Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Demarcação de terras indígenas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Conceituar terras tradicionalmente ocupadas por indígenas. Reconhecer o processo administrativo de demarcação de terras. Descrever a judicialização de etapas do processo de demarcação. Introdução É do conhecimento geral que, quando do descobrimento do Brasil, nossas terras eram ocupadas por povos nativos, compostos por índios — assim nomeados pelos portugueses descobridores —de diversas etnias, espalhados por diferentes regiões do território brasileiro. O início do povoamento e da exploração do território “descoberto” por Pedro Álvares Cabral desencadeou descontentamento por parte de algumas dessas etnias indígenas, que não aceitavam os bens ofertados pelos exploradores em troca de boa convivência. Podemos dizer que esse foi o marco inicial para a questão da disputa por territórios considerados tradicionalmente ocupados pelos povos nativos, que se arrasta até os dias de hoje, com a demarcação de terras que já possuem titulares que as utilizam economicamente. É fato que as terras de todo o território brasileiro, em algum momento anterior à chegada dos colonizadores portugueses, foram ocupadas pelos índios. No entanto, o processo de povoamento do Brasil fez com que o território fosse aos poucos dividido em lotes, concedidos, inicialmente, por meio do regime de sesmarias e, posteriormente, adquiridos por aqueles que já detinham a posse dessas áreas ou por produtores, no decorrer dos anos. Neste capítulo, você vai estudar os conceitos de terras tradicional- mente ocupadas pelos índios, vai explorar a questão das demarcações, abrangendo todo o processo administrativo, e vai compreender o que é a judicialização de etapas do processo de demarcação de terra indígenas. Terras tradicionalmente ocupadas por indígenas A legislação brasileira inaugurou o primeiro texto a respeito das terras tra- dicionalmente ocupadas por indígenas por meio da Constituição Federal de 1934, que garantia, em seu art. 129, o respeito à posse de terra de silvícolas que nelas se encontrassem localizados em caráter permanente, vedando a alienação dessas áreas. Posteriormente, as Constituições de 1937 e 1946 mantiveram o mesmo ordenamento de proteção possessória aos povos indígenas. Com o advento da Carta Magna de 1967, houve expressiva alteração e avanço à favor das comunidades indígenas, sendo disposto em seu art. 186 que “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes” (BRASIL, 1967, documento on-line). Exigia-se, a partir de então, apenas a mera habitação da terra como pressuposto para estar caracterizada a posse pelos índios, superando a previsão anterior, que exigia o critério de localização permanente. Finalmente, a nossa atual CF, promulgada em 1988, reserva um capítulo próprio para tratar dos direitos indígenas, inserido no título que trata da ordem social, trazendo importantes inovações jurídicas em relação à questão indígena. A CF de 1988 trouxe o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, dispondo no art. 231, § 1°, as seguintes palavras: São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as impres- cindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (BRASIL, 1988, documento on-line). Assim, a mais notória alteração trazida pela CF de 1988 foi a inserção do marco temporal de ocupação para se determinar que é direito dos índios a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por eles, competindo à União o procedimento demarcatório (Figura 1). Outra inserção inovadora destacável dessa nova Carta se refere às menções de que as áreas habitadas pelos silvíco- las são imprescindíveis para seu bem-estar, sua reprodução, seus usos, seus Demarcação de terras indígenas2 costumes e suas tradições, diferindo de forma substancial das Constituições mais antigas, que possuíam uma ideia de incorporação dos povos indígenas à sociedade. Portanto, a CF de 1988 garante o direito das populações indígenas de preservar sua identidade própria e sua cultura diferenciada, de forma a manter suas características, mas também os inclui socialmente. Figura 1. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 231, estabelece que são terras dos índios aquelas tradicionalmente ocupadas por eles, essenciais para garantir seu bem- -estar e sua reprodução física e cultural. A foto apresenta uma manifestação para a saída de fazendeiros de uma região estabelecida pelo Governo Federal como Terra Indígena Yanomami, no estado de Roraima, em 2013. Fonte: Povos indígenas no Brasil ([2018]). Assim, o novo mandamento constitucional cria basicamente quatro crité- rios para o reconhecimento das terras como tradicionalmente ocupadas por indígenas, a considerar: 1. aquelas habitadas em caráter permanente; 2. aquelas utilizadas para suas atividades produtivas; 3. aquelas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais neces- sários ao seu bem-estar; e 4. aquelas necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Outros dois dispositivos inseridos no art. 231 da CF de 1988 são os §§ 4° e 5°, que tratam, respectivamente, da inalienabilidade e indisponibilidade das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e da imprescritibilidade dos direitos sobre elas, além da vedação à remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo por meio de referendo do Congresso Nacional na ocasião de 3Demarcação de terras indígenas ocorrência de três únicas exceções: catástrofe, epidemia e interesse da soberania nacional. É importante mencionar também que, diante da característica de tradicionalidade conferida pela CF de 1988, a posse das terras ocupadas pelos indígenas independe de titularidade, já que o título é originário, precedendo quaisquer outros direitos (BRASIL, 1988). Apesar de o art. 231, § 2º, da CF de 1988 garantir a posse direta e o usufruto das riquezas naturais exclusivamente aos índios em terras tradicionalmente ocupadas por eles, é importante frisar que a propriedade dessas áreas é da União, conforme previsão do art. 20, inciso XI, da mesma Lei. Demarcação de terras indígenas Muito antes da CF de 1988, o Estatuto do Índio — Lei n°. 6.001 de 19 de dezembro de 1973 —, que já enumerava uma série de direitos civis e políticos dos índios, estabeleceu o prazo de cinco anos para o Poder Executivo concluir a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas (BRASIL, 1973). No entanto, esse prazo jamais foi cumprido, e a CF de 1988, por meio do art. 67 do ADCT, determinou que a União concluísse a demarcação das terras indígenas também no prazo de cinco anos, contados a partir da promulgação da CF (5 de outubro de 1988) (BRASIL, 1988). O que é o ADCT? O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — ADCT — é uma norma que foi elaborada pelos mesmos legisladores que criaram o texto constitucional de 1988 e contém regras criadas no intuito de assegurar a harmonia da transição da Constituição de 1969 para a de 1988, perdendo sua eficácia jurídica assim que ocorre a situação prevista. Assim como os dispositivos constitucionais, a ADCT só pode ser alterada por Emenda Constitucional. Demarcação de terras indígenas4 No entanto, o Decreto n°. 1.775 (BRASIL, 1996), editado com a finalidade de dispor sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e dar outras providências, foi publi- cado somente no dia 05 de janeiro de 1996, inviabilizando o cumprimento do prazo previsto no art. 67 do ADCT. É importante saber que, embora o prazo de conclusão para a demarcação das terras tradicionalmenteocupadas pelos indígenas seja de 05 (cinco) anos, tal prazo não é peremptório ou preclusivo, nem mesmo prescritivo. A partir do momento em que não foi devidamente cumprido pelo Poder Público, nasce tão somente a obrigação de justificativa por sua parte. Sobre essa questão, podemos citar jurisprudência do STF, na qual o Ministro Marco Aurélio, Relator do Mandado de Segurança nº. 24.566/DF, julgado pelo Tribunal Pleno em 22 de março de 2004, não con- siderou como decadencial o prazo de 05 anos previsto no art. 67 da ADCT, interpretando que o dispositivo constitucional apenas estabeleceu um prazo razoável para o desejável adimplemento, por parte da União, no que diz respeito à conclusão do processo demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. Para caracterizar determinada área como terra tradicionalmente indígena, é necessário apenas a ocupação pelo silvícola, não dependendo de quaisquer outros tipos de atos ou requisitos. No entanto, é fato que, para a terra tradicional indígena ser efetivamente reconhecida e considerada como tal, é imprescin- dível que sejam aplicadas algumas medidas, como a identificação da área, sua localização com a definição dos seus respectivos limites territoriais, a efetivação dos estudos antropológicos, etc. Além dessas medidas, para o reconhecimento da área tradicional indígena, utilizando-se da previsão do art. 17, inciso I, da Lei nº. 6.001/1973, é de suma importância, também, identificar o tipo de terra de que se trata: terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas; áreas reservadas como reserva indígena, parque indígena ou colônia agrícola indígena, conforme art. 26 da Lei n°. 6.001/1973; ou, ainda, se trata-se de terras de domínio de comunidades indígenas ou de silvícolas (BRASIL, 1973). Ainda, há a necessidade de obediência do critério temporal, inovação tra- zida pela atual Constituição, entendida pelo Supremo Tribunal Federal como critério fundamental para identificação da área como de posse indígena. Tal entendimento foi, inclusive, abordado no caso Repouso Serra do Sol (PET 3888/RR, STF), baseado no fato de que a data da promulgação da CF foi es- tabelecida como marco temporal para a análise de casos envolvendo ocupação 5Demarcação de terras indígenas indígena, estendendo-se a proteção constitucional às terras ocupadas pelos índios (BRASIL, 2008). Ou seja, considera-se, para efeitos dessa ocupação, a data em que foi promulgada a vigente Constituição (5 de outubro de 1988). O processo de demarcação, que é de responsabilidade e competência da União, que por sua vez delega a função à Fundação Nacional do Índio (Funai), é basicamente o ato administrativo que tem como objetivo explicitar os limites dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas. Logo em seu primeiro art., o Decreto demarcatório remete à definição dada pelo Estatuto do Índio e também pela CF de 1988, referente àindividualização das terras tradicionais indígenas (BRASIL, [2018]). Ou seja, utiliza a norma indígena e a constitucional para definir o que são terras consideradas indígenas, dispondo que serão administrativamente demarcadas sob orientação do órgão federal de assistência ao índio (Funai). Nesse contexto, as diretrizes do processo administrativo de demarcação das terras indígenas são definidas por leis infraconstitucionais — a Lei n°. 6.001/1973 e o Decreto n°. 1.775/1996 —, atribuindo-se à Funai o dever de orientar e executar a demarcação das áreas. Basicamente, o art. 2° do Decreto n°. 1.775/1996 (BRASIL, 1996) regulamenta todas as fases da demarcação administrativa de terras indígenas, relacionando uma série de medidas, or- ganizadas em ordem cronológica, a serem tomadas, devendo ser interpretado e aplicado, conjuntamente, o Decreto n°. 1.775/1996 com a Lei n°. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Identificada e delimitada determinada área indicada como de posse ori- ginária indígena, o procedimento administrativo de demarcação consiste na realização de estudo acerca da natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessário para a delimita- ção, que, nos moldes do decreto demarcatório, deverá ser realizado por grupo técnico especializado, designado pela Funai, coordenado por antropólogo de qualificação reconhecida — profissional competente para o adequado desen- volvimento desses estudos (art. 2°, caput e § 1° do Decreto n°. 1.775/1996) (BRASIL, [2018]). Há que se observar que o antropólogo realiza o estudo antropológico de identificação para, posteriormente, ser procedida a delimi- tação da área e de seus limites pelo grupo técnico, sob a coordenação daquele profissional. O grupo de técnicos faz os estudos elevantamentos em campo, em centros de documentação, em órgãos fundiários municipais, estaduais e Demarcação de terras indígenas6 federais e em cartórios de registros de imóveis, para a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área estudada, resultado que servirá de base a todos os passos subseqüentes (BRASIL, 2018]). A lei garante a participação do grupo indígena em todas as fases do pro- cedimento demarcatório, no intuito de colaborar nos estudos a serem desen- volvidos pelo grupo técnico, juntamente com o antropólogo competente, e de garantir a proteção dos interesses indígenas. Conforme o art. 2º, § 6°, do Decreto n°. 1.775/1996 (BRASIL, 1996, documento on-line): “Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relató- rio circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.” O relatório circunstanciado deve conter estudos antropológicos e complementares aptos a caracterizar e fundamentar a área estudada como terra tradicionalmente ocupada pelos índios, sempre obedecendo a previsão normativa constitucional. Após recebida a análise, por meio de seu presidente, a Funai aprovará ou não os estudos, sendo que em caso positivo, fará publicar, no prazo de 15 (quinze) dias contados da data que a receber, resumo da mesma no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhadade memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel (art.2°, § 7°, do Decreto n°. 1.775/1996). Na sequência, conforme o§ 8° do mesmo art. do Decreto, está garantido o direito a terceiros, bem como aos estados e municípios em que se localize a área sob demarcação, de manifestar-se: [...] apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior (Decreto n°. 1.775/1996). (BRASIL, 1996, documento on-line). Trata-se da possibilidade, conferida pela Lei, de qualquer interessado auxiliar no processo demarcatório, assim como também do direito de exer- cício constitucional do contraditório e da ampla defesa no procedimento de demarcação, manifestado no próprio processo administrativo ou por meio da medida judicial cabível, caso não seja sanado o vício pela via adminis- 7Demarcação de terras indígenas trativa. Outro ponto importante conferido pelo dispositivo é a possibilidade de o proprietário interessado acompanhar e instruir o processo com provas documentais, incluindo laudos, para fins de comprovação do valor real das benfeitorias do imóvel que faça parte da demarcação, possibilitando futura indenização justa a ser pleiteada judicialmente. Mais adiante, o § 9° fixa o prazo de 60 dias, após o prazo de 90 dias esta- belecido no parágrafo anterior, para a Funai encaminhar o procedimento ao ministro de Estado e Justiça,juntamente com pareceres e provas. Já em fase final, no prazo máximo de 30 dias após o recebimento do procedimento, o ministro competente decidirá, nos moldes do § 10 do Decreto n°. 1.775/1996 (BRASIL, 1996, documento on-line): I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação; II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes. Finalmente, competirá ao presidente da República homologar, mediante Decreto, a demarcação realizada, ficando a partir de então autorizada a Funai a promover o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca de localização da área declarada como terra tradicionalmente ocupada por indígenas, conforme os arts. 5° e 6° do Decreto n°. 1.775/1996. Assim, será reconhecido, formal e objetivamente, o direito originário indígena sobre uma determinada extensão do território brasileiro. O mapa da Figura 2 identifica as terras indígenas brasileiras. A Figura 3 indica que, conforme o Instituto Socioambiental (2013), 55% dos índios que vivem em território brasileiro estão na Amazônia. Demarcação de terras indígenas8 Figura 2. Mapa das terras indígenas brasileiras. Fonte: Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), (2015). Figura 3. Estatísticas do Instituto Socioambiental (2013) sobre a população indígena brasileira. Fonte: Mirim povos indígenas do Brasil [2018]. No Quadro 1 são apresentadas as fases e os prazos do procedimento ad- ministrativo de demarcação de terras indígenas. 9Demarcação de terras indígenas Fonte: Adaptado de Brasil (2003). Fase Prazo/momento 1. Estudos de identificação Elaboração de relatório. 2. Aprovação do relatório pela Funai Publicação em 15 dias. 3. Contraditório Até 90 dias após a publicação do relatório pela Funai. 4. Encaminhamento do processo administrativo de demarcação pela Funai ao Ministério da Justiça Até 60 dias após o encerramento do prazo previsto no item anterior. 5. Decisão do Ministério da Justiça Até 30 dias após o recebimento do procedimento. Possibilidade de edição de portaria declaratória dos limites da terra indígena, determinando a sua demarcação. 6. Homologação mediante decreto da Presidência da República – 7. Registro Até 30 dias após a homologação. Quadro 1. Processo administrativo de demarcação das terras indígenas: fases e prazos Após essas fases do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, inicia-se a fase judicial. Ao procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas é aplicável, sub- sidiariamente ao Decreto n°. 1.775/1996, a Lei n°. 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelecendo diversas normas básicas a serem respeitadas por qualquer processo administrativo. A judicialização do processo de demarcação A judicialização das etapas do processo de demarcação é bastante comum, tendo em vista que, comumente, as áreas que são objeto dos procedimentos de Demarcação de terras indígenas10 delimitação estão localizadas em propriedade de terceiros, que, naturalmente, tornam-se legítimos interessados no procedimento demarcatório. Sabidamente, os confl itos fundiários que envolvem demarcação de terras indígenas são recorrentese se dão, normalmente, por desrespeito às normas e aos princípios constitucionais que regem o processo demarcatório administrativo. Nos processos de demarcação, segundo Stefanini (2012, p. 156-157 apud MENDES, 2018), “o devido processo legal estabelecido no art. 5º, LIV, da Constituição Federal faz referência à absoluta impossibilidade de que alguém seja privado de seus bens sem a observação do devido processo”. Tal princípio garante a ambas as partes envolvidas no processo de demarcação — comuni- dades indígenas eproprietários — a legítima permanência na área sob estudo de tradicionalidade, impedindo-as de buscar a garantia de direitos senão pelo devido processo legal, não justificando a defesa de quaisquer esbulhos ou turbações havidos em outras épocas por eventual expulsão de suas terras, conforme expõe Mendes (2018). Nos casos em que o órgão de assistência ao índio, a Funai, não cumprir qualquer passo do processo de demarcação previsto na Lei demarcatória — Decreto n°. 1.775/1996 — ou desobedecer princípios constitucionais ou a Lei n°. 9.784/1999, que trata do processo administrativo em âmbito federal, poderão ser suscitadas nulidades processuais, por meio da judicialização das etapas do processo de demarcação. Para que você possa compreender melhor a judicialização de etapa do processo de demarcação, um exemplo de nulidade de ato administrativo em processo demarcatório é o caso da PET 3888/RR do STF, referente à terra indígena Raposa Serra do Sol, alvo de ação popular ajuizada por senador da República contra a União. O texto afirma que: [...] haja vista que não teriam sido ouvidas todas as pessoas e entidades afetadas pela controvérsia, e o laudo antropológico sobre a área em discussão teria sido assinado por apenas um profissional, o que seria prova de presumida parcialidade (Pet 3388/RR, rel. Min. Carlos Britto, 27.8.2008. (Pet-3388) (BRASIL, 2008). Veja que as alegações que fundamentam a ação popular promovida por senador federal apontam irregularidades de atos administrativos, passíveis de declaração de nulidade por decisão judicial. 11Demarcação de terras indígenas A judicialização de processos que tenham como objeto discutir questões referentes a etapas de processos de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas é de competência da Justiça Federal; tais processos poderão ser movidos por meiode diversos tipos de ações, a depender do caso. Tendo em vista queo direito à propriedade privada está previsto constitu- cionalmente, podemos afirmar que as ações mais comuns são aquelas que questionam a violação de garantias possessórias cometidas durante o trâmite do processo administrativo demarcatório, aptas a manter a posse do proprie- tário de imóvel localizado em área demarcada até o final do processo, após a competente homologação da demarcação por meio de decreto presidencial. A partir dessa homologação, há a constituição de direito de posse e usufruto pelos indígenas, e os ocupantes — proprietários ou possuidores a qualquer título — deverão retirar-se do local voluntária ou compulsoriamente. Essas demandas poderão ser intentadas caso haja ameaça, turbação ou, ainda, esbulho possessório durante o processo administrativo de demarcação, cabendo, respectivamente, às situações mencionadas, a ação de interdito proibitório, quando o proprietário sentir-se ameaçado e na iminência do seu imóvel ser invadido, ou a ação de manutenção de posse, buscando, sob a tutela do Estado, manter-se na posse do imóvel, sem a limitação ilegal imposta por terceiros. O proprietário pode, ainda, ingressar com ação de reintegração de posse, visando imissão na posse do imóvel invadido e tomado integralmente. O profissional habilitado para ingressar com a demanda cabível deve analisar detidamente em qual fase se encontra o processo. Determinadas medidas jurídicas poderão não ser aceitas pelo judiciário e, portanto, julgadas improcedentes, já que o processo administrativo de demarcação é meramente declaratório e não constitutivo de direito, cabendo certas demandas judiciais apenas após o registro de área indígena no cartório competente e a regular execução do direito declarado. Normalmente, durante a fase administrativa em que a demarcação é mera- mente declaratória e não constitutiva de direito, é cabível também ao interessado ingressar com ação anulatória sempre que for constatado qualquer vício no procedimento administrativo, devendo osinteressados, entre elesos proprie- tários e qualquer do povo, assim como os entes da federação, acompanharem atentamente o processo para garantir que esteja sendo cumprido o princípio constitucional do devido processo legal. Nesse sentido, é imprescindível que os atos realizados em procedimento administrativo de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indíge- nas, promovido por órgão da administração pública federal (Funai), respeitem os dispositivos, preceitos e princípios da legislação em vigor que tratam acerca Demarcação de terras indígenas12 do assunto e, inclusive, que as normas tratadas pelo Decreto n°. 1.775/1996 e aquelas trazidas pela Lei n°. 9.784/1999 sejam interpretadas conjuntamente. Para proteger um direito líquido e certo, ou seja, garantir um direito eviden- temente existente que, em desconformidade com a legislação aplicável, tenha sido desrespeitado por ato irregular praticado em processo administrativo de demarcação, poderá o interessado impetrar ummandado de segurança, ação prevista constitucionalmente. Concluímos aqui os estudos acerca do processo de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas. BRASIL. Constituição Federal Brasileira, de 24 de Janeiro de 1967. Brasília, DF, 24 jan., 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67. htm>. Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Dispo- nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado. htm>. Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Decreto n°. 1.775, de 8 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento adminis- trativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1775.htm>. Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Brasília, DF, 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6001. htm>. Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Ministério Público. ACP Demarcação Murutinga. Manaus, 19 abr. 2013. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de- -trabalho/gt-demarcacao/docs/docs_modelos-de-pecas/acps/acp_mora_demarca- cao_ti-murutinga/at_download/file>. Acesso em: 25 jul. 2017. BRASIL. Ministério Público Federal. Fase do processo de demarcação de terras indígenas. [2018]. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atu- acao/grupos-de-trabalho/gt-demarcacao/docs/fases-do-processo-de-demarcacao- -de-terras-indigenas>. Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo STF. Pet 3388/RR. 2008. Disponí- vel em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo517. htm#Demarca%C3%A7%C3%A3o%20de%20Terras%20Ind%C3%ADgenas:%20Ra- posa/Serra%20do%20Sol%20-%201>. Acesso em: 19 jun. 2018. 13Demarcação de terras indígenas INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (IPAM). Terras indígenas na Ama- zônia: mapas. 2015. Disponível em: <http://ipam.org.br/bibliotecas/terras-indigenas- -na-amazonia/>. Acesso em: 20 jul. 2018. MENDES, P. P. Análise processual transversal da demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e sua judicialização. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 169, fev. 2018. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_arti- gos_leitura&artigo_id=20180&revista_caderno=4>. Acesso em: 20 jul. 2018. MIRIM POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Terras indígenas. [2018]. Disponível em: <https:// mirim.org/terras-indigenas>. Acesso em: 20 jul. 2018. POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Direito à terra. [2018]. Disponível em: <https://pib. socioambiental.org/pt/Constitui%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 20 jul. 2018. Leituras recomendadas BRASIL. Ministério da Justiça. Fundação Nacional do Índio. Terras indígenas: o que é? [2018]. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarca- cao-de-terras-indigenas>. Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Petição n. 3.388. Augusto Affonso Botelho Neto e União Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJE de 1º/07/2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5214423>. Acesso em: 20 jul. 2018. RIZZARDO, A. Curso de direito agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. SILVA, J. A. da. Curso Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. SOARES, G. M. F. Disciplina constitucional das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Brasília, DF: Conteúdo Jurídico, 2014. Disponível em: <http://www.conteudoju- ridico.com.br/artigo,disciplina-constitucional-das-terras-tradicionalmente-ocupadas- -pelos-indios,47449.html>. Acesso em: 20 jul. 2018. STEFANINI, L. de L. Código indígena no direito brasileiro. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2012. Demarcação de terras indígenas14 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
Compartilhar