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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE VINICIUS ROCHA MOÇO São Paulo 2018 A PEC Nº 215 E SEU IMPACTO NOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL VINICIUS ROCHA MOÇO São Paulo 2018 A PEC Nº 215 E SEU IMPACTO NOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. ORIENTADOR: Prof. Dr. Flávio de Leão Bastos Pereira VINICIUS ROCHA MOÇO A PEC Nº 215 E SEU IMPACTO NOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Aprovado em BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Prof. Dr. Flávio de Leão Bastos Pereira Universidade Presbiteriana Mackenzie _________________________________________________________ Profª. Drª. Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci Universidade Presbiteriana Mackenzie _________________________________________________________ Profª. Me. Patrícia Cristina Brasil Massmann Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie Aos meus amados pais pela vida e por terem me criado e guiado no caminho da ética; à minha amada esposa, por todo amor, paciência e apoio. AGRADECIMENTOS À minha esposa por toda ajuda material e emocional ao longo de toda graduação. À minha família pelo amor, apoio e motivação em todos os momentos da minha vida. À Universidade Presbiteriana Mackenzie por oferecer uma graduação de excelência e disponibilizar bolsas de estudo a alunos como eu. Ao Prof. Dr. Flávio de Leão Bastos Pereira pelo comprometimento profissional, pela orientação ao longo deste trabalho e pelas inúmeras lições ensinadas. A tod@s @s amig@s que jamais saíram do meu lado e me apoiaram ao longo de toda graduação. A natureza pode suprir todas as necessidades do homem, menos a sua ganância (Mahatma Gandhi). RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo investigar se, e como, a Proposta de Emenda à Constituição nº 215, ou apenas PEC nº 215, afronta direitos indígenas vigentes no Brasil. A Proposta objetiva a transferência da competência de demarcação de terras indígenas do Executivo Federal para o Congresso Nacional, órgão que sofre forte influência da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária. Os direitos indígenas são protegidos no país por diversas normas de direito interno e de direito internacional. Porém, tais direitos acabam sendo vistos como entraves ao desenvolvimento econômico do país, pois as terras indígenas são, historicamente, objeto de disputa para construção de grandes obras, introdução da pecuária e agroindústria e extração de madeira e minerais. Os índios, que não encontram qualquer representação no Congresso Nacional, ficam à mercê da produção legislativa da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, que impacta diretamente nos direitos desse segmento populacional. No entanto, constata-se que a PEC nº 215 é inconstitucional, violando as cláusulas pétreas referentes aos direitos e garantias individuais e ao princípio da separação de poderes. Além disso, conclui-se que a PEC nº 215 também afronta diversas disposições de tratados, convenções e declarações internacionais adotados pelo Brasil, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, podendo gerar responsabilização internacional do país caso a proposta seja aprovada. Palavras-Chave: Direito indígena à terra. Proposta de Emenda à Constituição nº 215. Sub- representação indígena. Frente Parlamentar Mista da Agropecuária. ABSTRACT The present research aims to investigate whether, and how, the Proposed Amendment to Constitution Nº 215, or just PEC Nº 215, faces indigenous rights in Brazil. The purpose of the Proposal is to transfer the competence of demarcating indigenous lands from the Federal Executive to the National Congress, which is strongly influenced by the Mixed Parliamentary Front of Agriculture. Indigenous rights are protected in the country by various domestic and international laws. However, these rights are seen as obstacles to the economic development of the country, since the indigenous lands are, historically, object of dispute for the construction of large building projects, introduction of livestock and extraction of wood and minerals. The indigenous, who don’t have any representation in the National Congress, are at the mercy of the legislative production of the Mixed Parliamentary Front of Agriculture, which has a direct impact on the rights of this population. However, the PEC nº 215 is unconstitutional, violating the clauses of the individual rights and guarantees and the principle of separation of powers. In addition, the PEC nº 215 violates international treaties, conventions and declarations adopted by Brazil, such as the American Convention on Human Rights, Convention nº 169 of the International Labor Organization, the American Declaration on the Rights of Indigenous Peoples and the United Nation Declaration on the Rights of Indigenous Peoples, which could generate international accountability of the country if the proposal is approved. Keywords: Indigenous right to land. Proposed Amendment to Constitution Nº 215. Indigenous sub-representation. Mixed Parliamentary Front of Agriculture. LISTA DE ABREVIATURAS ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade CADH Convenção Americana sobre Direitos Humanos CF88 Constituição Federal de 1988 CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos CN Congresso Nacional DADPI Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas DNUDPI Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas EC Emenda Constitucional FP Frente Parlamentar FPMA Frente Parlamentar Mista da Agropecuária Funai Fundação Nacional do Índio IDH Índice de Desenvolvimento Humano INESC Instituto de Estudos Socioeconômicos MS Mandado de Segurança OEA Organização dos Estados Americanos OIT Organização Internacional do Trabalho ONU Organização das Nações Unidas PC do B PDT PEC PL PLP PLS PMDB PPB PSOL PSTU PT STF Partido Comunista do Brasil Partido Democrático Trabalhista Proposta de Emenda à Constituição Projeto de Lei Projeto de Lei Complementar Projeto de Lei do Senado Partido do Movimento Democrático Brasileiro Partido Progressista Brasileiro Partido Socialismo e Liberdade Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados Partido dos Trabalhadores Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11 1 OS POVOS INDÍGENAS E A GARANTIA DO DIREITO À TERRA NO BRASIL ..................................................................................................................... 15 1.1 OS ÍNDIOS E A IMPORTÂNCIA DE SUAS TERRAS .......................................... 15 1.2 O DIREITO À TERRA INDÍGENA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........................................................................................................................... 19 1.2.1 O Estatuto do Índio ..................................................................................................19 1.2.2 A Constituição Federal de 1988 .............................................................................. 22 1.2.3 O Decreto nº 1.775 e o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil .. 25 1.3 O DIREITO À TERRA INDÍGENA NO DIREITO INTERNACIONAL ................ 28 1.3.1 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos ............................................... 29 1.3.2 A Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da OIT ............................. 33 1.3.3 A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas ........... 36 1.3.4 A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas ........................ 38 2 A PEC Nº 215 E O PODER LEGISLATIVO EM ÂMBITO FEDERAL ........... 41 2.1 AS FRENTES PARLAMENTARES ......................................................................... 45 2.2 AS CANDIDATURAS INDÍGENAS E SEUS OBSTÁCULOS .............................. 49 3 A PEC Nº 215 E SEU IMPACTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........................................................................................................... 60 3.1 A PEC Nº 215 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ........................ 62 3.1.1 A constitucionalidade da PEC nº 215 ..................................................................... 62 3.1.2 O controle de constitucionalidade de PEC ............................................................. 71 3.2 A PEC Nº 215 À LUZ DAS NORMAS DE DIREITO INTERNACIONAL ............ 72 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 79 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 83 11 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objeto de investigação a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215 de 2000 e se propõe a compreender os seus objetivos, as polêmicas que a envolvem, a sua constitucionalidade e a sua observância às normas e princípios emanados dos tratados e convenções internacionais aplicáveis ao Brasil. Será analisada também a Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPMA) e as razões da baixa presença de representantes dos povos indígenas no Congresso Nacional. Estima-se, no mundo todo, que existam aproximadamente cinco mil povos indígenas, totalizando mais de 370 milhões de pessoas (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2018a). Embora seja questionável a redução da condição de indígena à cor, o Brasil começou a apurar sua participação na população nacional apenas em 1991, colocando a opção “índio” entre as classificações de cor de pele. Desde então, a população indígena saltou de 294.131, o equivalente a 0,2% do total de brasileiros à época (146.815.790), para 896.917, representando 0,44% do total da população brasileira, sendo esta 190.749.191 em 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Desse total, 517 mil, ou 57,7%, moravam em terras indígenas oficialmente reconhecidas (terras indígenas reconhecidas com portaria declaratória do Ministério da Justiça). Importante ressaltar que o critério utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, também conhecido como IBGE, é o da autoidentificação, o que dificulta a obtenção de dados mais precisos, uma vez que uma pessoa de ascendência indígena pode não se reconhecer como tal por temer algum tipo de discriminação, e uma pessoa não indígena pode assim se declarar visando, por exemplo, a benefícios decorrentes de ações afirmativas (ANJOS FILHO, 2009, p. 498). Além disso, o Instituto Socioambiental (2018b) aponta a existência de 254 povos indígenas vivendo no Brasil entre os quais são utilizados mais de 150 idiomas 1 , o que torna o Brasil um dos países mais multiculturais do mundo. Tamanha diversidade indica o caráter genérico da palavra “índio”, uma vez que o termo aponta para todo e qualquer grupo de ascendência pré-colombiana, reduzindo uma infinidade de povos e culturas a uma categoria sem identidade (HECK; PREZIA, 1998, p. 10). 1 O número não é preciso. O Atlas das Línguas em Perigo da Unesco aponta que há 190 idiomas em perigo de extinção no Brasil, sendo a principal ameaça as invasões às terras indígenas (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018). 12 Entretanto, o vocábulo passou a designar todos os povos que descendem dos habitantes originários de um país ou região geográfica na época em que houve a conquista, colonização ou o estabelecimento das fronteiras atuais do Estado e que, independentemente da situação jurídica que ostentem, mantêm as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou ao menos parcela delas, independentemente da ascendência pré-colombiana (ANJOS FILHO, 2009, p. 272). Embora sejam povos diferentes, com cultura, idioma e costumes diferenciados, todos eles sofreram violência e expropriação de terras sistemáticas durante séculos. Seja no período colonial, no império ou na república, os índios e as terras indígenas foram e continuam sendo duramente atingidos em nome do progresso e do crescimento econômico no Brasil. Suas terras, objeto de disputa por todo o país, são visadas para construção de grandes obras, introdução da pecuária e agroindústria e extração de madeira e minerais (DAVIS, 1978, p. 21, 62 e 137). Ao contrário das sociedades hegemônicas, para os povos indígenas a terra não é uma mercadoria, e não pode ser vendida ou comprada. É dela que retiram o seu sustento e com ela possuem uma relação social e religiosa. Nesse sentido, a perda da terra leva ao desaparecimento das tradições e da cultura, conduzindo a uma integração desordenada dessas pessoas à sociedade dominante jogando-os na extrema pobreza e miséria. Essa realidade é demonstrada em todos os relatórios do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), nos quais os povos indígenas constam entre os piores índices entre todas as etnias pesquisadas (ANJOS FILHO, 2009, p. 502). Embora representem 5% de toda população mundial, os povos indígenas representam 15% de toda a população vivendo em situação de pobreza (UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2016, p. 78). É certo afirmar que os mais diversos povos indígenas possuem, cada um à sua maneira, seu próprio processo de desenvolvimento, uma vez que o significado de desenvolvimento seja “plurívoco”. Porém, o referido vocábulo ainda se confunde com o mero crescimento econômico, motivo pelo qual os povos indígenas ainda sejam vistos por diversas autoridades como atrasados e um entrave para o desenvolvimento nacional 2 . 2 Em março de 1975, o Governador de Roraima, General Fernando Ramos Pereira, disse que "uma área rica com ouro, diamantes e urânio, não pode dar-se ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas que estão atrasando o desenvolvimento do Brasil." (DAVIS, 1978, p. 133). Em outra situação, o General Ismarth de Aráujo Oliveira, enquanto presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), declarou que "é impossível deter o 13 A Constituição Federal de 1988 (CF88), em seu artigo 231, garante aos povos indígenas o direito às terras que tradicionalmente ocupam, sendo este direito garantido por um processo administrativo de demarcações de terras, conduzido pelo Poder Executivo e por seus órgãos técnicos. Porém, foi elaborada na Câmara dos Deputados, no ano de 2000, a PEC nº 215 que propõe transferir ao Congresso Nacional (CN) a decisão final sobre a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação no Brasil. Órgãos de proteção ao índio declaram que a PEC nº 215 é um enorme retrocesso às proteções garantidas aos índios, pois deixaria o processo de demarcação nas mãos do Poder Legislativo, órgão que sofre forte influência da FPMA, conhecida popularmente como bancada da agropecuária ou bancada ruralista.Por outro lado, algumas autoridades defendem o texto da PEC nº 215, como o ex- ministro da Defesa Aldo Rebelo, durante a sua passagem pelo governo entre 2015 e 2016 (MASSALLI; RICHARD, 2016). Ademais, é possível notar uma enorme dificuldade dos povos indígenas em fazer frente às investidas do Poder Legislativo contra seus direitos, dada à presença praticamente nula de representantes desses povos no CN. Constata-se que as candidaturas indígenas sofrem com problemas particulares que dificultam o acesso de índios aos cargos eletivos. Dado esse cenário, infere-se que os povos indígenas são a parcela da população mais marginalizada da sociedade. A terra, elemento que permite os povos indígenas se desenvolverem como tal, praticarem sua cultura e seus costumes, tornou-se objeto de disputas devido às suas riquezas naturais e, por essas razões, o núcleo das reivindicações de praticamente todos os povos indígenas. O direito à terra é um direito fundamental e um mínimo existencial à cultura e identidade dos povos indígenas. Desse modo, o presente trabalho se propõe a investigar a PEC nº 215 de 2000, compreendendo os seus objetivos, as polêmicas que a envolvem, a sua constitucionalidade e a sua observância às normas e princípios emanados dos tratados e convenções internacionais aplicáveis ao Brasil. Será analisada também a FPMA e as razões pelas quais a presença de representantes dos povos indígenas seja praticamente nula no CN. Para atingir tal objetivo, a pesquisa foi dividida em três partes. Na primeira será dada uma visão geral dos índios no Brasil e buscar-se-á compreender a importância que tais povos processo de desenvolvimento do país com o argumento de que os índios deveriam ser protegidos e mantidos em seu estado puro" (DAVIS, 1978, p. 118). 14 dão às suas terras. Em seguida, serão analisadas as principais normas protetivas do direito à terra indígena no âmbito nacional, entre elas a CF88, o Estatuto do índio e o Decreto nº 1.775. Posteriormente, serão analisados os diplomas internacionais dedicados à proteção dos povos indígenas aplicáveis ao Brasil, com destaques para a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI) da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DADPI) da Organização dos Estados Americanos (OEA). Desse modo será possível compreender o arcabouço jurídico de proteção às terras indígenas no Brasil. A segunda parte é dedicada à apresentação do texto da PEC nº 215 de 2000, das suas justificativas, da sua tramitação no CN, dos posicionamentos a favor e contra a PEC e das polêmicas envolvidas no tema. Além disso, será analisada a FPMA e buscar-se-á compreender porque os povos indígenas praticamente não possuem representatividade no CN, impossibilitando-os de fazer frente às investidas do Poder Legislativo contra seus direitos. Por fim, a terceira parte tem como objetivo verificar se a PEC nº 215 de 2000 ofende de alguma forma a CF88 e as normas e princípios emanados pelos diplomas internacionais aplicáveis ao Brasil. Reforça-se que a terra é o elemento fundamental dos povos indígenas que permite seu reconhecimento como tal, a prática de sua cultura, sua religião e costumes. É da terra que esses povos retiram seu alimento, abrigo e entram em contato com seus antepassados. Logo, torna-se fundamental o estudo da PEC nº 215 de 2000, uma vez que se aprovada, tal norma modificaria o acesso ao principal direito reivindicado por um dos grupos mais negligenciado pelo Estado brasileiro. 15 1 OS POVOS INDÍGENAS E A GARANTIA DO DIREITO À TERRA NO BRASIL Antes de adentrar no estudo da PEC nº 215, mostra-se de suma relevância uma contextualização dos povos indígenas, a importância que dão às suas terras, e demonstrar como as mesmas estão protegidas pelo ordenamento jurídico brasileiro e pelo direito internacional. Desse modo, será possível compreender os possíveis impactos que uma eventual mudança legislativa poderia causar. 1.1 OS ÍNDIOS E A IMPORTÂNCIA DE SUAS TERRAS Não há consenso sobre quando e como os primeiros seres humanos ocuparam o hoje chamado continente americano. Certo é que não existiam primatas no continente que pudessem evoluir para a forma humana, de modo a levar os arqueólogos e antropólogos a trabalharem com as hipóteses de que os primeiros habitantes da América vieram de outros lugares (BUENO, 2010, p. 16). As primeiras teorias apontam para um único fluxo migratório através do estreito de Bering, transformado em uma ponte de gelo nos períodos glaciais de forma a unir a Sibéria e o Alasca (BUENO, 2010, p. 16). Essas teorias indicam que a ocupação do continente americano teria ocorrido entre 11 mil e 11.500 anos atrás por populações asiáticas de origem mongol, coincidindo com os mais antigos vestígios arqueológicos encontrados na América do Norte. Porém, descobertas realizadas na América do Sul contrariam a teoria do fluxo migratório único. Instrumentos de pedra datados de 12.500 foram encontrados no sítio de Monte Verde no Chile. No sítio Toca do Boqueirão no Piauí, foram encontrados pedaços de carvão e cinzas (possivelmente restos de uma fogueira) datados de 50 mil anos (BUENO, 2010, p. 16). Contudo, a comunidade acadêmica refuta a hipótese das cinzas pertencerem a fogueiras feitas por humanos, sendo mais provável serem provenientes de queimadas naturais. No sítio Lapa Vermelha, em Minas Gerais, foi encontrado um crânio de uma mulher (batizada de Luzia) datado de 11 mil anos 3 . Contudo, o mais intrigante foi que a reconstituição facial indicaram características negroides, o que levaram os arqueólogos a trabalharem com o chamado “Modelo das Quatro Migrações” (BUENO, 2010, p. 16). As três 3 O crânio de Luzia foi destruído no incêndio ocorrido no Museu Nacional no Rio de Janeiro em 02/10/2018. No entanto, fragmentos foram encontrados nos escombros e passam por um processo de recuperação (G1, 2018b). 16 últimas migrações teriam sido realizadas por populações mongóis, das quais derivam o DNA das populações indígenas atuais. A primeira migração teria sido de povos não mongóis, cujas características seriam semelhantes aos atuais africanos e aborígenes australianos. Esses povos teriam sido assimilados, ou substituídos, pelas populações mongóis das outras levas (BUENO, 2010, p. 17). Sejam 50 mil ou 12 mil anos 4 , certo é que quando Cristóvão Colombo desembarcou em 2/10/1492, não se deparou com uma terra desabitada. Estudos clássicos estimam que a população da América à época encontrava-se entre oito e 50 milhões de índios (RIBEIRO, 2001 apud ANJOS FILHO, 2009, p. 276). Porém, estudos mais recentes apontam uma marca entre 80 milhões e 112 milhões de pessoas no continente americano. Do mesmo modo se deu com Pedro Álvares Cabral ao chegar em Pindorama (modo como os índios chamavam a terra hoje conhecida como Brasil) em 22/04/1500, momento no qual se deparou com membros da tribo Tupiniquim. As estimativas a respeito da quantidade de habitantes no Brasil naquela época são igualmente inconclusivas. A respeito da população nativa à época pré-colonial, o explorador e autor canadense John Hemming (2017, p. 723) reconhece as dificuldades em se obter uma cifra confiável e cita diversas fontes diferentes. O autor menciona o geógrafo Carl Sapper, segundo o qual a população na região onde hoje é o Brasil girava em torno de dois a três milhões. Cita também Alfred Koeber (menos de um milhão de habitantes), Angel Rosenblat (1,4 milhão), Julian Steward (1,5 milhão), Eduardo Galvão (dois milhões), entre outros. Contudo,Hemming (2017, p. 727) faz sua própria estimativa de 3,255 milhões de indivíduos. Mas por quais razões povos tão diversos, com cultura, idioma, religião e local de habitação diferentes, passaram a ser chamados de índios? Ocorre que, ao chegar em terra firme, Colombo acreditava ter alcançado as Índias, motivo pelo qual o levou a chamar as pessoas que ali encontrara de índios. Robério Nunes dos Anjos Filho esclarece que Como acreditava ter alcançado as Índias por uma rota marítima seguindo em direção oeste pelo Oceano Atlântico, o navegador chamou aquelas pessoas de índios. Tratava-se de um equívoco, pois as terras em que se encontrava, no local que os nativos denominavam Guanahani e Colombo chamou de São Salvador, não eram as mesmas pelas quais havia passado Marco Pólo. Hoje, aquela ilha, situada nas 4 Recentemente foram descobertos mais de 300 objetos de pedra lascada no sítio arqueológico de Santa Elina em Mato Grosso. Tais objetos foram datados com pelo menos 27 mil anos. Alguns desses objetos foram feitos com ossos de preguiças-gigantes, indicando o primeiro caso no Brasil de uma associação do homem com a megafauna extinta (BBC BRASIL, 2017). 17 Bahamas, chama-se Watlings. Este equívoco levou anos para ser descoberto pelos europeus, mas índios continuou sendo a palavra utilizada para designar todos os habitantes nativos daquelas plagas, que foram denominadas Novas Índias, ou Índias Ocidentais, em contraposição às Velhas Índias, ou Índias Orientais (ANJOS FILHO, 2009, p. 271). Atualmente, o termo genérico “índio” é utilizado tanto no direito internacional quanto no direito nacional. Contudo, é possível se deparar com o uso dos termos “aborígines”, “autóctones” ou “silvícolas”, em substituição ao termo “índio”, embora possuam significados distintos. Os vocábulos “aborígine” e “autóctone” se referem a pessoas que são encontradas no seu lugar de origem. Percebe-se que não necessariamente há coincidência entre “aborígine” ou “autóctone” e “índio”, pois nem sempre as pessoas originárias de um lugar terão ascendência pré-colombiana. Por sua vez, “silvícola” se refere a uma pessoa que nasceu ou que habita a selva. Novamente, é possível verificar que nem sempre haverá coincidência do referido termo com a palavra “índio”, uma vez que nem todos que nascem ou habitam a selva são índios, e nem todos os índios nasceram e não habitam a floresta atualmente (ANJOS FILHO, 2009, p. 272). Entretanto, o direito internacional acabou por aproximar o termo “índio” aos termos “aborígine” e “autóctone”, ao não restringi-lo aos descendentes dos povos que habitavam originalmente a América. Isso pode ser observado no artigo 1°, item 1, letra “b”, da Convenção nº 169 da OIT, ao afirmar que a convenção se aplicará aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989). A legislação nacional também substituiu o termo “silvícola” pelo termo “índio” na CF88 e no Código Civil de 2002. Porém, os diversos povos indígenas não formam um todo homogêneo. Nem todos os povos indígenas possuem o costume de dormir em redes, nem todos organizam suas aldeias de maneira circular, e nem todos chamam suas casas de oca etc. Apenas no Brasil, há o registro de 254 povos indígenas e a catalogação de aproximadamente 150 idiomas. Entretanto, mesmo com tamanha diversidade cultural, um elemento se repete em praticamente todos esses grupos: a sua ligação com a terra. Da terra, os povos indígenas retiram o seu alimento, material para suas moradas e seus remédios (HECK; PREZIA, 1998, p. 42). A terra também está ligada às suas tradições, pois nela são realizadas suas festas e rituais (HECK; PREZIA, 1998, p. 49). Ademais, a terra liga os povos indígenas à sua religião. 18 Para Quíchua, no Peru, as divindades vivem nas montanhas e lagos. Já para os Yanomami, próximo às Guianas, nas montanhas e nas serras vivem os espíritos da natureza (HECK; PREZIA, 1998, p. 44). O modo de utilizar a terra também diverge em relação à sociedade dominante. Os povos indígenas se organizam com base na posse coletiva, ou seja, não existe a ideia de propriedade privada. Vender a terra também é algo impensável, uma vez que não é vista como mercadoria (HECK; PREZIA, 1998, p. 46). Logo, é possível notar que conferir acesso aos povos indígenas às suas terras tradicionais constitui pré-requisito “à fruição de todos os demais direitos, especialmente considerando a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos” (STAVENHAGEN apud ANJOS FILHO, 2009, p. 409). O direito ao território indígena, bem como aos seus recursos naturais, compõe um direito mais amplo já reconhecido no direito internacional, sendo este o direito ao desenvolvimento (ANJOS FILHO, 2009, p. 5). Assim, “o conceito de desenvolvimento humano prega que cada um deve ter a possibilidade de viver da maneira que livremente escolheu, o que, do ponto de vista indígena, torna indispensável o acesso à terra e aos recursos naturais respectivos” (ANJOS FILHO, 2009, p. 407). Erica-Irene A. Daes, em relatório desenvolvido para a ONU, ressaltou as características da relação entre os povos indígenas e suas terras i) existe uma profunda relação entre os povos indígenas e suas terras, territórios e recursos; ii) essa relação envolve diversas dimensões e responsabilidades sociais, culturais, espirituais, econômicas e políticas; iii) a dimensão coletiva dessa relação é importante; e iv) o aspecto intergeracional dessa relação também é fundamental para a identidade, sobrevivência e viabilidade cultural dos povos indígenas. Pode haver outros elementos referentes aos povos indígenas e sua relação com suas terras, territórios e recursos que não aparecem nesses exemplos 5 (DAES, 2001, p. 10). Segundo o Instituto Socioambiental (2018c), hoje no Brasil há 717 terras indígenas em diferentes fases do procedimento demarcatório. Segundo a organização há: 115 terras em identificação, ou seja, terras em estudo por grupo de trabalho nomeado pela Fundação Nacional do Índio (Funai); 43 terras identificadas, ou seja, terras com relatório de estudo aprovado pela presidência da Funai; 73 terras declaradas, ou seja, terras declaradas pelo 5 i) existe una profunda relación entre los pueblos indígenas y sus tierras, territorios y recursos; ii) esta relación entraña diversas dimensiones y responsabilidades sociales, culturales, espirituales, económicas y políticas; iii) la dimensión colectiva de esta relación es importante; y iv) el aspecto intergeneracional de dicha relación también es fundamental para la identidad, la supervivencia y la viabilidad cultural de los pueblos indígenas. Puede haber otros elementos referentes a los pueblos indígenas y su relación con sus tierras, territorios y recursos que no aparecen en esos ejemplos 19 Ministro da Justiça; e 486 terras homologadas e reservadas, ou seja, terras homologadas pela Presidência da República, adquiridas pela União ou doadas por terceiros. O Brasil possui a expansão territorial de aproximadamente 8.516.000 km², dos quais as terras indígenas ocupam cerca de 13% do total, ou seja, 1.107.080 km² (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2018c). Conforme ressaltado por Anjos Filho (2009, p. 407) a história testemunhou um violento processo de colonização e de conquista de terras indígenas, tendo sempre como objetivo a geração de riqueza, sendo essa o principal fator da conquista e usurpaçãode terras indígenas pelos Estados e por particulares. Os territórios indígenas tornaram-se objetos e o centro de disputas devido às suas riquezas naturais e, por essas razões, o núcleo das reivindicações de praticamente todos os povos indígenas. Em geral, os povos indígenas não veem as suas terras como um bem econômico, mas sim como seu habitat e o meio pelo qual exercem sua cultura e seu desenvolvimento. O direito à terra é um direito fundamental e um mínimo existencial à cultura e identidade dos povos indígenas. Desse modo, não é possível respeitar e proteger os povos indígenas sem preservar seus territórios. E a demora na demarcação de terras apenas acentua esses conflitos. Esse direito é garantido por diversas normas nacionais e internacionais. Nos tópicos seguintes será dado um panorama do direito indígena à terra nas mais diversas normas no direito interno brasileiro e no direito internacional. 1.2 O DIREITO À TERRA INDÍGENA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO As principais normas de direito interno brasileiro que disciplinam o direito indigenista são: a Constituição Federal de 1988; a Lei n° 6.001 de 19/12/1973, também conhecida como Estatuto do Índio; e o Decreto nº 1.775 de 08/01/1996, que disciplina o procedimento de demarcação das terras indígenas. O modo como tais normas tratam às terras indígenas será objeto de análise dos tópicos seguintes. 1.2.1 O Estatuto do Índio 20 O Estatuto do Índio é o principal texto infraconstitucional sobre matéria indígena ainda em vigor no Brasil. Porém, embora o texto seja bastante avançado para a época em que foi promulgado, esse está desatualizado, de modo a não ter sido recepcionado integralmente pela CF88, uma vez que foi elaborado sob a égide do paradigma da assimilação 6 , posição abandonada pela nova ordem constitucional que se voltou para o direito à diferença e à alteridade (ANJOS FILHO, 2009, p. 545). Tendo em vista a clara desatualização do Estatuto do Índio, foi apresentado em 23/10/1991 o Projeto de Lei (PL) nº 2.057/1991, denominado Estatuto das Sociedades Indígenas, com o intuito de se tutelar as demandas dos índios dentro dos ditames da nova Constituição. Porém, o PL nunca foi votado e encontra-se paralisado desde 2009. Em 2016 uma nova proposta foi apresentada no Senado por meio do Projeto de Lei do Senado (PLS) n° 169/2016, mas também se encontra aguardando votação. Enquanto nenhum dos referidos projetos é aprovado, o Estatuto do Índio continua em vigência e disciplinando os mais diversos aspectos da temática indígena. Com relação ao direito à terra, o diploma, já em seu artigo 2º, em seus incisos V e IX, atribui à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, voltadas à proteção das comunidades indígenas e à preservação dos seus direitos, as obrigações de: garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali os recursos para seu desenvolvimento e progresso; e garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes (BRASIL, 1973). O documento reserva todo o Título III (artigos 17 a 38) à temática das terras. O artigo 17 descreve em seus três incisos quais são as terras indígenas: as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, ambos da Constituição então vigente; as áreas reservadas de que trata o Capítulo III do presente Título, sendo estas as áreas 6 Importante fazer uma distinção entre “assimilacionismo” e “integracionismo”. Anjos Filho (2009, p. 236) esclarece que a “assimilação” diz respeito à incorporação gradual de uma minoria na sociedade dominante de maneira que seus traços distintivos culturais originários são perdidos, substituindo-os pelas características do grupo dominante. Por sua vez, a “integração” ocorre quando uma minoria é incorporada à sociedade dominante, passando a usufruir dos direitos reconhecidos à parcela majoritária, sem, entretanto, perder sua própria cultura e identidade. Porém, essa distinção conceitual raramente é observada de maneira criteriosa pelos autores em geral, os quais, muitas vezes, se referem à “integração” no sentido da “assimilação”. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm#art4iv http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm#art198 21 reservadas pela União sob a forma de reserva indígena, parque indígena ou colônia agrícola indígena; e as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas (BRASIL, 1973). Entretanto, Anjos Filho (2009, 602) ressalta que embora o Estatuto do Índio preveja todas essas distinções entre os tipos de terras indígenas, tais disposições, na prática, não possuem maior repercussão. O Estatuto dispõe, em seu artigo 18, que as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena. O artigo 19 prevê o procedimento de demarcação de terras indígenas, segundo o qual as tais terras, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. O §1º do mesmo dispositivo determina que a demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União e do registro imobiliário da comarca da situação das terras. Por sua vez, o §2º preconiza que contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória. O artigo 22 determina caber aos índios ou silvícolas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes, esclarecendo em seu parágrafo único que as terras ocupadas pelos índios são bens inalienáveis da União. A posse indígena é definida no artigo 23, de modo que será considerada posse do índio ou silvícola a ocupação efetiva da terra que, de acordo com os usos, costumes e tradições tribais, detém e onde habita ou exerce atividade indispensável à sua subsistência ou economicamente útil. O artigo 24 do Estatuto do Índio determina que o usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades. Já o artigo 25 esclarece que o reconhecimento do direito dos povos indígenas à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos da Constituição, independerá de sua demarcação, pois será assegurado atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação. O dispositivo esclarece que a demarcação possui caráter meramente declaratório, e não constitutivo, ou seja, a demarcação objetiva apenas a definição dos limites 22 físicos da terra indígena tradicional e sua regularização, e sua ausência não justifica a restrição de direitos dos índios que ali vivem. Em seu artigo 62, o diploma declarou a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos dos atos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas pelos índios ou comunidades indígenas, inclusive no tocante às terras que tenham sido desocupadas pelos índios ou comunidades indígenas em virtude de ato ilegítimo de autoridade e particular, conforme o §1º do artigo. Também preconiza queninguém terá direito a ação ou indenização contra a União, o órgão de assistência ao índio ou os silvícolas em virtude dessa mencionada nulidade e extinção, ou de suas consequências econômicas, nos termos do §2º do mesmo artigo. Por sua vez, o artigo 65 determina que o Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas. Porém, o prazo se esgotou em 19/12/1978, sem que o Poder Executivo finalizasse as demarcações. No entanto, o prazo foi renovado pelo artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que também prevê cinco anos para que União conclua as demarcações. Contudo, o prazo se esgotou em 05/10/1993 sem que todos os territórios indígenas no país fossem demarcados. Desse modo, embora tenha sido elaborado na antiga ordem constitucional, na qual prevaleciam as perspectivas assimilacionistas, e não tenha sido totalmente recepcionado pela CF88, o Estatuto do Índio foi um grande avanço na temática das terras indígenas. Em relação à constitucionalidade de seus dispositivos, Anjos Filho (2009, p. 545) esclarece que parte da doutrina defende o uso da interpretação conforme a Constituição para a resolução de conflitos entre os dispositivos. 1.2.2 A Constituição Federal de 1988 A CF88 representa um grande marco para os direitos indígenas, pois rompeu com o antigo paradigma assimilacionista, que vigorava até então, para se voltar ao direito à diferença e à alteridade e reconhecer a necessidade de preservação e de proteção da cultura indígena. Para Anjos Filho (2009, p. 524) não há mais espaço constitucional para afirmar que “a sociedade majoritária, cunhada no modelo ocidental, é uma forma superior de civilização, nem muito menos que há raças superiores às demais”. Desse modo, a CF88 incumbiu ao Estado o dever de garantir, proteger e difundir as mais diversas manifestações culturais e os 23 mais variados modos de ser e de viver (artigo 215), além de reconhecê-los como patrimônio cultural brasileiro (artigo 216). Nota-se, portanto, uma brusca ruptura paradigmática no ordenamento jurídico brasileiro, onde a assimilação dá lugar à alteridade, de modo que a nova ordem constitucional passa a estar de acordo com o sistema internacional de direitos humanos. Além disso, a legislação infraconstitucional contrária ao novo modelo não seria recepcionada e teriam seus efeitos jurídicos cessados. Contudo, a construção desse novo regramento constitucional foi realizada sob um árduo trabalho das comunidades indígenas durante a Assembleia Constituinte, que buscou apoio parlamentar para o “Programa Mínimo para os Direitos Indígenas na Constituinte”, elaborado pela União das Nações Indígenas (ANJOS FILHO, 2009, p. 519). O trabalho das comunidades encontrou forte resistência por parte de opositores da causa indígena, entre eles aqueles que temem a possibilidade de processos de independência e de constituição de Estados indígenas e aqueles que são impactados economicamente pelos direitos territoriais indígenas (ANJOS FILHO, 2009, p. 607). Ainda assim, as comunidades indígenas lograram sucesso em inserir na CF88 diversos dispositivos atinentes à sua causa, tornando-se o grupo vulnerável com maior atenção da Assembleia Constituinte e transformando a Carta de 1988 no texto constitucional que mais deu atenção aos índios: as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios permanecem sendo bens da União (artigo 20, XI); à União mantém a competência privativa para legislar sobre populações indígenas (artigo 22, XIV); o CN detém a competência exclusiva para autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e a lavra de riquezas minerais (artigo 49, XVI); aos juízes federais compete processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas (artigo 109, XI); o Ministério Público detém a função institucional de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (artigo 129, V); a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica só poderão ser efetuados com autorização e condições específicas estabelecidas em lei quando essas atividades se desenvolverem em terras indígenas (artigo 176, § 1°); estão assegurados às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem durante o ensino fundamental (artigo 210, §2º); incumbe ao Estado a proteção às manifestações culturais indígenas (artigo 215, §1º); as comunidades e organizações indígenas possuem legitimidade para ingressarem em juízo em 24 defesa de seus direitos e interesses, devendo o Ministério Público intervir em todos os atos do processo (artigo 232). O artigo 231 abre o Capítulo VIII da CF88 intitulado “Dos Índios”, que é composto também pelo artigo 232. O caput do artigo 231 da CF88 determina que são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. O §1º define as terras tradicionalmente ocupadas, ou seja, aquelas habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Já o §2º destina as terras tradicionalmente ocupadas à sua posse permanente por parte dos indígenas, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Por sua vez, o §3º dispõe que o aproveitamento dos recursos hídricos, os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas necessitam de autorização do CN, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. O §4º estabelece que as terras tradicionalmente habitadas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. Já o §5º veda a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do CN, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do CN, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. O §6º determina serem nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionais indígenas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Por fim, o §7º preconiza que não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. Os dispositivos supramencionados, juntamente com o já mencionado artigo 67 do ADCT, compõe o chamado direito constitucional indigenista brasileiro, o qual representa padrões mínimos de proteção às comunidades indígenas e possui, segundo Anjos Filho (2009, p. 521), os seguintes princípios: princípio do reconhecimento e proteção do Estado à 25 organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios originários e existentes no território nacional; princípio do reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e proteção de sua posse permanente em usufruto exclusivo para os índios; e princípio da igualdade de direitos e da igual proteção legal. Além disso, o autor defende a existência implícita do princípio da “máxima proteção aos índios e aos seus direitos, a partir do qual é possível extrair a regra in dubiopro indígena” (ANJOS FILHO, 2009, p. 522). Portanto, não restam dúvidas de que a CF88 representa um grande marco para os direitos indígenas, pois se preocupou em dar ampla proteção a essa população tão vulnerável, além de alçar seus direitos ao rol de direitos fundamentais, de modo a serem assegurados pela União. 1.2.3 O Decreto nº 1.775 e o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil Alisson da Cunha Almeida, Artur Soares de Castro e Leonardo Fernandes Furtado, expõem as lições de Paulo de Bessa Antunes e esclarecem que A demarcação das terras tem única e exclusivamente a função de criar uma delimitação espacial da titularidade indígena e de opô-la a terceiros. A demarcação não é constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena sobre suas terras é a própria presença indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi efetuado pela Constituição Brasileira (ANTUNES, 1996, p. 113 apud ALMEIDA; CASTRO; FURTADO, 2006, p. 8). Ou seja, a demarcação apenas define os limites espaciais do território indígena tradicionalmente habitado, regularizando-o e evitando que o mesmo venha a ser objeto de disputa, de modo a conceder maior segurança aos povos que ali vivem para que possam exercer seu usufruto exclusivo sobre os recursos da terra e viver de acordo com os seus costumes. Conforme anteriormente citado, o processo de demarcação dos territórios indígenas está previsto no caput do artigo 231 da CF88 e nos artigos 19 e 25 do Estatuto do Índio. Por sua vez, o artigo 65 do Estatuto do Índio, e o artigo 67 do ADCT, estabeleceram o prazo de cinco anos para a finalização das demarcações. Porém, tanto o prazo do Estatuto, quanto o do ADCT, foram descumpridos sem que todas as terras indígenas fossem demarcadas. Importante ressaltar, que tais prazos não possuem natureza peremptória, sinalizando simplesmente uma visão prognóstica sobre o término dos trabalhos de demarcação e, portanto, a realização destes em tempo razoável, conforme esclarecido pelo Ministro Marco 26 Aurélio nos autos do Mandado de Segurança (MS) nº 24.566/DF (ALMEIDA; CASTRO; FURTADO, 2006, p. 6). Anjos Filho (2009, p.618) esclarece que a mora da União não veda novas demarcações, no entanto, o descumprimento do prazo é capaz de justificar a adoção de medidas judiciais com o objetivo de compelir a União a concluir as demarcações e indenizar eventuais prejuízos causados aos povos indígenas cujas terras não foram demarcadas a tempo. Eventuais indenizações, obviamente, não seriam cabíveis em casos de povos indígenas cuja existência só veio a ser conhecida posteriormente. O procedimento de demarcação sofreu modificações ao longo dos anos. Atualmente, o processo está descrito no Decreto nº 1.775 de 08/01/1996, que regulamenta o caput do artigo 19 do Estatuto do Índio. No entanto, o texto foi precedido por outros decretos: Decreto n° 76.999 de 08/01/1976; Decreto n° 88.118 de 23/02/1983; Decreto n° 94.945 de 23/09/1987; e Decreto n° 22 de 04/02/1991. O processo administrativo de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, conforme descrito no artigo 1º do Decreto nº 1.775, inicia-se por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio (Funai). O procedimento será fundamentado em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará estudo antropológico de identificação (artigo 2º). O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado coordenado por antropólogo que realizará estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação (artigo 2º, §1º). Tal grupo poderá solicitar a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos (artigo 2º, §4º). Após a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada (artigo 2º, §6º). Uma vez aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, esse fará publicar o resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação (artigo 2º, §7º). Em 09/01/1996, o Ministério da Justiça emitiu a Portaria nº 14, na qual ficaram estabelecidos parâmetros para a elaboração do relatório circunstanciado previsto no §6º do artigo 2º, entre os quais: informações gerais sobre o(s) grupos(s) indígena(s) envolvido(s), tais como filiação cultural e linguística, eventuais migrações, censo demográfico, distribuição 27 espacial da população e identificação dos critérios determinantes desta distribuição; descrição da distribuição da(s) aldeia(s), com respectiva população e localização; descrição das atividades produtivas desenvolvidas pelo grupo com a identificação, localização e dimensão das áreas utilizadas para esse fim; identificação e descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem estar econômico e cultural do grupo indígena; dados sobre as taxas de natalidade e mortalidade do grupo nos últimos anos, com indicação das causas, na hipótese de identificação de fatores de desequilíbrio de tais taxas, e projeção relativa ao crescimento populacional do grupo; e identificação e censo de eventuais ocupantes não índios (BRASIL, 1996b). A participação do grupo indígena envolvido é obrigatória em todas as fases do processo de demarcação (artigo 2º, §3º). Além disso, desde o início do procedimento demarcatório, até 90 dias após a publicação do resumo do relatório, poderão os Estados e municípios, em que se localize a área sob demarcação, e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório técnico (artigo 2º, §8º). O §8º, do artigo 2º, introduziu o contraditório pela primeira vez no processo de demarcação de terras indígenas, de tal modo que não há mais que se falar em violação ao princípio da ampla defesa e do contraditório no âmbito dos processos demarcatórios, críticas estas que eram frequentemente direcionadas ao Decreto n° 22. Esse foi o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos julgamentos do MS nº 24.045/DF, MS nº 21.649, MS nº 23.862/GO, dentre outros (ALMEIDA; CASTRO; FURTADO, 2006, p. 11). Porém, tal mudança foi alvo de críticas por parte da doutrina. Paulo de Bessa Antunes defende que o contraditório e a ampla defesa não são cabíveis no procedimento de demarcação, pois estes seriam destinados tão-somente à defesa de acusados em matéria penal ou administrativa-disciplinar (ANTUNES, 1996 apud ALMEIDA; CASTRO; FURTADO, 2006, p. 11). Já Edson de Oliveira considera problemática a admissão de contestações no processo demarcatório de áreas já homologadas e não registradas em cartórios de imóveis, pois estaria havendo a presunção de que os atos praticados pelas autoridades responsáveis pelas demarcações seriam ilegítimos (OLIVEIRA apud ALMEIDA; CASTRO; FURTADO, 2006, p. 11). Por seu turno, Itagiba Catta Neto defende que não há que se falar em ampla defesa no procedimento demarcatório, pois dele não decorrerá eventual indenização de terras 28 ou benfeitorias, sendo que estas devem ser discutidas em procedimento administrativo ou judicial próprios (NETTO, 1996 apud ALMEIDA; CASTRO; FURTADO, 2006, p. 12). Embora parte da doutrina seja crítica à mudança, Almeida, Castro e Furtado (2006, p. 12) destacam que ao abrir prazo para contestações, evitam-se infindáveis discussões judiciaissobre a não observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, além de permitir que sejam trazidos novos elementos para a demarcação, dando maior credibilidade a todo procedimento. Vencido o prazo de 90 dias para contestações, nos sessenta dias subsequentes o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas (artigo 2º, §9º). Por sua vez, o Ministro de Estado da Justiça deverá, em até 30 dias, tomar uma das seguintes ações: declarar, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação; prescrever todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; ou desaprovar a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da CF88 e demais disposições pertinentes (artigo 2º, §10º). Se for verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico (artigo 4º). A demarcação do território será homologada mediante decreto (artigo 5º) expedido pelo Presidente da República e, em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda (artigo 6º). Por fim, o órgão federal de assistência ao índio poderá disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios (artigo 7º). Desse modo, o Decreto nº 1.775 encontra-se vigente e estabelecendo as regras para o processo de demarcação das terras indígenas em todo o Brasil. 1.3 O DIREITO À TERRA INDÍGENA NO DIREITO INTERNACIONAL 29 A preocupação com a defesa dos direitos dos povos indígenas tem se mostrado cada vez mais presente no direito internacional. Diversos órgãos internacionais, como a ONU, OIT e a OEA, já emitiram documentos e entendimentos sobre o assunto. Com o movimento de internacionalização dos direitos humanos, os Estados já não são mais entes absolutos, e se tornaram internacionalmente responsáveis pela não observância de tais direitos. Nos tópicos seguintes, será dado um panorama sobre o direito indígena à terra no âmbito dos tratados e convenções internacionais aplicáveis ao Brasil. 1.3.1 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, é a efetiva garantidora dos direitos humanos no contexto americano. O texto foi assinado em 1969 na cidade costarriquenha na Conferência Especializada de Direitos Humanos realizada pela OEA. Por meio do referido diploma, foi criada a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que, juntamente com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos 7 , passou a compor o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, tendo como objetivo monitorar e implementar a efetivação dos direitos em todo o continente. A CADH foi assinada em 1969, mas entrou em vigência apenas no ano de 1978, após a 11ª ratificação feita pelo Estado do Peru. Contudo, o Brasil efetuou a sua aderência, por meio de depósito da carta de adesão, apenas em 25/09/1992, com promulgação em 06/11/1992, por meio do Decreto nº 678. Porém, Bruno Pegorari (2017, p. 254) ressalta que o reconhecimento da jurisdição obrigatória da CIDH não é automático, de modo que cada Estado deve expressamente declarar o reconhecimento dessa jurisdição no momento de ratificação da CADH ou em momento posterior. O Brasil veio a reconhecer a jurisdição obrigatória da CIDH apenas em 1998, seis anos após a sua adesão à CADH. Importante ressaltar que todo e qualquer diploma internacional de proteção aos direitos humanos são aplicáveis aos povos indígenas, de modo que, embora o diploma não 7 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1959, antes do Sistema Interamericano de Direitos Humano, por meio da Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, ocorrida em Santiago do Chile. 30 faça qualquer menção aos índios e seus territórios, o texto pode ser utilizado para dirimir conflitos envolvendo a temática. Pegorari (2017, p. 255) explica que a CIDH aperfeiçoou sua jurisprudência na matéria de direitos dos povos indígenas e fez grande contribuição com a proposição de novos parâmetros interpretativos para a proteção desses povos na América. Segundo o autor, o primeiro caso sobre a temática foi o de “Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua” em 2001, no qual a Nicarágua foi condenada pela não demarcação das terras comunais pertencentes à Comunidade Awas Tingni (PEGORARI, 2017, p. 256). No julgado, a CIDH entendeu que a CADH, em seu artigo 21 8 , também protege o direito das comunidades indígenas à propriedade comunal. Outro caso foi “Sawhoyamaxa vs. Paraguai” de 2006, no qual a violação do direito à propriedade coletiva dos índios se deu pela ineficácia do processo de solicitação do território, o que impossibilitou o acesso deste povo ao seu território coletivo. No presente caso, os índios perderam a posse de seu território involuntariamente, e o mesmo foi vendido a terceiros inocentes. A CIDH entendeu que os indígenas teriam o direito de recuperá-las ou de obter terras de igual extensão e qualidade, de modo que a posse não é pré-requisito que condiciona a existência do direito a recuperação das terras. E, enquanto a base espiritual e material da identidade desses povos se mantiver em relação às suas terras tradicionais, o direito a reivindicá-las permanecerá vigente (PEGORARI, 2017, p.257). O Brasil também já foi denunciado perante a CIDH por casos envolvendo territórios indígenas. Em sentença datada de 05/02/2018, o Brasil foi, pela primeira vez, condenado por uma corte internacional por violar direitos indígenas. O caso “Povo indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil”, foi denunciado junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 16/10/2002 pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos/Regional Nordeste, pelo Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares e pelo Conselho Indigenista Missionário. Em relatório de mérito datado de 28/07/2015, a Comissão conclui que o Estado brasileiro era internacionalmente responsável pela violação do direito à propriedade, consagrado no artigo 21 da CADH, bem como do direito à integridade pessoal consagrado no 8 O dispositivo determina que toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens, e que a lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social. Além disso, preconiza que nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969). 31 artigo 5º e pela violação dos direitos às garantias e à proteção judiciais consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 4). Doze anos se passaram entre o início do processo de demarcação das terras em 1989 e a homologação em 2001. Porém, o Brasil garantiu a liberação da totalidade do território pelos não índios, de modo que o Povo Xucuru ainda não mantém a posse de todas as suas terras. Em razão das constatações, a Comissão fez uma série de recomendações ao Estado brasileiro, entre elas: adotar as medidas legislativas,administrativas ou de outra natureza, indispensáveis à realização do saneamento do território ancestral, de acordo com seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes; garantir aos membros do povo que possam continuar vivendo de maneira pacífica seu modo de vida tradicional, conforme sua identidade cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e tradições particulares; adotar as medidas necessárias para concluir os processos judiciais interpostos por pessoas não indígenas sobre parte do território do Povo Indígena Xucuru (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 5). Devido à inércia das autoridades brasileiras, a Comissão submeteu, em 16/03/2016, o caso à CIDH. Na sentença, a CIDH recorda que o artigo 21 da Convenção Americana protege o estreito vínculo que os povos indígenas mantêm com suas terras bem como com seus recursos naturais e com os elementos incorporais que neles se originam. Entre os povos indígenas e tribais existe uma tradição comunitária sobre uma forma comunal da propriedade coletiva da terra, no sentido de que a posse desta não se centra em um indivíduo, mas no grupo e sua comunidade. Essas noções do domínio e da posse sobre as terras não necessariamente correspondem à concepção clássica de propriedade, mas a Corte estabeleceu que merecem igual proteção do artigo 21 da Convenção Americana. Desconhecer as versões específicas do direito ao uso e gozo dos bens, dadas pela cultura, usos, costumes e crenças de cada povo, equivaleria a afirmar que só existe uma forma de usar os bens, e deles dispor, o que, por sua vez, significaria tornar ilusória a proteção desses coletivos por meio dessa disposição. Ao se desconhecer o direito ancestral dos membros das comunidades indígenas sobre seus territórios, se poderia afetar outros direitos básicos, como o direito à identidade cultural e à própria sobrevivência das comunidades indígenas e seus membros (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 29). Na sentença, a CIDH ainda destaca que ao interpretar o artigo 21 da CADH, de modo a considerar o conteúdo e alcance do mesmo, dever considerar as regras de interpretação estabelecidas pela alínea “b” do artigo 29 9 , de modo que o dever de proteção que emana do artigo 21 da CADH, à luz das normas da Convenção nº 169 da OIT e da DNUDPI, bem como 9 O dispositivo determina que nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969). 32 os direitos reconhecidos pelos Estados em suas leis internas ou em outros instrumentos e decisões internacionais, passa a constituir um corpus juris que define as obrigações dos Estados-partes na CADH, em relação à proteção dos direitos de propriedade indígena (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 29). Além disso, a Corte, ao recordar sua jurisprudência sobre a temática dos territórios indígenas, destaca os seguintes pontos 1) a posse tradicional dos indígenas sobre suas terras tem efeitos equivalentes aos do título de pleno domínio concedido pelo Estado; 2) a posse tradicional confere aos indígenas o direito de exigir o reconhecimento oficial de propriedade e seu registro; 3) os membros dos povos indígenas que, por causas alheias a sua vontade, tenham saído ou perdido a posse de suas terras tradicionais mantêm o direito de propriedade sobre elas, apesar da falta de título legal, salvo quando as terras tenham sido legitimamente transferidas a terceiros de boa-fé; 4) o Estado deve delimitar, demarcar e conceder título coletivo das terras aos membros das comunidades indígenas; 5) os membros dos povos indígenas que involuntariamente tenham perdido a posse de suas terras, e estas tenham sido trasladadas legitimamente a terceiros de boa-fé, têm o direito de recuperá-las ou a obter outras terras de igual extensão e qualidade; 6) o Estado deve garantir a propriedade efetiva dos povos indígenas e abster-se de realizar atos que possam levar a que os agentes do próprio Estado, ou terceiros que ajam com sua aquiescência ou sua tolerância, afetem a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território; 7) o Estado deve garantir o direito dos povos indígenas de controlar efetivamente seu território, e dele ser proprietários, sem nenhum tipo de interferência externa de terceiros; e 8) o Estado deve garantir o direito dos povos indígenas ao controle e uso de seu território e recursos naturais. Com relação ao exposto, a Corte afirmou que não se trata de um privilégio de usar a terra, o qual pode ser cassado pelo Estado ou superado por direitos à propriedade de terceiros, mas um direito dos integrantes de povos indígenas e tribais de obter a titulação de seu território, a fim de garantir o uso e gozo permanente dessa terra (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 30). A CIDH acabou por condenar, por unanimidade, o Brasil a garantir o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território. Além disso, ficou determinado que o Estado deveria concluir o processo de desintrusão do território indígena Xucuru e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 54). Desse modo, embora não faça menção expressa aos índios e a seus territórios, a CADH, em conjunto com a jurisprudência da CIDH, mostra-se um dos mais importantes instrumentos de proteção aos direitos indígenas. Suas disposições devem ser interpretadas de 33 modo a não excluir as garantidas conferidas por outros textos internacionais ou pelos ordenamentos jurídicos internos dos Estados-partes. 1.3.2 A Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da OIT A Convenção nº 169 da OIT é considerado atualmente a ferramenta de caráter obrigatório mais eficaz e avançada em matéria de direitos indígenas (URQUIDI; TEIXEIRA; LANA, 2008, p. 203). A OIT sempre demonstrou preocupações a respeito dos povos indígenas, uma vez que estes, historicamente, foram utilizados nas colônias por meio de trabalho escravo. Como exemplo dessa preocupação, foi criada a Comissão de Peritos em Trabalho Indígena em 1926, cujo esforço deu origem a diversos diplomas normativos, como, por exemplo: a Convenção nº 29, de 1930, sobre Trabalho Forçado; a Convenção n° 50, de 1936, sobre o recrutamento de trabalhadores indígenas; a Convenção n° 64, de 1939, sobre contratos de emprego de trabalhadores indígenas; a Convenção n° 65, de 1939, sobre sanções penais a trabalhadores indígenas; a Convenção n° 86, de 1947, tratando também sob contratos de emprego de trabalhadores indígenas e a Convenção n° 104, de 1955, sobre a abolição de sanções penais a trabalhadores indígenas (ANJOS FILHO, 2009, p. 316). Contudo, em razão de casos de discriminação e exploração de indígenas nas relações laborais, a OIT editou a Convenção nº 107 relativa à Proteção e Integração das Populações Indígenas e de Outras Populações Tribais e Semitribais nos Países Independentes em 1957. Pela primeira vez, o direito ao território indígena foi tratado em uma convenção internacional, além de observar também outros direitos como saúde, educação e condições de trabalho. O referido diploma foi aprovado no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 20, de 30/04/1965, promulgado pelo Decreto Presidencialnº 58.824, de 14/07/1966 e com vigência a partir de 18/06/1966. Embora tenha sido um marco para a proteção e afirmação dos direitos indígenas, a sua denominação já indica seus objetivos de integração das populações indígenas, uma vez que foi elaborada à luz do paradigma assimilacionista, razão pela qual foi contestada pelos próprios povos indígenas que visava proteger (ANJOS FILHO, 2009, p. 317). É possível notar uma falta de critérios entre o uso dos termos “assimilação” e “integração”. A própria Convenção nº 169 indica a ausência de distinção entre os dois termos. 34 Embora a Convenção nº 107 possa indicar uma ideia de integração, o preâmbulo da Convenção nº 169 reconhece os princípios assimilacionistas do texto que a antecede, ao citar que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989). O enfoque assimilacionista da Convenção nº 107 é visível desde o seu preâmbulo ao afirmar seu objetivo de contribuir para a integração gradual das populações indígenas na respectiva sociedade nacional, como forma de melhorar suas condições de vida e trabalho. Nota-se que a Convenção busca, na verdade, a assimilação, e não a integração, ao considerar que as condições de vida e trabalho dos povos indígenas são inferiores aos da sociedade dominante. Daize Fernanda Wagner (2014, p. 6) esclarece que essa compreensão acerca dos povos indígenas e tribais se manteve durante a década de 1950 até meados da década de 1970. Devido às duras críticas sofridas, a OIT adotou, em Genebra, em 27/06/1989, na 76ª Conferência Internacional do Trabalho, a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, entrando em vigor em 05/09/1991 (ANJOS FILHO, 2009, p. 317). A Convenção foi aprovada com 328 votos favoráveis e contou com 49 abstenções, inclusive do Brasil, que só veio a ratificá-la em 2002, uma vez que o texto veio a sofrer grande resistência no CN, principalmente no Senado Federal, no qual permaneceu 11 anos em debate (WAGNER, 2014, p. 9). O texto entrou em vigor no país um ano após a sua ratificação e foi incorporado pelo ordenamento jurídico nacional por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20/06/2002, e do Decreto Presidencial nº 5.051, de 19/04/2004. A Convenção nº 169 é um grande avanço em relação à sua antecessora, principalmente por ter abandonado as concepções assimilacionistas, passando a reconhecer e respeitar os povos indígenas e suas diferenças. O texto é composto por 44 artigos, divididos em dez partes. Assim, a primeira parte trata da política geral, a segunda da terra, a terceira da contratação e condições de emprego, a quarta da formação profissional, artesanato e indústrias rurais, a quinta da seguridade social e saúde, a sexta da educação e meios de comunicação, a sétima parte trata dos contatos e cooperação além-fronteiras, a oitava da administração, a nona das disposições gerais e a décima parte trata das disposições finais. Em relação às terras indígenas, convém citar o artigo 13, item um, segundo o qual ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a 35 importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. O artigo 14, item um, estabelece que os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados deverão ser reconhecidos, devendo, quando justificado, serem tomadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais e de subsistência, além de ser necessária especial atenção à situação de povos nômades e de agricultores itinerantes. O item dois trata do processo de demarcação, segundo o qual fica determinado que os governos tomarão as medidas necessárias para identificar terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse. O item três determina que procedimentos adequados deverão ser estabelecidos no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar controvérsias decorrentes de reivindicações por terras apresentadas pelos povos interessados. O artigo 15, item um, prescreve que o direito dos povos interessados aos recursos naturais existentes em suas terras deverá gozar de salvaguardas especiais, devendo incluir o direito desses povos de participar da utilização, administração e conservação desses recursos. Por sua vez, o artigo 18 determina que sanções adequadas deverão ser estabelecidas em lei contra a intrusão ou uso não autorizado de terras dos povos interessados e que os governos tomem medidas para impedir a ocorrência de delitos dessa natureza. Embora represente um avanço em diversos pontos, a Convenção nº 169 sofreu críticas no tocante ao tratamento dos territórios indígenas, pois poderia ter avançado muito mais na proteção de seus direitos e interesses. Como exemplos podem ser citadas a flexibilização na remoção dos povos indígenas das terras em que ocupam, podendo ocorrer em situações de excepcionalidade. Porém, o texto não define tais exceções, deixando a cargo dos Estados- partes caracterizar tal situação (WAGNER, 2014, p. 8). Outro ponto de crítica foi a limitação no controle dos recursos naturais de seus territórios por parte dos povos indígenas, uma vez que “em muitos Estados-partes, como é o caso do Brasil, os povos indígenas não têm controle sobre os recursos do subsolo, pois estes pertencem ao Estado” (WAGNER, 2014, p. 8). Desse modo, no caso do Brasil, a Convenção nº 169 da OIT não representou uma grande ruptura jurídica no ordenamento brasileiro, uma vez que a CF88 já havia trazido uma grande inovação no tratamento dos povos indígenas, de modo que o grande mérito da 36 recepção do diploma internacional foi o compromisso no plano internacional assumido pelo Brasil em relação a seus povos indígenas (WAGNER, 2014, p. 13). 1.3.3 A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas No dia 13 de setembro de 2007, em Nova Iorque, a Assembleia Geral da ONU aprovou, após 25 anos de debates, a DNUDPI. O texto final foi aprovado com 143 votos a favor, incluindo o voto do Brasil, quatro votos contrários, sendo estes os votos de Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, e 11 abstenções (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 58-64). A Declaração tem como base a Convenção nº 169 da OIT e, embora não estabeleça novos direitos, reconhece e afirma direitos fundamentais universais já existentes no contexto das culturas, realidades e necessidades indígenas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 50). A Declaração é o documento de princípios mais avançado e ousado a respeito dos direitos indígenas no plano internacional, pois reúne as principais reivindicações, debates, conceitos e princípios sobre o assunto (URQUIDI; TEIXEIRA; LANA, 2008, p. 7), constituindo-se, desse modo, um mínimo existencial dos povos indígenas, ou seja, exigências mínimas de respeito à dignidade daqueles povos (ANJOS FILHO, 2009, p. 325). O próprio texto da Declaração, em seu artigo 43, estabelece que os direitos reconhecidos no documento constituem as normas mínimas para a sobrevivência, a dignidade e o bem-estar dos povos indígenas do mundo (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2007). Contudo, mesmo se tratando de um texto avançado, a Declaração