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1 de 5 VULNERABILIDADE: conceito em disputa e construção Cosme Rezende Laurindo1 19/08/2018 INTRODUÇÃO A emergência da temática da vulnerabilidade social se dá nos anos 90, a partir do esgotamento da matriz analítica da pobreza, que se reduzia a questões econômicas. Naquela época, a conceituação estava mais voltada para o sentido de conhecer os setores mais desprovidos da sociedade (uma vez que se utilizava de indicadores de acesso ou de carências de satisfação das necessidades básicas) do que para compreender os determinantes do processo de empobrecimento (MONTEIRO, 2011). Com isso, foram delineados os grupos de risco na sociedade, com uma visão focalizada do indivíduo e não no contexto social que produziu a vulnerabilidade (MONTEIRO, 2011; BRASIL, 2018). Inicialmente, as expressões “vulnerabilidade” e “risco social” apareciam de forma indiscriminada para referir-se às famílias pobres (SANTOS; ROESCH; CRUZ, 2014). Em 2004, quando foi instituída, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) explicitou em seu texto que a vulnerabilidade social, expressa por diferentes situações que podem acometer os sujeitos em seus contextos de vida, é o campo de atuação de suas ações (CARMO; GUIZARDI, 2018). Contudo, evidências apontam que de 2008 em diante, a expressão “vulnerabilidade social”, embora apareça como um conceito complexo em documentações, continua a ser uma forma de caracterizar as famílias destinatárias da proteção social básica (SANTOS; ROESCH; CRUZ, 2014). Faz-se importante realizar a distinção entre vulnerabilidade e risco, a partir da compreensão de situação de risco focando-se no indivíduo, portanto, revestida de caráter subjetivo, o que acaba por naturalizá-la ou legitimá-la. Outro aspecto intimamente ligado à noção de risco é a perspectiva da probabilidade, da previsão (MONTEIRO, 2011). 1 Enfermeiro. CV: http://lattes.cnpq.br/9954590863114471.cosmelaurindo@outlook.com http://lattes.cnpq.br/9954590863114471 mailto:cosmelaurindo@outlook.com VULNERABILIDADE NA SAÚDE A noção de vulnerabilidade social foi trazida para o campo da saúde, principalmente, no que se refere à infecção por HIV (MONTEIRO, 2011; ALVES; SEMZEZEM, 2013), numa superação da noção de risco social como forma de ampliar a compreensão da suscetibilidade aos agravos de saúde, a partir das características da evolução da epidemia, como a mudança no perfil das pessoas atingidas e variáveis socioeconômicas. Essa contribuição se dá na medida em que passa a deslocar o foco do individual, considerando os aspectos do contexto social (MONTEIRO, 2011; BRASIL, 2018; CARMO; GUIZARDI, 2018). Com o elemento da vulnerabilidade sob perspectiva, o estudo dos conflitos ambientais passou a reconhecer que o aspecto social deve estar presente quando se trata de riscos, visto que a propensão de uma população ao risco sofre determinações da estrutura desigual de concentração de poder na sociedade (BRASIL, 2018; CARMO; GUIZARDI, 2018). VULNERABILIDADE NA ASSISTÊNCIA SOCIAL O conceito de vulnerabilidade é adjetivado pelo termo social, que indica a evolução do entendimento acerca das privações e desigualdades ocasionadas pela pobreza. As imbricações entre os conceitos de risco e vulnerabilidade no campo da assistência social levam a concepções que tomam desde a dimensão mais individual do primeiro sobre o segundo, passando pela assunção daquele como a condição da frágil sociedade contemporânea e deste como a condição dos indivíduos inseridos nesta sociedade, culminando por atrelar a situação de vulnerabilidade dos sujeitos a um certo risco (CARMO; GUIZARDI, 2018). Os primeiros estudos acerca de vulnerabilidade deram-se por meio da contribuição de Glewwe e Hall, que se restringiam à compreensão da vulnerabilidade a partir do viés econômico. Voltaram-se à capacidade de mobilidade social, uma vez que o fator econômico influencia na redução de oportunidades, interferindo diretamente nas possibilidades de acesso a bens e serviços (MONTEIRO, 2011; ALVES; SEMZEZEM, 2013). A vulnerabilidade social se constitui como construção social, enquanto produto das transformações societárias, assumindo diferentes formas de acordo com os condicionantes históricos. Essas transformações acabam por desencadear fundamentais mudanças na esfera da vida privada, acentuando fragilidades e contradições (MONTEIRO, 2011). Diante desses pressupostos, a compreensão de vulnerabilidade deve ser compreendida a partir da relação dialética entre externo (contexto de referência) e interno (características básicas de indivíduos, grupos lugares ou comunidades, constituídos a partir do que se considera "ativos"). Essa estrutura de possibilidade de enfrentamento é que irá determinar maior ou menor desvantagem ou debilidade no processo de mobilidade social (KASTSMEN, 1999). Os ativos podem ser compreendidos como um conjunto articulado de condições que irão implicar a qualidade, quantidade e diversidade dos recursos internos, os quais devem ser avaliados a partir de quatro aspectos: físico, financeiro, humano e social (MONTEIRO, 2011; CANÇADO; SOUZA, 2014)). A vulnerabilidade é entendida como o desajuste entre ativos e a estrutura de oportunidades, provenientes da capacidade dos atores sociais de aproveitar oportunidades em outros âmbitos socioeconômicos e melhor sua situação, impedindo a deterioração em três principais campos: os recursos pessoais, os recursos de direitos e os recursos em relações sociais (KATZMAN, 1999). Dessa forma, a diminuição dos níveis de vulnerabilidade social pode se dar a partir do fortalecimento dos sujeitos para que possam acessar bens e serviços, ampliando seu universo material e simbólico, além de suas condições de mobilidade social. Para isso, as políticas públicas constituem-se de fundamental importância (MONTEIRO, 2011; ALVES; SEMZEZEM, 2013). RISCO X VULNERABILIDADE SOCIAL Enquanto risco, segundo Yunes e Szymanski (2001), foi usado pelos epidemiologistas em associação a grupos e populações, a vulnerabilidade refere-se aos indivíduos e às suas suscetibilidades ou predisposições a respostas ou consequências negativas. É importante ressaltar, contudo, que, para essas autoras, existe uma relação entre vulnerabilidade e risco: “a vulnerabilidade opera apenas quando o risco está presente; sem risco, vulnerabilidade não tem efeito” (p. 28). Sobre a relação entre vulnerabilidade e risco, Reppold e colbs. (2002) afirmam que, frente a situações adversas, o “comportamento dos sujeitos perante esses eventos depende de sua vulnerabilidade” (p. 10), ou seja, há uma predisposição ou mesmo resposta pouco adequada à situação. Carneiro e Veiga (2004) definem vulnerabilidade como exposição a riscos e baixa capacidade material, simbólica e comportamental de famílias e pessoas para enfrentar e superar os desafios com que se defrontam. Portanto, os riscos estão associados, por um lado, com situações próprias do ciclo de vida das pessoas e, por outro, com condições das famílias, da comunidade e do ambiente em que as pessoas se desenvolvem. Da análise do conceito de risco e vulnerabilidade pode-se chegar a algumas conclusões. Uma delas se refere ao fato de o risco não poder ser identificado como vulnerabilidade, embora se possa estabelecer uma relação estreita entre eles. O primeiro conceito se refere à situação de grupos, e o segundo deve ser usado para a situação fragilizada de indivíduos. Outra conclusão é a falta de clareza no uso dos conceitos de risco e vulnerabilidade social. A terceira conclusão evidencia que a sociedade pós-industrial é uma sociedade de risco, principalmente pelos efeitos que o mundo globalizado produziu, no qual as ações individuais podem ter efeito sobre o planeta e as modificações em algum lugar do globo ter efeitos sobre os indivíduos do mundo todo (JANCZURA, 2012). CONSIDERAÇÕESFINAIS Ainda que o termo vulnerabilidade carregue imprecisões frutificadas pelo processo de construção conceitual em que se encontra, há avanços na discussão da realidade dinâmica e multideterminada. A acepção da vulnerabilidade como parâmetro de reflexão e atuação implica o reconhecimento da concomitância de fatores éticos, políticos e técnicos contornando a incidência de riscos nos territórios e a capacidade humana para o seu enfrentamento (CARMO; GUIZARDI, 2018). Aprofundar esse debate se faz fundamental para perceber a lógica que vem conduzindo a conformação das políticas sociais, sendo assim, a proteção social ao invés de assumir a universalidade de cobertura e um direito de cidadania, passa a se ocupar daquele segmento populacional vulnerável, conformando a política de forma focalizada em segmentos, portanto reatualizando o caráter seletista que historicamente caracterizou as políticas sociais sob novas bases conceituais (MONTEIRO, 2011). REFERÊNCIAS ALVES, J. D.; SEMZEZEM, P.. Vulnerabilidade social, abordagem territorial e proteção na Política de Assistência Social. Serv. Soc, Rev., Londrina, v. 16, n. 1, p.143-166, jul./dez. 2013. BRASIL. Governo Federal. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (ipea). Vulnerabilidade social no Brasil: conceitos, métodos e primeiros resultados para municípios e regiões metropolitanas brasileiras. Rio de Janeiro: ipea, 2018. 84f. CANÇADO, T. C. L.; SOUZA, R. S.. Trabalhando o conceito de Vulnerabilidade Social: C. B. S. Cardoso. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS: POPULAÇÃO, GOVERNANÇA E BEM-ESTAR, 2014, Brasília. Brasília: UnB, 2014. p. 1 - 21. CARMO, M. E.; GUIZARDI, F. L.. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad. Saúde Pública, [internet], v. 34, n. 3, p.e00101417, 2018. JANCZURA, R.. Risco ou vulnerabilidade social? Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p.301-308, ago./dez. 2012. KAZTMAN, R. (Coord.). Activos y estructura de oportunidades: estudios sobre las raíces de la vulnerabilidad social en Uruguay. Uruguay: PNUD-Uruguay e CEPAL- Oficina de Montevideo, 1999b. MONTEIRO, S. R. R. P.. O marco conceitual da vulnerabilidade social. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 17, n. 2, p.29-40, jul./dez. 2011. REPPOLD, C. T. et al. Prevenção de problemas de comportamento e o desenvolvimento de competências psicossociais em crianças e adolescentes: uma análise das práticas educativas e dos estilos parentais. In: HULTZ, C. S. et al. Situações de risco e vulnerabilidade na infância e na adolescência: aspectos teóricos e estratégias de intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. SANTOS, N. L.; ROESCH, D.; CRUZ, L. R.. Vulnerabilidade e risco social: produção de sentidos no campo socioassistencial. Revista Jovens Pesquisadores, Santa Cruz do Sul, v. 4, n. 1, p.119-127, 2014. YUNES, M. A. 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