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A Construção Imaginária das Identidades Nacionais APRESENTAÇÃO Quando alguém nos pergunta sobre nossa nacionalidade e respondemos, as pessoas automaticamente acessam conteúdos acerca de nosso país de origem. Elas criam sentidos sobre quem somos. A ideia de nacionalidade retoma outra ideia muito importante nesta Unidade de Aprendizagem, a de nação. É a partir das culturas das nações que as identidades nacionais são construídas. Nesse sentido, se as identidades nacionais são construções que surgem do nosso imaginário, não podem ser entendidas como um todo unificado e estável. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai estudar como funcionam as identidades nacionais e analisar como a literatura brasileira contribui para essa discussão. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir o conceito de identidade nacional.• Analisar como esse conceito se manifesta na história da literatura brasileira.• Contrastar diferentes discussões sobre a identidade em distintas obras literárias.• DESAFIO Você sabia que cada texto vai nos apresentar uma representação da identidade nacional? Isso significa que um escritor pode se valer de representações, de narrativas já veiculadas em qualquer meio – seja para criticá-las ou para concordar com elas. Na carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal, D. Manuel I, para compartilhar as descobertas no território então chamado Terra de Vera Cruz, ele recorre ao imaginário do paraíso perdido. Caminha retrata os índios como extensão, portanto, desse paraíso. Eles são vistos como ingênuos, bons e gentis. Já as índias são vistas como objetos à disposição dos viajantes. Caminha recomenda ao rei que salve a alma dessa gente, necessitados que estariam do que os portugueses chamavam de civilização. Considerando essas informações sobre a carta, leia o fragmento do romance Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, e compare-o à carta escrita por Pero Vaz de Caminha. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Tomando como ponto de partida as reflexões sobre as identidades nacionais, procure refletir acerca dos questionamentos a seguir: 1) Como o índio é representado no texto de Ruffato e no de Caminha? 2) De que forma o índio é tratado pelo branco? 3) De que modo é representada nossa identidade nacional? INFOGRÁFICO Apesar de ser um assunto muito familiar a todos nós, nem sempre paramos para pensar em outras perspectivas da identidade nacional para além do que o senso comum nos apresenta. O infográfico a seguir apresenta uma síntese do pensamento de teóricos muito importantes para essa área, que vai ajudar a refletir sobre a noção de identidade. Confira! CONTEÚDO DO LIVRO As identidades nacionais não são herdadas como parte de nossa genética, assim como não podem ser tidas como traços definitivos. As identidades nacionais são narrativas constituídas por outras tantas narrativas sobre uma nação. Faça a leitura do capítulo A construção imaginária das identidades nacionais, base teórica desta Unidade de Aprendizagem. Boa leitura. TEXTOS FUNDAMENTAIS DE FICÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA Cristina Arena Forli A construção imaginária das identidades nacionais Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: n Defi nir o conceito de identidade nacional. n Analisar como esse conceito se manifesta na história da literatura brasileira. n Contrastar diferentes discussões sobre a identidade em obras literárias distintas. Introdução Quando conversa com alguém sobre sua nacionalidade, você auto- maticamente oferece informações acerca de seu país de origem. Essas informações criam sentidos sobre quem você é. A ideia de nacionalidade retoma uma outra muito importante para o que você vai estudar neste texto, a de nação. É a partir das culturas das nações que as identidades nacionais são construídas. Nesse sentido, se as identidades nacionais são construções que surgem do imaginário das pessoas, não podem ser entendidas como um todo unificado e estável. Neste texto, você vai entender como funcionam as identidades nacionais e analisar como a literatura brasileira contribui para essa discussão. Identidade, nação e narração Você já deve ter ouvido falar que os ingleses são pontuais, que os alemães são disciplinados e que os brasileiros são alegres e festivos. Isso ocorre por- que estamos habituados a relacionar características de personalidade aos países a que as pessoas pertencem. No entanto, as identidades nacionais não são herdadas como parte de nossa genética, não nascem conosco, conforme explica o sociólogo Stuart Hall. Da mesma forma, não podem ser tidas como Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 53 09/06/2017 15:01:43 uma essência, ou seja, como traços defi nitivos. As identidades nacionais são narrativas constituídas por outras tantas narrativas sobre uma nação. Essas narrativas contam histórias reais ou fi ctícias, idealizadas ou críticas, sobre o passado, o presente ou o futuro da nação, assim emprestando sentidos à sua defi nição. Elas percorrem os mais variados meios: mitologia, literatura, artes visuais, música, cinema, anedotas, histórias populares, etc. Mas, afi nal, o que é uma nação? Um estudioso chamado Ernest Renan propôs pensar justamente sobre esse questionamento em uma conferência proferida em 1882. Ele, já nessa época, apresentou a ideia de nação como uma construção que está sujeita à vontade do homem (RENAN, 1999). A nação envolve sacrifícios que os indivíduos fazem ou estão dispostos a fazer por consentimento. A maioria das nações passou a ser unificada depois de um violento processo de conquistas. Por isso, de acordo com Renan, é necessário esquecer a violência que envolve essas origens para criar um sentimento de lealdade em relação à nação a fim de que os sujeitos queiram se sentir parte dela. Nesse sentido, você pode pensar que a nação, de uma forma mais ampla, é um grande sistema de represen- tação de uma cultura, isto é, é o que é narrado sobre determinados povos, são os sentidos construídos acerca do que é ser inglês, alemão e brasileiro, por exemplo. Você pode entender as culturas nacionais, então, como discursos que, criando sentidos sobre a nação, constroem também identidades com as quais você é capaz de se identificar. Nesse âmbito, as identidades nacionais consti- tuem “comunidades imaginadas”, como destaca Benedict Anderson (2008). Sendo assim, o que há de diferente entre as nações seria a forma como elas são imaginadas. Você conhece o conceito de discurso? Um importante teórico que tratou desse conceito é Michel Foucault (2010). Ele explica que o discurso não é só o que manifesta o desejo, mas também o que é objeto desse desejo. Sendo assim, ele envolve poder. As culturas nacionais são entendidas como discursos não porque elas determinam o que uma identidade ou uma nação realmente é, mas o que se deseja contar sobre determinada identidade ou nação. Nesse sentido, os discursos sempre vão evidenciar uma perspectiva que, é claro, serve a interesses de quem os detém. Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa54 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 54 09/06/2017 15:01:43 A repetição de narrações sobre o passado de uma nação cria a ideia do que se chama tradição. A partir de um mito de origem, isto é, uma narrativa sobre como começou a nação, uma série de atributos é idealizada como pertencendo a todos os cidadãos do lugar, desde os heróis desse passado idealizado até os cidadãos do presente. Dessa forma, a tradição pretende conectar nossas vidas a um passado comum, criando a sensação de que todos os indivíduos de uma nação descendem de uma mesma origem. Temos a tendência a pensar nessas tradições como muito antigas, porque as narrativas mitológicas as colocam como pertencendo a um passado remoto e original. Contudo, todanarração de um passado é composta a partir do presente. Assim, muitas das tradições são recentes e obedecem a diversos interesses contemporâneos. Por isso, os historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1984) se referiram a esse tema com a expressão “a invenção das tradições”. Você deve ter em mente, portanto, que as identidades nacionais são construções culturais. Sustentadas por narrativas que criam tradições, elas pertencem ao âmbito do discurso e estão sujeitas às mutações da história. É preciso, no entanto, tomar cuidado, pois isso não significa afirmar que elas não são reais. Como produtos da cultura do homem, são, sim, reais. O que você deve perceber é que elas não existem desde sempre ou estão impressas nos nossos genes. Como construção, elas são criadas e trans- formadas na sociedade. Identidade nacional: o caso da literatura brasileira A literatura é um dos meios pelos quais circulam as narrativas que formam a ideia da identidade de uma nação. Como você percebeu na discussão anterior, não há uma essência que predefi na o que signifi que ser inglês, alemão ou brasileiro. Como fenômeno da modernidade ocidental, a identi- dade nacional é uma construção histórica, o que signifi ca dizer que ela é mutável ao longo do tempo. Dessa forma, “O que é ser brasileiro?” é uma pergunta para a qual não há uma resposta defi nitiva. Ao longo da história da literatura brasileira, diversas obras formularam (de forma mais ou menos direta) respostas para ela. Como bem destaca a teórica comparatista Tania Franco Carvalhal (1997), nenhuma dessas respostas é mais verdadeira que a outra. Todas elas são verdadeiras no sentido de serem construções que determinado autor ou autora, pertencente a seu tempo e a sua cultura, ela- 55A construção imaginária das identidades nacionais Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 55 09/06/2017 15:01:43 borou. Nesse sentido, para Carvalhal (1997), o que importa é a comparação dessas versões para que se possa perceber a heterogeneidade escondida na pretensa homogeneidade da nação. Para fazer esse exercício de refl exão, você conhecerá alguns dos diversos textos signifi cativos sobre a literatura brasileira e a identidade nacional. O brasileiro como o bom selvagem Começamos por um dos textos mais importantes da história do Brasil: a carta escrita pelo escrivão ofi cial da embarcação de Pedro Álvarez Cabral, Pero Vaz de Caminha (1500). A função de Caminha era redigir ao rei de Portugal, D. Manuel I, um documento compartilhando as principais descobertas dos navegantes na então chamada Terra de Vera Cruz. Imagine você o desafi o do escritor português. Em 1500, sem os recursos tecnológicos de que dispomos hoje (internet, fi lmagem, fotografi a, etc), ele teria que explicar como era um local completamente desconhecido aos olhos portugueses: seus habitantes, seus hábitos, sua vegetação, seus animais. Dessa maneira, para dar uma forma ao desconhecido, Caminha recorreu ao imaginário europeu do paraíso perdido. Desde o período medieval, os europeus imaginavam existir locais ideais, de clima ameno, natureza exuberante e alimentação abundante para além de onde seus mapas poderiam defi nir. Portanto, quando o português tenta descrever o completo desconhecido, ele precisa se apegar a algo conhecido para formular sua compreensão. O mito do paraíso perdido surge então como moldura que dá forma ao que Caminha descreve. Dessa forma, a carta é marcada pelo tom de espanto com a exuberância natural do território encontrado. É como se Caminha descrevesse um paraíso que os portugueses acharam por recompensa de suas aventuras marítimas. Como consequência, os habitantes locais também são descritos como parte desse paraíso a que os portugueses teriam direito. Os índios são vistos como extremamente ingênuos, bons e gentis – sobretudo a partir do momento em que presenteiam os portugueses com um carregamento de madeira. As índias, por sua vez, descritas a partir do maravilhamento do olhar masculino euro- peu, são vistas como corpos à disposição dos navegantes. Como conclusão, Caminha recomenda ao rei que salve a alma dessa gente. Ou seja, diante do olhar desbravador lusitano, os índios que darão origem ao ser brasileiro são descritos como bons selvagens: servis, sem maldade e necessitados do que os europeus denominavam civilização (seu próprio sistema de crenças, sejam elas religiosas, científicas ou culturais). Criava-se assim o precedente para a colonização. Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa56 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 56 09/06/2017 15:01:43 A carta de Pero Vaz de Caminha (1500) está disponível online, em domínio público. Você pode conferir no link ou código a seguir: <https://goo.gl/2M0RyB> Moacir: o primeiro brasileiro Uma obra importante que você vai conhecer também e que busca retratar o processo de colonização do Brasil é o romance Iracema: lenda do Ceará, publicado em 1865 por José de Alencar (1991). Pertencente à estética romântica, Alencar não se furta das características do romantismo ao constituir em sua narrativa um mito fundacional para o País. Dessa forma, o enredo do romance está centrado na união amorosa idealizada entre Martin, aventureiro português, e Iracema, índia tabajara. Da história de amor vivenciada por ambos, nasce Moacir – o primeiro cearense ou, metonimicamente, o primeiro brasileiro. Ao afi rmar que toda essa história se passou nessa terra (referência ao Ceará de maneira específi ca e ao Brasil de maneira mais ampla), Alencar fecha um ciclo mitológico, criando desse modo um passado que dê sentido ao presente do brasileiro, pretendendo assim caracterizá-lo como oriundo de um processo de hibridação étnica e cultural. No entanto, se você refletir criticamente sobre a hibridez com a qual Alencar responde à pergunta “O que é ser brasileiro?”, pode perceber que essa união não se dá de forma igualitária. Ao passo que Martin – homem, branco e português – é caracterizado por sua honra, fé, valentia e lealdade (características típicas do cavaleiro medieval europeu), Iracema – mulher e indígena – é caracteri- zada por sua beleza física, frequentemente comparada à beleza exuberante e exótica da flora e da fauna brasileiras (ALENCAR, 1991). Assim, é como se o homem europeu emprestasse os atributos morais ao brasileiro, ao passo que a mulher indígena cede os atributos físicos e representa um mero objeto ao dispor do aventureiro (em discurso semelhante ao de Caminha). Se você pensar em alguns episódios que compõem o romance, verá que essa assimetria fica ainda mais clara: Iracema teve que trair sua tribo e abandonar sua cultura para viver junto a Martin. A índia tabajara acaba inclusive morrendo para 57A construção imaginária das identidades nacionais Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 57 09/06/2017 15:01:43 que Moacir cresça. Dessa forma, simbolicamente, é como se o indígena fosse apenas um elemento de origem mítica do brasileiro. No entanto, nessa visão, sua cultura não é decisiva para a formação da identidade. Por fim, depois de ser educado na Europa, Moacir volta com seu pai ao Ceará para cravar o “lenho sagrado” (cruz) e constituir a primeira cidade brasileira. Portanto, já em Alencar é sustentado o mito da democracia racial brasileira, tão comum em tantas narrativas até hoje, sejam elas tratados sociológicos ou propagandas político-partidárias. Você pode conferir o filme Iracema – uma transa amazônica, sob a direção de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e comparar as duas narrativas sobre o Brasil. Às narrativas que sustentam os grandes mitos das identidades nacio- nais, como é o caso do mito da democracia racial brasileira, em Alencar o teórico indiano Homi Bhabha (2013) chamou de “narrativas da nação”. Essas narrativas acabam por idealizar um passado para construir a ideia do “muitos em um”. No caso do romance de Alencar, é como se todos os brasileirospudessem ser representados como descendentes de Moacir. No entanto, as histórias do cotidiano de pessoas às margens da nação acabam por confrontar as grandes histórias que pretendem contar sua origem. Dessa forma, mulheres, negros e indígenas, por exemplo, ao relatar seu dia a dia mostram que nem todos se encaixam no “muitos em um” que a nação pre- tende representar. São essas narrativas das minorias que Bhabha chama de “contranarrativas da nação”. Uma sociedade desigual Um dos escritores mais consagrados da literatura brasileira, Machado de Assis, ao representar a condição de sujeitos negros em alguns de seus contos, entra na discussão sobre a identidade nacional com algumas “contranarrativas da nação”. Em “Pai contra mãe”, conto publicado na obra Relíquias da casa velha, de 1906, Machado (ASSIS, 1990) contrapõe sua visão crítica, realista e irônica ao romantismo de Alencar. O conto tem como protagonista Cândido Neves, sujeito branco e pobre que se casa com Clara (chamam atenção aqui Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa58 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 58 09/06/2017 15:01:44 as palavras que remetem à cor branca no nome dos dois personagens). Com poucas oportunidades de emprego, Neves acaba trabalhando como caçador de recompensas: captura escravos fugidos para receber alguma bonifi cação de seus senhores. No entanto, a falta de estabilidade fi nanceira acaba fazendo com que seja pressionado por Tia Mônica (responsável pela criação de Clara) para que abandone o fi lho recém-nascido do casal na Roda dos Enjeitados. Assim, em meio à difi culdade fi nanceira, um quarto membro na família não ameaçaria a sobrevivência dos outros três. A tensão da narrativa se dá quando Neves, inconformado por ter de abrir mão de seu filho, encontra Arminda: escrava grávida que havia fugido e pela qual se pagaria uma grande recompensa. A narrativa chega a sugerir, inclusive, que sua gravidez é consequência de violência sexual por parte do senhor. Diante do conflito posto entre salvar seu filho ou o filho da escrava, Neves opta pelo primeiro. Ao ser devolvida, Arminda é agredida e acaba abortando. “Nem todas as crianças vingam”, desfecha ironicamente o narrador. A frase é significativa na representação do Brasil como um país em que, apesar da pluralidade étnica e cultural, nem todos têm direitos – inclusive à vida. O filme Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi, toma como inspiração o conto de Machado de Assis, retomando elementos dessa narrativa e trazendo-os para a atualidade. Tendo sido formado por um violento processo de massacre indígena e pelas mãos do trabalho forçado dos negros, o Brasil é retratado assim como um país em que etnia, gênero e classe social são posições de uma violência historicamente constituída. Cândido Neves, enquanto sujeito pobre, é redu- zido a objeto de coerção das classes dominantes. Ele serve para garantir que os sujeitos mais explorados desse sistema, os escravos, não se rebelem. No entanto, a manutenção do trabalho escravo é a própria causa do desemprego e da consequente objetificação do personagem. Fecha-se assim um ciclo que garante a imobilidade social e a manutenção de privilégios. Dessa forma, se pode dizer que Machado responde à pergunta “O que é ser brasileiro?” de modo oposto a Alencar, mostrando que ser brasileiro é ser produto e produtor de uma sociedade extremamente violenta e desigual. 59A construção imaginária das identidades nacionais Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 59 09/06/2017 15:01:44 Macunaíma: o anti-herói A questão em pauta foi tomada como ponto central de debate entre os modernis- tas de 22. Buscando se desvencilhar da infl uência da literatura e da gramática portuguesas, Oswald de Andrade passa a valorizar a fala dos sujeitos das camadas populares do País como representativas de sua identidade e objeto de valor poético. O cotidiano passa a ser cada vez mais signifi cativo da nação: Tarsila do Amaral pinta obras que retratam operários, pescadores e morros de favelas, por exemplo. Tarsila do Amaral não foi escritora, mas é um importante nome do mo- dernismo brasileiro. Ela foi pintora, desenhista e tradutora. Entre suas telas mais conhecidas estão: A Negra, Abaporu e Operários. A artista e o seu então marido Oswald de Andrade foram os fundadores do Movimento Antropo- fágico, e Abaporu foi o seu grande símbolo. Isso porque o título da tela tem como significado “o homem que come carne humana”, justamente a principal ideia que queria expressar o movimento: o desejo de engolir, deglutir tanto as culturas europeias quanto as culturas locais e transformá-las em algo que fosse representativo da identidade nacional. Nesse contexto, a obra que mais se destaca na representação da identidade nacional é Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, publicada por Mário de Andrade em 1928. Essa obra (ANDRADE, 2008), misto de romance e rapsódia, apresenta como protagonista o índio Macunaíma. Sem nenhum caráter, ele retoma do romance Memórias de um sargento de milícias (1852- 3), de Manuel Antônio de Almeida (1959), a ideia do anti-herói, típica na caracterização do brasileiro simples com traços de malandragem. Assim, Macunaíma, “o filho da mata virgem”, é descrito na obra como feio, sapeca e preguiçoso. Ao se relacionar com Ci, a mãe do mato, Macunaíma recebe a mui- raquitã, espécie de pedra-amuleto, como presente. Esta é roubada por Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã. Dá-se início então a uma longa peregrinação a partir da perseguição ao gigante. Essa perseguição servirá de mote para que o protagonista percorra os mais variados cantos do País: indo do norte ao sul do Brasil, e passando por São Paulo – importantíssima na obra para a representação de um Brasil urbano, moderno e burocrático. Ao longo dessa jornada, o anti-herói muda de etnia, sendo índio, negro e branco e fazendo referência a muitos mitos indígenas e afro-brasileiros (ANDRADE, 2008). Dessa forma, Mário de Andrade, para responder à pergunta proposta, retoma a questão da hibridação como elemento fundamental à constituição Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa60 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 60 09/06/2017 15:01:44 identitária brasileira. No entanto, o escritor modernista o faz deixando de lado o idealismo romântico do século XIX. A relação entre as culturas europeias, africanas e indígenas na composição nacional é vista de maneira mais crítica. Isso ocorre, por exemplo, na passagem em que os irmãos do anti-herói, que são indígenas, o criticam por tê-los esquecido depois que este vira branco. Também o desenvolvimento urbano associado ao progresso do País é criticado, como na figura burocrática de Venceslau Pietro Pietra. Ele é o grande vilão da obra e simboliza o homem burguês médio. O Brasil que tem fome Por fi m, você vai conhecer outra típica “contranarrativa” da nação. Trata-se de Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado por Carolina Maria de Jesus em 1960 (Figura 1). Figura 1. Carolina Maria de Jesus autografando seu livro. Fonte: Valek (2016). Carolina vivia na hoje extinta Favela do Canindé, em São Paulo. Mãe solteira, ela coletava lixo para posteriormente vender à reciclagem. Quarto 61A construção imaginária das identidades nacionais Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 61 09/06/2017 15:01:44 de despejo (JESUS, 2007) é o conjunto de diários que a catadora manteve de 1955 até 1960, relatando o difícil cotidiano de uma mulher negra, fa- velada, mãe solteira, lutando incessantemente contra a fome de seus três filhos. A riqueza de referências literárias e de recursos de linguagem fez com que os diários passassem a ser lidos como obra literária, configurando uma das mais comentadas obras de ficção brasileiras do século XX. No dia 13 de maio, data da abolição da escravatura, Carolina (JESUS, 2007, p. 31-32) comenta: Hojeamanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...] Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça [...]. Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada: – Viva a mamãe! A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. [...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! Dessa forma, Quarto de despejo traz à tona um outro brasileiro que não teve espaço nas grandes narrativas da nação: o brasileiro que tem fome. Em um dos países que mais produz alimentos, Carolina relembra daqueles que não têm o que comer. Em uma literatura bastante marcada por autores e personagens brancos e de classe média, ela faz com que sujeitos periféricos também possam se enxergar como autores e personagens. Sua linguagem, incorreta do ponto de vista gramatical para muitos, passa então a ser vista como mais uma forma possível de expressão literária (como idealizara Oswald de Andrade). Em uma literatura predominantemente masculina (seja no número de autores ou de protagonistas), Carolina mostra o ponto de vista da mulher sobre a nação. E ela tem o ponto de vista crítico de quem escolheu não casar para não sofrer os abusos de um casamento predominantemente masculino – em que, como Iracema (ALENCAR, 1991), as mulheres acabam tendo de abrir mão de si enquanto sujeitos para constituir a tradicional família brasileira. Trata-se, portanto, de uma resposta bastante crítica sobre “O que é ser brasileiro?”, pois produzida pelos sujeitos que geralmente têm a voz e a cidadania negadas na tão frágil democracia nacional. Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa62 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 62 09/06/2017 15:01:44 A pluralidade: os brasileiros são muitos Para compreender a importância da literatura como meio de propagação das narrativas que formam a identidade de uma nação, você conheceu melhor a história da literatura brasileira. Você fez essa refl exão por meio de cinco obras: A carta de achamento do Brasil, Iracema: lenda do Ceará, “Pai contra mãe”, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter e Quarto de despejo: diário de uma favelada. Cada uma das cinco responde de modo diferente à pergunta central que guiou este texto: “O que é ser brasileiro?”. Além delas, uma variedade muito grande de obras literárias se debruçaram sobre essa questão, trazendo à tona novas respostas para o questionamento. Desse modo, você deve ter percebido que o brasileiro, assim como qual- quer cidadão de qualquer outra nacionalidade, não possui uma essência que torne sua identidade fixa e estável. Pelo contrário, como defendem os teóricos que refletiram sobre o tema, as identidades nacionais são móveis e fragmentadas. Por isso, mais importante que uma versão particular sobre a identidade nacional é a pluralidade de versões. A riqueza do Brasil, assim como a de outras nações, está justamente nesse diálogo estabelecido ao longo da história e para o qual as literaturas foram fundamentais. Esse diálogo é formado por muitas vozes, sejam elas nacionais ou estrangeiras, masculinas ou femininas, heterossexuais ou homossexuais, brancas, negras ou indígenas. Todas elas são importantes para constituir o coro plural e positivamente contraditório da nação. Afinal, como defendeu Arnaldo Antunes (1996) na canção “Inclassificáveis”, “[...] aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes [...]”. 63A construção imaginária das identidades nacionais Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 63 09/06/2017 15:01:44 ALENCAR, J. Iracema. 24. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Bom Livro). Disponível em: <https:// goo.gl/TZJCJI>. Acesso em: 13 abr. 2017. ALMEIDA, M. A. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Pongetti, 1959. ANDERSON, B. R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008. ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Agir, 2008. ANTUNES, A. Inclassificáveis. In: ANTUNES, A. O silêncio. Los Angeles: Ariola Records, 1996. 1 CD. ASSIS, M. Pai contra mãe. In: ASSIS, M. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: Garnier, 1990. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245. pdf>. Acesso em: 13 abr. 2017. BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2013. CAMINHA, P. V. A carta. Belém: Unama, 1500. Disponível em: <http://www.dominio- publico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2017. CARVALHAL, T. F. A nação em questão: uma leitura comparatista. In: SCHMIDT, R. T. Nações/narrações: nossas histórias e estórias. Porto Alegre: ABEA, 1997. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 20. ed. São Paulo: Loyola, 2010. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1984. (Pensamento Crítico, v.55). JESUS, C. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2007. RENAN, E. O que é uma nação. Caligrama, Belo Horizonte, n. 4, p. 139-180, 1999. VALEK, A. Carolina Maria de Jesus, a catadora de letras. CartaCapital, São Paulo, 15 mar. 2016. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/cultura/carolina-maria- -de-jesus-a-catadora-de-letras>. Acesso em: 27 abr. 2017. Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa66 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U2_C04.indd 66 09/06/2017 15:01:45 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. DICA DO PROFESSOR As identidades nacionais são narrativas que nos contam histórias sobre determinada nação. Essas histórias vão perpassar os mais diferentes meios, entre eles, as artes plásticas e a música. Você deve estar se perguntando: mas então uma pintura ou a letra de uma canção podem nos contar uma história? Sim, podem! É o que você vai conferir no vídeo a seguir! Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) Assinale a alternativa que mais se enquadra na discussão sobre o conceito de identidade nacional. A) As identidades nacionais são algo com o qual nascemos e não podem ser modificadas. B) As identidades nacionais são uma invenção de autores da literatura. C) Por serem criadas a partir das culturas nacionais, as identidades são uma construção cultural. D) As identidades nacionais não existem, são uma ficção. E) Devido ao fato de estarem totalmente relacionadas à ideia de nação, as identidades nacionais constituem-se uma criação de estadistas. 2) Sobre as tradições, marque a opção correta. A) Sempre existiram e são imutáveis, resistindo ao tempo e às pressões da indústria e da moda. B) São narrativas que o presente repete sobre o passado, criando a sensação de um passado comum. C) São origem de todos os sujeitos que compõem uma nação. D) São a expressão legítima da cultura dos cidadãos mais afeitos à essência da nação. E) Trata-se de uma criação midiática. 3) Acerca da relação estabelecida entre a ideia de identidade nacional e a literatura brasileira, aponte a alternativa correta. A) Caminha descreve os índios brasileiros como selvagens e ameaçadores, devendo ser domesticados pela civilização europeia. B) José de Alencar é quem melhor encarnou o espírito nacional para compor um de nossos mitos de origem. C) Machado pode ser entendido como antinacionalista, pois compôs uma contranarrativa da nação denunciando a história de formação do País. D) Mário compôs Macunaíma comouma forma de denúncia à cultura da malandragem no Brasil, entendendo que o País é prejudicado pela preguiça de sua gente. E) Carolina compõe uma das mais marcantes contranarrativas da nação ao trazer à tona a voz de uma mulher negra e periférica sobre o cotidiano angustiante a partir do qual vê a nação. 4) Leia as alternativas sobre a linguagem na literatura nacional e assinale a correta. Oswald de Andrade propõe que a linguagem coloquial das classes populares é A) representativa da poeticidade brasileira. Nesse sentido, podemos pensar que Carolina de Jesus é um dos maiores expoentes do que afirma o modernista. B) Pero Vaz de Caminha praticamente não usa descrições para retratar o que vê no Brasil quando da sua chegada, o que dificulta saber qual a sua visão sobre o índio. C) Alencar faz uso de uma linguagem realista para retratar a união do índio com o colonizador. D) Mário de Andrade denuncia na preguiça de Macunaíma a preguiça do brasileiro no cuidado com a linguagem. E) Carolina faz uso de uma linguagem errada do ponto de vista da gramática normativa, por isso não é um grande expoente da literatura brasileira neste quesito. 5) Acerca do conceito de nação, marque a opção correta. A) Trata-se de uma construção, mas não depende da vontade do homem. B) Retoma um passado tal qual ele fora. C) É um sistema de representação de uma cultura. D) Representa a essência de um sujeito no que diz respeito à sua nacionalidade. E) Não depende da memória dos sujeitos para continuar existindo. NA PRÁTICA Você já parou para pensar no quanto nossos discursos cotidianos colaboram para reforçar determinadas narrativas das identidades nacionais? Vamos fazer um exercício prático? Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Triste, não? Parece que só o que representa a nossa brasilidade são a objetificação das mulheres, o futebol, as praias e o carnaval. Já em relação à África, sabemos que não se trata de um país, mas um continente. No entanto, os estereótipos atribuídos aos africanos ignoram as particularidades de suas identidades nacionais. Todos são representados a partir da ideia da miséria, da fome e das doenças. Nesse sentido, a literatura pode colaborar para a manutenção dessas representações ou pode agir de forma a questioná-las e mostrar o quanto elas são problemáticas e redutoras de uma sociedade. SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: O que faz o Brasil, BRASIL? 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