido há mais de duzentos anos, é um Narciso em perseguição e afirmação exaltada da sua única identidade. No mesmo livro Steiner disse ainda que toda arte clássica, a arte anterior ao romantismo, empenhava-se no ideal da impessoalidade, para separar a obra da contingência do artista, mas que o romantismo almeja o contrário, porque na imaginação romântica a expressão invariavelmente tende para o autorretrato. Sim, ainda somos todos românticos. Talvez nunca tenhamos sido tão românticos quanto agora. Steiner, no seu livro, queria falar especificamente do drama clássico e do autor que aí é, por natureza, elusivo, ou seja, escorregadio e inapreensível, um autor que deseja desaparecer e que, portanto, é muito diverso do modelo que admiramos e cultivamos na nossa modernidade e pós-modernidade. Mas, mesmo assim, mesmo com Steiner querendo falar de outro tema, nós podemos utilizar seus dizeres para pensar em como, nos dias de hoje, a exacerbação da nossa sensibilidade tão autocentrada, mais do que simplesmente apontar para possíveis identificações entre autor e personagem, ou para o tão conhecido subjetivismo projetado largamente na 28 nossa poesia, deu origem a um subgênero narrativo popular cujo combustível é, abertamente, a própria vida de quem escreve: a autoficção. Rigorosamente falando, a autoficção é uma narrativa em primeira pessoa na qual o narrador tem o mesmo nome do autor. Seu objetivo é combinar autobiografia com liberdade de criação. Firma-se com o leitor o pacto de que o autor vai relatar sua própria vida, em trechos ou na íntegra, mas sem historiá-la com absoluto rigor factual – antes se permitindo aquelas liberdades próprias da escrita criativa. Ou seja, no final das contas, o autoficcionista flerta com os papéis de cronista, autobiografista e romancista, não sendo nenhum deles exatamente. A existência reconhecida desse formato novo, a autoficção, já há algumas décadas pelo menos, pode assim ser tomada como uma espécie de confirmação, mas sob uma feição agora nova, do individualismo narcísico surgido com a ascensão burguesa de fins do século XVIII, como Steiner apontou de passagem em sua obra. Mas a autoficção, apensar da definição que apresentei, está longe de ser uma realidade textual simples. Ela se desdobra em inúmeras direções, comporta diferentes graus e formatos, e no final extrapola o próprio texto impresso, porque depende de dados extratextuais que tambémfazem parte da relação leitor-obra. Estou pensando, por exemplo, no posicionamento que o autor em geral assume publicamente em relação ao seu texto, e o modo como este é apresentado no ato da publicação. São elementos que afetam a recepção, porque a leitura não se dá no vazio. A obra pode ser vista como mais ou menos fantasiosa, mais ou menos verdadeira, mais ou menos polêmica. Ou esses aspectos podem ser simplesmente ignorados. Ou os conceitos de verdade e ficção podem variar radicalmente de cultura para cultura. O fato é que, para além de termos a simples constatação nome-do-narrador igual a nome-do-autor, no tradicional formato em primeira pessoa, e um ponto equidistante entre fato e fantasia, podemos ter na autoficção variadas combinações. Pode haver a ficcionalização do nome do personagem e das muitas situações que atravessa, ficando ainda assim mantida para o público a ideia de que se trata de uma narrativa alimentada pela realidade do autor. Há os casos em que o autor se inclui como observador de uma 29 história alheia, que ele narra quase como repórter, sem descartar o dado ficcional, uma mistura entre jornalismo e literatura que teve como um de seus expoentes Truman Capote, com seu A Sangue Frio, um non-fiction novel, um “romance de não-ficção”. Aqui, com o objetivo de traçar um paralelo entre a autoficção e o Odisseu da Odisseia, me interessam especificamente, nesse universo amplo e talvez inclassificável, algumas modalidades da combinação verdade-mentira. Provisoriamente, pensei em quatro tipos de autoficção, distintas entre si, de épocas e culturas diferentes: a. O primeiro tipo seria aquele em que o autor nega a presença no texto de verdades factuais/pessoais, no intuito de criar um universo puramente ficcional, mas sem sucesso, uma vez que o alter-ego é facilmente detectado. Um exemplo possível seria o nosso Lima Barreto com o seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909. É bom registrar que essa sua dificuldade em separar criação e vida foi vista com maus olhos pela crítica, como uma limitação na sua atividade. b. O segundo tipo seria aquele em que o autor, ao contrário, nega a princípio a presença de mentiras e invenções, imaginando que a sua narrativa, ainda que operando com uma elaboração que é claramente ficcional, seria verdadeira. O melhor exemplo aqui seria a série Minha Luta, em seis volumes, do norueguês Karl Ove Knausgaard. O relato foi contestado por pessoas envolvidos na narrativa antes mesmo da publicação, produzindo controvérsia à época do lançamento, a partir de 2009, e obrigando o autor a trocar os nomes reais de alguns personagens. c. O terceiro tipo seria aquele em que o autor assume a mistura deliberada de verdades e mentiras, sem traçar uma fronteira clara entre o que aconteceu e o que foi inventado, e – dado importante – mantendo seu personagem central anônimo. Exemplo recente é o romance Maternidade, da canadense Sheila Heti, de 2018. d. Finalmente, há aquele quarto formato em que aquilo que se apresenta como memória fidedigna é pura ficção, subgênero chamado, pelos que denunciam essa fraude editorial, de “fake memoirs”. Porém os autores, em defesa própria, preferem 30 qualificar esse procedimento de ficção biográfica. Exemplo famoso é Misha: Uma Memória dos Anos do Holocausto, de Misha Defonseca, pseudônimo de Monique de Wael. O livro saiu em 1997 e foi inicialmente recebido com aclamação, tornando-se um best-seller, para depois ser desmascarado como engodo. Estou tratando essas obras aqui, muito livremente, como autoficções, pelo simples fato de no momento de seus lançamentos, ou na recepção posterior, a relação entre vida pessoal e ficção ter sido um elemento abordado por leitores e críticos, ou pelos envolvidos, mesmo que essa relação problemática não tenha sido colocada abertamente pelos autores. A autoficção, nesse sentido, mais que uma categoria desprovida de problema, toca no cerne das fronteiras movediças que separam a experiência do criador dos resultados da sua criação. Por um lado, quem escreve é sempre, inescapavelmente, parafraseando o batido Fernando Pessoa, um FINGE- DOR, um inventor, um ficcionista, porque a literatura não é o mesmo que a realidade, é sempre outra coisa, algo construído, mediado pela linguagem e suas regras e convenções – por mais naturais e espontâneas que pareçam a cada tempo e a cada cultura. Por outro lado, e esse lado nunca deve ser desprezado na atualidade, o criador, ao escrever, ao construir com palavras e apenas com palavras, finge ou ficcionaliza a partir da dor que ele ou ela DEVERAS SENTE, ou seja, vale-se da experiência vivida enquanto propulsor essencial do trabalho. Esse conceito, portanto, pode ter alguma utilidade quando pensamos em Odisseu, que não é, claro, um escritor, mas um exímio narrador em primeira pessoa. Mais do que isso: é alguém que fala constantemente do seu passado na Odisseia. Nela existem, como se sabe, dois grupos de narrativas do herói nesse formato. Temos no miolo do poema, entre os Cantos 9 e 12, aquelas aventuras que Odisseu conta aos feácios, o chamado “apólogo”, e na segunda metade do poema, em diferentes momentos (penso aqui especialmente nos Cantos 14 e 19), as histórias que Odisseu inventa para seus interlocutores em Ítaca, já disfarçado de mendigo. Tradicionalmente, elas são vistas como antagônicas: o apólogo traria a mais pura verdade sobre o que Odisseu vivenciou nas suas perambulações pelo mar Egeu, em sua volta de Troia, enquanto o 31 segundo grupo de histórias seria tão real quanto a sua identidade de velho pedinte. Só que em Homero as coisas não são tão simples assim. Para começar, é fácil perceber que as mentiras ditas pelo Odisseu-mendigo, além de serem no geral muito mais verossímeis que as passagens bastante fantasiosas do apólogo, são em seus detalhes moldadas em alguns elementos oriundos desse mesmo apólogo. São “alomorfos” seus, como diz Irene de Jong, autora do mais importante comentário ao poema. O resultado disso é duplo. Em primeiro lugar, essa ficção dita em Ítaca acaba por não ser tão ficcional assim. Através das bases que estruturam algumas das mentiras em questão, que já conhecemos a partir do apólogo, Odisseu quer sinalizar para o leitor que sua ficção é em certa medida autobiográfica, que ele, o herói astuto, está ali presente por detrás da máscara do estrangeiro errante. Por outro lado, e esse é o segundo efeito, ainda que esse movimento reforce o dado factual do apólogo em que se baseia, ele não deixa de, paradoxalmente, contaminar as verdades ditas antes aos feácios, porque Odisseu mostra ser um habilíssimo mentiroso, capaz de convencer qualquer um do que diz (e eu lembro que nenhum amigo sobreviveu para confirmar o que ele relata). Sim, há passos externos da narrativa principal que confirmam pontos narrados pelo herói no apólogo como reais – seriam reais, por exemplo, o encontro com o Ciclope, o gigante de um olho só, e o episódio do gado do Sol, quando seus companheiros mataram os animais sagrados e acabaram morrendo por isso. Mas, conforme alguns estudiosos apontaram, não há como negar o lado mais retórico do apólogo, isto é, o fato de que ele está a serviço da sedução dos feácios e da construção da imagem de quem narra. Odisseu depende da nau deles para voltar para casa. Em outras palavras: por detrás da autobiografia do apólogo, não há uma ficção presente ao menos na forma como essa narrativa é organizada e apresentada? Nas suas ênfases e nas suas escolhas? No que ela prefere omitir, no que prefere não contar à sua audiência? No uso que faz dos muitos discursos diretos? No trabalho, enfim, do herói como um verdadeiro editor ou copidesque de si mesmo? 32 Não é o caso de dizer que Odisseu assume para si (e para nós) que o apólogo é, ainda que em parte, ficcional. Homero não toca nessaquestão. Os feácios apenas louvam e se encantam com a beleza da sua história. E, como eu disse, aquelas aventuras comprováveis externamente, pelo narrador do poema, meio que estendem a verdade para o conjunto do apólogo, em bloco, sem que notemos. Porém, dada a astúcia que caracteriza o herói, é possível pensar em como ele controla editorialmente tais dados factuais e como esse próprio controle é sim, pelo menos do nosso ponto de vista contemporâneo, um indício de ficcionalização. No final das contas, seria possível afirmar que a ideia de autoficção, mais do que uma categoria moderna da escrita literária, talvez seja, em germe, a ferramenta a serviço da construção de uma imagem em primeira pessoa – da autoimagem de quem fala de si. Acima do entroncamento impreciso entre falsidade e realidade, essa imagem, em certo sentido, certamente num nível psicológico, é sempre verdadeira, como há verdade na figura do Odisseu que emerge da rememoração dos piores momentos da sua vida, por mais editados que sejam. Ou como há verdade nas minúcias dos diálogos e dos eventos do dia a dia relatados por Knausgaard na sua séria épica Minha Luta, apesar da empreitada memorialística ter mais de duas mil páginas e, pela sua enorme abrangência no tempo, não se sustentar somente enquanto registro factual. Só que o Odisseu narrador da Odisseia não é um autor romântico, um autor do nosso tempo. Como personagem que se volta sobre si mesmo, pode ser antes um protótipo, ou arquétipo, dessa nossa autoindulgência narrativa, do narcisismo pelo qual nos moldamos em frente ao espelho. O que ajuda a entender o fascínio maior que a Odisseia tem exercido desde o século XIX, e a própria relação fecunda que esse épico estabeleceu com a forma moderna do romance. 33 #5 A MISSÃO DO SUPER-HERÓI NA ENEIDA DE VIRGÍLIO Se existe uma obra que ocupa o centro da tradição literária no Ocidente, essa obra é a Eneida de Virgílio. Tudo que veio antes e depois dela, tudo converge, de uma forma ou de outra, para esse épico majestoso escrito em latim no final do século I a.C. É como se ele fosse um ímã que atraísse para si a energia criativa dispersa por séculos. Das epopeias de Homero, passando pela tragédia e pela filosofia, atravessando as mais variadas formas poéticas helenísticas e latinas, até o fim do paganismo e criações como a Divina Comédia de Dante, o Paraíso Perdido de John Milton, os Lusíadas de Camões e o romance moderno, a Eneida guarda dentro de si as principais linhas de força do que tem sido essa tarefa contínua de contar e recontar uma história ambiciosa e plena de sentido. Se a princípio ela surgiu para imitar a Ilíada e a Odisseia, imitar num sentido criativo, sem preconceito algum, com o tempo ganhou tamanha reputação e influência que tornou Homero, seu antecessor, o poeta secundário. E ainda que do século XIX para cá a gente venha lendo e traduzindo bem mais Homero que Virgílio, e ainda que Homero represente hoje a espontaneidade criativa que supera o artifício de Virgílio, ainda assim a Eneida continua a ser a nossa matriz maior, a fundação sólida sobre a qual se assenta qualquer representação séria e estendida de uma ação. Seria possível entender isso de várias maneiras. A gente poderia pensar no modo como Virgílio adensou a linguagem épica de Homero, trazendo-a para o plano letrado, deixando apenas alguns poucos vestígios propositais do seu ambiente oral. Ou no modo como reformatou o metro hexamétrico, aquele de seis pés, para lhe dar polimento, uma sonoridade ímpar e um ritmo menos caprichoso. Ou como abriu espaço para modalidades diegéticas variadas, aproximando, por exemplo, a voz do narrador da voz dos seus personagens, explorando a abundância dos monólogos ou ainda empregando o presente histórico. Ou como assumiu temas apenas entrevistos em Homero – o amoroso, o político, o filosófico. Todas essas características já mostrariam o peso da herança deixada por Virgílio, e eu digo deixada por Virgílio não tanto porque ele foi o primeiro a empregar esses recursos, mas porque ele foi o mais 34 importante e influente a fazê-lo. Foi a partir de Virgílio que pudemos ler Homero como um poeta em larga medida não-virgiliano, e foi a partir de Virgílio que pudemos ler incontáveis outros, antes e depois dele, como extremamente virgilianos. Mas não vou seguir aqui nenhum desses possíveis caminhos. O tópico principal que quero abordar é a construção do herói em Virgílio, a construção do Eneias da Eneida, esse herói grego que tinha em Homero um molde diferente, mas que nas mãos do poeta romano virou não só outro Eneias, mas O herói por excelência. Quem é Eneias? Na Ilíada, é uma figura que luta ao lado do troiano Heitor contra os gregos. Faz parte do “segundo escalão” de heróis que encontramos em Homero. Mas há um detalhe que o diferencia: já na mitologia grega antiga profetizava-se que Eneias, como sobrevivente da Guerra de Troia, seria responsável por dar continuidade à raça troiana. Há outro elemento que ajuda a dar mais relevo ainda a ele: como Aquiles, Eneias é filho de um homem mortal com uma deusa – no seu caso, de Anquises com a deusa Afrodite, ou com a deusa Vênus, no panteão romano. Entre os heróis, é bom lembrar, ser descendente direto de uma figura divina ajudava a reforçar seu pedigree. Mas é bom lembrar também que isso não lhe dava poderes especiais. Os heróis em Homero, por mais que pudessem apresentar capacidades sobre-humanas, eram no final do dia encarados como demasiadamente humanos, pelo simples fato de estarem sujeitos ao mesmo desfecho incontornável de todos os demais seres terrenos. Pois bem, esse Eneias, já antes de Virgílio, tinha sido explorado por outros narradores em língua latina como o elo perdido entre o passado grego e o poderio romano: seriam os primórdios da nação romana que ele na verdade viria a fundar após sobreviver à Guerra de Troia. Assim como a destruição de Troia está entrevista na Ilíada mas não é narrada no poema, a grandeza de Roma – a Troia reconstruída – está entrevista na Eneida sem ser narrada nela. Essa escolha de Eneias como um elo, feita pela primeira vez não sabemos por quem, nem quando, era uma escolha feliz para um povo que queria absorver, como uma esponja, a tradição grega que tanto admirava. Eneias, o herói de Homero, continuava vivo séculos depois numa outra cultura. 35 Mas essa escolha ajudava não só a marcar a continuidade, mas também a explicitar a rivalidade: Eneias era adversário dos gregos em Homero e a sua sobrevivência acabava por assinalar o contraste com as figuras de Aquiles e Odisseu, os protagonistas da Ilíada e da Odisseia. Ou seja: na figura de Eneias, era a mesma tradição heroica que perdurava, como se um fio contínuo ligasse Grécia e Roma, mas era ao mesmo tempo outra tradição heroica que nascia, contrária, que trazia no seu bojo um discurso de ruptura. A indumentária geral, na superfície, era a da épica grega, mas tudo mais se mostrava, ao olhar atento, não grego. O herói derrotado pelos gregos em Troia iria agora impor sua vitória, uma vitória que Virgílio não queria nem podia formular nos termos gregos e que deveria ter um valor próprio. Lendo a Eneida, não é difícil reconhecer os traços essenciais que formam o herói Eneias e como eles divergem do que encontramos no Aquiles da Ilíada e no Odisseu da Odisseia. Sim, os seis primeiros livros da Eneida são uma espécie de Odisseia condensada, porque contam as viagens de Eneias até chegar à Itália; e os seis livros da segunda metade, voltados para a guerra, uma condensação da Ilíada e o seu espírito bélico. Mas nem por isso, por vagar de lá para cá e por se lançar ao combate, o personagem de Eneias é uma simples fusão de Odisseu e Aquiles. Odisseu é um líder racional e sofrido, que fracassa em preservar a vida dos seus comandados depois de partirem juntosde Troia, e que restabelece a paz em Ítaca ao custo, de novo, de muitas mortes no seu currículo de chefe. Dá para dizer que é um herói justo e resiliente; não dá para dizer que é um herói simplesmente exemplar. Aquiles, menos ainda. Passional e teimoso, às vezes parece ser o vilão da história em que deveria ser o herói. No final, não é nem uma coisa nem outra. Provoca incontáveis mortes, provoca a morte do seu mais querido amigo e acaba encaminhando a sua própria. O que torna Aquiles admirável é essa força destrutiva tão reconhecível que ele concentra em si. Não é nenhum desses moldes homéricos que emerge da leitura da Eneida. Eneias é construído em uma outra fôrma, que pode ser resumida por três palavras presentes no poema: uirtus, pietas e cura, “virtude”, “devoção” e “cuidado”. Ele não é um herói que luta por si mesmo, por sua glória e vaidade, pela preservação da própria vida e pela volta ao lar. Eneias não é o herói da violência bruta, que a Eneida associa a 36 Aquiles e ao filho de Aquiles, nem da esperteza traiçoeira, que o épico latino atribui a Odisseu. Eneias age em nome de uma causa, que é ao mesmo tempo familiar, religiosa e política, e mobiliza essas três ideias às vezes quase inseparáveis entre si, “virtude”, “devoção”, “cuidado”. Essa causa não é isolada nem individual porque, como a Eneida gosta de profetizar repetidas vezes, ela tem a ver com o eventual estabelecimento de um império que imporia a paz e a harmonia na terra. Esse império é o império fundado por Otávio Augusto durante a idade madura de Virgílio. A Eneida é o poema encomendado para celebrá-lo com a mesma monumentalidade e complexidade dos poemas homéricos. Engana-se quem imagina que é um poema de alguma forma maculado pela intimidade com o poder oficial. Para começar, a Eneida não é uma narrativa apenas situada no passado, como são as epopeias de Homero: é uma narrativa que aponta também para o futuro. A Ilíada e a Odisseia são retrospectivas somente, olham para trás. A Eneida é retrospectiva E prospectiva, olha para trás E, de lá de trás, olha para frente. O peso desse círculo que se fecha é carregado nas costas de Eneias sob a forma de um novo heroísmo, o heroísmo de alguém que representa uma causa e é responsável por uma nação. Virgílio aproveitou a oportunidade dada a ele por essa encomenda para imaginar como seria uma figura não mais norteada pelo individualismo puro, mas por fatores que o ultrapassam e de algum modo anulam a própria vontade individual do herói. Virtude, devoção, cuidado – essas são como que qualidades impostas a Eneias pelo destino, outra palavra fundamental na Eneida. O destino do herói é se lançar a essa missão que assume, de estabelecer as bases do que viria a ser a grande Roma. Tudo é menor e desaparece diante dessa imposição, que ele é obrigado a acatar porque, como eu disse, é familiar, religiosa e política. Duas cenas famosas do poema resumem bem isso. No Livro 2, quando ele narra para Dido, sua anfitriã em Cartago, a destruição de Troia pelos gregos, Eneias relembra como na fuga carregou nas costas o pai idoso, Anquises. A imagem é memorável e diz muito sobre o espírito que norteia o herói. Mais à frente, no Livro 4, depois de se envolver com a própria Dido e vê-la apaixonada, Eneias comunica que vai ser obrigado a partir para dar continuidade à sua missão, e faz isso de um jeito que 37 exprime mais resignação do que contrariedade. É um episódio onde o herói se torna secundário perante o personagem da rainha; como ele mesmo diz a ela, os fados não permitem que ele conduza sua vida seguindo os seus desejos. Nos dois casos, a gente percebe que Eneias é um herói diferente: ele se sacrifica pelos outros, ele descuida de si para cuidar de um bem maior. Ele é, em outras palavras, o instrumento de algo grandioso e tem plena consciência disso. A sua grandeza, portanto, não está tanto na valorização de qualidades pessoais vistosas, como Aquiles com sua força ou Odisseu com sua inteligência: ela está em se colocar a serviço, como líder de fato, de realizações das quais ele mesmo não vai desfrutar. Eneias suprime os seus anseios e carrega o próprio pai nas cosas, mas ele suprime e carrega nas costas muito mais, como pai de todos aqueles que tem sob o seu comando. Quando a gente enxerga dessa maneira o Eneias da Eneida, a gente vê a grande distância que o separa do heroísmo homérico. Alguém poderia lembrar que o Heitor da Ilíada, o grande guerreiro troiano, seria em Homero o que Eneias é em Virgílio. Com certeza o patriotismo de Heitor, obrigado a defender sua família e sua cidade do ataque grego, lembra alguma coisa do Eneias na Eneida. Mas, ainda assim, o horizonte pelo qual Heitor luta é menos amplo do que o de Eneias, e ele em nenhum momento tem o peso da responsabilidade de fundar algo substancial e abrir mão da sua própria vontade. Eneias não pode pensar em si mesmo, no seu próprio patriotismo. Ele tem que pensar no outro, agir pelo outro, cuidar do outro. Essa é a referência maior que Virgílio funda na Eneida e não é difícil perceber a sua influência para a construção geral do herói moderno, em sentido amplo. A cultura pop norte-americana, em particular, ao longo do século XX retrabalhou esse modelo virgiliano criando um tipo de heroísmo que conhecemos hoje como sendo o do super- herói. Elementos oriundos do cientificismo dão a esses novos heróis poderes especiais, fazendo com que sejam dotados de capacidades que os heróis da mitologia antiga nem sonhavam ter, habilidades inusitadas. A isso se junta ainda a insinuação de que estão livres da morte e do tempo, o que mostra que a questão central grega se tornou menos relevante, como já acontecia com Virgílio. O relevante agora é esse herói pensar menos em si, na sua vida e em quando e como vai morrer, e mais na 38 comunidade que deve defender. O que o Super-Homem, o Homem-Aranha e outros tantos buscam é estabelecer a justiça no mundo onde vivem. De algum jeito, a formulação que estava lá na Eneida permanece conosco: a de que o verdadeiro herói trabalha para um mundo que quer e que pode ser melhor. É a ideia ambiciosa de que há uma construção por fazer, de que podemos sublimar o que há de pior no ser humano por causa dela. Eneias seria assim o precursor desse ser humano ideal, uma figura heroica rara, e amada por ser tão distante de nós. Sim, Eneias e os super-heróis podem fraquejar, podem falhar ou vacilar, mas no final eles devem superar essas limitações momentâneas, porque eles têm uma obrigação e ela aponta para longe do próprio umbigo. Os heróis homéricos fascinam por serem autocentrados demais, verdadeiros demais nas suas egotrips. Mas Eneias é um herói muito mais influente e representativo, precisamente porque é essa idealização, essa meta fixada por Virgílio: o super-homem que se pôs acima dos demais para trabalhar por todos eles; o antepassado de Augusto que anunciava o advento do próprio. Em sua dimensão política, esse herói virgiliano não deixa de ser ainda uma possível inspiração para conter o individualismo galopante e o vácuo do nosso tempo. 39 #6 MAIS RAZÃO E MENOS EMOÇÃO NA MEDEIA DE SÊNECA Como devemos lidar com nossos sentimentos mais descontrolados? Paixão, ódio, ambição, luto, desespero com a passagem do tempo – a lista de coisas que podemos sentir e que podem nos tirar do prumo é grande. Como encarar o desfio de não sucumbir a impulsos que podem nos destruir ou que podem destruir os outros aos quais se dirigem? Qual o perfil psicológico de quem experimenta cada um desses sentimentos? O escritor Sêneca, que viveu no século I d.C., tentou responder a essas questões, questões no fundo filosóficas, de duas maneiras bem diferentes. A primeira foi escrevendo ensaios morais na forma de conversas com os amigos, ensaios muito
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