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Residência em Psicologia Clínica Institucional O primeiro jubileu de uma experiência Alberti, S. & Vorsatz, I. (Orgs.) 2018 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Ruy Garcia Marques Vice-Reitora Maria Georgina Muniz Washington Sub-reitora de Graduação Tania Maria de Castro Carvalho Netto Sub-reitor de Pós-graduação e Pesquisa Egberto Gaspar de Moura Sub-reitora de Extensão e Cultura Elaine Ferreira Torres Centro de Educação e Humanidades Lincoln Tavares Silva Instituto de Psicologia Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota Hospital Universitário Pedro Ernesto Edmar José Alves dos Santos Coordenadoria de Desenvolvimento Acadêmico do HUPE João José Abraão Caramez Coordenação da Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde COREMU-UERJ Ingrid de Mello Vorsatz Coordenação do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar Michelle Menezes Wendling CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NÚCLEO MID Bibliotecária: Luciana Avellar CRB7/4544 R433 Residência em Psicologia Clínica Institucional: O primeiro jubileu de uma experiência / Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz [Organizadoras]. - Rio de Janeiro: CEPCI-MRH, 2018. 252 p. e-ISBN 978-85-906657-0-0 1. Psicologia Clínica. 2. Psicologia institucional. I. Alberti, Sonia. II. Vorsatz, Ingrid. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. CDU 159.9:614.254 PROMOÇÃO Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ) COMISSÃO EDITORIAL Sonia Alberti Ingrid de Mello Vorsatz COMISSÃO CIENTÍFICA Andréia Hortélio Fernandes (UFBA) Anna Carolina Lo Bianco (UFRJ) Camila Lopes (UFCE) Ilka Franco Ferrari (PUC-MG) Maria Lívia Tourinho Morreto (USP) Marcos Vinicius Brunhari (UNIAN-SP) Nádia Pinheiro (UFPR) Rogério Paes Henriques (UFSE) Roseane Freitas Nicolau (UFPA) Zaeth Aguiar do Nascimento (UFPB) SUMÁRIO Prefácio .............................................................................................................................................. 1 Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz Derivações de uma trajetória: a práxis na clínica ampliada em Saúde Mental .................................. 9 Ademir Pacelli Ferreira A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado na assistência psicológica aos pacientes cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde ............................................................................ 27 Cristiane Ferreira Esch, Narcisa Silveira de Paula Fonseca, Mariana Silveira Córdova, Liana Ling Gonçalves Setianto, Clareana Velasco Silva de Paula, Alessandro de Magalhães Gemino A práxis dos residentes no ambulatório NAI: psicanálise e velhice ................................................ 56 Gloria Castilho, Ana Beatriz Raimundo de Castro, Cristiane Bueno Iatauro, Lívia Azevedo Carvalho, Rafaela Ferreira de Souza Gomes, Renata de Oliveira Fidelis A passagem pelo NESA e os ritos de passagem ............................................................................... 88 Sonia Alberti (Relatora). Selma Correia da Silva, Adriana Dias de Assumpção Bastos, Aline Martins, Aline Souza, Bruna Americano, Camila Cardozo Melo Sales, Claudia Politano, Daniela Barros da Silveira, Heloene Ferreira da Silva e Luiza de Sá Quirino Câmara Gravidez e psicanálise: considerações institucionais e clínicas .................................................... 123 Ester Susan Guggenheim Psicodiagnóstico: paradigmas, experiências, histórias cruzadas e desafios futuros .....................144 Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e Cidiane Vaz Gonçalves Psicanálise e família: percalços do édipo e seus destinos trágicos ............................................... 162 Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e Bruna Montechiari Guimarães Vohs Notas psicanalíticas sobre o hospital e a criança .......................................................................... 180 Michelle Menezes Wendling, Liana Ling Gonçalves Setianto, Talita Alves Barbosa da Silva, Fernanda Nogueira Klumb Um lugar possível para a psicanálise no contexto médico: sobre a construção do trabalho em âmbito multidisciplinar na Unidade de Pediatria do HUPE ......................................................................................................................................................... 200 Vinicius Anciães Darriba e Flavia Lana Garcia de Oliveira Prática clínica e supervisão na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE .............................................................................................................................. ........................... 216 Ingrid Vorsatz e Penélope Esteves Raposo Mathias Sobre os autores .............................................................................................................................. 244 1 Prefácio O Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi criação pioneira no Brasil de uma residência em psicologia no contexto hospitalar. A partir de um projeto que se desenvolveu por mais de uma década, alguns professores se associaram a psicólogos supervisores do Serviço de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia e montaram a proposta de sua inserção no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ, originalmente em cinco de suas clínicas especializadas. Em 2002, o Programa passou a se chamar Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar, permitindo atribuir a cada residente formado o título de Especialista em Psicologia Hospitalar. Reis et alii (2016) observam que é apenas no Brasil que se desenvolve tal especialidade, pois em outros países o trabalho do psicólogo nos hospitais é inscrito na especialidade da Psicologia da Saúde. Em vista do crescimento e aprofundamento da prática da psicologia hospitalar no país, os autores sustentam que a área está “em franca evolução” (Reis et alii, 2016, p. 22) e apostam que o desenvolvimento das “questões de intersecção da psicologia nos hospitais com a psicologia em geral no campo da saúde, certamente permitirá no Brasil uma consolidação definitiva das práticas dos psicólogos nos hospitais” (Reis et alii, 2016, p. 23). A coletânea que ora trazemos a público é um produto das diferentes clínicas especializadas em que atuamos e se associa à nossa publicação, Práxis e formação, publicada desde 1996, com os trabalhos apresentados no Fórum anual pelos residentes e seus supervisores1. É a associação com as publicações do nosso Fórum que nos levou a decidir trazer esta coletânea a público no exato momento em que realizamos o XXII Fórum da Residência em Psicologia Clínica Institucional, aberto ao público em geral, neste ano de 2018, no qual os psicólogos nela atuantes apresentam seus trabalhos em que articulam um caso clínico com sua elaboração teórica conforme a orientação do serviço em que o caso foi atendido que, no Curso, é de referência plural, como sói ocorrer no campo da Psicologia. 2 Na ausência de outro critério para a ordenação dos capítulos, optamos por adotar a ordem alfabética referente aos programas especializados que compõem – ou compuseram – o Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar. Assim, o primeirocapítulo concerne ao programa especializado inserido no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS-UERJ)/Policlínica Piquet Carneiro, seguido dos programas especializados inseridos em diferentes serviços e/ou setores do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ), a saber, Cirurgia Cardíaca e Unidade Cardio Intensiva, Núcleo de Atenção ao Idoso-Universidade Aberta da Terceira Idade (NAI-UnaTI), Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), Núcleo Perinatal, Psicodiagnóstico, Terapia Familiar Psicanalítica, Unidade Docente Assistencial de Pediatria (Ambulatório), Unidade Docente Assistencial de Pediatria (Enfermaria) e Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria. Não data de hoje a ideia de um livro sobre a experiência que esse grupo de professores e de supervisores – com a colaboração inicial de Lucília Pires, secretária hoje aposentada –, o Instituto de Psicologia e a UERJ bancaram de forma pioneira. Em 2013, cinco ex-residentes fizeram um projeto de publicação de um livro com suas respectivas monografias2, objetivando contribuir com “trabalhos teóricos sobre a atuação do psicólogo clínico no contexto do hospital geral que levem em consideração a complexidade desta atividade e que incluam a dimensão do sujeito”3. Isso porque, diziam as autoras do projeto, os psicólogos residentes da UERJ passam por uma formação que “durante seus dois anos de duração, concilia a atuação [em serviço] com a constante construção de um saber sobre sua prática. A partir dos grupos de estudo, das supervisões, das aulas e das trocas diárias entre os residentes há sempre um questionamento e indagação sobre a prática e sobre qual é o papel do psicólogo clínico [...] na instituição hospitalar”4. Se na ocasião o projeto não foi adiante, até porque hoje essas monografias estão disponíveis para leitura do público em geral, a ideia amadureceu e, num ato que não deixa de equivaler a uma garrafa de Klein – figura topológica –, a proposta atual reinsere aquele projeto no próprio projeto original da Residência, inserindo-se a si mesmo nisso, enquanto um work in progress, constante mas, ao mesmo tempo, trazendo sempre 3 algo novo a partir de cada experiência que a prática clínica do psicólogo no hospital promove. Como observava uma das ex-residentes – Claudia Politano – a quem solicitamos, neste ano de 2018, uma contribuição para este livro: “Escrever ou relembrar fatos marcantes da época em que fui residente em Psicologia Clínica Institucional no Hospital Universitário Pedro Ernesto é como fazer uma viagem no túnel do tempo. Foram bem vividos aqueles anos de 2000 e 2001, logo após a minha graduação em Psicologia. Concluir a universidade e me tornar uma profissional pronta para atuar no mercado de trabalho era algo, naquele momento, ao mesmo tempo excitante e assustador. A ideia de disputar uma concorrida vaga na residência do Hospital Universitário Pedro Ernesto surgiu, portanto, como uma sedutora opção. Trabalhar em um hospital considerado de excelência, com uma boa remuneração e, além disso, ter supervisão, tornou-se minha meta para o que fazer após o término da faculdade. Relembrando aquele período, me parece algo como um rito de passagem: a saída da vida de estudante e a entrada no mercado de trabalho. Na Residência, a experiência de ser profissional e supervisionando(a) ao mesmo tempo, por dois anos, marcava uma transição, transição esta que foi determinante para o meu amadurecimento e uma grande oportunidade de ganhar mais confiança para a atuar enquanto psicóloga.” [...] O hospital é a casa dos médicos, dizia minha supervisora, somos convidados na casa deles e é como tal que devemos nos comportar. Moura (1996) expressa a mesma orientação quando observa que o desafio ético colocado ao psicanalista no hospital é o de oferecer-se diante da demanda inespecífica, na medida em que o que levou o paciente ao hospital foi uma demanda dirigida à medicina. Não é necessário que a priori haja demanda para a escuta e intervenção, precisamos apresentar o que fazemos para criar, portanto, essa demanda, tanto por parte de nossos anfitriões quanto por parte dos pacientes que buscam atendimento no hospital. Muitas vezes, o sujeito se encontra passivo, em seu leito, aguardando apenas os cuidados e a intervenção médica. Oferecendo 4 a nossa escuta, entretanto, podemos criar a demanda e favorecer o trabalho no ambiente hospitalar”5. Se nas clínicas específicas em que os residentes de Psicologia são inseridos é possível promover um acompanhamento regular dos pacientes, e não apenas nas enfermarias como, inclusive, nos ambulatórios de cada uma dessas clínicas, a situação na qual melhor se verifica a importância da presença do psicólogo para criar a demanda – tanto por parte do paciente, quanto de sua família, assim como da equipe hospitalar –, é aquela em que os residentes em Psicologia trabalham junto ao serviço de Plantão Geral do HUPE, em que acompanham casos que são internados em caráter emergencial em razão da gravidade dos quadros clínicos que apresentam. Nem sempre, nesses casos, o trabalho realizado seria necessariamente da alçada de um psicólogo – como, por exemplo, é uma atitude de oferecer algum conforto para o paciente, insistir com a enfermagem que se alimente o paciente que não come desde que saiu de casa de manhã cedo e agora já é de noite, ajeitar o paciente no leito para que encontre uma posição mais confortável, ajudá-lo a tomar um gole d’água entre outros –, mas se justifica na medida em que é somente assim que o psicólogo constrói as condições mínimas para que o paciente possa falar com ele, o que é a visada do nosso trabalho, em última instância. Como se sabe, a clínica é sempre imprevisível e é com essa imprevisibilidade que é preciso aprender a atuar, e quanto melhor o psicólogo puder se situar diante dela, mais facilmente promoverá a criação de uma demanda por seu atendimento. Nem sempre ele deve responder a demandas daquele tipo, mas deve poder avaliar a importância de fazê- lo em situações nas quais o paciente não puder nem mesmo dirigir-lhe a palavra caso alguma coisa não seja feita na imediatez do momento. O trabalho do psicólogo no hospital introduz questões da clínica que nos exigem revisitar a própria origem grega desse termo – kliné –, equivalente em português à palavra “leito”, situação com a qual o psicólogo normalmente só tem oportunidade de se encontrar quando trabalha, justamente, no hospital. Freud (1890/1996) já destacava que, além de considerarmos que os distúrbios orgânicos influenciam a vida psíquica, temos de pensar também no quanto os problemas psíquicos têm incidência no corpo. A Residência em Psicologia da UERJ 5 testemunha amplamente dos efeitos positivos de uma equipe multidisciplinar na qual estejam incluídos psicólogos, quando se trata do plantão de um hospital geral. Desde 2006, com a reformulação do trabalho dos residentes junto ao Plantão Geral do HUPE6, sua supervisão é sustentada pela professora Sonia Alberti. O trabalho no hospital geral deve ser pensado na contramão de um saber previamente estabelecido e na contramão da simples compreensão que implica uma com-paixão (cf. Lacan, 1985). Ao psicólogo cabe ajudar o médico e a “tantos outros agentes de saúde” [...] “a suportar o fato de que o bem do próximo muitas vezes mais o anula que o sustenta, uma vez que o próximo, como Freud alertou em 1930, é somente uma projeção narcísica de si mesmo” (Alberti & Almeida, (2005, p. 68). Nem sempre coincidem “o que a equipe multidisciplinar pode identificar como um bem para seu paciente” e o que este identifica como tal (Alberti & Almeida, (2005, p. 68). “A prática no espaço hospitalar introduz variáveis que suscitam uma série de reflexões sobre a nossa atuação clínica: diante da ausência de uma demanda explícita de atendimento, das variações em relação ao tradicional setting terapêutico e/ou diante da brevidadeem relação ao tempo de trabalho possível, a sustentação do nosso desejo se faz ainda mais necessária. Na Residência, aprendi a importância de nos posicionarmos enquanto profissionais e lutarmos pelo que acreditamos. O reconhecimento do nosso trabalho enquanto psicólogos e a interlocução com outros saberes foi um aprendizado construído no período da Residência e até hoje, em um a posteriori, identifico marcas dessa experiência presentes ao longo de todo meu percurso profissional”7. Além disso, o fato de a residência se dar num hospital público também articula moebianamente o que Figueiredo (1997) já punha em relevo quando publicava Vastas confusões e atendimentos imperfeitos, ou seja, a articulação entre 1) a ideia do atendimento público, ofertando atendimento dito “gratuito” quando, na realidade, o pagamos com os pagamentos dos impostos; 2) o direito de qualquer pessoa de ser atendida, e 3) “a ideia de tornar público, visível, e deixar transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como privativo de alguém” ( p. 11), em oposição portanto, à privação desse direito. 6 O tornar público é, também, a oportunidade de produzir estudos de caso, trabalhos e pesquisas e, com isso, redimensionar a teoria em relação à clínica, o que não cessa de trazer desafios. Eis o ponto de interseção da Residência com pesquisas acadêmicas, sobre o que testemunham as diversas demandas de ex-residentes ao Programa de Pós-graduação stricto sensu criado, em fins de 1998, no então Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da UERJ, hoje Departamento de Psicanálise. Com efeito, muitas dissertações e, mais recentemente, teses nele defendidas, são produto de um aprofundamento das questões das monografias da Residências, ou mesmo, resultado de uma ampliação do trabalho no Hospital, após a Residência. Na medida em que esse Programa stricto sensu é em Psicanálise, essas dissertações e teses são contribuições do trabalho no campo da saúde mental para a teoria psicanalítica8. A percepção da indissolubilidade entre a teoria e prática torna patente a importância de um espaço de formação como o da Residência na continuidade da produção de saber na universidade e fora dela. Como observa Vorsatz (2018), há “uma diferença fundamental entre experiência e démarche científica, sendo que não basta submeter a primeira à segunda para autorizar sua cientificidade” (p. 218) e, sim, curiosamente, para validar a experiência é preciso verificar nela o desejo, “agente e operador de transformação” (p. 219). O desejo, a título de operador clínico por excelência – Jacques Lacan assim especificou o desejo do analista, que não se confunde com os anseios ou ainda com a vontade daquele que encarna essa função –, é o que permite sustentar a experiência clínica, a cada vez. Ainda segundo Figueiredo (1997), no que se refere à psicanálise, o tornar público é fazer circular, entre os profissionais que trabalham no ambulatório, o cotidiano da clínica, com seus sucessos, suas adversidades e seus fracassos. Daí também o ensino dessa prática que os residentes aprendem e desenvolvem em serviço só pode se transmitir de um sujeito a outro, criando um lugar em que é possível subverter a ordem dominante que, no contexto desta Residência busca garantir a cada sujeito que está no hospital, seja como paciente, técnico, médico ou mesmo professor, garantir seu lugar de sujeito que Lacan já definia – entre outras definições – como o lugar daquele que fala. É com sua presença, finalmente, que o psicólogo pode, cotidianamente, contribuir nas discussões 7 com as equipes, buscando transmitir aos profissionais uma outra maneira de lidar com os casos, introduzindo a direção de tratamento que é, necessariamente, singular, o que as políticas públicas em saúde identificam como “projeto terapêutico” específico a cada paciente. O verdadeiro “projeto terapêutico” norteia-se a partir do momento em que assegura a cada paciente “um lugar ao sol”, expressão que aqui retomamos de Erico Veríssimo, fazendo valer o desejo do paciente, independente do que, na equipe, se acredita ser melhor para ele. Mas isso não pode ser feito sem as contribuições da mesma equipe, a ser sempre tão levada em conta quanto cada paciente. Através do testemunho de um percurso realizado ao longo dos últimos vinte e cinco anos, com a experiência dos fundadores e a inserção daqueles que, no decorrer desse percurso, se incluíram no trabalho – a um só tempo coletivo e absolutamente singular –, convidamos a todos a celebrar o seu relançamento. Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2018. Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz Notas 1. A Revista é publicada desde o primeiro Fórum da Residência, mas sua digitalização apenas começou. É possível adquirir os números antigos na Secretaria da Residência no Instituto de Psicologia da UERJ. Consultar também os sites: http://www.praxiseformacao.uerj.br e http://www.psicologia.uerj.br/praxis.html 2. Americano, B. P. A realidade psíquica e o atendimento no hospital geral; Castro, A. B. R. É preciso tempo: reflexões sobre o luto e a urgência subjetiva no hospital geral; Donati, T. D. Medicina e psicanálise: o analista na clínica hospitalar; Fidelis, R. O. Algumas considerações acerca da chegada de idosos a um espaço de escuta psicanalítica, e Rosso, C. I. Considerações acerca dos estados depressivos a partir da psicanálise com idoso. 3. Projeto de Bruna Americano e Ana Beatriz Raimundo de Castro. 4. Idem. 5. Do depoimento da ex-residente Claudia Politano. http://www.praxiseformacao.uerj.br/ http://www.psicologia.uerj.br/praxis.html 8 6. Cf. o trabalho de Danielle Monteiro Câmara apresentado no XIX Fórum da Residência, “Emergências subjetivas no Plantão Geral do HUPE”. 7. Do depoimento da ex-residente Claudia Politano. 8. Trata-se da pesquisa “Contribuições dos dispositivos clínicos em saúde mental à teoria psicanalítica: os nós e os discursos”, atualmente em realização com bolsa de pesquisa no CNPq (2018-2022) e sustentada pelo programa Prociência da UERJ. Referências Alberti, S. & Almeida, C. P. (2005). Relatos sobre o nascimento de uma prática: psicanálise em hospital geral. In Altoé, S. & Lima, M. (Orgs.). Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. (pp.55-71). Figueiredo, A. C. (1997). Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Freud, S. (1996). Tratamento psíquico (ou anímico). In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX. (Obra originalmente publicada em 1890). Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Moura, M. D. de (Org.). (1996). Psicanálise e hospital. Rio de Janeiro: Revinter. Reis, J. de A. Rodrigues; Machado, M. de A. R.; Ferrari, S.; Santos, N. de O.; Bentes, A. Q., e Lucia, M. C. S. de (2016). Prática e inserção do psicólogo em instituições hospitalares no Brasil: revisão da literatura. In Psicologia Hospitalar, 2016, 14(1), 2-26. Vorsatz, I. (2018). O conceito, o desejo e a ética: o desejo como móbil do conceito fundamental. In Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 21(2). [pp.215-223]. Disponível em https://dx.doi.org/10.1590/s1516-14982018002007 . Acesso em 3 ago 2018. https://dx.doi.org/10.1590/s1516-14982018002007 9 Derivações de uma trajetória: a práxis na clínica ampliada em Saúde Mental Ademir Pacelli Ferreira Resumo: Neste trabalho propomos repassar um pouco de nossa trajetória no campo da assistência e ensino e ao mesmo tempo cotejar a importância de Nise da Silveira (Nise) e de sua obra neste percurso. Será, portanto, pontuado elementos e acontecimentos que compõem o percurso de várias décadas de atuação como professor, supervisor clínico e coordenador de programas de pesquisa e assistência em saúde mental,onde será assinalada a importância do programa de residência em psicologia e da experiência através da práxis chamada de clínica ampliada, em internação, ambulatório e CAPS. Palavras-chave: residência, ensino, formação, saúde mental. Abstract: In this work we propose to pass on a little of our trajectory in the field of assistance and education and at the same time comparing the importance of Nise da Silveira (Nise) and your work in this way. Will be thus punctuated elements and events that make up the course of several decades of experience as a teacher, clinical supervisor and coordinator of research and assistance programs in mental health, where it is reported the experience through the Praxis expanded clinic, call in hospitalization, outpatient and CAPS. Keywords: residence program, education, training, mental health. Resumen: En este trabajo nos proponemos transmitir un poco de nuestra trayectoria en el campo de la asistencia y educación y a la vez comparar la importancia de Nise da Silveira (Nise) y su trabajo nesta trajetoria. Así puntuados elementos y eventos que componen el curso de varias décadas de experiencia como profesor, supervisor clínico y coordinador de investigación y programas de asistencia en salud mental, donde se indica la importancia de la residência em psicologia y la experiencia a través de la Praxis clínica ampliada, llamada en hospitalización, atención ambulatoria y CAPS. Palabras-clave: programa residencia, educación, capacitación, salud mental. 10 Introdução Neste trabalho propomos repassar um pouco de nossa trajetória no campo da assistência e ensino ao mesmo tempo cotejar a importância de Nise da Silveira (Nise) e de sua obra neste percurso. Surgiu a partir do convite do professor Walter Melo Jr. do Departamento de Psicologia da UFSJ, que em 2016 organizou evento com vários colegas cujas práticas denotam a reflexividade da práxis de Nise da Silveira. O tempo vai tornando-se longo e temos uma certa premência de falar de nossa história. Não sei se conseguirei pontuar de forma objetiva as derivações destes quarenta anos de vida no campo da saúde mental onde mantive meus estudos, pesquisas e ensino. Esta práxis, que chamamos de clínica ampliada, é uma concepção surgida no final da década de setenta. O adjetivo ampliada passou a ser utilizado principalmente a partir da entrada de profissionais com referência psicanalítica para atuar em instituições psiquiátricas e hospitalares, seja na internação, ambulatórios e, mais tarde, nos CAPS. Isto para diferenciar do modelo padrão de atendimento psicanalítico, isto é, divã, várias sessões semanais e transferência/interpretação. Ao mesmo tempo, esta perspectiva rompia também com a tradição da clínica médica clássica no sentido de centrar o atendimento na anamnese, sumula psicopatológica, diagnóstico e tratamento sintomatológico. Na clínica ampliada há uma abertura para o relacionamento mais próximo com o cliente, contato com seu meio, acompanhamento de suas soluções e arranjos e atenção sensível para com a relação terapêutica. Sustenta-se aí o lugar de testemunho (Halbwachs,1950) das produções dos sujeitos, investindo em práticas que contribuam para a sua construção de recursos próprios e de laços sociais. Este trabalho diário com pacientes graves, psicóticos, internados ou em regime externo, foi caracterizado como acompanhamento terapêutico. Minha trajetória partiu de um marco decisivo na minha vida pessoal e profissional, que foi meu encontro com Nise da Silveira. Tentarei situá-lo no tópico seguinte. Do asilo ao hospital psiquiátrico 11 Como é sabido, pode-se falar da internação para tratamento a partir da criação da instituição hospitalar. A prática do isolamento e do asilamento geral dos chamados loucos até o séc. XIX, não tinha esta característica, pois sua função era somente social. Mas desde a medicina antiga, dos médicos- filósofos gregos, a loucura passou a ser matéria para a medicina iluminar (Pessotti,1999). A partir da modernidade, a sociedade passou a atribuir ao médico este lugar e esta função junto ao hospício ou asilo. Desta forma, os médicos reformistas na Inglaterra, França, Estados Unidos, sendo Pinel o mais conhecido, tentaram instituir no hospício o método clínico, onde a observação criteriosa e diária, a classificação dos sinais e sintomas e o estabelecimento das síndromes, pudessem criar um corpo de conhecimento das doenças mentais, permitindo o controle e o tratamento destas. O hospício deveria ser o lugar de identificar e tratar o doente, produzir o conhecimento sobre a loucura e proteger o doente e o outro dos desvarios e das ações da alienação. Desta prática nasceram o alienista, o alienado e o alienismo, mais tarde, constituindo-se como disciplina médica - a medicina da alma ou psiquiatria. Tratar medicamente o alienado, sempre foi o grande problema da psiquiatria. Não havia doenças precisas e nem remédios específicos para elas. Com a concepção da loucura como sendo da ordem do desvio da razão, devido aos efeitos da paixão, foi possível criar um método psicoterápico comportamental, o chamado tratamento moral (Leuret, 1846), que lançava mão de recursos variados para influenciar o doente ou suprimir seus sintomas, delírios, visando recolocá-lo nos trilhos (lírios) corretos e sensatos (sem de-lírios). Mas, principalmente na década de trinta do séc. XX, foi criado um aparatus de intervenção que restaurou o orgulho dos psiquiatras. Através da eletroconvulsoterapia (ECT), da lobotomia, do coma insulínico e do cardiazol, acreditava-se, até o início da década de cinquenta que, enfim, os psiquiatras dispunham de uma verdadeira medicina, e o hospício transformara-se em hospital, onde o paciente era avaliado, diagnosticado, tratado e recebia alta. Este era o modelo encontrado por Nise ao retornar ao hospício em 1944, após seu exílio voluntário no interior do país em virtude das ameaças sofridas no Estado Novo (Mello, 2014). Não era difícil observar que a crença na utopia biologista era questionada 12 pelos seus pífios resultados. O confronto de Nise com os médicos e suas concepções e crenças deste período é bem ilustrada no filme de Berliner (2013). Em 1952, com o advento da criação dos psicotrópicos, uma nova onda de orgulho veio para rematar o modelo médico: diagnosticar, tratar, prognosticar. Os psicotrópicos, neurolépticos, drogas potentes na alteração do funcionamento psíquico (neuronal) e comportamental, trouxeram sustentação para a prática do psiquiatra, capaz de tratar seu paciente tanto na internação quanto no consultório. Esta perspectiva medicamentosa também não entusiasmou Nise. A psicanálise – que apesar de ser lida por muitos psiquiatras brasileiros desde o início do século XX, inclusive fundaram em 1929 a primeira Associação Brasileira de Psicanálise - não iluminava as práticas psiquiátricas em relação as psicoses e nos hospícios. Nise tinha dificuldades de entender isso, colegas que tinham a psicanálise como referência em seus consultórios, mas que no hospício mantinham a posição biologista clássica. Na verdade, a tensão bio-psíquico, sempre acompanhou a história da psiquiatria (Serpa Jr., 1998; Ferreira, 2012). Este foi o hospício - prefiro este termo ao de hospital e este é também a marca registrada no imaginário social - que conheci no início dos anos setenta, onde a medicalização era generalizada, em altas dosagens e as prescrições muito pouco criteriosas, muitas vezes a cargo dos atendentes de enfermagem. Praticava-se aí a intensa sedação, o chamado sossega leão ou entorta (enrijecimento e contrações motoras devido a impregnação cortical ou extrapiramidal). Dos instrumentos mais radicais da década de trinta, a ECT continuou sendo utilizada em larga escala, inclusive como punição e forma de controle comportamental pela ameaça. Mas tive muita sorte de entrar neste campo pelo viés do encontro comNise da Silveira e sua pioneiríssima e revolucionária prática. O encontro com Nise Como sabemos e como mostrou o filme de Berliner (2013), a práxis de Nise representa uma mutação na psiquiatria brasileira (Ferreira, 2015). Como afirmou ela, 13 Aquilo que se impõe à psiquiatria é uma verdadeira mutação, tendo por princípio a abolição total dos métodos agressivos, do regime carcerário, e a mudança de atitude face ao indivíduo, que deixará de ser o paciente para adquirir a condição de pessoa, com direito a ser respeitada (www.ms.gov.NisedaSilveira:vida e obra.2005). Eu gostei bastante da forma enfática de Berliner iniciar seu filme com Nise tentando abrir a porta do hospício. A abertura das portas, a oposição ao isolamento social e ao hospício cárcere, são indicadores emblemáticos de sua práxis. O ato inicial de Nise é paradigmático, ao retornar ao Hospício, agora Centro Psiquiátrico Pedro II, ela recusa praticar os chamados métodos inovadores da época e a aplicação da ECT e prefere abrir espaços terapêuticos ativos e criativos dentro da própria enfermaria. Inicia-se ali uma clínica respaldada no respeito pela pessoa e sua singularidade, oferecendo atenção e recursos para que estes indivíduos pudessem expressar e dar forma às suas imagens internas e aos seus processos subjetivos e estabelecer laços de interação com o mundo. Do espaço fechado, através da criatividade e da acolhida empática, as janelas e portas foram se abrindo e outros espaços foram sendo criados. De uma tacada ela se contrapôs ao “clinicismo” - que não receitava atividades para pacientes em crise, já que estes deveriam ser tratados no leito – e também ao isolamento e a segregação como prática comum das políticas institucionais (Ferreira, 2015). A partir dessa experiência, nasceu a ideia precursora da Casa das Palmeiras em 1956. Época, portanto, pós-psicotrópicos. Ela observava os processos profundos e múltiplos vivenciados pelos sujeitos nas condições psicóticas e como, com a sedação neuroléptica e consequente inibição psíquica, os sintomas eram apagados e os indivíduos devolvidos a sociedade, sem elaboração e integração de seus conteúdos. Desta forma, saíam da internação empobrecidos e embotados. Se os pacientes tinham altas mais rápido da internação, voltavam também mais rápido, como ela constatou na observação diária e com a pesquisa intensiva. Com a Casa das Palmeiras, ela demonstrou que era possível ao chamado esquizofrênico criar um espaço mediador e viver sem a internação (Silveira,1982;1992). 14 Retomando o filme de Berliner, ao assisti-lo, lembrei-me que eu também havia, há alguns anos, fixado uma imagem inicial para um filme imaginário sobre Nise, que seria a cena de seu velório e do adeus a ela no cemitério São João Batista. Como sabemos, seu fim foi bastante triste. Ninguém quer morrer no hospital e Nise tinha aversão a hospitais, mas por ironia da vida ela acabou morrendo em um. Na premência da dor do braço fraturado ela foi levada para cirurgia, apesar de sempre ter avisado de que não poderia tomar anestesia devido a sua síndrome neurológica rara. Com a anestesia, ela não poderia respirar e foi o que aconteceu, pois decidiram pela cirurgia e logo após tiveram que abrir sua traqueia (traqueostomia) para que respirasse e não tinha mais como sair do CTI, outro lugar sinistro. O hospital era privado, custo absurdo para uma servidora pública que não teve como manter seu plano de saúde na velhice. Foi então transferida para hospital público. Apesar de bem assistida e o CTI ser bem equipado, ninguém gosta de estar aí. Ao encontrá-la naquela triste situação anexada às máquinas de sobrevivência, me pediu desesperadamente, por gestos, para tirá-la de lá. Disse-lhe que seria impossível, não teria como fazer isso, não seria possível desconectá-la das máquinas. Ela então fechou-se no mutismo, olhos cerrados, semblante de amargura. Não me olhou mais nas visitas que se seguiram até a sua morte. No cortejo fúnebre, com a bandeira da escola de samba cobrindo o seu caixão e os surdos ecoando, ouvíamos os brados de “viva Nise e abaixo o manicômio”. No final, enquanto Tomás (do grupo musical Homem de Bem) e eu depositávamos seu corpo na urna funerária, escutava-se a despedida com o ressoar do surdo, palmas e vivas a Nise. Naquele momento de velório e de despedida - na verdade o rito de passagem para esta experiência da ausência, pois não teria mais os encontros tão reconfortantes em sua casa, onde conversávamos sobre tantas coisas e sobre nossa paixão comum em relação às pessoas chamadas psicóticas e suas múltiplas experiências e desdobramentos dos vários estados do ser, expressão de Artaud que Nise lembrava sempre - uma lembrança se fazia viva em minha mente, meu primeiro encontro com ela. O encontro 15 Na época, 1972, apenas três anos no Rio de Janeiro, vindo do interior de Minas Gerais, me preparava para o vestibular e já havia escolhido a psicologia. Um dia, no cursinho, observei que um colega conversava com o professor num clima meio misterioso e, ao me aproximar, descobri que ele falava de Nise, do Grupo de Estudos Junguiano, do MII (Museu da Imagem do Inconsciente). Fiquei fascinado com o que escutei. Depois de certa sabatina, o colega me levou ao Grupo de Estudos e apresentou-me a Nise, que me recebeu com sua cordialidade e simplicidade e me senti muito bem entre aquelas pessoas diversificadas (intelectuais de diferentes áreas, estudantes de psicologia e outras áreas, artistas, hippies, donas de casa). Pairava ali um certo clima underground. Logo estimulado por Nise, passei a frequentar o STOR (Setor de Terapia Ocupacional) e o atelier junto ao Museu Imagens do Inconsciente e depois a Casa das Palmeiras. Entrei assim nesta rica universidade antes de entrar na outra (UERJ). Do encontro aos desdobramentos: marcas de um ensino Neste sentido, revisitar meu percurso e a importância de Nise é, também, indicar o sentido para aqueles que puderam beneficiar-se e levar para as suas práticas este aprendizado. Eu era na época um jovem em intensa busca, só havia lido alguns livros de auto-ajuda e tinha ouvido falar de Freud, achando estranho a história de Édipo. Naqueles anos de miséria cultural brasileira, o maior fechamento da ditadura no início de 1970, era um privilégio ter contato com este espaço rico de estudos, discussões e inscrições de cultura densa e profunda. Pela sua generosidade pude desfrutar de sua rica biblioteca; belos livros de arte, história, religião, psicanálise, filosofia, antropologia, psicologia, sociologia, literatura - em português, francês, inglês, espanhol. Esta relação que aí se iniciou durou até a sua morte e de cujo ensino pude desfrutar e dar continuidade através de uma prática que suponho refletir sua posição ética e metodológica. Considero muito rica minhas experiências de formação; além do Serviço de Psicologia Aplicada do IP/UERJ, dos estudos e supervisões psicanalíticas, os estágios nos ateliê do MII, escola viva, como dizia Nise, na Casa das Palmeiras, com realização do curso de Terapia Ocupacional (TO) por ela organizado, 16 experiência nas emergências psiquiátricas do Centro Psiquiátrico Pedro II e do Instituto Philippe Pinel. O que foi uma novidade, uma experiência precursora, pois não havia essa possibilidade antes. Na emergência do CPP II, já observava que por qualquer crise aqueles que lá chegavam eram internados. No Pinel, em dupla com uma residente de psiquiatria, Marilda Barbosa, conseguíamos evitar a internação combinando com o cliente o seu retorno no próximo plantão. Aí observamos que a emergência, que era a entrada para a carreira de “psiquiatrizado” (Brody, 1959), tinha que ser mudada. Das derivações desta experiência surgiu a temática da migração em meus estudos. Observava o aumento de surtos psicóticos em migrantes recentes, época esta do boom da construção civil no Rio e em SãoPaulo. Entendemos o surto aí como resultante deste tempo de deslocamento, onde o estranhamento e a estranheza deste novo lugar abrem para a emergência de outro território estrangeiro (Freud,1919), o inconsciente. Resultou daí a tese, A migração e suas vicissitudes (1996), o livro, O migrante na rede do outro (1999) e vários outros artigos. Minha última experiência no CPP II foi na enfermaria M2, masculina, onde o Dr. Paulo Pavão coordenava um excelente trabalho de equipe seguindo a linha do Prof. Loyello de internação curta. Ele contava com ótimos estagiários compondo uma equipe interdisciplinar que funcionava muito bem. Fiquei responsável pelas atividades terapêuticas expressivas, levando as propostas de Nise. Era mantido também um grupo de estudo e discussão dos casos. Em 1975, o professor Loyello foi convidado para a UDAP- HUPE/UERJ, levou o Dr. Paulo Pavão, e fomos também todos para lá como estagiários e aí incentivei e participei da oferta de várias atividades para os internos. A partir desta formação tive a sorte de ser convidado para implantar um setor de terapêutica ocupacional no Sanatório Espírita de Anápolis, Goiás, em 1977, onde permaneci durante três meses escolhendo monitores, estabelecendo três setores de atividades expressivas, artes aplicadas, música, atividades corporais, esportivas e passeios externos. Estabelecemos também um grupo de estudo com os médicos, enfermeiros, assistentes sociais e monitores das atividades terapêuticas. Antes de ir sugeri que construíssem um prédio com três salas externas às enfermarias para a implantação do Setor de Atividades. Quando lá cheguei, já encontrei o 17 prédio pronto. O Sanatório ainda funcionava nos tradicionais galpões como enfermarias, com dezenas de camas e sem nenhuma individualidade para os internos. Propus que os dividissem em quartos, o que também foi feito. Com o funcionamento do setor de atividades, com a quebra dos espaços fechados, saídas para atividades de grupo, artes plásticas, música, passeios externos, a mudança do ambiente e dos relacionamentos foi enorme. As atividades eram desenvolvidas em grupos mistos, homens e mulheres, pois a separação dos sexos era a prática institucional. Pudemos avaliar uma melhoria acentuada dos internos, da relação com os profissionais e do ambiente institucional. Em consequência, houve aumento significativo do número de altas da internação e nos deparamos com uma situação absurda, o INAMPS só pagava a passagem para os internos até 80km de distância do sanatório. Muitos internos moravam em municípios mais distantes. Mas, para completar o absurdo, continuavam pagando a internação. Avaliamos que esta foi uma importante experiência de realização de um trabalho de mudança de uma instituição e meu primeiro trabalho como profissional. Depois de formado, graças ao convite de Gina Ferreira, trabalhei no HMSA (Hospital Municipal Souza Aguiar) por três anos. Lá também pude observar a importância do trabalho do psicólogo, tanto na enfermaria, quanto no ambulatório. Em 1979, ingressei no Instituto de Psicologia/UERJ como supervisor clínico e professor de psicopatologia. Criei então, na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE/UERJ (UDAP), O Espaço de Atividades e Acompanhamento Terapêutico, que em 1992 mudamos o nome para Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira (EAC-NS), contando com a sua presença na inauguração. Foi neste espaço que recebi o hoje professor Walter Melo, anfitrião do Encontro da Universidade Federal São João del Rei, na época estagiário da residência de psicologia que criamos em 1993. Já em 1997, me substituiu por alguns meses como supervisor em um momento difícil de minha vida. Seu trabalho foi de grande valor neste tempo em que lá esteve como residente e como supervisor. Deixou a sua marca pela sensibilidade e capacidade singular no manejo com os internos e frequentadores da 18 psiquiatria. Destacando-se em sua dedicação e habilidade de oferta de acolhimento às pessoas com transtornos psicóticos. Derivado desta experiência, temos o seu livro, O terapeuta como comparável mítico (Melo Jr., 2009), título derivado dos termos que na época caracterizei a modalidade de relação entre Walter e um rapaz psicótico que vivia de sua intensa atividade delirante e que o elegeu de pronto como o Cristo que veio salvá-lo (Walter tinha as características físicas da representação do Cristo). Walter encontrou Nise e sua obra em um Evento que eu havia proposto ao Departamento de Cultura/UERJ, e que chamei: Encontro Nise e a Universidade (1988). Proposta que foi apropriada e ampliada pela Reitoria na época, já que precisava de maior aceitação e visibilidade na instituição e viu nesta proposta uma boa chance, pois Nise abria portas ideológicas cerradas. O evento constou da homenagem que lhe concedeu o título de Doutora Honoris Causa da UERJ, além do programa amplo com os trabalhos do MII e de sua presença para a satisfação dos participantes, que como Walter, muitos ficaram fascinados. Voltando ao meu percurso, meus laços com Nise continuaram ajudando no meu trabalho profissional e pessoal. Mesmo não frequentando mais os espaços por ela criados, eu sempre precisei de nossos encontros em sua casa, os intervalos dos encontros eram marcados geralmente por sonhos transferenciais. Encontros esses reconfortantes onde havia alguma análise de sonhos e conversas livres, o que me refaziam por algum tempo. Voltando ao EAC-NS, prática que sustentamos por mais de 30 anos, penso que teve importante função ao ser desenvolvida numa enfermaria de internação através do acompanhamento terapêutico, da elaboração deste tempo mais crítico, com utilização de recursos verbais e não verbais, além de cultivar a prática de manter a interação dos internos com frequentadores do ambulatório que vinham participar das atividades criativas, expressivas e grupais aí desenvolvidas (artes plásticas, teatro, Grupo Operativo, grupo de familiares, passeios). Foi um importante espaço de experiência para muitos estudantes de graduação e especialização, e fico contente de encontrar muitos deles hoje atuando na chamada clínica da reforma. 19 A partir desta experiência surgiu a demanda de um espaço externo mais organizado e ampliado para receber maior número de pessoas com transtornos mais graves e que exigiam acompanhamento intensivo e prolongado. Foi criado então o Hospital Dia (HD) em 1993 onde mantivemos estagiários de extensão, iniciação científica, curriculares e residentes durante toda a sua existência até 2009, cujas atividades foram transpostas para o CAPS UERJ, primeiro CAPS universitário, localizado na Policlínica Piquet Carneiro. Portanto, em 2009, criamos o CAPS UERJ, uma nova perspectiva assistencial e de formação, HD encontrava-se em condições degradantes, já o novo espaço, apesar de não ser o que idealizamos (preferíamos uma casa), é muito superior. Além de melhores condições físicas, sua organização contou com parcerias ampliadas entre unidades da UERJ, HUPE, Secretaria Municipal e Secretaria Estadual de Saúde, além do apoio entusiasmado do diretor da Policlínica Piquet Carneiro (PPC), na época o médico João Caramez, que tem ótima visão da função dos programas assistenciais na universidade em sua relação com o ensino e a pesquisa. Tudo isto possibilitou compor um quadro técnico e de professores- supervisores com inclusão de seus estagiários de graduação e especialização, que vem garantindo a assistência em conformidade com as políticas do SUS. Hoje o CAPS UERJ é referência para a AP2.2, que engloba uma população de quase quatrocentos mil habitantes. Aí centrei minha prática nos últimos anos, como supervisor clínico e membro da equipe e assumindo a sua coordenação em 2017 com a saída da coordenadora Neilanza Coe, que sustentou este lugar desde a sua criação. Voltando ao paralelo proposto, entendemosque esta prática reflete a clínica criada e ensinada por Nise, ao receber no dia a dia, pessoas cujos laços sociais e sócio-afetivos são muito tênues ou que estão mesmo privados destes. Portanto, os CAPS vêm efetivando esta clínica externa para pacientes graves, iniciada em 1956 com a criação da Casa das Palmeiras, cuja função de ponte entre o sujeito com sua subjetividade desordenada e o mundo externo, foi enfocada por Nise. Para isto, ela entendia que através da possibilidade de expressão, sentido e manejo de seus tumultos internos e da criação de laços afetivos, seus frequentadores poderiam reordenar o caos resultante da fragmentação esquizofrênica e assim 20 assegurarem a sua existência fora dos muros da instituição psiquiátrica, ao disporem deste espaço de referência e de suporte. Residência em Psicologia Clínica Institucional Também em 1993, criamos no IP/HUPE, a primeira Residência em Psicologia Clínico Institucional, bandeira por mim defendida desde 1979. Bandeira, porque eu já havia descoberto a importância da prática do psicólogo não só nas instituições psiquiátricas, mas também no hospital geral, onde ainda não estava muito claro para os dirigentes e também para a própria categoria. Em consequência, estranhávamos o fato de não contarmos com projetos de residência nestas instituições. Poucos eram também os hospitais públicos e privados que contavam com psicólogos em suas equipes. Através do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e do CRP-05, realizamos uma enquete junto aos hospitais e constatamos que seus dirigentes valorizavam e desejavam a prática dos psicólogos em suas instituições. Através do Sindicato dos Psicólogos e do Conselho Regional de Psicologia (CRP05) e da liderança e empenho de Margarete Ferreira junto às secretarias de saúde foi realizado o primeiro concurso para psicólogos do Estado em meados da década de oitenta. No HUPE/UERJ, por iniciativas de professores de medicina e a procura de psicólogos, a entrada de psicólogos se deu em meados da década setenta e a pedido do diretor do HUPE, logo depois, a diretora do IP/UERJ, professora Yonne Muniz, contratou seis psicólogos que vieram depois receber estagiários. Mas com a criação do SPA, estes receberam a função de supervisores de graduação neste espaço. Mais tarde alguns programas voltaram a ser desenvolvidos no HUPE. Portanto, se a prática dos psicólogos era de grande importância, a experiência neste espaço era também fundamental para a formação em especialização clínica destes profissionais. Seguindo esta direção, em 1989, partimos desses projetos já implantados junto as UDA’s (Unidades Docentes Assistenciais) de Psiquiatria (terapia de família/psicodiagnóstico), de pediatria, maternidade/pré-natal, adolescência, idosos, que compunham seis programas e formulamos nosso projeto de residência em 1989. Infelizmente por falta de empenho da direção do IP/UERJ na época, não foi possível implantá-la. Com a aprovação da nova direção em 1993 e 21 o apoio da direção do HUPE, que sempre foi favorável, implantamos a primeira residência em psicologia do país. Inicialmente quatro vagas, depois cinco e em 2010 conseguimos passar para as dez vagas anuais. Tem havido uma interação da especialização em residência com a pós de psicanálise, principalmente como continuidade de estudos acadêmicos para muitos egressos, tanto no mestrado como no doutorado. Foi em 1999 que criamos no IP o Programa de Pós-graduação em Clínica e Pesquisa em Psicanálise, onde sou membro do colegiado. Um programa com enfoque clínico e tem sido importante suporte para elaborações e teorizações das práticas neste campo e na saúde mental. Os orientandos da pós que venho acompanhando são sempre profissionais que atuam em instituições de saúde, a maioria no campo da saúde mental, o que cria uma interlocução com os residentes. A vinda dos residentes para o campo assistencial foi de grande valor para os setores e para a efetivação das práticas de formação e assistência. No CAPS UERJ, projeto que sustento, os residentes, tanto o R1, de seis meses, quanto o R2, de um ano, vêm participando ativamente deste dispositivo que é referência clínica para a rede assistencial em saúde mental. Um importante aprendizado do trabalho em rede e de estudo das políticas e das formulações teórico conceituais do campo. Vários trabalhos também vêm sendo elaborados pelos residentes, individuais ou com o supervisor, para congressos e eventos na área, o que será referido na bibliografia. Mudanças e desafios atuais As mudanças propostas pela chamada reforma psiquiátrica exigiram escolhas conceituais que objetivaram desvencilhar a prática assistencial dos efeitos estigmatizantes da ideia de doença mental. Também as classificações internacionais das doenças (CID-10; DSM.III-V), procuraram abrir mão da concepção de entidade nosológica a favor da ideia de síndrome, preferindo o termo transtorno mental. Para o campo, optou-se pelo termo saúde mental, por influência da reforma operada nos Estado Unidos na década de sessenta que adotou a concepção de mental health (Zorzanelli, Bezerra Jr. e Costa, 2014). A perspectiva da reforma implica a ideia de sujeitos que possuem potencialidades subjetivas e objetivas de viverem suas vidas em sociedade e que devem receber ofertas de cuidados e tratamentos que 22 os facilitem no desenvolvimento e sustentação de condições para viverem como pessoas e como cidadãos. Uma perspectiva, como sabemos, que teve grande influência da reforma italiana liderada por Basaglia (Barros; Nicácio e Amarante, 1997). O diagnóstico de doença mental é feito tradicionalmente da exterioridade da vida da pessoa e não de sua experiência subjetiva. Este recebe um veredito do médico, mas não pode se entender nesta designação nosológica. Torna-se necessário sair da exterioridade e aproximar-se de suas vivências e acompanhar as suas possibilidades narrativas e criativas para construir arranjos de sua vida e de sua sobrevivência no mundo (Serpa Jr. et alii, 2014). Para o diagnóstico, exige-se categorias nosológicas que são estabelecidas arbitrariamente e nasceram antes de mais nada do estabelecimento de noções de normalidade e de patologia. Sabemos que a marca hospitalar como modelo, seccionou o homem da doença, centrando principalmente na tentativa de estudar a doença em si sem levar em conta a pessoa ou a subjetividade daquele que é designado como doente (Zorzanelli; Bezerra Jr. e Costa, 2014). Tendo como referência a realidade tenebrosa que encontramos nos inícios dos anos 70, são importantes as mudanças alcançadas. De um sistema desumano, segregador e de desrespeito aos sujeitos tidos como doentes mentais, à perspectiva da acolhida e da oferta de operadores terapêuticos externos em unidades menores, onde é incentivado as interações interpessoais, a criatividade, a preparação para a produção e inserção no campo econômico e garantia dos direitos de cidadão. Esta abordagem vem criando novas condições para aqueles que sofrem de transtornos psíquicos e para seus familiares, além de servir de reflexividade para a mudança dos estereótipos e representações sociais da loucura e de novas possibilidades de pensar os seus destinos na sociedade. Ou seja, quebrar a crença de que lugar de louco é no hospício, máxima fixada no final do século XIX. Mas, observamos hoje que a complexa e heterogênea demanda feita aos CAPS vem acarretando a perda dos limites de suas condições de funcionamento enquanto dispositivo terapêutico e psicossocial. Além das dificuldades de contar com equipe suficiente e bem preparada, os CAPS são implantados em áreas programáticas (AP) extensas, que envolvem vastos contingentes populacionais, situando-se nesta AP como referência para as Residências Terapêuticas (RT), criadas para receber os “psiquiatrizados” ou 23 institucionalizadosque não possuem acesso a locais ou a condições de moradia; recepção de pacientes de longas internações, através do projeto de desinstitucionalização ou Volta para Casa1; referência para o estabelecimento de laços com internados em unidades de curta duração, para assegurar a continuidade da assistência externa; referência para receber jovens adultos que estão saindo das unidades que assistem crianças e adolescentes com autismo e outros transtornos graves, muitas vezes portadores de lesões e deficiências mentais graves, além da atuação junto aos projetos de assistência às famílias (PSF). Considerações finais Para finalizar, retomo o paralelo das mudanças ocorridas neste campo e a reflexividade da obra de Nise, que é um vetor de inspiração. Consideramos fundamental para sustentar hoje as práticas da reforma o compromisso com a pesquisa. Diz-se, com frequência, que temos uma prática sem teoria. E nisso Nise foi também um exemplo. Para aqueles que conheceram a sua práxis, sabem que, junto aos métodos terapêuticos ativos e criativos por ela orientados, associava-se a pesquisa profunda, visando conhecer o mundo interno e enigmático dos chamados esquizofrênicos. Como disse Drummond de Andrade aquele “ser distanciado da imprecisa fronteira do normal – o fechado em si, o supostamente ininteligível ... que não participa do nosso modo comum de viver e exprimir-se.” (Andrade, 2000, p. 76). Aqueles, muitos tidos como dementes crônicos, surgiram revelações de potenciais criativos e de habilidades artísticas que confrontaram os frios diagnósticos de degeneração, que serviam para justificar a miséria dos hospícios. Isto é, as mentes (dos internos) eram miseráveis (dementes) e nada poderia ser feito, pois eram irrecuperáveis. Esta pesquisa profunda da subjetividade - uma arqueologia da psique - com esses seres humanos considerados despossuídos de subjetividade, poderia ser taxada de subjetivista, preconceituosamente, por intérpretes apressados e de viés mais sociologista, por acharem que Nise só se preocupava com o mundo interno. Para àqueles que conheceram seu trabalho mais de perto e mais profundamente, trata-se do contrário. Sua pesquisa confrontou os métodos agressivos, invasivos e opressivos dos hospícios tradicionais. A produção dos internos revelou muito das opressões sociais, das tensões nas relações familiares e sócio-econômicas, do abismo na comunicação com o outro que estiveram presentes em suas 24 biografias e continuavam depois de seus rompimentos psíquicos. Provou, portanto, que o asilo era justificado socialmente como ponto final para aqueles que já tinham sido empurrados para fora de seu convívio sócio-afetivo (Silveira, 1981;1992). Um muro que separava e bania o chamado doente mental e sua loucura do convívio social, resultando em empobrecimento das representações sociais, pois descartar esta dimensão da experiência humana significa uma redução do seu ser (Ferreira, 2015; Mello, 2014). Desta forma, afirmamos que a práxis de Nise se sustentou no compromisso permanente com o ser humano em seu mundo. A divisão artificial interno–externo é confrontada a todo o tempo em seu trabalho, seja pelo uso dos espaços e do tempo no hospício – onde, com atividades criativas, produtivas e culturais, subverteu a pontuação burocrática do tempo e produziu novos ritmos e novos deslocamentos; das enfermarias fechadas para oficinas de artes aplicadas, ateliês e espaços externos - seja mais tarde, ao criar a Casa das Palmeiras (CP) no bairro da Tijuca, totalmente fora e distante do espaço asilar (Silveria, 1986; Melo JR., 2005). Como afirma Bezerra Jr. (2011, p.14), O asilo era um não-lugar, um espaço desvitalizado no qual o tempo se estagnava, transformando seus habitantes em não-sujeitos que perambulavam por um limbo existencial. O ateliê que Nise criou era a antítese disto: uma ilha de emoções, de relações afetivas, de expressão subjetiva, um lugar de convívio e exploração da singularidade. Em anexo, exponho minha aventura de dar forma poética para falar da importância do meu encontro com Nise e sua universidade nessa trajetória de vida e trabalho. Nota 1. Referência que se tornou paradigmática a partir do importante trabalho de resgate dos asilados em hospício do município de Angra dos Reis liderado pela psicóloga Gina Ferreira. Anexo Na seara de Nise (Ferreira, 1994, p. 58). De que mágicos teares Se tece as trilhas dos encontros 25 Que nos alenta a caminhada Fazendo fluir as fontes Na intensa busca e confrontos Nesta estrada da vida Surge uma luz que ilumina As incertas e sombrias esquinas Frequentar esta lavoura de Nise Para este camponês dos Gerais Foi uma fascinação Que não se perde jamais Neste longo trajeto de sua companhia Aprendemos com maestria e ardor Da arte de curar Curar com arte e amor Nos campos agrestes de amarguras Sulcando, semeando, capinando Ela fez nascer a flor Telas e cores aos milhares foram surgindo Num espaço de trabalho e ternura Nos impermeáveis da cronicidade Do eterno muro asilar Com argúcia e sensibilidade Soube ativar a célula viva Se do homem grande amigo O cão pode ser Para aqueles no hospício Que do isolamento fizeram abrigo Nise lança mão desse fiel companheiro Que ninguém poderá esquecer Do novo terapeuta: o cão Com seu afeto assim terno Acolhe a alma em tormento E pode aplacar uma aflição Se há sofrimento Numa viagem profunda O que resgato desta trajetória Com grande alegria Foi ter Nise como guia 26 Nessa longa travessia Referências Barros, D. D.; Nicácio, F.; Amarante, P. Franco Basaglia e la riforma psichiatrica brasiliana. Rio de Janeiro: DIALOGHI/UERJ, 1997. Bezerra Jr., B. Os sentidos da arte na Atenção à Saúde Mental: considerações sobre o cenário pós- manicomial. In Melo, W. & Ferreira, W. (Org.). A sabedoria que a gente não sabe. Coleção Arte & Saúde Mental 2. Rio de Janeiro: Espaço Artaud, 2011. (p. 14-24). Andrade, C. D. de (2001). A doutora Nise. Jornal do Brasil, 04/01/1975. In Quaterno. Revista do G.E.C.G. JUNG, N. 8. Rio de Janeiro. Berliner, R. (2015). Nise - O coração da loucura. Brasil. Ferreira, A. P. (1994). Na seara de Nise. In Quaterno. Revista do G.E.C.G. JUNG, N. 8, Rio de Janeiro. Ferreira, A. P. (1999). O migrante na rede do Outro: ensaios sobre alteridade e subjetividade. Rio de Janeiro: Te Corá. ____________. (2015). Migração, rupturas e espaços terapêuticos. In Revista de Psicologia da USP N. 2, v. 26, (193-198), São Paulo. Ferreira, A. P., Melo, W. (2014). 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São Paulo: Ática. 27 A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado na assistência psicológica aos pacientes cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde Cristiane Ferreira Esch, Narcisa Silveira de Paula Fonseca, Mariana Silveira Córdova, Liana Ling Gonçalves Setianto, Clareana Velasco Silva de Paula, Alessandro de Magalhães Gemino Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar o trabalho realizado pela Psicologia no Serviço de Cirurgia Cardíaca e Unidade Cardio Intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Fragmentos de casos clínicos ilustram nossa atuação no manejo de casos graves, tendo o cuidado como principal referência e orientação. Ressaltamos a importância de espaços de diálogo e do trabalho multiprofissional para que pacientes, familiares e equipe de saúde sejam assistidos em suas diferentes demandas de cuidado. Palavras-chave: cuidado, psicologia da saúde, subjetividade, sofrimento psíquico, doenças cardiovasculares. Abstract: The article aims to present the work carried out by Psychology in the Cardiac Surgery Service and Cardio Intensive Unit of the University Hospital Pedro Ernesto. Fragments of clinical cases illustrate our actions in the management of severe cases, with care as the main reference and orientation. We emphasize the importance of spaces for dialogue and multiprofessional work so that patients, family and health team are assisted in their different demands for care. Keywords: care, health psychology, subjectivity, psychic suffering, heart diseases. Resumen: El artículo tiene como objetivo presentar el trabajo realizado por la Psicología en el Servicio de Cirugía Cardiaca y Unidad Cardio Intensiva del Hospital Universitario Pedro Ernesto. Los fragmentos de casos clínicos ilustran nuestra actuación en el manejo de casos graves, teniendo el cuidado como principal referencia y orientación. Resaltamos la importancia de espacios de diálogo y del trabajo multiprofesional para que pacientes, familiares y equipo de salud sean asistidos en sus diferentes demandas de cuidado. 28 Palabras-clave: cuidado, psicología de la salud, subjetividad, sufrimiento psíquico, enfermedades cardiovasculares. Introdução O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) é vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro tendo sido inaugurado no ano de 1950. A Unidade Docente Assistencial de Cirurgia Cardíaca do HUPE, por sua vez, foi criada em setembro de 1975, pelo Dr. Waldir Jazbik, que esteve à frente da unidade até 2001, quando então se aposentou. Atualmente, o Serviço atua a partir de duas vertentes: a assistencial, sob a chefia do Dr. Joaquim Henrique de Souza Aguiar Coutinho, e a docente, sob a coordenação do Dr. João Carlos Jazbik. A tecnologia sofisticada tem sido marca do setor, que chegou a ter o maior número de cirurgias cardíacas realizadas por dia em nosso Estado. Além disso, o Serviço foi pioneiro em cirurgia de revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea. Infelizmente, anos de falta de recursos fizeram encolher o Serviço de Cirurgia Cardíaca, mesmo que ainda hoje seja reconhecido como referência em cirurgia cardíaca no Rio de Janeiro. O CTI Cardíaco se destina, prioritariamente, a pacientes em situações de pré e pós- operatórios de cirurgia cardíaca, sendo a revascularização do miocárdio e as trocas valvares as principais cirurgias realizadas no HUPE. Nesse contexto, o serviço recebe internações breves, porém cheias de expectativas por parte do paciente e seus familiares sobre o evento cirúrgico a ser realizado. Acreditamos que essas expectativas estejam presentes de forma ainda mais intensa em pacientes que, ao serem usuários do Sistema Único de Saúde, aguardaram a cirurgia por longos períodos, podendo exceder anos de espera. A cirurgia cardíaca constitui-se, em geral, como uma vivência de grande impacto na vida do paciente, seja em seu aspecto físico ou em seu aspecto psicológico. É um tratamento invasivo, muitas vezes considerado agressivo e que, simbolicamente, irá mexer com o centro da vida, o 29 templo dos sentimentos (Oliveira e Luz, 1992). Não raramente, a cirurgia cardíaca provoca no paciente algumas reações como o medo, a ansiedade e a incerteza quanto aos riscos do procedimento, bem como sobre a sua capacidade de retorno às atividades físicas e intelectuais após o procedimento (Oliveira e Oliveira, 2010). Sendo assim, considera-se que o tratamento cirúrgico traz consigo uma carga significativa de dramaticidade para os indivíduos que a ele se submetem. O ingresso da psicologia no Serviço de Cirurgia Cardíaca do HUPE aconteceu, por solicitação médica da própria unidade, em 19961, e foi possível a partir de uma parceria com o Instituto de Psicologia da UERJ, através do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – modalidade Residência Hospitalar e, mais recentemente, através da oferta de estágio para alunos de graduação em Psicologia da UERJ2. Mais recentemente, em meados de 2015, por solicitação da equipe de enfermagem da Unidade Cardio Intensiva, e em acordo, com a chefia desse serviço, a psicologia passou a ocupar também essa enfermaria. A Unidade Cardio Intensiva (UCI), também conhecida como Unidade Coronariana, no HUPE, faz parte do Serviço de Cardiologia da UERJ, e funciona como um centro de referência do SUS, no Estado do Rio de Janeiro, para pacientes portadores de cardiopatias, que chegam à unidade via sistema de regulação. Trata-se de uma Unidade de Tratamento Intensivo, especializada no acolhimento de pacientes cardiopatas descompensados e/ou submetidos a procedimentos cardiovasculares como angioplastias ou mesmo procedimentos cirúrgicos. As principais patologias encontradas nesta unidade são: síndromes coronarianas aguda e crônica, insuficiência cardíaca, doenças arrítmicas, doenças orovalvares, sendo que, na maioria das vezes, os pacientes apresentam comorbidades. A unidade dispõe de equipamentos e tecnologia necessários para oferecer um cuidado intensivo, a saber: monitoração, suporte hemodinâmico e ventilatório. Nesse setor, as internações tendem a ser mais longas e marcadas pelas dificuldades e implicações psicológicas decorridas da doença de base. 30 São bastante conhecidas por parte da equipe de saúde as potencialidades de uma unidade fechada (CTI) em desencadear reações fisiológicas e psíquicas nos pacientes. Também para os familiares, ter um ente querido internado e sob os cuidados de profissionais é um evento, na maioria das vezes, vivido com estresse e angústia. Assim, tanto para o paciente grave como para seus familiares, a internação hospitalar, em geral, está atrelada a uma série de aspectos capazes de suscitar fortes reações emocionais. Podemos considerar que uma internação representa um momento de crise na vida do sujeito, com a presença de angústia, solidão e impotência. Do ponto de vista objetivo, alguns fatores concorrem para esse fato, tais como: a saúde da pessoa encontra-se ameaçada; o hospital é um ambiente estranho e alheio à rotina de vida dessas pessoas; a dificuldade de se obter informações, além da possibilidade de chegarem informações desencontradas por parte dos diversos membros da equipe; o tratamento que pode ser impessoal e descomprometido. Tais elementos reunidos podem levar a vivência do desamparo. Em nosso caso, ambos os setores funcionam em regime intensivo, sendo o paciente constantemente manipulado e monitorado pela equipe. Nas unidades intensivas, os pacientes despem-se de suas próprias roupas e de seus bens pessoais, são reconhecidos e nomeados por suas patologias e frequentemente estão restritos ao leito. O tempo cronológico, o passar do dia, é marcado pelos horários de visitas ou de refeições (quando elas são feitasoralmente), já que não existem janelas. Além disso, a questão do enclausuramento, típico do setor, é um fator determinante para alterações da percepção temporal dos pacientes. Isso, sem contar com a falta de privacidade e de sossego ocasionados pela disposição padronizada dos leitos, pelos bips das máquinas e pela checagem dos profissionais, que não cessam em incomodar. Internado nesse local, o doente torna-se um paciente, sem trocadilhos, uma pessoa resignada aos cuidados médicos, que deve esperar serenamente a melhora de sua doença. Esse paciente, desnudado por uma instituição total, perde sua identidade, transforma-se em número, em um 31 caso clínico, deixa de ser responsável por si mesmo, sua doença e vida. O paciente é vulnerável, submisso e dependente (Oliveira, 2002, p. 35). Podemos dizer, inclusive, que esse é o tipo de paciente que realmente se espera. Pacientes que se manifestam trazendo questionamentos, queixas, apontando falhas, ou apresentam-se agitados, chorosos, e mesmo aqueles implicados com sua doença e situação de saúde, mostrando-se, na medida do possível, mais ativos e atuantes, costumam não serem bem vistos, são tidos como chatos e difíceis. Sendo assim, quase tudo nesse ambiente colabora para a perda de autonomia. O aumento das restrições e a radicalidade das experiências vividas em uma unidade intensiva reforçam a importância da atuação da psicologia. Nesse sentido, frente às diversas angústias que a internação pode suscitar, nossa atuação tem como direção o acompanhamento dos pacientes internados, de seus familiares e o da equipe multiprofissional que atua no cuidado desses pacientes. O presente capítulo tem, portanto, o objetivo de apresentar o que tem sido realizado pela Psicologia ao longo desses vinte e dois anos de inserção na UDA (Unidade Docente Assistencial) de Cirurgia Cardíaca e, mais recentemente, na Unidade Cardio Intensiva. Para tanto, traremos como eixo norteador o tema do cuidado, tão caro ao nosso fazer. Trata-se de um escrito feito a muitas mãos. A diversidade está presente neste trabalho. Temos diferentes olhares, permeados por distintas filiações teóricas na clínica. Também os diferentes profissionais que atuam/atuaram na Cirurgia Cardíaca e na Unidade Cardio Intensiva do HUPE exercem/exerceram a clínica a partir de distintas correntes teóricas da Psicologia/Psicanálise. Assim, além do cuidado se apresentar como o principal alicerce de nosso trabalho, tivemos ainda outro motivo para elegê-lo como tema central desse artigo: o fato de ser um tema abordado por diferentes correntes teóricas da Psicologia Clínica. O cuidado/cuidar como eixo do trabalho da psicologia 32 Poderíamos falar de qualquer órgão, mas estamos falando do coração: coração que possui todo um simbolismo no imaginário, coração que pulsa, que vibra, que sofre, que ama... Poderíamos falar de qualquer pessoa, mas estamos falando do João, ou ainda, da Maria, que chegam ao hospital e passam por uma internação. Ao chegarem, não vêm sós. Estão acompanhados. Vem junto deles sua bagagem: sua história, seus modos de ser, seus amores e suas dores, os quais os tornam únicos. Vem suas famílias e suas diferentes dinâmicas, configurações. Vem histórias e mais histórias. Então, junto com o João, ou a Maria, vem junto tanta, tanta coisa, sendo dessa complexidade que nós da equipe de saúde precisamos cuidar. Para oferecer um cuidado, que busca ser integral, é necessária uma equipe. Algo tão complexo exige complexidade: múltiplos olhares, múltiplos saberes, interlocuções, integração... Reunião de esforços, ações, procedimentos, condutas para oferecer o melhor cuidado! Isso porque, não fazemos nada sozinhos: precisamos de um outro para nascer, precisamos de um outro para crescer, precisamos de um outro para viver e precisamos de um outro para morrer! Ainda hoje é comum a ideia de que o acolhimento ao paciente e a sua família é algo para psicólogos, no máximo, para assistente social. No entanto, o acolhimento é tarefa de toda uma equipe de saúde. O acolhimento perpassa todo o período em que o paciente se encontra no hospital. A família é o suporte emocional do paciente. Ao apoiar e oferecer suporte à família, contribui-se para que a mesma possa oferecer suporte ao familiar internado. E ainda, quando o paciente morre, seus familiares continuam sendo nossos clientes. Sobre o acolhimento familiar, podemos dizer que é um processo contínuo; é uma postura ética; busca valorizar as queixas e identificar as necessidades dos familiares. Na prática, o acolhimento familiar representa: ter responsabilidade e compromisso com as necessidades que os familiares apresentam; respeitar as diferenças; reconhecer a família como protagonista do processo. A fábula de Higino: o cuidado como condição do humano 33 Costa (2009), ao introduzir o tema do cuidado, traz-nos uma fábula acerca do tema, conforme relato a seguir: Certa vez, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa. Ocorreu-lhe então a ideia de moldá-lo, dando-lhe forma. Enquanto pensava sobre o que acabara de criar, interveio Júpiter. Cuidado pediu-lhe que insuflasse espírito à forma que ele moldara, no que Júpiter o atendeu prontamente. Cuidado quis, então, dar um nome à sua criação, mas Júpiter se opôs, exigindo que ele, que lhe dera espírito, fosse também quem lhe desse o nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre quem lhe daria o nome, apareceu a Terra que, tendo cedido parte de seu corpo para o que fora criado, queria também nomeá-lo. Diante de tamanha contenda, decidiram que Saturno seria o juiz da disputa. Saturno tomou então uma decisão equânime, proferindo a sentença: “tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito de volta; tu, Terra, que cedeste do teu corpo, receberás o corpo de volta. Mas como foi Cuidado quem primeiro o formou, pertencerá a ele enquanto viver. E havendo entre vós disputa insolúvel sobre o seu nome, eu o nomeio: chamar-se-á ‘homem’, pois foi feito de húmus (terra fértil) (p. 30). Costa (2009) propõe uma interpretação acerca dessa fábula, conhecida como “o mito do cuidado”, da qual nos utilizaremos a fim de salientar alguns pontos importantes para o trabalho em saúde. O autor afirma que a decisão de Saturno, ao tentar conciliar a vontade de todos os três é geralmente considerada justa. Porém, adverte que o caráter equitativo de sua sentença, não deve deixar passar despercebida uma diferença fundamental: Júpiter e Terra somente terão o homem de volta após a sua morte. O mito estabelece assim uma interpretação clara a respeito do destino do homem após a dissolução do seu corpo. Uma vez sem ânimo, esse corpo volta à Terra, indiferenciando-se. É a parte retornando ao todo do qual surgiu. Já o espírito, que não se corrompe, volatiza-se ao domínio das almas, dos vapores, reino de Júpiter por excelência. “Cuidado, entretanto, possuirá o homem enquanto viver. Enquanto houver vida, o homem pertencerá ao 34 cuidado ... Com isso se quer dizer que não há distinção entre cuidado e vida humana ... O homem, vivendo, cuida; cuidando, vive” (Costa, 2009, p. 30, grifo nosso). De acordo com Costa (2009), há ainda, no mito, a presença de um elemento a partir do qual se pode pensar que a decisão de Saturno privilegia, de alguma forma, Cuidado. É que ao homem pertence radical e impulsivamente o desejo de vida. Situar Júpiter e Terra no âmbito de sua morte significa entregar-lhes o homem quando este já não é mais o que quer ser, quando já não é homem. Sua inteireza e integridade, entretanto, ficam com Cuidado. O homem deseja manter-se vivo, preservando a sua vida. Por isso mesmo, sua vida se caracteriza pelo cuidado que toma para não perdê-la. Sendo assim, o cuidado figura como a arma primordial na vida do homem, de forma a manter o seu interesse mais radical. Para Costa (2009), “a
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