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Na década passada, houve crescente interesse internacional em adotar abordagens dialógicas para ajudar as pessoas que estão enfrentando dificuldades psiquiátricas. Este livro ajudará os leitores de português a entender as razões para tamanho entusiasmo. Embora as abordagens dialógicas tenham profundas raízes filosóficas e terapêuticas, a atual explosão de interesse foi desencadeada por pesquisas lideradas por Jaakko Seikkula e colegas, que relataram como a terapia de Diálogo Aberto, praticada na Lapônia Ocidental desde o início dos anos 90, levou a acentuada melhora aqueles diagnosticados com esquizofrenia e outros transtornos psicóticos. Os resultados para as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e outros transtornos psicóticos são há muito sombrios, principalmente nas sociedades desenvolvidas. Entende-se que os transtornos psicóticos, dos quais a esquizofrenia é a "doença" mais grave de todas, seguem um curso crônico. Mas no extremo norte da Finlândia, uma história muito mais otimista surgiu na década de 1990, e se tornou gradualmente conhecida e reconhecida internacionalmente graças à pesquisa realizada por Seikkula e seus colegas. Na terapia de Diálogo Aberto, a psicose é reconceituada. Em vez de considerada como um sintoma de uma "doença cerebral", é vista como uma manifestação de uma perturbação no espaço entre as pessoas, com a pessoa psicótica carregando o fardo de tornar essa perturbação "conhecida". Foi uma reconceituação otimista, pois mostrava a possibilidade de curar aquele espaço intermediário adorando práticas dialógicas como ferramenta. No início, Seikkula e seus colegas em Tornio, na Finlândia, começaram a mapear os resultados de longo prazo de seus pacientes psicóticos tratados dessa maneira, e há quase vinte anos os primeiros resultados começaram a aparecer em revistas médicas. Ao fim de cinco anos, 80% dos pacientes do primeiro episódio estavam assintomáticos e trabalhando ou voltando à escola. Os dados estavam a contar uma história extraordinária: nessa região do mundo, uma doença "crônica" agora tinha um curso muito mais episódico. O mais surpreendente de tudo, considerando o padrão de atendimento no "mundo desenvolvido", os pacientes na Lapônia Ocidental não estavam sendo rotineiramente tratados com antipsicóticos. Ao fim de cinco anos, dois terços dos pacientes do primeiro episódio nunca haviam sido expostos a um antipsicótico, e apenas cerca de 20% os tomavam regularmente. Na Lapônia Ocidental, o Diálogo Aberto é uma abordagem terapêutica usada para pessoas que sofrem de dificuldades psiquiátricas de todos os tipos -depressão, ansiedade, dificuldades psicóticas e outras. Isso também atraiu a imaginação do público, pois essa não era apenas uma abordagem útil para pacientes com esquizofrenia, mas uma maneira mais universal de estar com os pacientes. Na última década, Seikkula e outros profissionais da Finlândia têm regularmente viajado para lugares distantes para difundir essa maneira de trabalhar com as pessoas. Além disso, seus livros e ensinamentos foram traduzidos para vários idiomas e, agora, graças a esta tradução para o português, os brasileiros terão a oportunidade de aprender sobre a filosofia e as práticas que levaram a tão bons resultados. A adaptação dos métodos do Diálogo Aberto a outras culturas apresenta uma oportunidade e um desafio, e este livro de Seikkula e Arnkil serve como uma introdução essencial a este trabalho. Robert Whitaker Jornalista e autor de livros sobre a história da psiquiatria e sobre a segurança e a eficácia das drogas psiquiátricas: fundador do madinamerica.com, site de notícias e blogs de pesquisas para repensar a psiquiatria Nos últimos anos tem havido crescente apreciação da contribuição dos determinantes sociais no bem-estar fisico e mental. Embora a grande importância das redes sociais seja amplamente reconhecida, nem sempre é clara a melhor forma de incluí-las no tratamento. Seikkula e Arnkil oferecem não apenas uma justiticativa para sua inclusão, mas também descrições claras de como incluí-las e como sua abordagern melhora os resultados. Sandra Steingard Diretora médica no Howard Center, Vermont (EUA), presidente do Conselho da Foundation for Excellence in Mental Health Care A abordagem do Diálogo Aberto tem, de longe, os melhores resultados de recuperação quando se trata de ajudar pessoas com sofrimento grave. Tendo sido treinada e treinado outras pessoas nessa abordagem, posso atestar as suas possibilidades transtormadoras. Não apenas para aqueles em perigo que procuram por ajuda, mas também para os que trabalham em saúde mental. A psiquiatria seria um lugar muito diferente se o diálogo, e não as drogas, liderasse o caminho. Olga Runciman Treinadora e palestrante internacional, escritora, ativista e artista, cofundadora da rede Ouvidores de Vozes da Dinamarca A abordagem do Diálogo Aberto traz uma lufada de ar fresco aos sistemas de saúde mental que ficaram obsoletos sob o peso da rotulagem diagnóstica e dos medicamentos entorpecentes. Isso nos mostra que as crises de saúde mental ( ... ) podem ser melhor tratadas cm um grupo de amigos e profissionais da família, que realmente se importam e estão de fato se abrindo para ouvir um ao outro. John Read Professor de psicologia clínica na Universidade de East London (Reino Unido) O propósito dos autores é encorajar o dialogismo nas praticas terapêuticas e contribuir com a comunidade crescente de profissionais que buscam a formação em práticas dialógicas. Para tanto, generosamente compartilham sua vasta experiência clínica, de pesquisa e docência, apresentando conceitos e questões fundamentais das priticas dialógicas em diversos contextos de aplicação. Cecília Cruz Villares Terapeuta ocupacioml (USP) e terapeuta de família (Instituto Familiae, São Paulo, e Institute for Dialogic Practice, Nova York), integra a equipe clínica e docente do Instituto Noos em São Paulo Reuniões dialógicas de redes sociais: formas de dialogismo no trabalho psicossocial Jaakko Seikkula Tom Erik Arnkil Vera Ribeiro (Trad.) SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SEIKKULA, J., and ARNKIL, T.E. Reuniões dialógicas de redes sociais: formas de dialogismo no trabalho psicossocial [online]. Translated by Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2020. ISBN: 978-65-5708-081-8. https://doi.org/10.7476/9786557080818. https://doi.org/10.7476/9786557080818 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Nísia Trindade Lima Vice-Presidente de Educação, Informação e Comunicação Cristiani Vieira Machado EDITORA FIOCRUZ Diretora Cristiani Vieira Machado Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Carlos Machado de Freitas Gilberto Hochman Conselho Editorial Denise Valle José Roberto Lapa e Silva Kenneth Rochel de Camargo Jr. Ligia Maria Vieira da Silva Marcos Cueto Maria Cecília de Souza Minayo Marilia Santini de Oliveira Moisés Goldbaum Rafael Linden Ricardo Ventura Santos Reuniões dialógicas de redes sociais Formas de dialogismo no trabalho psicossocial Jaakko Seikkula e Tom Erik Arnkil Prefácio de Lynn Hoffman Tradução Vera Ribeiro Revisão técnica Paulo Amarante e Fernando Freitas Copyright © 2020 dos autores Originalmente publicado em inglês sob o título Dialogical Meetings in Social Networks (Karnac Books, 2006) Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ / EDITORA Revisão Irene Ernest Dias Índice Clarissa Bravo e Masé Sant’Anna Projeto gráfico e editoração Obra Completa Comunicação – Robson Lima Capa Carlos Fernando Reis Imagem da capa CSA-Printstock/iStock.com Produção editorial Phelipe Gasiglia Catalogação na fonte Fundação Oswaldo Cruz Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde Biblioteca de Saúde Pública S459r Seikkula, Jaakko. Reuniões dialógicas de redes sociais[livro eletrônico]: formas de dialogismo no trabalho psicossocial / Jaakko Seikkula e Tom Erik Arnkil; tradução Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2020. 4.074 Kb:EPUB Título original: Dialogical Meetings in Social Networks ISBN: 978-65-5708-081-8 1. Serviços de Saúde Mental. 2. Sistemas de Apoio Psicossocial. 3. Conhecimento. 4. Terapêutica. 5. Esquizofrenia. 6. Rede Social. 7. Empoderamento. 8. Reuniões Dialógicas. I. Título. CDD - 23.ed. – 362.2 2020 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4036, 1º andar, sala 112 Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro, RJ Tels.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 editora@fiocruz.br www.fiocruz.br/editora Editora afiliada Versão digital: novembro de 2020 http://www.fiocruz.br/editora Autores Jaakko Seikkula Psicólogo clínico e orientador de terapia de família, professor interino do Departamento de Psicologia da Universidade de Jyväskylä e professor adjunto da Universidade de Tromsso. Trabalha há mais de vinte anos no desenvolvimento, estudo e implementação da abordagem dos Diálogos Abertos nas crises psiquiátricas mais severas e em outras crises. Atualmente, está envolvido em diversos projetos de desenvolvimento de práticas baseadas em redes sociais em muitos países. Em seus trabalhos, os problemas psicóticos são vistos, primordialmente, como respostas a uma crise, e não como uma doença estável. É autor de mais de cem artigos científicos e autor ou coautor de 12 livros. Tom Erik Arnkil Professor pesquisador do STAKES (Centro Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento para o Bem-estar Social e a Saúde, Helsinque, Finlândia) e professor adjunto de políticas sociais na Universidade de Helsinque. Durante duas décadas, ele e sua equipe estudaram as situações “multiproblemáticas” – ou “de múltiplas agências” – em que uma multiplicidade de auxiliares pode ficar emperrada, e procuraram desenvolver meios de melhorar a cooperação entre os profissionais e com os clientes e suas redes pessoais. Arnkil estudou, principalmente, questões relacionadas com crianças e famílias, nas quais estão envolvidas a assistência social, a terapia, a escola e assim por diante. Ele e sua equipe, junto com profissionais da linha de frente, conduziram uma série de projetos que continuam em andamento desde meados da década de 1980. Além de situações ligadas à família, o conjunto de métodos conhecido por Diálogos Antecipatórios foi aplicado e estudado em outros contextos em que há múltiplos prestadores de assistência, como o atendimento a idosos e o trabalho com desempregados de longa data. É autor e coautor de numerosos artigos e 17 livros. Table of Contents / Sumário / Tabla de Contenido Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales Prefácio à edição brasileira Prefácio A nossos leitores brasileiros Apresentação Introdução: Sobre redes e diálogos Parte I 1 Diálogos nas fronteiras entre e dentro das redes profissionais e pessoais 2 Reuniões frustrantes de redes Parte II 3 Diálogos Abertos como intervenção em crise 4 Diálogos antecipatórios para atenuar as preocupações 5 Parecidos, mas diferentes 6 Elementos curativos nos diálogos Parte III 7 O diálogo e a arte de responder 8 Eficácia das reuniões dialógicas de redes 9 Pesquisa e práticas de generalização Epílogo: Sobre poder e empoderamento Referências Índice Prefácio à edição brasileira A publicação em português deste livro é um motivo de satisfação para nós, seja por sua contribuição original no campo da saúde mental e atenção psicossocial, seja devido à honra e à gratificação que expressamos pelo fato de ter possibilitado a vinda de Jaakko Seikkula e o Diálogo Aberto pela primeira vez ao Brasil na primavera de 2017, com o apoio fundamental da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por ocasião do primeiro seminário internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, realizado na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz. A leitura deste livro certamente será apreciada por um público que transcende os círculos formados pelos profissionais da saúde e pelos que trabalham em dispositivos de assistência social ou de educação, de participação social, enfim, de construção de práticas coletivas em geral. Além dos Diálogos Abertos, protagonizados fundamentalmente por Jaakko Seikkula, o livro nos apresenta os Diálogos Antecipatórios, desenvolvidos por Tom Erik Arnkil; duas inovações que, além de terapêuticas, demarcam uma nova forma de pensar sujeitos coletivos e com eles lidar. Por esse e outros motivos, já foi traduzido em mais de 15 idiomas diferentes, o que nos dá uma ideia da sua enorme receptividade e de sua amplitude política e acadêmica. Como o próprio título indica, o livro visa a encorajar a dialogicidade. Porém, como o monologismo é a epistemologia convencional aceita pelas principais tradições filosóficas e científicas com as quais nos acostumamos, a adoção de uma perspectiva dialógica é equivalente a uma grande mudança por parte de muitos leitores que podem não estar familiarizados com as perspectivas do próprio dialogismo. Por exemplo, implica ver os fenômenos considerados como pertencentes ao campo da saúde mental em diferentes aspectos, compreendendo-os dentro de outro contexto. E, muito mais ainda, como o leitor terá oportunidade de ver, o dialogismo se nos apresenta como quadro geral para a análise do discurso e da comunicação, e da vida social em geral. Nascemos nas relações e nelas vivemos, e essas relações se tornam a dinâmica organizadora da nossa psique. E os elementos da dialogicidade são comuns a todas as práticas relacionais, sobretudo em nossas relações do cotidiano. Mas, afinal de contas, o que é a dialogicidade? Se tomarmos o monologismo como pano de fundo, a perspectiva da dialogicidade ganha mais facilmente o seu relevo. Em linguística, o termo monologismo alude à tendência a identificar o orador como a origem da locução. Sendo o paradigma dominante, adquirimos maneiras de agir, pensar e sentir sob o imperativo da racionalidade monológica. Como olhar a comunicação como basicamente ações trocadas entre indivíduos. Ou tomar o discurso como tal e a linguagem do comportamento como coisas a serem explicadas, e os indivíduos como seres que pensam e agem de maneiras sujeitas a intenções individuais e a condições definidas como determinantes sociais (gênero, idade, status socioeconômico, educação, estruturas de poder, ou particularmente como sintomas psiquiátricos etc.), que para fins de análise são consideradas propriedades estáveis do contexto (ou sistema, se preferirmos algo mais globalizante). Basicamente, na prática o monologismo adota uma ou outra versão das seguintes teorias: cognição como processamento individual de informações, comunicação como transferência de informação e linguagem como um código. Dialogicidade é o termo usado pelos autores para se referir a certas propriedades que são, pelo menos de acordo com o dialogismo, características e a própria essência do diálogo, e mais amplamente de toda a cognição humana. Essas propriedades são exploradas extensivamente pelos autores ao longo do livro. Uma dessas propriedades é a relevância da organização sequencial, que significa que não se pode entender plenamente o dito ou um extrato de um discurso se ele for retirado da sequência que lhe dá o contexto. Com efeito, todo discurso é essencialmente contextualizado. O que sustenta a desconstrução do diagnóstico psiquiátrico como expressão explícita da racionalidade monológica que fundamenta o modelo biomédico aplicado à psiquiatria, com o qual se busca transformar as expressões das experiências das pessoas em coisas observáveis e submetidas a estratégias de mudança de comportamento. Outra propriedade é a da construção em conjunto: linguagem e discurso são considerados fenômenos por essência e fundamentalmente sociais. Segundo autores clássicos como L. Wittgenstein, M. Bakhtin e L. Vygotski, a linguagem usada nas interações intersubjetivas tem como origem as interações sociais, tanto em sua gênese histórica quanto na socialização da criança; além disso, é intercambiada socialmente, distribuída, negociada e recriada em interações intersubjetivas. Um diálogo é uma construção conjunta(coletiva). Essa construção coletiva é feita possível pelas ações e interações recíprocas e mutuamente coordenadas pelos diferentes atores. Nenhuma parte é inteiramente produto ou experiência de um único indivíduo. As duas abordagens, tanto a dos Diálogos Abertos quanto a dos Diálogos Antecipatórios, têm como foco a geração do diálogo nas reuniões com os sujeitos envolvidos na questão, sejam clientes, usuários, profissionais… A distribuição das contribuições do diálogo construído em conjunto é feita levando-se em consideração a inerente polifonia, isto é, o fato de que a realidade social é polifônica – portanto, fala com muitas vozes. Por conseguinte, todas as vozes presentes são convocadas, todas contribuem para uma nova compreensão, na qual desempenham papel importante. Outro princípio da dialogicidade explorado pelos Diálogos Abertos e pelos Diálogos Antecipatórios é que atos, enunciados e sequências discursivas estão sempre essencialmente situados dentro de uma atividade incorporada (diálogo, encontro) que as pessoas em interação produzem em conjunto. Outro princípio geral da dialogicidade é a reflexividade entre discurso e contexto. Reflexividade significando que duas ordens de fenômenos estão intrinsecamente relacionadas. Assim, uma delas está necessariamente implicada pela outra, e vice-versa. Por exemplo, a equipe de reflexão (reflecting team), uma aplicação do dialogismo na terapia de família criada por Tom Andersen, em que as barreiras entre terapeutas e clientes são removidas, em que a equipe move a terapia do fazer para em direção ao fazer com; pacientes e terapeutas, todos eles participando em um diálogo a respeito da mudança, no qual os papéis (de terapeutas e clientes) até mesmo trocam de lugar. Se o leitor estiver à procura simplesmente de técnicas, talvez as respostas fiquem aquém das suas expectativas. Porque a mudança de perspectiva da racionalidade monológica para a racionalidade dialógica não é simplesmente da ordem epistemológica, mas é, sobretudo, da ordem ética. Não é por acaso que ao longo do livro um dos pensadores que os autores fazem questão de convocar seja Emmanuel Levinas, por excelência o filósofo da ética, talvez o único moralista do pensamento contemporâneo. Mas para aqueles que creem que a ética seja uma especialidade, lendo Levinas se aprende que a sua tese essencial é que a ética é a filosofia primeira, aquela a partir da qual os outros ramos da metafísica ganham sentido. Porque a questão primeira – aquela pela qual o ser se dilacera e o ser humano se instaura como o outro do ser em seu movimento de transcendência com relação ao mundo tal como ele se apresenta – é a questão da justiça. É a responsabilidade como a estrutura essencial, primeira, fundamental da subjetividade. Se o leitor atentar para isso, que à primeira vista pode parecer mero detalhe, se dará conta de que a descrição da subjetividade que aparece ao longo do livro é feita em termos éticos. A ética, tanto na abordagem dos Diálogos Abertos quanto na abordagem dos Diálogos Antecipatórios, não vem como um suplemento de uma base existencial prévia; é na ética, entendida como responsabilidade, que se amarra o próprio nó da subjetividade e da intersubjetividade propriamente dita. Como Levinas insistiu ao longo da sua obra filosófica, a responsabilidade não é um simples atributo da subjetividade, como se ela existisse em si, antes da relação ética. Com Levinas se aprende a pensar de modo ético a relação do Eu com o Outro. O encontro com o Outro que consiste no fato de que, apesar da extensão dos domínios exercidos pelo Eu sobre o Outro, o Eu não possui o Outro, na medida em que o Outro me confronta com a sua alteridade e com a sua transcendência com relação ao Eu e ao instituído. A leitura deste livro certamente contribuirá para que o público brasileiro reflita sobre muitas de suas concepções acerca das relações profissionais ditas terapêuticas. Por exemplo, acerca dos resultados surpreendentes da aplicação dos princípios aqui contidos nos tratamentos com pessoas denominadas psicóticas, de pessoas em situação de crise etc., que são resultados muito diferentes, algumas vezes opostos, daqueles da psiquiatria tradicional, para a qual a crise seria expressão de um distúrbio interno (biológico ou psíquico) do paciente, e os tratamentos são fundamentalmente voltados para a remissão dos sintomas (a todo custo), tendo como base o uso de neurolépticos e outros métodos biológicos e invasivos. Os resultados comprovados dos Diálogos Abertos transmitem uma perspectiva revolucionária e otimista, a de que é possível tratar as pessoas de uma forma diferente e eficaz! É um alento! Após essas considerações preliminares, a expectativa é que você, leitor, se sinta estimulado a conhecer em detalhes em que consistem as duas abordagens dialógicas abordadas neste livro. Alguns desses tópicos são objeto dos diferentes capítulos do livro: o reconhecimento do Outro como a alteridade que de fato é; a aceitação incondicional do Outro; o que ocorre quando se fazem antecipações; os medos; os impasses; o pedido de ajuda entendido como um convite para um diálogo; as formas de gerar diálogos nas crises; a problemática dos diálogos multiculturais; os princípios básicos dos Diálogos Abertos; os Diálogos Abertos nas reuniões terapêuticas; a mediação das reuniões baseada na racionalidade dialógica; a abordagem dos Diálogos Abertos como um sistema de tratamento; a adoção do diálogo na prática cotidiana. Não é demais relembrar, com Gramsci, que “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”. PAULO AMARANTE Médico, doutor em saúde pública FERNANDO FREITAS Psicólogo, doutor em psicologia Pesquisadores titulares do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz Prefácio Este livro – que apresenta duas inovações terapêuticas, chamadas Diálogos Abertos (DAb)1 e Diálogos Antecipatórios (DAnt)2 – marca a descoberta de uma nova mina que oferece dois tipos de metal precioso. No tocante aos Diálogos Abertos, eu havia tomado conhecimento, em meados dos anos 1980, de que alguns profissionais do norte da Finlândia haviam começado a usar “reuniões de tratamento” inclusivas e contínuas como sua principal intervenção quando da instauração do primeiro episódio psicótico. Mais ou menos na mesma época, Tom Arnkil vinha desenvolvendo um método de rede para lidar com as “confusões” dos órgãos de assistência social – onde os vários profissionais que trabalham com crianças e famílias não conseguem ver o que os outros profissionais estão fazendo. Em cada um dos casos, uma conversa dialógica entre a rede do cliente e a rede profissional ocupa o centro do palco. A primeira abordagem (DAb) inclina-se para o estabelecimento de uma troca mais franca e espontânea entre a família e a equipe profissional, usando o conceito de dialogismo do filólogo russo Mikhail Bakhtin.3 A outra (DAnt) baseia-se nos mesmos princípios gerais sobre o diálogo, mas acrescenta ideias da teoria das redes sociais, para oferecer um conjunto de perguntas estruturadas que mobiliza todas as partes, literalmente, rumo a um futuro melhor. Situando cada método em seu contexto próprio, observa-se grande diferença entre as exigências feitas pelos respectivos cenários com que o DAb e o DAnt foram criados para lidar. O método do DAb foi desenvolvido ao se buscar um modo mais eficiente de abordar as psicoses agudas. Em vez de apresentar às pessoas planos baseados num diagnóstico e montados pelo hospital, a equipe resolveu abrir as reuniões a todas as partes envolvidas, desde o começo, e tomar todas as decisões em conjunto. As reuniões das redes teriam lugar todos os dias, enquanto fosse necessário, e seriam realizadas no local mais familiar possível – em geral, a casa do paciente. Mais importante ainda, a própria iniciativa passou de um discurso monológico, cujo objetivo era erradicar o sintoma, para um discurso dialógico, concentradoem encontrar uma linguagem comum a todos para aquilo que perturbava as pessoas. Essa prática deu palavras a ideias assustadoras, que, até então, tinham sido representadas apenas por gestos estranhos ou ameaçadores. Constatou-se não ser incomum o comportamento psicótico atenuar-se drasticamente até mesmo no decorrer de uma única sessão.4 O formato DAb era claramente revolucionário no contexto de um hospital psiquiátrico. As reuniões abertas, a preferência por ansiolíticos, em vez de neurolépticos, na escolha dos medicamentos e a tendência ao afastamento da hospitalização, exceto como último recurso, iam de encontro à prática padrão, mas revelaram prevenir a cronicidade. O artefato mais notável do trabalho do DAb foi um estudo de cinco anos que apresentou os dados estatísticos das pessoas tratadas no Hospital Keropudas e em clínicas psiquiátricas locais, no norte da Finlândia, onde o grupo de Seikkula introduziu suas inovações. Comparados ao que poderíamos chamar de tratamentos do tipo “terapia de praxe”, em outro contexto, os resultados do Keropudas foram admiráveis. No norte da Finlândia, numa população que reuniu pacientes com um primeiro surto psicótico, mais de 80% revelaram estar trabalhando, estudando ou procurando emprego ao cabo de cinco anos. No grupo que serviu de comparação, 62% dos pacientes acabaram na previdência social. No primeiro grupo, apenas 17% usaram medicação neuroléptica na marca dos cinco anos, ao passo que no segundo grupo 75% dos pacientes a usavam. Quanto a outras medidas, como a hospitalização ou a recidividade, Keropudas também ficou na frente: passados 12 anos desde o início do estudo nessa instituição, diz Seikkula, a incidência de novos casos de esquizofrenia na área servida pelo hospital caiu de 33 em cada 100.000 pessoas por ano para 7 em cada 100.000 – uma cifra assombrosa, como quer que seja medida. O método DAnt, por outro lado, assemelha-se mais de perto ao trabalho inicial de E. H. Auerswald sobre ecossistemas5 e à abordagem da família- com-sistemas-mais-amplos de Evan Imber-Black.6 A gênese do DAnt, da qual eu não tivera conhecimento antes de ler um artigo recentemente publicado na revista Family Process,7 foi auxiliada pelo caos não planejado do trabalho rotineiro de instituições de assistência social. Arnkil relata sua experiência de trabalhar com famílias que chegavam com seus próprios pequenos ecossistemas, ligados a partir de uma variedade de disciplinas. O modo de manobrar no labirinto dos especialistas em assistência social, cada qual com sua instituição dirigindo os trabalhos nos bastidores, podia tornar-se um enorme problema. Isso é um exemplo do que Bakhtin chama de “dialogicidade oculta”, referindo-se às presenças invisíveis que influenciam os acontecimentos.8 As oportunidades de conflito mascarado e de inculpação são fáceis de imaginar. Um resultado dessa dificuldade, em nosso campo, foi a invenção de métodos para deslocar o discurso de um foco nas deficiências e problemas para outro que lidasse com forças e soluções. Ideias como a pergunta milagrosa9 – perguntar o que informaria a uma pessoa que o problema que a trouxera havia desaparecido –, ou a ênfase de Michael White10 em valores essenciais profundamente arraigados são, todas elas, maneiras de substituir a ênfase no que é temido ou desprezado pela ênfase no que é valorizado ou desejado. Os Diálogos Antecipatórios enquadram-se nessa categoria e a ampliam e expandem. Arnkil, que é cientista social, e não psicólogo, como Seikkula, explica seu método dizendo que “os sistemas profissionais setorizados e especializados precisam desesperadamente de intermediários”. Uma forma de ajuda que Arnkil descreve é um método chamado “evocar o futuro”. O grupo reunido pelo consultor de DAnt inclui a criança e sua família extensa, bem como pessoas dos serviços sociais envolvidos na situação. O grupo é informado de que a natureza do diálogo será a família falando com o consultor, enquanto os outros escutam, e depois o inverso, mas não haverá intercâmbios nem interrupções. Os consultores – uma dupla formada no programa de Arnkil – começam pedindo à família que imagine estar um ano adiante e imagine que a criança melhorou. O consultor pergunta com que eles se sentem mais satisfeitos. Em seguida, indaga: “O que vocês fizeram que contribuiu para esse bom futuro, e quem os ajudou, e como?”. Uma última pergunta, muito importante, é: “Com que vocês estavam preocupados, um ano atrás, e o que reduziu suas preocupações?”. O mesmo conjunto de perguntas é então formulado aos profissionais, enquanto a família escuta. As ideias dos profissionais sobre as medidas úteis e as preocupações são anotadas, seguindo-se uma discussão sobre o plano de futuro emergente e sobre quem pode se comprometer com quê. Ao fazer isso, o consultor não pressiona por nenhum resultado específico, mas se limita a esclarecer e resumir o que é dito pelas pessoas. Arnkil também recorre a seu método de perguntas no futuro nas consultas apenas com grupos de profissionais. Diz ele que isso torna todos iguais, num diálogo contínuo no qual “uma infindável polifonia de subjetividades parece preparar o terreno para um saber pós-moderno, com menos fantasias de controle e tolerância elevada à incerteza”.11 Nesse sentido, suas invenções decerto se relacionam com os objetivos dos DAb. Entretanto, eu diria que a própria natureza caótica do cenário obriga a um protocolo mais controlador. E o retorno proveniente dos grupos com que Arnkil trabalhou é impressionante. Os familiares dizem sentir-se aliviados ao imaginar um futuro mais esperançoso, na presença de profissionais que, em geral, buscam as deficiências e o que está errado. Igualmente importante, as paredes do silo derretem-se temporariamente, de modo que todos os presentes tomam conhecimento do que pensam os muitos participantes envolvidos. Isso pode ser incrivelmente esclarecedor para os profissionais, que antes não tinham como saber se poderiam trabalhar em cooperação uns com os outros ou com objetivos conflitantes. Neste ponto, quero citar uma distinção oferecida por Roger Lowe12 num artigo em que ele destaca a diferença entre métodos caracterizados pelo que chama de “perguntas estruturadas” – como nas abordagens concentradas na narrativa ou na solução – e o tipo de entrevista de forma livre que Harlene Anderson e Harry Goolishian popularizaram em sua abordagem do não saber e Tom Anderson ampliou com seu processo de reflexão. Recorrendo ao artigo de Lowe, eu gostaria de usar o termo “diálogo estruturado” para designar os métodos mais interventivos oferecidos por Arnkil, e “diálogo aberto” para designar o trabalho proposto por Seikkula. Outra diferença é que o Diálogo Antecipatório de Arnkil é usado, vez por outra, como uma consulta, e não como um método direto de tratamento como é o Diálogo Aberto, e, por esta razão, será mais demorado avaliá-lo, embora já haja estudos em andamento sobre sua eficácia. Mas isso é irrelevante, comparado ao feito dos três últimos capítulos do livro. Nessa seção, é-nos oferecida uma das críticas mais incisivas que já li sobre os estudos experimentais aleatórios, que são o modelo de referência das pesquisas baseadas em evidências. Ao descrever os estudos comparativos usados pelas equipes do Keropudas, os autores delineiam o projeto “naturalista” da pesquisa, em contraste com o modelo de variável única exigido pelas pesquisas experimentais. Os resultados dessa pesquisa naturalista, feita no campo, e não em laboratório, oferecem todo um novo quadro de referência para avaliar a assistência psicossocial. Por exemplo, na Finlândia, as normas da melhor prática basearam-se numa metanálise derivada de levantamentos de estudos baseados em evidências. Esse protocolo sustenta que os pacientes precisam de medicamentos neurolépticos desde o início do tratamento. No entanto, os estudos dos DAb mostraram resultados melhores entre os pacientes que não receberam medicação neuroléptica, ou a receberam mais tarde. Ao que parece, as indicações de tratamento respaldadas pelo estudodos DAb foram quase o inverso das defendidas pelas Normas da Associação Finlandesa de Psiquiatria. O que me agradou particularmente na leitura deste livro foi que, tanto nos Diálogos Abertos quanto nos Diálogos Antecipatórios, somos apresentados a elementos importantes da teoria dialógica de Bakhtin, junto com novas ideias sobre redes que conversam com redes. As duas abordagens, a meu ver, têm uma dívida enorme para com o processo reflexivo de Tom Andersen e, vistas numa escala maior, fazem parte da visão anderseniana de uma “Rede Nortista” – projeto que vem apresentando o diálogo aberto a equipes de casos agudos em hospitais de toda a orla da Europa Setentrional.13 Numa escala menor, este livro me dá a impressão de ser um toque de alvorada, não apenas por anunciar a conquista de uma abordagem mais contextualizada dos dilemas humanos, mas também por oferecer algumas provas sólidas de sua eficácia. Havendo acompanhado o desenrolar dessa evolução ao longo de quarenta anos, hão de me perdoar por dizer que agora vou fazer uma pausa para usufruí-lo. LYNN HOFFMAN Assistente social, terapeuta de família, autora e historiadora da terapia de família, foi editora de Family Process e Journal of Marital & Family Therapy e atuou por muitos anos no Ackerman Institute for the Family, em Nova York, e no Smith College School of Social Work, em Massachusetts A nossos leitores brasileiros É um grande prazer e motivo de profunda gratidão termos a oportunidade de disponibilizar nosso livro Reuniões Dialógicas de Redes Sociais para o público brasileiro. Já faz cerca de 15 anos que o livro veio à luz, mas havia, além disso, vários anos de experimentos e pesquisas em que estivéramos envolvidos antes de sua publicação. Não fazíamos ideia de que o livro chegaria ao vasto público internacional a que chegou. Ele e o livro que o seguiu em 2014, Diálogos Abertos e Expectativas, foram publicados, juntos, em 15 línguas diferentes, sendo esta edição em português a décima sexta. O interesse mundial por livros sobre práticas dialógicas é uma poderosa afirmação da necessidade compartilhada de profundas mudanças nos serviços e na cultura. Estamos e estivemos engajados em diferentes projetos de desenvolvimento em mais de vinte países – bem como em cursos de formação, seminários e conferências. A mudança está caminhando e nós nos sentimos gratos por fazermos parte dela. É ótimo ter a oportunidade de dar boasvindas aos brasileiros e à comunidade mais ampla de língua portuguesa, com suas experiências importantes para esse desenvolvimento contínuo. As experiências internacionais da Europa, Ásia, Américas do Norte e do Sul, Austrália e Nova Zelândia nos fazem aprender lições valiosas. Como assinalam os antropólogos, é praticamente impossível compreendermos uma cultura que não seja a nossa, mas, ao encontrarmos uma cultura estrangeira, podemos aprender muito sobre aquela em que estamos inseridos. Em 2004, ao escrever este livro, tínhamos uma vaga percepção de que nossas experiências nórdicas eram meio excepcionais no contexto internacional mais amplo, com o Estado de bem-estar e seu baixo limiar de serviços públicos. Mas não tardaríamos a compreender quão fora do comum era o nosso “normal”. Como o título do livro sugere e os leitores brasileiros notarão, descrevemos práticas orientadas para redes, tentativas de juntar os recursos que as pessoas possuem em suas redes particulares da vida cotidiana e a ajuda profissional. As redes privadas e profissionais são muito diferentes, é claro, nos diferentes países e contextos. É possível haver redes privadas intensas e menos ênfase nos serviços profissionais ou no acesso a eles, de um lado, e laços comunitários menos enfatizados e envolvimento profissional mais intenso, por outro – ou qualquer combinação entre esses dados. Contudo, há nas diferenças um núcleo comum, que é a necessidade de as pessoas se fazerem ouvir e de terem voz. Ficamos admirados, por um lado, ao ver como são semelhantes as dificuldades que reivindicam uma franqueza maior, e como a dialogicidade é bem-sucedida em matéria de superar essas dificuldades, até nas situações mais graves, como as crises agudas de psicose. As experiências nos levaram a considerar que a dialogicidade, como forma de estar entre as pessoas, é uma ideia geral, e não específica de uma dada cultura. Esta ideia de um núcleo comum dentro das diferenças culturais talvez seja nossa principal conclusão de todos os projetos de que participamos, durante os anos consecutivos à publicação original do livro. No Brasil, se nos reunirmos com uma família em crise aguda, ela falará de sua vida dentro dessa cultura, com as coisas específicas que acontecem em seu cotidiano. Esses problemas concretos poderão ser diferentes dos enfrentados pelas pessoas em outros contextos, mas é surpreendente ver como são semelhantes as experiências psicóticas, as emoções, o pavor e os mal-entendidos – e como é semelhante a necessidade de que eles sejam ouvidos e escutados. Esse núcleo comum possibilita atravessar as fronteiras específicas dos vários contextos e compartilhar experiências em práticas dialógicas nas diversas culturas. Mas serão duradouras as tentativas de desenvolver práticas dialógicas? Há sempre a questão crucial da sustentabilidade. Muitos projetos começam com entusiasmo, porém vão definhando, mais cedo ou mais tarde. Nossas experiências dão margem ao otimismo – porém reconhecendo que o caminho é sinuoso e acidentado. Jaakko e seus colegas começaram a buscar as redes e a abrir as reuniões psiquiátricas nos anos 1980 e, passadas três décadas, o trabalho continua em andamento. Os resultados terapêuticos são notáveis. Inúmeros profissionais introduziram a abordagem dialógica e os cidadãos da região que fazem tratamento dialógico são a norma. Na Lapônia Ocidental, o desenvolvimento obtido com a prática dos Diálogos Abertos foi documentado em vários estudos, apenas alguns dos quais estavam disponíveis na época em que o livro foi redigido. Dentre os mais famosos estão os estudos de acompanhamento de pessoas que buscaram ajuda no primeiro surto psicótico nos períodos de 1992-1993, 1994-1997 e 2003-2005. Há relatórios disponíveis sobre os resultados das sequências de dois anos de todas essas coortes (Seikkula, Alakare & Aaltonen, 2011), bem como sobre os resultados das duas primeiras coortes após cinco anos (Seikkula et al., 2006). Os resultados foram coerentes em todos os estudos, mostrando que apenas cerca de um terço dos pacientes precisou de medicação antipsicótica durante os primeiros dois anos, e que 84% a 91% deles puderam voltar ao pleno emprego, à busca ativa de trabalho ou a estudos em horário integral. Foram resultados realmente excepcionais, tanto por ter sido muito pequena a necessidade de medicação permanente quanto porque se alcançou uma recuperação quase completa do emprego. Os resultados notáveis dos Diálogos Abertos despertaram curiosidade na comunidade psiquiátrica e, como o leitor pode imaginar, despertaram também a descrença entre segmentos mais conservadores da psiquiatria acadêmica. Para nos certificarmos dos efeitos dos Diálogos Abertos a longo prazo, conduzimos uma pesquisa em que combinamos as informações de todas as três coortes citadas acima (DAb, n = 108), tratadas na Lapônia Ocidental, e as comparamos com os resultados do Tratamento de Praxe (TDP, n = 1.743) no resto da Finlândia (Bergström et al., 2018). O período aproximado de acompanhamento durou 19 anos e usamos as estatísticas dos serviços nacionais de saúde da Finlândia para comparar os dois grupos (Tabela 1). Tabela 1 – Tratamento psiquiátrico e pensões por invalidez em 2015, aproximadamente 19 anos após o início do tratamento DAb (N = 108) TDP (N = 1.763) Teste do qui- quadrado (%) (%) x2 p 30 ou mais dias de internação na instauração do surto 18,5 46,8 32,4 .000 Neurolépticos iniciados na instauração do surto 16,7 75,5 389,7 .000 Internação por mais de 30 dias 18,5 94,4 32,4 .000 Contato de tratamento após 19 anos 27,8 49,2 16,7 .000 Neurolépticos após 19 anos36,1 81,1 110,4 .000 Pensão por invalidez após 19 33 61 28 .000 anos A Tabela 1 apresenta apenas as variáveis principais, nas quais foram observadas diferenças significativas. Os resultados e diferenças do tratamento de praxe mantiveram-se na mesma linha ao longo de todos os anos do processo, embora não tivesse havido controle do tratamento possível nas crises futuras, depois da instauração. Por si só, isso já é surpreendente, uma vez que as diferenças dos resultados tendem a declinar ou desaparecer com o tempo, em virtude da multiplicidade de variáveis que interferem no decorrer da vida. A dialogicidade parece fazer uma diferença que chega a durar vinte anos. Do ponto de vista do projeto da pesquisa, gostaríamos de enfatizar a importância dos moldes naturalistas. As observações frisam como é importante poder projetar pesquisas que acompanhem a lógica da vida, em vez de forçar a vida a se enquadrar nos ambientes de pesquisa. Os resultados terapêuticos revelaram-se estáveis durante o curso do tratamento e também nos processos da vida, mesmo depois de encerrado o tratamento. Uma questão que esses resultados também levantam é a da ênfase acentuada na medicação como base do tratamento da psicose na terapêutica psiquiátrica. Os Diálogos Abertos concentram-se num trabalho intensivo com a família, em reuniões dialógicas abertas, a fim de buscar novos sentidos na vida. Cremos que a avaliação da nova prática e das pesquisas deve ser sempre incluída nos projetos de desenvolvimento. Desse modo, os próprios desenvolvedores têm poder sobre as informações de bons resultados, sobre as falhas a serem corrigidas e sobre as conclusões a serem extraídas, a fim de aprimorar cada abordagem. Os últimos capítulos deste livro apontam algumas dimensões cruciais das pesquisas apropriadas aos diálogos, e esperamos que eles incentivem os colegas brasileiros a se juntarem a nós com suas valiosas contribuições. A geração de conhecimentos válidos sobre a prática de cada um é vital e, neste ponto, é importante perceber a necessidade de alternativas melhores do que os ensaios clínicos experimentais controlados. Tais ensaios têm lá seu lugar, mas também requerem tentativas de examinar apenas uma variável influenciadora de cada vez, como se estivéssemos num laboratório. A vida que tem as pessoas por centro, no entanto, não é um laboratório, e sim uma rica combinação multidimensional de fatores pessoais e sociais. O desafio, para a pesquisa, é permitir e tolerar essa riqueza e tirar conclusões relacionadas com o contexto de vida, e não com um ambiente de laboratório. Há necessidade de combinações flexíveis de meios e métodos. As práticas em desenvolvimento sempre são, ao mesmo tempo, experimentos sociais – e refletir sobre elas como tais ajuda a descobrir caminhos para seguir adiante. Quando se procura alterar alguma coisa, gera- se uma perturbação maior ou menor das praxes vigentes. Os sistemas que sofrem essa perturbação tentam recuperar o equilíbrio – e sua maneira de fazê-lo diz muito sobre os elementos constitutivos importantes do sistema. A abordagem dialógica tende a ser algo diferente das rotinas de praxe na saúde, na assistência social, na educação e em outros serviços e práticas relacionais. Quando ela é estranha demais, quando difere demais da corrente dominante, os processos da corrente dominante tentam livrar-se da perturbação inoportuna, de um modo ou de outro – e o “de um modo ou de outro” revela muito sobre como o contexto se estrutura e se mantém. Por um lado, quando a abordagem introduzida se parece muito com as práticas usuais, não há mudanças significativas. Então, o que é o “apropriadamente diferente”, nos contextos brasileiros? É o que precisará ser visto – através de experimentos sociais! E, com os experimentos, acumula-se um material importante para que os colegas reflitam juntos – ajudando terapeutas, equipes e grupos a se tornarem ainda mais hábeis para lidar com o contexto. Assim, as abordagens dialógicas podem ser “perturbações positivas” na experimentação social, e as equipes e comunidades que as puserem em prática aprenderão muito sobre a “normalidade” dos sistemas “normais” e encontrarão maneiras coletivamente flexíveis de avançar. Nos anos 1980, Tom e seus colegas passaram a desenvolver uma abordagem para ajudar sistemas multiprofissionais a descobrirem saídas dos impasses em que se metiam ao lidar com os clientes e suas famílias à sua maneira fragmentada de compartimentalizar os problemas e tratá-los separadamente. Pôr as redes profissionais para dialogar com as redes privadas das pessoas foi a chave da questão, e as práticas dos Diálogos Antecipatórios estão em pleno vigor na década de 2020. Quando lhe perguntaram se a cultura dos serviços dialógicos se sustentaria, um membro da administração desta cidade finlandesa disse que seriam necessárias fortes decisões administrativas para tentar inverter a maré. Não é fácil gerar diálogos entre redes na terra de ninguém que permeia os campos da saúde, da educação e da assistência social e outros campos relacionais, mas as experiências do contexto finlandês são promissoras. Processos ocorridos em outros lugares da Europa, e também noutros continentes, apontam na mesma direção. A experiência internacional nos torna otimistas. As abordagens dialógicas, como os Diálogos Abertos e os Diálogos Antecipatórios, realmente podem atrair interesse e apoio suficientes para dar a partida. E, quanto mais as pessoas experimentarem os diálogos, menos quererão retornar a práticas não dialógicas. Esperamos que este livro seja útil e constitua uma inspiração para gerar a dialogicidade nas práticas sanitárias, sociais, educacionais e em outras práticas relacionais no Brasil, unindo os recursos das redes privadas das pessoas e das redes profissionais. JAAKKO SEIKKULA E TOM ERIK ARNKIL Assunção e Helsinque, 30 de outubro de 2019 Referências Bergström, T. et al. (2018). The family-oriented open dialogue approach in the treatment of first-episode psychosis: Nineteen-year outcomes. Psychiatry Research, 270: 168-175. Seikkula, J., Alakare, B. & Aaltonen, J. (2011). The comprehensive open- dialogue approach in Western Lapland: II. Long-term stability of acute psychosis outcomes in advanced community care. Psychosis, 3(3): 192-204. Seikkula, J. et al. (2006). Five-year experience of first-episode nonaffective psychosis in open-dialogue approach: Treatment principles, follow-up outcomes, and two case studies. Psychotherapy Research, 16: 214-228. Apresentação Convidamos profissionais dos campos psicossociais – terapeutas, assistentes sociais, professores, orientadores e assim por diante – para diálogos em rede, isto é, diálogos entre as redes pessoais dos clientes e as redes de profissionais. Por que haveriam esses de se interessar? Porque há recursos surpreendentes e inesperados que é possível encontrar quando se pensa junto. “Redes” e “diálogos” são, ambos, lemas populares. Sabemos estar correndo um risco. A palavra rede é usada para designar tamanha variedade de fenômenos – desde as redes ferroviárias, passando por redes sociais e redes neurológicas, até a “sociedade das redes” – que o conceito se aproxima de perder seu significado. Nas profissões psicossociais, existem outras razões para sermos reservados ou céticos ao ouvirmos alguém falar, extasiado, sobre redes e estabelecimento de contatos interligados. Em nosso país, a Finlândia, é difícil haver profissionais do campo psicossocial que não tenham comparecido a “reuniões para estabelecer contatos”. Quase qualquer reunião, com ou sem clientes, é chamada de reunião em rede. Muitos desses encontros revelam-se repetições infrutíferas de padrões de interação já experimentados há muito tempo, e quanto mais complexa é a questão e mais preocupante a situação, maior a probabilidade de que esses “encontros de redes” se revelem tentativas escancaradas ou disfarçadas de controlar os outros. Muitos dizem, o que não é de admirar, que “já passei por isso, não tenho interesse”. Alguns talvez se lembrem do já esfriado entusiasmocom as terapias em rede. Na década de 1970, o trabalho de Ross Speck e Carolyn Attneave inspirou muita gente nas profissões psicossociais. Mais para o final da década, o apetite diminuiu. Na Escandinávia e na Finlândia, a ideia continuou a ganhar impulso durante algum tempo, até que começou a perder força, também nesta região. O trabalho inicial com redes sociais despertou grande entusiasmo, mas logo vieram à tona as dificuldades de adoção dessa nova ideia nos repertórios de recursos da assistência psicossocial. Sem uma base organizacional específica no sistema profissional multissetorizado, a nova abordagem ficou efetivamente sem teto. Outro risco é introduzir o conceito de diálogos. Para começar, o conceito de diálogo é usado para denotar quase qualquer forma de conversa entre pessoas. Tornou-se um slogan na literatura de referência das organizações, nas normas administrativas, nos panfletos políticos e coisas similares. Embora possa haver um terreno comum de interpretação sobre os diálogos, a proliferação também levou à imprecisão. Além disso, no tocante aos possíveis públicos deste livro, a ideia de diálogo não é inteiramente nova na psicoterapia nem na assistência psicossocial em geral. Pode-se argumentar, justificadamente, que dialogar está no cerne – se é que não constitui o cerne – de todo trabalho que visa ao empoderamento. Por um lado, as ideias que apresentamos decorrem da longa tradição de dialogar. Por outro, também situam os diálogos num novo contexto – nas terras de ninguém dos múltiplos participantes, e não nos tradicionais espaços individuais da psicoterapia, nos contextos de equipes de família da terapia familiar. Um encontro entre as redes pessoais do cliente e as redes profissionais associadas, numa situação preocupante, requer elevada tolerância à incerteza. Em tais situações, dialogar é de especial importância e, ao mesmo tempo, fica particularmente em risco. É tentador recorrer a um meio de controlar situações que seja profissional e centrado no especialista, mas isto deve ser evitado, para que o pensar junto entre plenamente em ação. As abordagens que apresentamos não apareceram mediante a simples fusão entre métodos profissionais orientados para o diálogo e situações com diversos participantes. Tampouco são uma modificação da terapia em rede. É claro que nós combinamos ideias provenientes de numerosas fontes e delas nos beneficiamos, inventando e experimentando novas formas – e, acima de tudo, procuramos escutar atentamente a resposta que nos dá o contexto. Nosso trabalho pedia um fluxo de mão dupla entre a prática e a teoria: modificamos nossa atividade e analisamos as experiências. Na verdade, este livro é um resumo de cerca de vinte anos de pesquisa e desenvolvimento. O propósito deste livro é demonstrar como – na nossa experiência – os recursos das redes sociais podem ser bem utilizados para aliviar problemas psicossociais e analisar as dimensões nucleares dessa prática de interligação de redes. Nós, os autores, chegamos a este trabalho por vias diferentes e nos surpreendemos ao notar as semelhanças dos dilemas com que deparamos na prática e ao ver como eram parecidas as nossas conclusões sobre os elementos essenciais das práticas válidas. Como era natural, começamos a considerar a ideia de analisar e relatar juntos as nossas experiências. Uma vez que estas consistiam em desenvolver um trabalho orientado para as redes, é óbvio que havia mais do que duas pessoas por trás das ideias. Tivemos a sorte, cada um em seu contexto, de ser membros de equipes inovadoras e de participar de uma rede inspirada de terapeutas e pesquisadores. Jaakko teve um começo afortunado como psicólogo no pequeno hospital psiquiátrico Keropudas, em Tornio, uma cidadezinha da Lapônia finlandesa. Ser membro da equipe, no período de 1981 a 1998, proporcionou-lhe uma experiência abundante no reconhecimento dos recursos que as famílias tinham em seu interior e em suas outras relações, mesmo nas crises psiquiátricas mais graves, como psicoses e esquizofrenias. A equipe desenvolveu suas práticas por meio da colaboração. Nenhum indivíduo dominava os demais e cada um podia contribuir na busca de novas abordagens. Por volta de 1988, Jaakko começou a fazer uma análise sistemática da prática coletiva recém-surgida e a escrever relatórios de pesquisa sobre essa realização conjunta. Por isso, está presente nas páginas deste livro a equipe inteira daquele sistema psiquiátrico. Queremos agradecer a todos eles, sem esquecer ninguém. Enquanto Jaakko desenvolvia práticas como integrante de uma equipe que exercia essas práticas, Tom aproximou-se de suas várias equipes vindas “de fora”. Teve a oportunidade de estabelecer contato com diversas comunidades inovadoras da prática, primeiro com equipes de assistentes sociais em serviços de bem-estar social, depois com equipes da psiquiatria do adolescente, em seguida com toda a rede de profissionais psicossociais de dois municípios e, mais adiante, por meio de projetos com redes regionais multidisciplinares. A essência que permeava todos os projetos consistia na união para o desenvolvimento conjunto de abordagens multiprofissionais de um trabalho orientado para o empoderamento, a fim de promover uma boa cooperação entre as famílias e suas redes pessoais. Assim, as contribuições de Tom também incluem muitas vozes, e queremos agradecer a todos esses codesenvolvedores, sem exceção. Tom gostaria de mencionar nominalmente seus parceiros mais íntimos de pesquisa, Esa Eriksson e Robert Arnkil (que é também seu irmão). A redação deste livro foi possibilitada em 2003-2004, quando Jaakko tirou uma licença de seu cargo na universidade e se empregou no Centro Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento para o Bem-Estar Social e a Saúde (STAKES, na sigla em finlandês), onde Tom também trabalha. A grande oportunidade de trabalharem juntos por 18 meses permitiu que este livro se tornasse realidade. Somos gratos pela oportunidade que nos foi dada pelo STAKES e queremos agradecer, em especial, à gerente de divisão Sirpa Taskinen, por seu apoio e suas sábias decisões. Por último, mas não menos importante, queremos agradecer a Mark Phillips, que fez um esplêndido trabalho como nosso consultor linguístico no STAKES. JAKKO SEIKKULA E TOM ERIK ARNKIL Helsinque e Jyväskylä, maio de 2006 Introdução Sobre redes e diálogos As pessoas vivem em relações sociais, mesmo quando os profissionais as abordam individualmente. Quando o profissional e o cliente têm um encontro individual, a rede pessoal do cliente já constitui um público desse procedimento, assim como a rede profissional. As redes particulares e profissionais são dimensões das redes sociais. De maneiras variáveis, os indivíduos têm acesso a relações em que mantêm sua identidade social e nas quais recebem apoio espiritual e material, bem como informações, e formam novas relações. Quando perguntamos ao cliente pelas pessoas que lhe são próximas, essas pessoas entram na conversa, por meio dos diálogos internos do cliente – e os ecos de suas vozes se fazem presentes, mesmo quando não perguntamos. Cada pergunta e cada comentário acrescentam vozes a esses diálogos. Fazer perguntas e tecer comentários sobre aqueles que são importantes na vida do cliente constituem um trabalho orientado para as relações, mesmo que não haja intenção de uma orientação para redes. Nosso modo de falar surte efeitos nos diálogos internos do(da) cliente e nos diálogos que se seguem entre ele(a) e os que lhe são próximos. O cliente também introduz na conversa os profissionais com quem já esteve em contato. Ao comentarmos as palavras do cliente ou formularmos perguntas sobre sua situação, também falamos, na verdade, com o restante da rede profissional. A princípio, o cliente pode ser um intermediário, no sentido de que compara o que dizemos com o que foi dito por terceiros. Os outros profissionais também se fazem presentes como vozes em nossos diálogos internos e ecoam nossas experiências com eles. Portanto, estamos numa rede de relações, mesmo quando háapenas duas pessoas presentes. Estamos sempre estabelecendo essas relações, à medida que as vozes dos outros ecoam em nossas conversas. Neste livro, descrevemos o trabalho feito quando essas pessoas são efetivamente convidadas para os diálogos. O trabalho profissional se dá em relação ao que outros prestadores de assistência fazem ou fizeram com o cliente. Nas sociedades modernas, as pessoas têm ligações com órgãos, serviços e instituições, no nascimento, na primeira infância, na infância, na idade escolar, na adolescência e na fase de adultos jovens, como provedores, na meia-idade e como cidadãos idosos. É simplesmente impossível encontrar uma pessoa que tenha surgido no mundo e viva inteiramente fora de uma rede pessoal de relações, ou nunca tenha estado em contato com sistemas profissionais. Do mesmo modo, as redes profissionais fazem parte do cenário em todos os seus atos. Nossas medidas profissionais estão ligadas às medidas dos outros. Podem complementar-se ou se combinar mal. Especialmente quando o problema não está claro, pode haver diversos profissionais de vários serviços trabalhando com o cliente ou com a família. No trabalho psicossocial, as situações com múltiplos prestadores de assistência constituem mais a regra do que a exceção. Quando vemos as redes sociais como vínculos que permitem o acesso à ajuda e ao apoio, à informação e a novas relações pessoais, todos os profissionais do trabalho psicossocial já estão funcionando em rede. Nesse sentido, é impossível não fazer um trabalho baseado em redes. A pergunta não é se vamos fazê-lo, mas como fazê-lo. O trabalho que cruza fronteiras profissionais nas situações inquietantes está longe de ser simples. As redes podem “travar”, ou o trabalho pode produzir resultados que ninguém pretendia. Entretanto, apesar da complexidade desse trabalho transfronteiriço, presta-se pouquíssima atenção a ele no desenvolvimento de práticas sistemáticas. A colaboração multilateral é vista, ao contrário, como algo que ocorre espontaneamente. Em comparação com a variedade de métodos, abordagens e formações para indivíduos e para trabalhos em equipe, não há muito material disponível em termos de preparar os profissionais para situações com múltiplas partes interessadas. Neste livro são enfocados encontros entre redes pessoais e profissionais no trabalho psicossocial e é discutido como esses encontros puderam se tornar dialógicos. O trabalho em redes tem sido um tema na terapia e na assistência social há pelo menos três décadas. As abordagens dialógicas foram desenvolvidas em vários ramos da terapia individual e de grupo, da educação e da orientação. Entretanto, os diálogos entre redes não têm sido discutidos com a mesma amplitude. Pelo menos, até hoje não foram analisados e relatados. Quando vários atores se encontram para discutir e tratar uma situação perturbadora, é difícil para uma única pessoa controlar a situação. Numa situação preocupante, não é fácil aguentar a incerteza e a falta de controle. A tentação do discurso monológico – centrado nas ideias e atos de terceiros – é particularmente grande nessas circunstâncias. Mikhail Bakhtin (1981) assinalou que o discurso competente é finito e exige que o reconheçamos, que façamos dele nosso discurso. O diálogo, em contraste, é aberto. Os sentidos são gerados e transformados de uma resposta a outra. Quanto mais vozes são incorporadas num diálogo polifônico, mais ricas são as possibilidades de que emerja a compreensão. O diálogo é um modo de pensar junto, no qual a compreensão se forma entre os participantes como algo que ultrapassa as possibilidades de uma única pessoa. Para alcançar isso, os participantes precisam voltar-se para as respostas, ouvir e ser ouvidos. Em termos superficiais, as condições dos processos dialógicos não são as mais favoráveis quando ocorre uma crise, quando as preocupações se tornam enormes, quando as redes de múltiplos participantes travam, os clientes ficam insatisfeitos, os parentes se preocupam e os profissionais culpam uns aos outros. Em nossa experiência, contudo, é exatamente nessas situações que os diálogos são necessários e é nelas que exibem suas maiores forças. Nos capítulos que se seguem, discutiremos as precondições dos encontros dialógicos em situações de rede e levantaremos as dimensões essenciais do dialogismo. No trabalho psicossocial, integrar redes significa atravessar fronteiras As redes são um tema da psicoterapia e da assistência social desde a década de 1970. Desenvolveu-se uma variedade de práticas orientadas para elas. A “interligação de redes” também se tornou um slogan de outras áreas do trabalho psicossocial, como a educação, o aconselhamento, a reabilitação e assim por diante. A metáfora da rede é usada numa ampla variedade de campos diferentes, que vão desde o ramo global dos negócios até a tecnologia de informática, dos transportes até os neurônios, e das relações pessoais até o capital social. Manuel Castells (1996) diz que vivemos numa “sociedade em rede”. De acordo com Bruno Latour (1996), há algumas propriedades simples que são comuns a todas as redes. A palavra-chave é conectividade. As redes podem transformar-se de mal conectadas a altamente conectadas, e viceversa. Andrew Barry (2001) assinala que o conceito de rede não é usado meramente para representar algo “que existe”. Esse conceito fornece uma base para a realidade reimaginada e remoldada. Pensar em termos de redes permite a atividade de planejamento em termos de redes. John Barnes (1954) pode ser chamado, com toda justiça, de inventor do conceito de rede social. Ele estudou um vilarejo norueguês e percebeu que poderia seguir as ligações sociais que se entrecruzavam nas classes sociais, nos limites familiares etc., se as encarasse como fibras dotadas de nós que criavam redes sociais. Rose Speck e Carolyn Attneave (1973) foram pioneiras na interligação de redes no campo do trabalho psicossocial. Desenvolveram um conjunto de métodos chamados de “terapia em rede”, para combinar os recursos das redes sociais. Nem sempre as redes são iguais. As redes particulares ou pessoais dos cidadãos – isto é, a família, a família extensa, a comunidade próxima, a comunidade do trabalho etc. – podem modificar-se. John Barnes (1972) achava que sua criação – o conceito de rede social – desapareceria, como conceitos anteriores que estiveram em voga, mas até hoje isso não aconteceu. O conceito é suficientemente preciso para fazer os olhos se voltarem para as ligações e suficientemente vago para não definir essas ligações. A família está em processo de transformação, e o significado exato desse conceito não é inequívoco. O sentido de família não é o mesmo em todas as culturas e se modificou ao longo do tempo. A importância da família extensa ou do parentesco nas comunidades locais, para o indivíduo, também vem mudando, e o mesmo acontece com as relações na comunidade de trabalho. Em geral, as fontes do apoio e do controle sociais vêm se transformando. Os indivíduos gozam de uma liberdade sem precedentes, em termos do controle tradicional – mas, ao mesmo tempo, estão mais afastados que nunca do apoio tradicional. Em meio a tudo isso, porém, o conceito de rede social continua vivo e firme. A imprecisão da definição pode significar que ela é capaz de sobreviver às transições da sociedade. Ao mesmo tempo, hoje as redes sociais não são exatamente o que eram na década de 1950, por exemplo, numa aldeia norueguesa de pescadores. Mesmo no processo recente ou pós-moderno de individualização – nas relações mutáveis entre o indivíduo e a sociedade –, faz sentido acompanhar o trajeto das fibras das relações e descobrir recursos nessas relações. Uma dimensão das redes sociais que passou por transformação fundamental foi a da assistência profissional. Nos anos 1950, não havia nada semelhante à profunda especialização vertical, ao sistema setorizado de profissionais psicossociais que existe nas sociedades da modernidade tardia. Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade de proporcionar saúde,educação, assistência social e outros serviços em larga escala. A assistência sanitária, a educação etc., moldadas para o indivíduo, foram substituídas por um tipo de organização e trabalho de produção em massa, com um aprofundamento vertical da especialização. Surgiu um compartimentado “sistema de silos” com fronteiras demarcando áreas de atividade e profissões, tendo cada setor os seus arranjos de administração e orçamento e havendo muito menos estruturas horizontais. Essas demarcações também levaram à necessidade de cruzar fronteiras, ou de “trabalhar em redes flexíveis” (ver Castells, 1996), e à necessidade de observar os resultados do todo, e não apenas os de cada compartimento do silo. O contexto mais amplo dos diálogos de redes é o encontro entre a vida real dos cidadãos e o sistema profissional compartimentalizado. A organização setorial procura lidar com os problemas de individualização da modernidade tardia. Como é possível transpor fronteiras – dentro do sistema profissional e em direção aos clientes e suas redes pessoais – de um modo que combine os recursos? Quando tudo corre bem, o sistema multiprofissional abrange partes complementares bem encaixadas. Os profissionais sabem com quem entrar em contato quando precisam de especialização suplementar. Quando as coisas correm mal, há insegurança quanto às responsabilidades, negociações intermináveis, muitas idas e vindas, tentativas de uns dizerem aos outros o que devem fazer e, enquanto isso, aqueles que buscam ajuda sempre ficam em pior situação. Se tudo corre bem, o sistema dá aos cidadãos ajuda e orientação especializadas. Quando corre mal, ele não escuta o cliente, define as pessoas de modos que lhes são estranhos, toma providências que não combinam com a situação de vida dos clientes, ou os joga em direções opostas. Atravessar as fronteiras é necessário dentro do sistema profissional e entre profissionais e não profissionais. Essas dimensões se fundem. Quando a rede pessoal do paciente é convidada a participar do tratamento, essas pessoas não são convidadas para ser tratadas, mas para dar ajuda e apoio. Suas vozes são necessárias para formar uma compreensão mútua sobre a natureza confusa da questão. É difícil estabelecer uma distinção absoluta entre o especialista e o “leigo” nessas situações. É escusado dizer que o médico continua a ser médico, o psicólogo, a ser psicólogo, e o assistente social, a ser assistente social. Seu conhecimento especializado não evapora por causa da travessia das fronteiras. Entretanto, nos diálogos, o tratamento não se apoia unicamente neles. Na verdade, a rede pessoal – os “leigos” – contribui para seus recursos. A crise psíquica, ou outras situações preocupantes como essa, não afetam apenas o cliente; afetam também as pessoas que lhe são próximas. Num diálogo recíproco, é possível chegar a uma compreensão que nenhuma das partes, isoladamente, poderia alcançar ou atingir. Como resultado, a rede pessoal do paciente torna-se um recurso no tratamento e uma criadora conjunta do processo. Quando as redes se encontram, pode emergir um saber especializado comum às partes.1 Essa expertise ultrapassa a capacidade de qualquer ator isolado. Fizemos um trabalho de pesquisa e desenvolvimento de diálogos de redes durante cerca de duas décadas, Jaakko trabalhando na assistência psiquiátrica, Tom estudando o trabalho multiprofissional feito com crianças, adolescentes e famílias em assuntos relacionados com a assistência social. Neste livro, descrevemos e analisamos os Diálogos Abertos – abordagem desenvolvida por Jaakko e seus colaboradores – e os Diálogos Antecipatórios – abordagem desenvolvida por Tom e seus colaboradores. Estamos cientes de que há várias outras abordagens dialógicas e de que outras vêm sendo desenvolvidas o tempo todo. Usamos nossas experiências como material para reflexões mais gerais sobre as dimensões do dialogismo. Como o dialogismo não se manifesta “em geral” ou fora da atividade real, queremos descrever cuidadosamente as práticas que formam a base de nossas conclusões. Presumimos que o diálogo tem muito a oferecer a outras práticas que não aquelas de que falamos, porém se o faz e de que maneira é uma decisão que compete aos que trabalham nesses contextos e os conhecem por dentro. Este livro apresenta métodos e técnicas, mas não é um manual de instruções. Abordamos o dialogismo como um modo de pensar e agir que pode ser enriquecido por toda sorte de métodos que promovam a escuta e o pensar em conjunto. Na última parte do livro, discutimos as pesquisas – como avaliar os efeitos dos diálogos em rede e como utilizar os resultados dessas pesquisas para desenvolver mais o trabalho. Estrutura e conteúdo do livro Parte I Na primeira das três partes em que se divide o volume, começamos por relatar nossas surpresas: os rumos inesperados que seguimos em resposta a impasses teóricos e práticos. Não chegamos às práticas dialógicas seguindo um planejamento. Jaakko desenvolveu práticas como integrante de uma equipe de um hospital psiquiátrico. Enquanto isso, Tom desenvolvia práticas em colaboração com diferentes equipes. Foi quase sempre a prática que conduziu os trabalhos, ao passo que a teoria comumente orientou o olhar. No capítulo 1, descrevemos sucintamente os caminhos que levaram aos Diálogos Abertos e Antecipatórios. Não se tratou de caminhos diretos. Cremos que mostrar as reviravoltas explica melhor a ideia do que apresentar uma imagem burilada das inovações, como se elas tivessem surgido completas, prontas para serem implementadas. Discutimos no capítulo 2 os fatores que podem fazer com que as reuniões de redes resultem em um completo fiasco. Nossa suposição é que, como nós, muitos tenham experimentado as rivalidades que acontecem em reuniões multilaterais – como saber quem tem competência para definir o assunto, digamos –, ou as tentativas de definir o problema como algo comum a todas as partes, como quem falasse em uma perspectiva panorâmica. Ou, similarmente, muitos devem ter tido experiência com participantes que acolheram calorosamente a cooperação, mas, ao mesmo tempo, procuraram assegurar-se de não se envolver, ou vivido a experiência de as interações numa reunião entre profissionais se assemelharem estranhamente aos padrões interativos encontrados pelos participantes no trabalho com clientes. Como evitar as armadilhas dos processos com muitas partes interessadas? Este é um tema central do presente livro. Parte II As normas dos Diálogos Abertos, que são sucintamente apresentadas na Parte II, foram criadas com base em análise das características essenciais no tratamento psiquiátrico centrado em redes bem-sucedido. Não foram traçadas de antemão como regras a serem seguidas. Os Diálogos Abertos são um modo de organizar o tratamento e um modo especial de discutir os assuntos quando as redes se reúnem. As experiências resumidas nessas diretrizes foram colhidas durante muitos anos do trabalho de elaboração, auxiliado desde o início por pesquisas feitas na Lapônia Ocidental, na Finlândia. Assim, o capítulo 3 oferece um relato de como o tratamento psiquiátrico centrado em redes pode ser organizado como um todo. No capítulo 4, descrevemos os Diálogos Antecipatórios, que foram desenvolvidos, em primeiro lugar, no contexto do trabalho multiprofissional com crianças, adolescentes e famílias. Eles são um modo de trazer para o centro das atenções a vida cotidiana da criança/adolescente/família e de planejar a cooperação, tendo essa vida cotidiana por eixo central. Desenvolveu-se um método especial de “evocar o futuro”, para criar uma compreensão expressa por muitos em situações carregadas de preocupação. No capítulo 5 apresentamos uma comparação entre os Diálogos Abertos e os Antecipatórios. Também nos distanciamos um pouco deles, por algum tempo, para discutir dimensões mais gerais do dialogismo. Entretanto, visto que nossas experiências se ligam sobretudo a essas práticas, nós as usamos como material de nossas reflexões. No capítulo 6, voltamos os olhos para a teoria, discutindo odialogismo mediante a avaliação, antes de mais nada, dos conceitos de Mikhail Bakhtin. Tentamos descobrir o que há nos diálogos que traz cura e ajuda. Parte III A terceira e última parte do livro versa sobre os estudos concernentes à eficácia e às possibilidades de transferência ou generalização das boas práticas. No capítulo 7, usando os Diálogos Abertos como material, perguntamos se é possível distinguir entre os processos dialógicos que deram bons resultados e aqueles que não os produziram. Parece que existem diálogos e diálogos, o que ilustra diferenças nas práticas com Diálogos Abertos. Investigamos se as pesquisas podem ajudar a detectar fatores que favoreçam o desenvolvimento de bons diálogos. No capítulo 8, estudamos os resultados dos tratamentos feitos com o uso de Diálogos Abertos, à luz de dados de acompanhamento sobre o funcionamento psicossocial dos pacientes. Os resultados são intrigantes – isto é, são muito diferentes das práticas e resultados que constituem a base habitual das recomendações de tratamento psiquiátrico e, em muitos aspectos, são o oposto deles. A necessidade da medicação com neurolépticos pode ser minimizada no trabalho que envolve redes; a recuperação dos pacientes e sua capacidade de lidar com o social melhoram. Os resultados sugerem que há uma alternativa para os tratamentos psiquiátricos tradicionais de controle dos pacientes. No capítulo 9 discutimos o que pode ter causado as diferenças entre os resultados, ao mesmo tempo que ampliamos o panorama. Examinamos os pressupostos fundamentais da pesquisa baseada em evidências. Por trás das recomendações da Sociedade Finlandesa de Psiquiatria sobre tratamentos válidos, há projetos de pesquisa que não incorporam as características mais essenciais dos diálogos. Os projetos que simplificam as variáveis ativas estão em vias de se tornar o parâmetro do saber científico. São necessárias pesquisas mais amplas, baseadas em evidências, que também reconheçam algo diferente de meros encontros monológicos em que os atores intervêm sobre objetos. No fim do capítulo, discutimos o problema da transferência ou generalização das boas práticas. As boas práticas não podem ser simplesmente duplicadas. A diferença dos contextos e dos agentes deve ser sempre levada em conta. Hoje em dia, há cada vez mais discussões sobre a necessidade de pesquisas que sejam mais contextualizadas do que as pesquisas de laboratório e, por isso, possam produzir um conhecimento mais válido em termos sociais. A necessidade de criar arenas e espaços de aprendizagem que cruzem fronteiras tem sido enfatizada na discussão recente da política das pesquisas, assim como a necessidade de promover os diálogos nessas arenas. Em nossas palavras finais, no epílogo, refletimos sobre as transformações nas relações de poder. Este livro ganhou forma através de um processo mútuo. Ambos escrevemos capítulos e seções em resposta a nossas discussões. Depois, estudamos, debatemos e elaboramos minuciosamente o material. A introdução e o capítulo 1 compõem-se de seções escritas pelos dois autores. O capítulo 2 é baseado no manuscrito de Tom, e o capítulo 3, no de Jaakko. Tom escreveu o esboço original do capítulo 4, ao passo que o capítulo 5 teve suas seções redigidas por ambos os autores. Os capítulos 6, 7 e 8 são obra de Jaakko, em sua maior parte, e o capítulo 9 e o epílogo foram escritos por Tom. O mais importante para nós, entretanto, é termos escrito um trabalho conjunto que integra cada um de nossos pontos de vista particulares. Parte I 1 Diálogos nas fronteiras entre e dentro das redes profissionais e pessoais Buscamos primordialmente soluções práticas. Jaakko trabalhou desde o começo “dentro” das práticas que estava pesquisando, como membro de uma equipe de tratamento psiquiátrico. Para ele, os fenômenos de ordem prática quase sempre precederam a análise teórica das experiências. Para Tom, o desenvolvimento de conceitos foi central, embora em estreito contato com a prática. Ele não era membro das equipes assistenciais que pesquisou e que trabalham com crianças, adolescentes e famílias. No entanto, as práticas dialógicas em rede foram desenvolvidas em estreita cooperação com esses profissionais de base. Apesar de descrevermos com detalhes as práticas dialógicas com que nos temos envolvido, nosso objetivo também é discutir as dimensões mais gerais do dialogismo. Afinal, a habilidade técnica não basta. A postura, a visão e o modo de pensar de cada um são igualmente importantes, se não mais. E o trabalho em rede também não é uma simples série de métodos em rede, mas, antes, uma compreensão do significado das relações para um indivíduo – uma orientação para as redes. É claro que as ferramentas terapêuticas não deixam de ter importância. Algumas formas de discussão são mais favoráveis do que outras para gerar diálogos. As diretrizes sobre os Diálogos Abertos e os Diálogos Antecipatórios ganharam forma no correr de um longo período. O percurso não foi linear, porém. Numas duas ocasiões, tivemos que revisar totalmente as nossas ideias. A seguir relatamos essas reviravoltas no caminho do desenvolvimento, para destacar como chegamos às ideias centrais. Não há definições comuns do problema, afinal Os Diálogos Antecipatórios foram desenvolvidos em complexas situações multiprofissionais em que o processo de ajuda parecia não estar levando a parte alguma, a despeito das tentativas de vários prestadores de assistência de fazer o que era profissionalmente correto. Tom estava estudando os contatos entre o sistema profissional compartimentalizado e a vida cotidiana abrangente dos cidadãos. Os Diálogos Antecipatórios foram desenvolvidos numa série de projetos em diversos municípios da Finlândia, conduzidos pela equipe de Tom no Centro Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento para o Bem-Estar Social e a Saúde (STAKES, na sigla em finlandês). O ponto de partida de Tom estava nas ciências sociais: políticas sociais e sociologia. Ele não é clínico. Seu colega ao longo dos anos foi Esa Eriksson, que é psicólogo e terapeuta familiar. As “situações multiproblemáticas” criam relações dos clientes com diversos serviços. Os contextos em que há múltiplos órgãos assistenciais são complexos, e tal complexidade decerto não se reflete apenas na família. A combinação eficaz de diferentes serviços pode ser prejudicada, mesmo quando o trabalho dos diversos profissionais é bem fundamentado e de boa qualidade. De certo modo, o sistema profissional, aparentemente bem organizado, desorganiza-se quando depara com fenômenos que não podem ser compartimentalizados de um modo paralelo àquele como se divide o sistema especializado. Esses problemas não são incomuns. Os casos podem girar em torno de tentativas reiteradas de procurar controlar os outros e levá- los a fazer o que é visto como necessário. Os Diálogos Antecipatórios foram desenvolvidos para revitalizar essas situações. Junto com os profissionais da linha de frente, Tom e Esa e sua equipe tentaram elaborar métodos que pudessem ser úteis em situações em que as partes envolvidas pareciam estar repetindo padrões de atividade malsucedidos. O trabalho profissional com crianças, adolescentes e famílias proporcionava uma abundância desse tipo de material. Tom e Esa conduziram juntos uma série de projetos com profissionais da linha de frente, a partir de meados da década de 1980. O primeiro projeto foi com três serviços de assistência social e uma clínica para dependentes de drogas. A parceria seguinte envolveu o pessoal de dois serviços de assistência social e uma clínica psiquiátrica para adolescentes. A terceira comunidade de desenvolvimento a se envolver foi grande: todos os profissionais – de clínicas de pré-natal à psicoterapia, de creches a clínicas de orientação da família, de escolas à proteção da infância – trabalhavam com crianças, adolescentes e famílias em dois municípios. A comunidade seguinte foi ainda uma pouco maior: os profissionais equivalentes e mais a força policial de 14 municípios e distritos rurais. Por fim, o conjunto de
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