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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ANDRÉA FREITAS DA SILVA TRABALHO VOLUNTÁRIO: considerações sobre dar e receber Rio de Janeiro 2006 ANDRÉA FREITAS DA SILVA TRABALHO VOLUNTÁRIO: Considerações sobre dar e receber Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de janeiro – UERJ, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profª Drª Márcia de Vasconcelos Contins Gonçalves Rio de Janeiro 2006 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC S586 Silva, Andréa Freitas da. Trabalho voluntário: considerações sobre dar e receber/ Andréa Freitas da Silva. – 2006. 137 f. Orientador : Márcia de Vasconcelos Contins Gonçalves. Tese (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. 1. Voluntários – Teses. 2.Voluntários no Serviço Social – Teses. 3. Associações, instituições, etc. 4. Participação Social – Teses. 5. Movimentos sociais – Teses. 6. Doações – Teses. I. Gonçalves, Márcia de Vasconcelos Contins II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título. CDU 316.354.4 2 ANDRÉA FREITAS DA SILVA TRABALHO VOLUNTÁRIO: Considerações sobre dar e receber Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Avaliada pela banca composta pelos professores: Aprovada em: Banca Examinadora: _____________________________________________________________________ Profª. Drª Márcia de Vasconcelos Contins Gonçalves (Orientadora) (PPCIS/UERJ). ______________________________________________________________________ Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves (IFCS – UFRJ). _____________________________________________________________ Profª Drª Marcia Pereira Leite (PPCIS – UERJ). ________________________________________________________________________ Profª Drª Sandra Maria de Sá Carneiro ( PPCIS – UERJ) Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2006. 3 Com toda a gratidão do mundo: Cláudio, Meus pais, Adriana, João Pedro e Lucas. “Eles se divertiram muito, juntos” 4 AGRADECIMENTOS Muitas pessoas foram importantes ao longo do processo de elaboração deste trabalho e cita-las sem tropeços é uma tarefa muito difícil. Esta jornada não teria terminado sem o apoio e a confiança de minha orientadora Márcia Contins, cujas lições são inesquecíveis. Tenho por ela grande admiração; a responsabilidade com que conduziu os momentos de discussão e questionamentos e o zelo demonstrado com seus orientandos só faz com que meu respeito aumente. Às professoras MÁRCIA Leite e Sandra Carneiro, com as quais tive a oportunidade de contar para o exame de qualificação e que trouxeram novas orientações e perspectivas de utilização do material etnográfico. À professora Rosane Prado, pela curiosidade sobre o objeto da pesquisa e pelas contribuições ap longo do curso Seminário de Teses e Dissertações. Ao corpo docente do PPCIS/UERJ, agradeço pela oportunidade de ampliação dos estudos e pela abertura de horizontes teóricos. À Heloisa Coelho que insiste em permitir que eu questione tudo o que acontece no RIOVOLUNTÁRIO, por quem tenho grande admiração pela luta que trava para a construção de uma convivência harmoniosa em nossa cidade. Aos voluntários que dividiram comigo as suas experiências. Chris, Simone, Andréia e Vanessa que estão sempre dispostas a ajudar e dar apoio. Margareth e Mauro, cuja grande compreensão não tem preço. Aos colegas de curso, tantos e tão presentes. Sempre demonstrando confiança e apoiando nos momentos em que pareceu mais difícil “dar com ta” de todas as tarefas: Abílio, Alberto, Álvaro, Amílcar, Anderson, Amaury, Bárbara, Denise, Elionaldo, Gleice, João M, João S, Núbia, Patrícia C e Sônia W. À Patrícia Simões pela fé inamovível. Finalmente agradeço à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo À Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, com cujo apoio pude contar através da concessão de bolsa. Acalento o sonho de que, um dia, todos os pós-graduandos disponham de tal auxílio. Enfim, peço desculpas pelas inevitáveis omissões. 5 RESUMO Esta pesquisa tem o objetivo de discutir a temática das associações voluntárias a partir de duas premissas básicas: Qual é a motivação das pessoas para se voluntariar e o quê esperam receber em troca? A categoria dádiva é o eixo central da análise cujo componente empírico apoiou-se em trabalho de campo realizado na ONG RIOVOLUNTÁRIO, onde foram observados os primeiros momentos de contato entre os voluntários e a instituição, quando aqueles têm contato com a “cultura do voluntariado”. Os voluntários foram questionados acerca de suas expectativas e experiências anteriores nas ações assistenciais. No âmbito desta dissertação, o trabalho voluntário é apresentado como uma possibilidade para a participação dos indivíduos nas ações de resposta ao crescimento da violência na cidade do Rio de Janeiro. Palavras chave: Dádiva. Cidadania. Participação social. Trabalho voluntário. Movimentos sociais. ABSTRACT This study was ellaborated in order to discuss the work of the associations of volunteers from two basic remises: a) which is the main motivation that guide people to become a volunteer and b) what do they await in return from this activity. I can say that the donation, as an anthropological category, is the basis of my theoretical analys. The empirical basis to investigate it I have obtained by the participant observation of the work of the non- governmental organization - NGO Rio Voluntário, where I have took part from the whole process of volunteering. I mean, I have observed since the first moments, in which the volunteers got in touch with this institution, when they were questioned about their expectation towards the activity, untill the moment they began to work as volunteers. Finalyy I can say that presently the volunteer activity has become an important trial in order to reinforce the civil actions to reduce the violence in the city of Rio de Janeiro. Key-words: Gift; citizenship; Social movements; volunteering; SUMÁRIO SUMÁRIO Introdução............................................................................................................................................ 3 Capítulo 1 – Duas trajetórias. Um só caminho de voluntariado. .......................................................10 1.1 – Do Centro ao Centro, uma trajetória pessoal de voluntariado. .................................................10 O Centro Espírita............................................................................................................................... 10 O Centro de Voluntários.................................................................................................................... 13 Centros Convergentes........................................................................................................................ 18 Uma outra abordagem....................................................................................................................... 19 O grupo.............................................................................................................................................. 21 1.2– Comunidade Solidária: um “novo”conceito de participação social cidadão............................ 23 Origem e preceitos do Conselho da Comunidade Solidária.............................................................. 23 De Comunidade Solidária a Comunitas............................................................................................ 25 Centros de Voluntários...................................................................................................................... 26 Voluntariado no Rio de Janeiro......................................................................................................... 27 Capítulo 2 - O RIOVOLUNTÁRIO.................................................................................................. 29 Dinâmica institucional .......................................................................................................................30 2.1 – Programa Brasileirinho............................................................................................................. 32 Reformas............................................................................................................................................ 33 Programa de formação de educadores............................................................................................... 36 Núcleo Família.................................................................................................................................. 37 Rodas de oportunidades..................................................................................................................... 38 2.2 – Voluntariado Empresarial .........................................................................................................39 2.3 – Programa de Voluntariado........................................................................................................ 41 Núcleo de Doações. ...........................................................................................................................41 Núcleo de Instituições....................................................................................................................... 42 Núcleo de Voluntariado..................................................................................................................... 45 Capítulo 3 – Sou voluntário e Trabalhando com o voluntariado: a construção de um conceito de trabalho voluntário ............................................................................................................................48 3.1 – Ser voluntário é........................................................................................................................ 50 3.2 – Oficinas de Capacitação........................................................................................................... 58 Sou Voluntário: passo-a-passo.......................................................................................................... 58 Capítulo 4 – “Uma história” do voluntariado no Brasil ....................................................................67 4.1 – Voluntariado: a transformação do conceito.............................................................................. 69 Século XVI ........................................................................................................................................71 Séculos XVII e XVIII........................................................................................................................ 72 Século XIX........................................................................................................................................ 74 Século XX......................................................................................................................................... 75 Anos 60. .............................................................................................................................................76 Anos 70 e 80...................................................................................................................................... 77 Anos 90. ............................................................................................................................................78 4.2 – Voluntariado hoje. ....................................................................................................................80 Cidadania e participação social .........................................................................................................81 ONGs: Um novo modelo de assistência social?. ...............................................................................83 Capítulo 5 – Dádiva e voluntariado................................................................................................... 85 5.1 - Voluntariado e dádiva: uma comparação pertinente?............................................................... 85 Equacionando a sociedade através do trabalho voluntário. ...............................................................87 Manifestações da dádiva. ...................................................................................................................88 As campanhas. .................................................................................................................................. 89 O lugar do interesse no voluntariado................................................................................................. 91 Dádiva e voluntariado no Rio de Janeiro.......................................................................................... 94 Um evento de voluntariado. ..............................................................................................................95 Chegando ao campo.......................................................................................................................... 95 Início das atividades. .........................................................................................................................96 Faça sua parte.................................................................................................................................... 98 Almoço e ritual de voluntariado. ....................................................................................................102 Comentários Finais.......................................................................................................................... 107 FONTES. .........................................................................................................................................114 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................. 114 Anexo 1 – TERMO DE ADESÃO AO SERVIÇO VOLUNTÁRIO.. ............................................118 Anexo 2 - A LEI DO SERVIÇO VOLUNTÁRIO.......................................................................... 119 Anexo 4 – Quadro resumo da tabulação dos questionários. ............................................................124 Anexo 5 – Trabalhando com o Voluntariado. .................................................................................125 3 Introdução No Ensaio Sobre a Dádiva, lançado em 1924, Marcel Mauss elabora a noção de dádiva como fato social total, que perpassa todas as esferas da vida dos indivíduos. Da política e da economia às relações familiares, segundo Mauss (2003, p.187) “nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais [...]”. Todos os componentes da vida social se misturam nestes fenômenos. Tomo emprestada a noção de dádiva para pensar a proposta contemporânea de trabalho voluntário, visto considerá-la presente no envolvimento dos sujeitos. E, como nas implicações sugeridas por Mauss, a observação vem demonstrandoas influências resultantes nas mais variadas esferas da vida dos indivíduos que se voluntariam. O voluntariado, como a dádiva, tem sua manifestação empírica composta por três momentos traduzidos no ato de dar, o de receber e de retribuir. Em termos mais práticos pergunto como e por que uma cidade moderna, situada em uma região metropolitana com áreas densamente povoadas e sofrendo com diversos problemas sociais é palco de um movimento onde os indivíduos buscam instituições de assistência à população desfavorecida para ajudar na solução dos problemas? Embora os trabalhos de Mauss (2003) e Malinowski (1976) tenham como cenário sociedades tribais, as análises sociais baseadas na categoria de dádiva não são datadas, permitindo abordagens teóricas ricas em possibilidades, permitindo sua utilização para estudos sobre sociedades complexas. Aqui, a mesma pergunta feita por Mauss (2003, p. 188) é boa para pensar no caso do voluntariado “qual a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força há na coisa dada que faz com que o donatário a retribua?” 4 Porém, para efeito da análise do voluntariado, proponho que se acrescente a pergunta de Godelier (2001), no sentido de investigar o porquê do gesto primeiro, pois se a dádiva é constituída por dar, receber e retribuir, qual a motivação da oferta? Por quê se voluntariar? Antes de prosseguir com a investigação dos motivos, convém explicitar em que terreno se está entrando. Segundo Mauss (2003, p.190), não são os indivíduos e sim as coletividades, representadas pelos indivíduos, que “[...] mutuamente se obrigam, trocam e contratam.”, onde as trocas não são de bens materiais rigorosamente mensuráveis e que se estabelecem de forma voluntária e ao mesmo tempo obrigatória, “sob pena de guerra pública ou privada” (p.191). As trocas representam contratos reais que estão sendo celebrados entre as coletividades envolvidas, que passam a estar mutuamente comprometidas e, misturadas, “saem cada qual de sua esfera” (p.212), celebrando contratos, inaugurando e fortalecendo relações sociais. A metáfora utilizada por Mauss é a da agulha que liga as partes no telhado de palha “são as mesmas partes que retornam, o mesmo fio que passa” (p.213) e esta metáfora é adequada ao caso do voluntariado no sentido da existência de uma concepção de self que ultrapassa a definição dos próprios indivíduos. Em suas narrativas, os voluntários muitas vezes recorrem a acontecimentos, relacionados à violência, para justificar sua motivação para as ações assistenciais, não esquecendo que as melhorias ocorridas na sociedade reverter-se-ão em melhorias das suas próprias qualidades de vida. Esta visão encontra eco nas palavras do rapper MV Bill durante o Encontro Temático Cultura, Poder e Movimento Social, organizado pela UNESCO no Rio de Janeiro em 30 e 31 de julho de 2002: ... a sociedade não está sensibilizada para os problemas das favelas e os problemas dos negros e dos excluídos. A sociedade está amedrontada. Quando era só o sangue do favelado que escorria no asfalto, não tinha problema. É por isso que todo mundo tá tão interessado em ações e projetos sociais. Quando o favelado morria, era menos um. Agora o sangue do filho do rico é derramado também. 5 Creio que os contratos engendrados entre coletividades ou indivíduos são permeados por uma tensão entre as coletividades e entre os indivíduos, tendo a “cultura do medo” como uma de suas faces mais presentes no cenário da cidade do Rio de Janeiro, na qual “morro e asfalto” estão em confronto direto e, muitas vezes, declarado. Se em 1992, ano dos “arrastões” na zona sul, amplamente noticiados pela imprensa, a população foi surpreendida pelos acontecimentos, o que dizer dos ônibus incendiados que estampam as páginas dos jornais a partir do ano 2000? Segundo a visão dos Centros de Voluntários, os problemas sociais são problemas de toda a sociedade e não apenas das camadas economicamente excluídas. Os profissionais que atuam na área do voluntariado afirmam que há igualdade entre os indivíduos, ou que “só se é solidário com iguais, pois se achamos alguém inferior, temos é pena”1. Penso que esta opinião é informada por uma visão de natureza humana perpassada pela noção de igualdade, na qual todos os indivíduos possuem potencial idêntico de desenvolvimento social, desde que as condições sejam igualitárias. Dado que tais condições não são semelhantes, o que se reproduz é a desigualdade, que, neste caso tenderia a aumentar. É a estas condições adversas que os voluntários pretendem fazer face, ressaltando a clareza e a lucidez da opinião de MV Bill ao apontar uma expectativa diferente da mera fraternidade entre iguais. É o compromisso de selar um trato de harmonia que impulsiona os indivíduos para o trabalho voluntário. O primeiro gesto, o que inicia o círculo da dádiva, é o que provoca e, se aceito, coloca os indivíduos ou coletividades envolvidas em relação um com o outro, através de criação de vínculos que estabelecem a obrigação de retribuir. Este primeiro gesto pode ser considerado solidário, pois é tirando de si bens, tempo e conhecimento para ofertar ao outro, que o indivíduo coloca o que recebe em dívida. Através dessa dívida, o outro fica obrigado a retribuir e, portanto, encontra-se até certo ponto sob sua dependência, ao menos até o momento em que conseguir “restituir” o que lhe foi dado (Godelier, 2001). 1 Workshop para formação de capacitadores, RIOVOLUNTÁRIO, março de 2001. 6 Godelier enfatiza a notável ambivalência da dádiva, que contém dois movimentos opostos, aproximando através da partilha e afastando a partir da criação de uma relação oriunda da dívida. Esta opinião é partilhada por Godbout ao firmar que “somente a dádiva tem um circuito estranho e uma hierarquia emaranhada” (1999, p.232). Portanto, é necessário que saibamos o contexto no qual estavam inseridos os atores envolvidos antes de se iniciar o circuito da dádiva, a fim de sabermos o peso da hierarquia e se o equilíbrio da balança sofreu alteração após a primeira dádiva. Se a dádiva se origina de um indivíduo ou grupo hierarquicamente superiores, tenderá a confirmar este status mais elevado e colocará o receptor numa dívida quase impossível de ser saldada, não devido ao valor monetário do bem, mas segundo a característica dos vínculos aos quais ele nos remete. Empiricamente, este fato pode ser observado nas regras existentes de dar presentes. Segundo Miller (citado por Coelho 2003, p.323), “o notável nestas práticas é o grau de sua complexidade, de suas nuances, suas variações e texturas infinitas; e ainda mais notável é que todos nós sabemos (uns mais, outros menos) como negociar esta complexidade, uma complexidade tão complicada quanto a própria linguagem.” Ou seja, não se dá qualquer coisa a qualquer um em qualquer ocasião. É necessário que quem dá o presente tenha conhecimento dos significados e interdições existentes e que condicionam esta relação que, mesmo generalizada, não se dá ao outro sem que sejam seguidas regras não ditas. Outro aspecto interessante no exercício contemporâneo da dádiva é o fato de não haver necessidade de um vínculo pré-existente entre quem dá e quem recebe, como são os casos das doações de sangue e de órgãos comentados por Godbout (1999) a propósito da imbricação do Estado nas questões concernentes à dádiva. Diferente da época em que Mauss escreveu seu trabalho, o Estado assume papel preponderante na divulgação de ações como o trabalho voluntário. Este foi o caso da campanha maciça do ano de 2001 em prol do voluntariado, que teve início desde o estímulo à criaçãodos Centros de Voluntariado a partir de metodologia e apoio do governo federal, através do programa Comunidade Solidária. Note-se que o apelo 7 não está ligado apenas às ações emergenciais ou grandes catástrofes, mas às ações cotidianas de assistência social. O objetivo principal a nortear este trabalho é a observação das dinâmicas e as construções simbólicas dos voluntários a respeito de sua participação no movimento de assistência social organizado pelos Centros de Voluntários. O trabalho está dividido em 6 capítulos (incluindo a conclusão), da forma como se segue: No capítulo 1, pretendo tratar da minha experiência pessoal no campo do voluntariado, que posso separar em dois momentos, onde meu primeiro contato foi baseado em crença religiosa e o segundo contato teve sua motivação informada basicamente pela atividade profissional. Uma diferença entre as duas experiências é que como voluntária da casa espírita, não era remunerada pelo trabalho, ao passo que no Centro de Voluntários eu era uma profissional contratada para coordenar atividades de voluntários. O capítulo seguinte trata da ONG RIOVOLUNTÁRIO, onde foi realizado o trabalho de campo e de onde vêm os voluntários com os quais tive contato para elaborar este trabalho. Abordo a relação entre o Conselho da Comunidade Solidária e o RVR, pois este Conselho forneceu o aporte conceitual para sua fundação e a forma como a instituição está organizada atualmente. No capítulo 3 o ponto central é a identidade de voluntário e os instrumentos utilizados pelo RIOVOLUNTÁRIO para orientar esta construção identitária, as oficinas de capacitação. Neste ponto, são observadas as motivações e expectativas dos candidatos ao trabalho voluntário em relação às atividades que executarão. As narrativas dos futuros voluntários indicam que estão em busca do fortalecimento ou da criação de laços mais fortes entre os indivíduos, pois com raras exceções, não vivemos em pequenas comunidades e, segundo Bauman (2001), os laços estão mais frouxos, pois a fluidez anunciada na modernidade, embora tenha suscitado novos tipos de sociabilidade também provocou a fluidez na relação entre os indivíduos. Este autor considera a sua metáfora da 8 liquidez/fluidez adequada para captar a natureza da presente fase da história da modernidade, porque o que é líquido ou gasoso é fácil de ser moldado ao passo que o sólido tende ao esfacelamento. Mantendo-se na comparação entre sólidos e líquidos, outra diferença entre estes estados reside na importância da categoria tempo. Este é o tema do capítulo 4, onde se discute a apropriação de práticas de assistência social implementadas ao longo do tempo na historia do Brasil. Ressalte-se o risco de se agrupar sob a mesma categoria práticas diversas em sua orientação e que, nem sempre, contavam com voluntários da forma como o termo é entendido hoje. Não obstante, tal tratamento do tema voluntariado proporciona aos voluntários a percepção de fazerem parte de um movimento contínuo no Brasil. No caso do voluntariado, tempo é uma categoria polissêmica cuja importância é inegável, tendo em vista ser primordial no exercício das atividades e também no período entre a prestação e a retribuição. Algumas expressões utilizadas nas entrevistas, tais como “quando eles crescerem, no futuro, que futuramente possam ajudar outras pessoas”, demonstram que os voluntários entendem fazer uma espécie de investimento social, que não será usufruído em sua plenitude agora, mas num futuro próximo. E esta percepção dos voluntários é informada pela vida na modernidade, em que, segundo Marshall Berman (1986, p.15): (...)existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje... Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos...Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx ‘ tudo o que é sólido desmancha no ar’. A discussão do capítulo 5 está voltada especificamente para as relações entre dádiva e voluntariado, enfatizando-se o interesse dos voluntários e os benefícios ou ganhos que eles próprios afirmam auferir por se voluntariar. Desta forma, o círculo se fecharia: o voluntário doa, sua doação é aceita e a retribuição em direção ao todo social promoveria o entendimento entre as partes da cidade. Para dar sentido a esta relação, o capítulo traz uma discussão sobre os 9 aspectos relativos à comparação entre dádiva e voluntariado, onde a perspectiva é de que esta é uma prática que modifica a vida de todos os que participam. Para que se evite a romantização do indivíduo que faz trabalho voluntário, imputando- lhe adjetivos como bonzinho, fraterno e legal, é fundamental a discussão de que a prática do voluntariado também é perpassada pelo interesse de todos os envolvidos. E seja qual for a natureza deste interesse, o voluntário estará comprometido com a sua consecução. 10 Capítulo 1 – Duas trajetórias. Um só caminho de voluntariado. 1.1 – Do Centro ao Centro, uma trajetória pessoal de voluntariado. O Centro Espírita São diversas as orientações que levam os indivíduos ao trabalho voluntário: militância política, associações de classe e credo religioso entre outras. No meu caso, os primeiros trabalhos voluntários aos quais me dediquei estavam inscritos no registro religioso e não era por este nome que eu os conhecia, pois, ao menos na casa espírita que eu freqüentava, na década de 80, chamávamos de “assistência”. Aos quinze anos, comecei a fazer trabalho voluntário, pois como espírita, membro do Centro Espírita Pedro de Alcântara, havia sido socializada no preceito de que “fora da caridade não há salvação”. As ações que praticávamos, como grupo espírita, visavam a diminuição do sofrimento de outras pessoas, que por motivos “espirituais”, os quais não necessariamente viríamos a desvendar, precisavam estar naquela situação a fim de alcançar “progresso espiritual”. Neste contexto, a caridade é um valor positivo e desejável como única fonte de motivação para o voluntariado, diferentemente de contextos em que o voluntariado é informado com maior predominância por categorias como cidadania e promoção social, nos quais se considera importante que estas noções somem-se à de caridade. Esta era a mesma lógica que justificava o fato de estarmos em posição de ajudar, pois para nós, também era necessário passar por diversas etapas para podermos alcançar “níveis espirituais” mais altos. Segundo a doutrina espírita, sempre que um indivíduo comete uma falta, fica devedor de reparação daquele ato em relação aos indivíduos que foram prejudicados por ele, dividindo-se a reparação dos danos em etapas relacionadas às sucessivas 11 reencarnações pelas quais os espíritos deverão passar, conforme indicado no Livro dos Espíritos (Kardec, 1986, p.89): Deus lhes impõe a encarnação com o objetivo de faze-los chegar à perfeição. Para alguns é uma expiação, para outros é uma missão. Todavia, para alcançarem essa perfeição, devem suportar todas as vicissitudes da existência corporal; nisso é que está a expiação. A encarnação tem também outro objetivo que é o de colocar o espírito em condições de cumprir sua parte na obra da criação (...) Neste caso, nossas ações poderiam ser inscritas nos registros de provas ou expiações, ou seja, provas quando, no “plano espiritual”, houvéssemos decidido nos impor testes que verificassem nossa determinação em nos mantermos no caminho justo e expiações quando precisássemos expurgar erros de “vidaspassadas”2. O voluntariado era para mim, naquela época, uma questão de fé, ligada à minha religião, onde o trabalho que eu fazia, não era chamado de voluntariado; não tinha a preocupação de mudar a ordem social, do ponto de vista da cidadania ou da política, visto que dentro da doutrina espírita, as provas e dificuldades dadas às pessoas estavam de acordo com o seu merecimento ou suas necessidades. Ainda de acordo com esta doutrina, somente méritos pessoais poderiam fazer com que os indivíduos mudassem de posição social, sem necessidade da ajuda de outros. Portanto, neste contexto, uma “reforma social” seria resultado de uma sociedade cujos valores “são baseados sobre os princípios da solidariedade e da reciprocidade” (Giumbelli, 1998, p.134). Embora as questões relativas à cidadania não estivessem colocadas em minha prática, naquele momento, instâncias da direção do movimento espírita dialogavam com outros setores da sociedade, não necessariamente relacionados a uma prática religiosa. Isto se dava, segundo Giumbelli, através da aproximação de “certos intelectuais espíritas com reflexões e práticas do serviço social desenvolvido na academia, incorporando certos temas de preocupação e compromissos políticos” (et alii, 1998, p.138), numa explicitação das muitas vozes que dialogam dentro das práticas de assistência social. 2 Segundo a doutrina espírita, a alma reencarna sucessivas vezes até que alcance a perfeição (Livro dos Espíritos 122 – 130). 12 A assistência social é tradicional nas casas espíritas nas quais, segundo este mesmo autor, “o modelo de estatuto sugerido pelo manual prevê, entre as finalidades de um centro espírita, a de ‘realizar a assistência e a promoção social de modo geral’” (1998, p.130). Permeada pela caridade, a assistência social permite o entendimento da amplitude da noção de caridade estabelecida nas casas espíritas, sua “centralidade como princípio e valor” (et alii, 1998, p.131) e o entrelaçamento com todo o sistema de valores da doutrina espírita, como legitimador social. Vista deste prisma, a caridade situa-se no estabelecimento de relações entre os indivíduos, possibilitando a aproximação com a noção de cidadania, que “acaba herdando algumas das marcas características da caridade, como é o caso da generosidade e da solidariedade”. (Giumbelli, 1998, p.140). A solidariedade é o valor que influencia o esforço dos indivíduos em tentar compreender as escolhas dos outros, permitindo que as diferentes opções de vida não se tornem obstáculos para uma convivência pacífica e produtiva entre indivíduos com escolhas e inserções sociais diferentes. Associando-a à generosidade, sugere- se que instantaneamente, o indivíduo que faz trabalho voluntário sinta-se recompensado por seu ato, imprimindo às ações voluntárias o valor de prêmio em si próprias. Ao longo de 12 anos, fiz parte do movimento espírita ativamente, exercendo as atividades de palestrante, diretora social regional, evangelizadora e o que mais fosse necessário para o bom funcionamento da casa espírita e a divulgação da doutrina. Embora hoje ainda acredite que minhas ações melhoravam a qualidade de vida das pessoas atendidas, mesmo que fosse temporariamente, esta melhoria só era considerada por mim do ponto de vista de minha religião, que tem seu sistema de crenças e práticas como pano de fundo e motivação para a participação dos espíritas nas ações de assistência social; isto é, as mudanças sociais originadas a partir das ações nas quais me engajasse não seriam consideradas de um ponto de vista da ação política do indivíduo, mas do aprimoramento espiritual dos sujeitos envolvidos nestas ações. 13 Para mim era importante poder ajudar às pessoas, melhorar suas vidas, diminuir o sofrimento ou alegrá-las com apresentações de nosso grupo de teatro, mas tinha em vista que também me sentia bem por estar envolvida nas atividades sociais da casa espírita, agregando valor à minha própria existência. Nenhuma das atividades que desenvolvi provocou tristeza, aborrecimento ou fez com que me sentisse em situação de risco. Além dos benefícios alegados pela doutrina espírita, no campo da “promoção espiritual”, eu gostava das atividades nas quais me engajava e pensava desempenhar bem as minhas atribuições. Este era o prêmio imediato que eu recebia por atuar em todas estas frentes de ação. Meu afastamento da religião não ocorreu de forma abrupta, não sendo possível situar um momento em que eu possa afirmar: a partir daqui, não sou mais espírita. Mas a partir de meados da década de 1990, não participava mais das atividades ligadas ao espiritismo. Até minha entrada no RIOVOLUNTÁRIO, em 2001, não estive envolvida em nenhuma ação voluntária sistemática. O Centro de Voluntários Em março de 2001, fui convidada para uma entrevista no RIOVOLUNTÁRIO, Centro de Voluntários situado no município do Rio de Janeiro. A origem do convite foi o trabalho como contadora de histórias no LerUERJ – Programa de Leitura da UERJ. A contação de histórias era valorizada no trabalho de capacitação3 feito pela instituição, portanto, uma contadora de histórias com experiência, traria novo fôlego à equipe. Quando cheguei para a entrevista tive uma surpresa, pois esperava uma sala apertada, atulhada de quinquilharias e com uma equipe diminuta dando conta de milhares de tarefas, 3 As reuniões de capacitação fazem parte da estratégia do RIOVOLUNTÁRIO no que tange à educação e normatização da ação voluntária. São reuniões nas quais discutem-se vários aspectos relacionados ao trabalho voluntário. Os planos de aula estão em anexo. 14 que era a minha visão, até então, do ambiente de uma ONG. Outra coisa que devo admitir é que o mínimo que eu esperava das pessoas é que fossem “estranhas”. Assumo: o quê esperar de “ongueiros”? Gente chata, com ares de salvador do mundo, que só fala de desigualdade social, e é sempre irritantemente politicamente correta. Era um imaginário permeado por representações que remetiam principalmente a situações de clandestinidade, cuja herança parece óbvia, ao evocar a militância política dos anos de regime militar. Voltando às surpresas, a primeira foi o espaço, salas amplas, arejadas, móveis rústicos e modernos organizados de forma harmoniosa e gente...(aparentemente) bastante gente trabalhando (mas, ainda assim, as salas não estavam entulhadas). Como eu perceberia tempos depois, aquela “gente toda”, nem sempre dá conta do trabalho e aí, “solidariedade pouca meu pirão primeiro”, o que no nosso caso implicava em que o ambiente de trabalho poderia tornar- se extremamente competitivo, bem como na percepção da ausência de cooperação entre os setores da instituição. Ainda durante a entrevista, foi sugerido pela gerente da instituição que eu coordenasse o grupo de jovens voluntários. É importante frisar que o grupo ainda não existia, era uma idéia que os dirigentes tinham, mas até aquele momento, não dispunham de um profissional para implementá-la. Aceitei o encargo e, de posse de minha experiência anterior no Centro Espírita, fui fazer “voluntariado profissional”. Aqui, o termo profissional pode ser aplicado às duas situações, ou seja, à minha função de coordenadora de voluntários remunerada e à responsabilidade dos voluntários que, pela primeira vez, eu percebia como profissionais em suas atribuições, embora não recebessem remuneração. Ao longo do tempo em que faço parte da equipe do RIOVOLUNTÁRIO, muitas vezes foi difícil manter o distanciamento necessário a fim de analisar os acontecimentos. Muitas vezes também, os acontecimentos atropelaram o trabalho de pesquisa e, posteriormente, a elaboração de meus questionamentos. Aprendi que, no chamado terceiro setor4, as leis do mercado continuam a imperar,exatamente como em uma empresa tradicional, portanto as instituições cada vez mais são geridas como tal. Mesmo não tendo a preocupação de 4 Aqui tomado livremente no sentido de setor sem fins lucrativos. 15 apresentar um superávit financeiro ao fim do ano, estas instituições precisam apresentar resultados socialmente relevantes ao fim de cada projeto e acompanhamento financeiro também é fundamental para que todos os comprovantes estejam em dia quando chegar a hora das prestações de contas referentes aos diversos projetos geridos pela organização. Desde então, venho passando por um outro processo de socialização dentro deste “novo” voluntariado, pautado pela noção de cidadania participativa, pela noção da importância da organização da sociedade civil, pela promoção social dos indivíduos que são ajudados pelos projetos de intervenção social. Cabe definir a importância e o peso assumidos pelo adjetivo “novo” quando referido ao trabalho voluntário, pois se pretende com isso demonstrar rejeição às práticas não organizadas, cujos resultados das ações não são passíveis de mensuração. Isto não significa que instituições que tradicionalmente ocuparam-se do voluntariado e ações reativas à exclusão social foram excluídas do processo, mas que as ações praticadas foram re-significadas, aproximando-se da noção de cidadania participativa. De forma mais específica, uma noção de cidadania também adjetivada, posto que chamada de participativa. A cidadania nos Centros de Voluntários assume o status de valor desejável para os voluntários e deverá permear sua atuação, o que implica na adesão de cidadãos preocupados em reduzir as desigualdades sociais, alimentando uma idéia de “comunidade cívica”, onde a ênfase é dada aos deveres dos cidadãos (voluntários) e não aos seus direitos. Em seu site na internet o RIOVOLUNTÁRIO apresenta sua missão em termos que nos remetem aos valores que são considerados primordiais aos cidadãos que irão trabalhar voluntariamente: respeito, ética, qualidade do trabalho, solidariedade, integração e cooperação: MISSÃO – Contribuir para a inclusão social por meio do voluntariado e de ações educativas. 16 PRINCÍPIOS – Promover a solidariedade; agir com ética e qualidade no cotidiano das nossas ações; estabelecer a integração, o respeito e a cooperação internamente e junto aos públicos com os quais atuamos.5 Dentro desta instituição aprendi a utilizar as categorias acusatórias básicas representadas principalmente pelo assistencialismo e pela caridade. Esta prática acusatória tem como objetivo demonstrar que o voluntariado praticado e divulgado pelos Centros de Voluntários e por instituições que partilhem dos mesmos ideais é mais valioso socialmente do que as práticas que não têm em vista a promoção social dos indivíduos e a harmonia social. A diferença que está implícita, nesta ótica, é que o “novo voluntariado” está comprometido com as mudanças sociais e a promoção social dos indivíduos que participam. Esta narrativa dos Centros de Voluntários não surge de forma natural, sendo construído e, principalmente difundido, através de uma estratégia que dispõe de instrumentos como capacitações6, eventos e boletins informativos. Na posição de responsável pelas capacitações institucionais, voltadas a dois tipos de públicos: o candidato a voluntário e o dirigente de instituição postulante a trabalhar com mão de obra voluntária, fui diretamente responsável pela difusão destas idéias sobre voluntariado e cidadania. A metodologia utilizada era pautada pela participação ativa de todos os presentes às capacitações. Para obter esta participação, utilizavam-se dinâmicas de grupos, solicitavam-se depoimentos dos participantes a respeito de suas experiências voluntárias anteriores e a “construção” coletiva dos conceitos de trabalho voluntário, da lista de direitos e deveres de voluntários e instituições e das características necessárias para ser voluntário. Mas, como capacitadora, minha função era harmonizar o encontro e orientar para que os participantes não se equivocassem ao “construir” os conceitos. Quer dizer: os conceitos poderiam ser construídos desde que se respeitasse o modelo adotado e desejado do ponto de vista institucional. 5 Home Page do RIOVOLUNTARIO: www.riovoluntario.org.br. 6 Reuniões onde candidatos a voluntários têm contato com as diretrizes do RIOVOLUNTÁRIO e orientações sobre o comportamento considerado adequado durante suas atividades. 17 Segundo diversos autores ligados aos Centros de Voluntários, tais como Cardoso (1997), Carvalho (1997), Oliveira (1997), Coelho (1999), Corullón (1996), Dauster (s/d), Silveira (2002), entre outros, o chamado novo voluntariado, pautado pela cidadania participativa funda-se em uma série de valores, entre os quais os mais relevantes na instituição são, principalmente, cidadania, tolerância, cooperação, integração e responsabilidade. De modo geral, na “cultura do voluntariado”, estes valores têm sido muito utilizados para legitimar e nortear a participação dos indivíduos. A categoria cidadania, eleita o pilar desta cultura, aqui ganha contornos de “obrigação” dos indivíduos em relação a toda a vida social, sendo perpassada pela consciência dos direitos, mas principalmente pelo ato de assunção dos deveres de voluntários em relação à sociedade; a tolerância era sempre acionada quando se fazia necessário confrontar visões de mundo e modos de vida diferentes e, para o voluntário, significa o esforço em direção à compreensão e o respeito às diferenças sociais. Um cuidado a ser tomado nas capacitações era o de ressaltar que diferença e desigualdade não poderiam ser consideradas sinônimos e, neste contexto, a diferença ganhava valor positivo, valorizando-se as múltiplas experiências dos indivíduos na construção do pensamento do grupo, ao passo que à desigualdade, dava-se uma conotação negativa, principalmente do ponto de vista da falta de oportunidades e acesso aos bens sociais, tais como educação, trabalho, cultura, saúde e segurança. Por fim, a responsabilidade, referida às mais diversas situações, tais como o respeito aos horários de trabalho acordados com a instituição, o desempenho das atividades, o respeito às normas institucionais e a responsabilidade pela ordem social. Neste contexto, profissional, minha preocupação com o outro é perpassada pelas responsabilidades profissionais referentes ao processo de criação e implementação de projetos, pelo treinamento e avaliação do trabalho dos voluntários e pela elaboração dos relatórios pertinentes a cada situação. Ou seja, o bom desempenho de minhas atividades além de 18 possibilitar melhoria de vida do público atendido, também garante minha própria sustentabilidade. Centros Convergentes São estas as influências nas quais me apoiei para construir minha identidade voluntária. A influência religiosa é perpassada pela preocupação fraterna com o outro. A influência condicionada pela inserção profissional está perpassada pelo ponto de vista da coletividade. Neste sentido, a preocupação é de que minhas atividades como voluntária possam ser um diferencial para a inserção social dos indivíduos ou grupos com e para os quais atuo. Além, é claro, de estarem relacionadas ao meu desempenho profissional. Não atribuo predomínio a nenhuma das duas áreas, nem considero que isto seja importante do ponto de vista pessoal, pois ambas as influências coabitam e permeiam meu dia a dia. Tampouco estes dois aspectos esgotam as possibilidades de atuação na áreada assistência social para os indivíduos. No campo da perspectiva religiosa as ações de fraternidade vêm sendo revestidas do caráter de promoção social, constato ainda que, a cada dia, mais dirigentes de instituições religiosas procuram o RIOVOLUNTÁRIO a fim de capacitar-se para lidar com seus voluntários, sejam eles praticantes de suas religiões ou não. Portanto, foi a partir deste lugar comprometido e interessado, o de voluntária e profissional da área, que iniciei minha pesquisa sobre trabalho voluntário. Sendo membro do grupo e responsável pela implementação de projetos, agora acrescento o interesse de pesquisadora, considerando importante conhecer as representações dos indivíduos a respeito de suas práticas cotidianas e os mecanismos utilizados pelas instituições para acomodar as diversas orientações individuais no interior do movimento. 19 Uma outra abordagem No ano de 2002, outra porta foi aberta em minha relação com o trabalho voluntário através da possibilidade de tratá-lo como objeto de estudo. A primeira abordagem foi a monografia “E Dê a melhor Parte de Você”, na qual acompanhei a trajetória do grupo de voluntários jovens do RIOVOLUNTÁRIO, cuja coordenação era de minha responsabilidade. No trabalho que ora desenvolvo, proponho direcionar a análise para as categorias de pensamento que são representadas e vividas pelos voluntários em suas práticas enquanto participantes de Centros de Voluntários. Como as categorias são percebidas e vivenciadas no dia a dia dos voluntários? Quais as mudanças de vida relatadas pelos voluntários em seus estilos de vida? Quais as categorias consideradas fundamentais pelos voluntários para que sejam um diferencial na sociedade? Através de que meios “fazer sua parte” leva cada um a “fazer parte”? Que categorias de obrigações os voluntários esperam gerar nos que são alvos de sua ajuda? Quais os significados de trabalho voluntário que estão em jogo? Que representações são feitas, pelos voluntários, a respeito das instituições em que atuam? Permeando as questões acima, pretendo explorar os significados assumidos pelo trabalho voluntário a partir das características e condições para que alguém se torne um voluntário. Há condições específicas ou todos podem ser voluntários? De acordo com a narrativa dos Centros de Voluntários, o voluntariado é uma ferramenta de promoção social não só do indivíduo ou grupo que está sendo ajudado, mas também para quem se propõe a se tornar um voluntário. Da mesma forma, a mudança de vida relatada pelos voluntários, seja em seus relacionamentos pessoais ou no treinamento de habilidades que venham a ajudá-los em suas atividades profissionais, nos aponta para a capilaridade do voluntariado nas vidas dos voluntários e nos remete à questão da reciprocidade. A narrativa adotada pelos Centros de Voluntários, traduzida em categorias que são vividas pelos voluntários, tais como troca, pertencimento, participação, satisfação pessoal, 20 media as relações estabelecidas durante a ação voluntária, levando os voluntários e público atendido a sentir-se parte de um todo. Aqui, a própria categoria “todo”, pode assumir diversos significados relativos À esfera à qual esteja relacionado. Assim, pode-se fazer parte do todo religioso, o todo social, o todo político, entre outras possibilidades referidas às motivações do voluntário. Ou seja, a categoria todo não é unívoca. Penso que a partir destas questões será possível elaborar um mapa das tensões e da densidade assumidas pelo voluntariado para os indivíduos que o praticam. Acredito ainda que este conjunto de questões possa contribuir para conhecer melhor o voluntário como ator social relevante na dinâmica da sociedade no Rio de Janeiro e no Brasil, dentro do novo contexto que evidencia a cidadania ao mesmo tempo como conceito e valor mais importante a nortear as ações dos indivíduos que fazem trabalho voluntário. A forma assumida pelas narrativas dos voluntários sobre o seu dia a dia é fundamental, pois, de acordo com os dirigentes das instituições de voluntários, o voluntariado é considerado uma ferramenta de promoção social não só do indivíduo ou grupo que está sendo ajudado, mas também para quem se propõe a se tornar um voluntário. Da mesma forma, a mudança de vida relatada pelos voluntários, seja em seus relacionamentos pessoais ou no treinamento de habilidades que venham a ajudá-los em suas atividades profissionais, nos aponta para a capilaridade do voluntariado em suas vidas e remete à questão da reciprocidade, mediada pelo intercâmbio das relações entre o voluntário e aqueles aos quais ajuda. Esta reciprocidade assume diversas formas, tais como a satisfação imediata das expectativas dos voluntários, a aprendizagem ou aperfeiçoamento de habilidades específicas, o aumento da rede de relações sociais, entre outros. Após participar da oficina e ser encaminhado para trabalhar em instituições cadastradas no RVR, quando o voluntário retornava ao RIOVOLUNTÁRIO para visitar os profissionais ou informar-se sobre novas oportunidades de trabalho, eram questionados sobre 21 o retorno que estavam tendo, para si, ao desempenhar suas atividades. Se, na oficina, eram tímidos em admitir alguma expectativa de retorno, neste encontro informal, sem a presença de outras pessoas, admitiam a satisfação por empenhar-se nas atividades. Indagados sobre os benefícios do trabalho voluntário para si próprios, alguns voluntários responderam que “O ato voluntário nos dá uma sensação de realização e bem estar, além de nos proporcionar uma troca de carinho e gratidão por parte de quem recebe”; “(...)me sentir bem e feliz por estar cumprindo com minha parte cidadã”; “Acredito que o trabalho voluntário tem um retorno humano indescritível, depois que comecei sinto-me muito melhor em todos aspectos, desde a saúde até nas relações familiares e sociais, ou seja, eu ganhei muito mais que eu dei”; “Crescimento puro e satisfação de dever cumprido”; “Além de ampliar o meu conhecimento na área específica, é uma espécie de higiene mental”; “Amizades verdadeiras, bem-estar, reconhecimento, experiência profissional, etc”.7 O grupo Reconheço a pluralidade implícita no campo do voluntariado, portanto é importante o esclarecimento de que esta dissertação não pretende que as observações e possíveis conclusões sejam exaustivas principalmente no que se referir a outros contextos. Por conseguinte, no âmbito deste trabalho, quando houver citação da palavra voluntário, isto significa o indivíduo que busca Centros de Voluntários ou outras instituições legalmente constituídas, com as quais celebram contratos de trabalho voluntário, através de um termo de adesão8 onde suas atividades, bem como sua periodicidade, são descritas; este documento contém os dados do voluntário, da instituição e a assinatura de duas testemunhas. 7 Depoimentos obtidos ao longo dos anos de 2002 e 2003, com voluntários que já estavam atuando em instituições e retornavam esporadicamente para visitar o RIOVOLUNTÁRIO. 8 Anexo 1. 22 Nesta mesma lógica, a compreensão de trabalho voluntário a ser adotada ao longo deste texto, irá ater-se ao que está expresso no primeiro artigo da Lei 9.608/989, a Lei do Serviço Voluntário, especificamente no que se refere à não remuneração do voluntário pelos serviços e à não geração de vínculo empregatício com a instituição na qual o voluntário pratica suas ações. Enfatizo que esta delimitação do objeto de pesquisa não foi pautada por algum sentido depreciativo em relação a outras formas de associação voluntária entre os indivíduos, cujo objetivo seja o de interferir com as questões sociais, mas pelo reconhecimento da impossibilidademetodológica em abordar todas as faces do que se pode chamar voluntariado no Brasil. Com o objetivo de apontar as especificidades do trabalho voluntário e das ações de assistência social no Brasil, na segunda parte deste capítulo farei uma breve exposição sobre a criação do Conselho da Comunidade Solidária e das disputas na constituição do chamado terceiro setor brasileiro. 9 Anexo 2. 23 1.2– Comunidade Solidária: um “novo” conceito de participação social cidadã? Origem e preceitos do Conselho da Comunidade Solidária O trabalho voluntário organizado institucionalmente vem ganhando maior visibilidade no Brasil desde o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, iniciado no ano de 1995, quando foi criado o Conselho da Comunidade Solidária, cuja primeira presidente foi a antropóloga Ruth Cardoso. A missão assumida por este Conselho era o fortalecimento da sociedade civil, através da oferta de oportunidades de participação na resolução de questões sociais que há muito preocupavam a sociedade brasileira, tais como a fome e a precariedade dos sistemas de educação, saúde e segurança. Desta forma, propunha-se a trazer para o âmbito das ações de assistência social praticadas pelos sujeitos individuais, questões como a responsabilidade social e a cidadania, onde antes o registro mais comum era o da caridade cristã, visto a influência da Igreja na vida brasileira. Segundo Leilah Landim, (1993, p.16): (...) o que se poderia chamar de associações voluntárias – as entidades privadas de serviços sociais, saúde, educação, criadas durante os três primeiros séculos, no Brasil – existiram basicamente no espaço da Igreja católica ou sob sua égide, permeadas portanto pelos valores da caridade cristã, dentro do quadro do catolicismo que se implantara no país e tendo como pano de fundo as complexas relações dessa instituição com o Estado. Misturando-se público e privado, confessional e civil. Quer dizer, à caridade cristã agora se acrescenta a proposta de participação cidadã. Enfatizo que a caridade não foi excluída da prática do “novo voluntariado”, mas re-significada através do contato com uma noção também re-significada de cidadania. Um dos efeitos desta agregação foi a inclusão das práticas assistenciais confessionais implantadas no Brasil desde séculos passados ao rol das ações do “novo voluntariado”. Desta forma, a caridade, longe de ser considerada inadequada como balizador das ações e motivações, passa a ser legitimamente acionada pelos indivíduos que se engajam no voluntariado, demonstrando solidariedade com as condições sociais do público que será beneficiado pelas suas ações. 24 Após a criação do Conselho da Comunidade Soldaria, em 12 de janeiro de 1995, e a partir da necessidade de conhecimento das formas de organização do voluntariado no Brasil, em outubro 1995 foi lançado o “Programa de Estímulo ao Trabalho Voluntário no Brasil”, em parceria com a fundação ABRINQ10, com o objetivo de “promover o conceito e a prática da cidadania no país, oferecendo canais organizados para ação voluntária, através da criação de uma rede de Núcleo de Voluntários em grandes cidades de várias regiões do país” (portal do voluntário). Através de apoio financeiro e pedagógico, este programa incentivou a criação de Centros de Voluntários, iniciando por São Paulo, seguido por Rio de Janeiro, no ano de 1997. Hoje, a rede de Centros de Voluntários reconhecidos pelo site Portal do Voluntariado conta com 46 instituições.11 É importante frisar que o Conselho foi criado dois anos após o que ficou conhecido como a Campanha do Betinho, cujo poder de convocatória pode ser considerado um marco na organização da sociedade civil brasileira, quando mais de 3.000 comitês de cidadania foram criados por iniciativas locais, ao longo de um ano. Por conseguinte, creio que o momento era propício à convocação da população para atuar diretamente na solução dos problemas sociais. A estratégia de divulgação do programa era apontar o que denominavam as diversas e invisíveis faces do voluntariado existentes na sociedade brasileira. Esta alegada invisibilidade foi creditada ao fato de que as organizações de voluntários “tinham poucas oportunidades de trocar experiências e somar esforços em iniciativas de interesse comum” (Cardoso, 1997, p.3). Ainda citando Ruth Cardoso, “o voluntariado no Brasil é uma realidade dinâmica, mas ainda praticamente invisível” (1997, p.3), o que sugere que do ponto de vista dos mentores da criação dos Centros de Voluntários, não era necessário convencer os indivíduos a fazer trabalho voluntário, mas evidenciar a presença deste trabalho voluntário na sociedade brasileira desde a época da colônia, buscando, neste movimento, depurar os preconceitos 10 Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos 11 ANEXO 3. 25 existentes a respeito da motivação do voluntário, do assistencialismo, da falta de continuidade das ações, entre outros. No capítulo Uma História do Voluntariado no Brasil, será exposta a forma adotada, pelos Centros de Voluntários, para apresentar os fatos que, encadeados, proporcionam uma visão sobre as ações assistenciais que contaram com a participação da população, reunidos pela primeira vez sob a rubrica de trabalho voluntário, de forma a validar a existência desta prática no território brasileiro desde o século XVI. De Comunidade Solidária a Comunitas A Comunitas é a ONG que foi criada para substituir o Conselho da Comunidade Solidária, próximo ao término do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso e mantém as linhas de atuação originais daquele Conselho. Mesmo tendo recebido aporte financeiro e pedagógico para sua implementação, os Centros de Voluntários mantinham independência em relação à forma de abordagem do trabalho. Organizou-se uma rede informal de apoio, cada qual levantando suas próprias fontes de financiamento e elaborando suas estratégias de trabalho e divulgação, ao mesmo tempo em que trocam idéias e “tecnologias” para abordagem das questões sociais. Não houve uma passagem automática dos Centros de Voluntários da tutela do Conselho da Comunidade Solidária para a da Comunitas, tendo ocorrido várias reuniões e seminários onde as mudanças que estavam por ocorrer foram apresentadas e debatidas com os representantes e dirigentes dos Centros. 26 Centros de Voluntários A proposta inicial do Conselho da Comunidade Solidária era de que fossem criados Centros em dez capitais brasileiras, respeitando-se as especificidades locais, mas que cumprissem a missão de organizar a oferta e a demanda de voluntários. Isto seria realizado aumentando a visibilidade e o reconhecimento dos voluntários e suas intervenções, criando estratégias locais para mobilização e estímulo à participação, fomentando a troca de experiências e promovendo a cultura do voluntariado. Portanto, os Centros de Voluntários são Organizações Não Governamentais (ONG)12 cuja missão é, em linhas gerais, funcionar como elo entre os indivíduos que desejam ser voluntários e as instituições que precisam de mão-de- obra voluntária para o desenvolvimento de suas atividades. Do ponto de vista do Conselho, fator fundamental para a criação dos Centros, era a organização das estratégias locais de mobilização e estímulo à participação dos grupos locais, de forma que estes tivessem a cara da comunidade na qual nasce e pretende servir (Carvalho e Oliveira, 1997:13). Assim, partiu-se para uma série de seminários regionais a fim de apresentar a proposta e enfatizar a importância da criação dos Centros, quando também foram debatidos os valores referentes à “cultura do voluntariado”. Embora o cerne do trabalho seja o mesmo, a promoção do voluntariado, os Centros de Voluntários adotam uma grande diversidade de ações no desenvolvimento e divulgaçãode seus trabalhos. Deste modo, temos a Central de Rio Claro, cujo corpo de voluntários é composto por jovens até 30 anos; Parceiros Voluntários, no Paraná, cujas ações são majoritariamente voltadas para a educação; o Natal Voluntários, que se dedica a promover o voluntariado jovem no Brasil e o RIOVOLUNTÁRIO, localizado no Rio de Janeiro, que, além de projetos na área de responsabilidade social empresarial, atua na área de educação pré- escolar. 12 Para uma discussão sobre o uso do termo ONG e a complexidade implícita na construção de uma identidade a partir da negação – Não governamental ver Landim 1998. 27 Voluntariado no Rio de Janeiro Segundo o projeto de implementação do RIOVOLUNTÁRIO, antes de sua constituição pelo menos por duas vezes a Prefeitura do Rio de Janeiro experimentou a implantação de um programa de voluntários. A primeira em 1994, através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, cujo insucesso foi creditado à resistência dos indivíduos em exercer atividades voluntárias para órgãos do governo. A segunda tentativa foi o Projeto Rio Prisma, de 1996, que coincidiu com os seminários propostos pelo Conselho da Comunidade Solidária, o que resultou na fusão das duas propostas e, conseqüentemente, no ano de 1997, na criação do RIOVOLUNTÁRIO. O voluntariado no Rio de Janeiro será objeto de atenção no capítulo Dádiva e Voluntariado, o que não invalida que alguns comentários sejam feitos, pois o fato de o Rio de Janeiro ser retratado como uma cidade violenta em crônicas, reportagens e livros, se não determina, ao menos influencia muitos indivíduos a procurar instituições assistenciais para fazerem trabalho voluntário. Suas respostas sobre o porquê de sua opção evidenciam esta situação. Segundo dois participantes da oficina Sou voluntário: “[...] um profundo desconforto com a desigualdade social que salta aos olhos. [...] sonho de juventude, mudar o mundo de alguma maneira e a mais correta que eu vi foi a ação social”; “[...] acreditando fielmente que só a fraternidade gratuita para resolver problemas sociais como a violência. Decidi escolher a área de educação por que é um elemento de transformação social.13” É significativo também que a maioria destas respostas relacione violência, trabalho voluntário e educação. Na visão destes voluntários e candidatos a educação é o instrumento que poderá alterar a situação de crise social e de valores contemporânea, permitindo a 13 Respostas colhidas em oficina de setembro de 2003. 28 emergência de uma nova ordem, conforme explicitado por este participante da oficina “por que acredito que a educação de qualidade é a única salvação para este país. [...] construir ninguém quer, só consumir. Tem que mudar a mentalidade das pessoas.14” 14 Idem. 29 Capítulo 2 - O RIOVOLUNTÁRIO Criado com a missão de “promover ações de solidariedade em todas as suas formas, principalmente por meio do trabalho voluntário e de doações, em benefício da cidade do Rio de Janeiro” (Projeto de Implementação, pág 28), o RIOVOLUNTÁRIO, é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, apartidária, que tem como missão criar e desenvolver redes de participação social responsável e solidária, principalmente por meio de parcerias, do trabalho voluntário e de doações, visando a melhoria da qualidade de vida da sociedade.(definição do folder da organização). Vê-se pela abrangência da tarefa a qual se propunha que a instituição estava alinhada com as diretrizes do Conselho da Comunidade Solidária, tendo o trabalho voluntário como apoio para a intervenção em diversas áreas de ação social. Desta forma, à instituição era possível auto atribuir-se o legitimador nome de ONG ao mesmo tempo em que contava com a estrutura, também legitimadora, montada pela Comunidade Solidária para apresentar-se perante o público do Rio de Janeiro e possíveis financiadores como o Centro de Voluntários (oficial, acrescento) do Rio de Janeiro. Além da história oficial, que legitima a criação da instituição perante seus usuários (voluntários, instituições e público atendido), há histórias que se enquadram em um registro mais sentimental do que estritamente oficial. Entre estas, a história da série de reuniões que ocorreram na casa da atual Diretora Executiva do RIOVOLUNTÁRIO15, das quais participavam a Secretária Municipal de Desenvolvimento Social, entre outros personagens que, hoje, são dirigentes de diversas ONGs. Longe de questionar a ocorrência e a freqüência de tais reuniões, aponto a importância de serem relembradas atualmente, pois colocam os interlocutores no que podemos chamar de “clima da época” e remete a um “movimento dos cidadãos” para solucionar os problemas sociais. Este discurso é acionado em contextos onde é necessário ou vantajoso ligar a prática do voluntariado ao estabelecimento de laços pessoais 15 Este discurso foi acionado mais uma vez no Seminário “Voluntariado e os Objetivos do Milênio”, em 5 de dezembro de 2005, do qual participaram dirigentes de diversas ONG, Projetos e Programas Sociais. 30 ou à formação de uma família unida por ideais igualitários e convive com a proposta de voluntariado profissional, comprometido e responsável que aponta para as diversas formas de controle e avaliação que são utilizadas pelos Centros de Voluntários para demonstrar a eficiência de suas intervenções perante o público beneficiado e os órgãos financiadores. Dinâmica institucional A tarefa principal à qual se dedica o RVR16 não mudou ao longo de seus oito anos de existência, embora a forma de administrar sua execução venha sofrendo alterações segundo o profissional que a esteja conduzindo. Portanto é possível afirmar que ligando o voluntário à instituição que precisa de seu trabalho, o RVR oferece ao primeiro a oportunidade de ajudar uma parte da população que este acredita necessitar de sua atuação e à instituição a possibilidade de agregar valor ao serviço que presta a esta mesma população. Tais afirmações constam no site da instituição sob o link Quem Somos, Desde a sua fundação, em 1997, o RIOVOLUNTÁRIO busca mobilizar e engajar os cidadãos em ações voluntárias organizadas, sérias e comprometidas, aproximando voluntários e instituições em torno de interesses comuns e transformando necessidades sociais em oportunidades de participação solidária. Note-se que aqui a necessidade de atuação é apresentada como oportunidade de participação, numa construção que nos remete à organização do voluntariado e a uma reação à invisibilidade das ações voluntárias de outras épocas, que pode ser creditada à falta de organização das ações. A oportunidade está aí, portanto o indivíduo pode tomar a iniciativa de ajudar a resolver os problemas sociais. Já foi citado que cada Centro de Voluntários adota estratégias locais específicas de forma a se adequar às necessidades regionais. Para oferecer as “oportunidades” de trabalho voluntário à população do município do Rio de Janeiro, o RVR 16 Abreviação para RIOVOLUNTÁRIO. 31 adotou um modelo institucional hierarquizado dividido em setores, todos operando a partir da premissa de que o voluntariado é uma “oportunidade de participação cidadã”. Com o objetivo de atingir suas metas, a organização está dividida em três eixos, cujo fim é o de concentrar esforços em projetos específicos, que estejam alinhados com o objetivo principal da instituição no que concerne ao trabalho voluntário: o Programa de Voluntariado, Programa Brasileirinho e o Voluntariado Empresarial. Serão apresentados primeiramente o Programa Brasileirinho e o Voluntariado Empresarial. O Programa de Voluntariado, cuja base é a Central de Voluntariado, será o encerramento do capítulo,pois juntamente com a Central de Doações, formou a primeira base da instituição. Hoje, a Central de Doações é parte do Núcleo de Voluntariado. 32 2.1 – Programa Brasileirinho O Brasileirinho é um programa do RIOVOLUNTÁRIO que tem como objetivo qualificar o atendimento de crianças de zero a quatro anos matriculadas em creches comunitárias localizadas em comunidades de baixa renda no município do Rio de Janeiro.17 Segundo Wanda Engel18, é “impossível que estas crianças tenham bom desenvolvimento em ambientes úmidos, escuros, cheirando a mofo e sem um lugar para que peguem sol diariamente” (Apresentação do Prêmio Beija Flor 2001). Na fala, Engel referia-se à primeira creche que visitara e que a deixara impressionada com a falta de condições adequadas para a permanência das crianças. A partir daí, reza o mito institucional, criou-se e implementou-se o projeto, hoje programa, Brasileirinho. Este programa não conta com um número expressivo de voluntários atuando nas creches, diretamente com as crianças ou educadores, tendo em vista as especificidades das creches comunitárias, principalmente no que se refere à localização e situações de violência. Exceção feita à área responsável pela reforma das creches que dispõe de um cadastro com profissionais de arquitetura e engenharia que prestam assessoria ao longo do processo de reforma das creches. O programa conta com financiadores específicos para cada creche a ser reformada e com parcerias que permitem o aparelhamento das brinquedotecas, proporcionando ações nas áreas de reforma do espaço físico, aquisição de equipamentos, capacitação de educadores e acompanhamento pedagógico, capacitação dos gestores e assessoria e atividades sócio- educativas com as famílias das crianças matriculadas. A rede de financiadores e apoiadores garante que as creches sejam atendidas durante cinco anos nas áreas citadas. A mão de obra utilizada nas reformas é, prioritariamente, local, buscando proporcionar geração de renda principalmente para os responsáveis pelas crianças, mas também para outros moradores da comunidade. Portanto, pedreiros, mestres de obra, ladrilheiros, entre outros 17 Apresentação do programa no site www.riovoluntario.org.br. 18 À época Secretária de Assistência Social. 33 profissionais de construção civil, são recrutados obedecendo prioritariamente ao critério de residência na comunidade que é atendida pela creche. Na falta de profissionais residentes no local, buscam-se profissionais de outras localidades. Reformas A escolha e a reforma das creches merecem um exame mais detido, pois é a primeira ação que o RIOVOLUNTÁRIO executa, após avaliação da equipe técnica do Programa e elaboração de um projeto que obedece às regras do "Manual para Construção de Creches na Cidade do Rio de Janeiro" do Instituto Pereira Passos, adaptando o espaço físico existente às suas características e possibilidades. Este projeto de reforma é o instrumento utilizado no processo de captação de recursos financeiros para a execução das reformas. Mas nem sempre as reformas correm de acordo com as especificações dos cronogramas e planejamentos. Além dos voluntários técnicos (engenheiros e arquitetos), a própria equipe profissional do programa desempenha tarefas com a “mão na massa”, que não são de sua responsabilidade no dia-a-dia institucional. Esta situação ficou particularmente evidente no fim do processo de reforma de uma creche situada numa comunidade da zona sul do Rio de Janeiro. Nesta ocasião, apesar do contrato que fora assinado estabelecer as responsabilidades das partes19, houve um atraso de mais de três meses devido às divergências alimentadas pelo representante da creche. Suas reclamações iam desde o modelo de torneira utilizado até as cores do mobiliário. Ressalto que as reformas são meticulosamente planejadas, contando com projetos elaborados por profissionais e, o mobiliário e brinquedos são os indicados para crianças na faixa etária atendida pela instituição. 19 RIOVOLUNTÁRIO e direção da creche. 34 Ao longo do processo de reforma de qualquer creche, as crianças não podem utilizar os prédios, tendo em vista os riscos inerentes a uma obra e a inadequação de sua presença no local, portanto a coordenadora do programa Brasileirinho e o responsável pela creche buscam um local onde a creche possa funcionar provisoriamente. No caso citado, foi obtido abrigo em um CIEP próximo. A reabertura da creche à comunidade foi remarcada pelo menos quatro vezes e o impasse não era solucionado, pois as obras não eram concluídas, o que provocava gastos além dos previstos no projeto de reforma e que estavam relacionados às horas dos trabalhadores, sumiço de materiais e equipamentos e também com a manutenção do espaço provisório, entre outros. Como os embaraços iam-se acumulando e as empresas que financiavam as reformas cobravam o retorno de seu investimento, a solução encontrada foi informar ao dirigente que o projeto não seria mais instalado na creche, e que, de acordo com o contrato, o investimento feito deveria ser ressarcido. A estratégia de pressioná-lo mostrou-se, aparentemente, bem sucedida e, enfim, marcou-se a data da reabertura, tendo sido elaborado um cronograma com as responsabilidades de cada parte até o dia marcado para o evento. Acho necessário dizer que estas responsabilidades já constavam em contrato, mas por razões às quais não é cabível a discussão neste espaço, uma das partes não cumpriu suas obrigações, o que forçou esta resolução “pressionada”. Mas o fim da história não se deu sem mais percalços. Na semana da reabertura da creche, a equipe foi surpreendida com a informação de que a obra não terminaria a tempo, pois o responsável pela pintura exterior e acabamento – pintura de janelas, portas e mobiliário –, “desaparecera”. Como o profissional já havia recebido seu pagamento, pois iniciara o trabalho, o programa não dispunha de mais verba para pagar um substituto. 35 Desta forma, todos os profissionais do programa Brasileirinho foram convocados a colocar a “mão na massa”. E na tinta, no tinner, nos rolos e estopas, entre outros materiais de construção civil. Nesta época, eu coordenava o trabalho feito com as famílias das crianças, e também fui chamada para este esforço final. A conclusão à qual chego, após participar deste episódio, é que os conflitos de interesses existentes entre representantes de instituições locais e dirigentes de Centros de Voluntários não são solucionados apenas com um instrumento legal, como um contrato. A conversa e o acompanhamento do processo são fundamentais para que se evitem desperdícios de investimentos de tempo e dinheiro. Mas, ainda mais importante, é perceber que, mesmo os profissionais remunerados da instituição, precisam estar em sintonia com a filosofia e a proposta do trabalho, como se esta fosse sua “experiência militante”, para utilizar a expressão da antropóloga Leilah Landim, onde a atuação profissional está intrinsecamente ligada à sua visão social e uma proposta de intervenção na sociedade. Creio que também é evidente que o meu comprometimento profissional com o trabalho voluntário alimenta esta conclusão em relação ao “perfil ideal” de profissional para atuar nesta área, afinal, neste episódio, não houve pagamento de hora extra, muitos precisaram desempenhar atividades para as quais não estavam tecnicamente preparados e, em conseqüência, o desgaste e o investimento emocional foram grandes. A compensação pessoal pôde ser confirmada na reabertura da creche, quando os membros da equipe apresentaram aos convidados as áreas da creche cujo acabamento havia sido sua responsabilidade. Pode-se dizer que esta é a “ponta do iceberg” do Programa Brasileirinho, pois a reforma é
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