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ECONOMIA POLÍTICA Filipe Prado Macedo da Silva Economia política como campo científico Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar o mercantilismo e a constituição da economia política clássica. Descrever as principais teorias da economia política. Caracterizar liberalismo e democracia. Introdução Após o declínio do sistema mercantilista e o avanço do processo de industrialização, a economia política foi constituída como campo de estudo por volta dos séculos XVIII e XIX. A partir disso, inúmeras teorias, escolas e vertentes surgiram para analisar a economia. Neste capítulo, você vai estudar a economia política como campo científico. Para isso, você vai conhecer as razões da formação do pensa- mento econômico clássico, passando pelas principais teorias que serviram de base para a consolidação do pensamento econômico liberal e pela sua relação com o regime político democrático. O mercantilismo e a constituição da economia política clássica O mercantilismo foi o sistema econômico que antecedeu a consolidação do sistema econômico capitalista. As ideias mercantilistas — ou as doutrinas econômicas mercantilistas — predominaram do século XVI até o século XVIII. Historicamente, o mercantilismo caracterizou o período da Revolução Comercial, que criou as pré-condições para a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX. Naquele momento, do século XVI até o século XVIII, os mercantilistas criticavam as ideias fisiocratas, que tinham no setor agrícola a fonte da riqueza das nações (SANDRONI, 2005). As ideias mercantilistas repousavam sobre a lógica de que a riqueza das nações dependia do acúmulo de metais preciosos, em geral, obtidos por meio do comércio internacional. Nesse contexto, os fisiocratas também combatiam as ideias dos mercantilistas (KISHTAINY et al., 2013). É importante lembrar que as ideias mercantilistas nasceram no contexto da desintegração do feudalismo e da formação dos primeiros Estados Nacionais. Assim como os fisiocratas, os mercantilistas estabeleceram a tentativa de entender e de explicar a economia como um sistema. Segundo os registros históricos, o mer- cantilismo era apenas um conjunto de doutrinas econômicas, “[...] com tradições comerciais fragmentadas e uma visão de sociedade e de Estado protecionista” (SANDRONI, 2005, p. 534), de modo que vários historiadores econômicos não conferem aos mercantilistas o início científico da economia (RUBIN, 1979). Apesar disso, quais eram os princípios básicos do sistema econômico mercantilista? Primeiramente, os mercantilistas defendiam “[...] o acúmulo de divisas em metais preciosos pelo Estado por meio de um comércio exterior de caráter protecionista” (SANDRONI, 2005, p. 534–535). Assim sendo, o sistema mercantilista dependia de um intenso controle e protecionismo estatal, o que considerava essencial para o crescimento e a expansão dos mercados e para a proteção dos interesses comerciais nacionais. Isso quer dizer que o Estado Nacional deveria — inclusive em detrimento de vizinhos e colônias — proteger o bem-estar nacional. Ou seja, cada Estado Nacional resguardaria seus próprios interesses em um comércio internacional cada vez mais agressivo em relação a seus vizinhos. É por isso que é correto afirmar que as ideias mercantilistas não eram apenas de caráter econômico, mas tinham, igualmente, objetivos estratégicos e políticos. Além disso, os mercantilistas compreendiam que a riqueza da economia nacional advinha de dois elementos: (a) população e (b) metais preciosos. Ou seja, quanto maior a população (ou o mercado nacional consumidor) e quanto maior o volume (em estoque) de metais preciosos, mais rico será um país — e o contrário resultará em um país mais pobre. Ambos os elementos favoreceriam a expansão da circulação de mercadorias e, logo, o crescimento da economia. Os mercantilistas também acreditavam que o comércio exterior deveria ser estimulado com o intuito de gerar uma balança comercial favorável e uma ampliação do estoque de metais preciosos. O ideal era sempre vender mais (ou exportar mais) aos outros Estados Nacionais e comprar (ou importar) o menos possível. Como, obviamente, cada Estado Nacional pensava o mesmo, surgia um problema: se todos querem somente vender, quem vai comprar? (SILVA, 2010). Em última instância, a solução estava nos acordos comerciais entre os Estados Nacionais. Economia política como campo científico2 Por último, os mercantilistas defendiam que o comércio e a indústria eram mais importantes do que a agricultura para a economia nacional, e essa era uma das divergências que tinham com os fisiocratas. Os mercantilistas não obser- vavam mais tanta importância no setor agrícola, a nova dinâmica econômica ocorria no comércio e na sua expansão em nível internacional e, acoplado a isso, na nascente industrialização que produzia, com uma intensidade jamais vista, mercadorias em grande escala. Em termos históricos, a fisiocracia era um grupo de estudiosos franceses liderados por François Quesnay, responsável por elaborar o importante “Quadro Econômico” entre 1758 e 1767. Esse “Quadro Econômico” foi o primeiro diagrama formal capaz de explicar, em linhas cruzadas e ligadas, o fluxo de dinheiro e bens entre três grupos sociais: proprietários de terras, agricultores e artesãos. É daí que os fisiocratas adotaram a visão contrária aos mercantilistas: afirmavam que a economia se regulava naturalmente e precisava somente de proteção contra más influências (KISHTAINY et al., 2013). Para os fisiocratas, a agricultura era o mais produtivo dos setores. Eles acreditavam que a agricultura era superior à manufatura e que os bens de consumo valiam mais do que o ouro. Na prática, quanto mais bens consumidos, mais dinheiro circulava no sistema, tornando o consumo a força motriz da economia. Logo, o que importava era a circulação de bens e dinheiro. Além do mais, os fisiocratas defendiam o livre comércio, impostos baixos, direitos de propriedade garantidos e dívida pública baixa. Alguns casos podem descrever resumidamente como funcionava o mer- cantilismo: por exemplo, nos Países Baixos, o poder do Estado Nacional estava subordinado às necessidades do comércio nacional; já na Inglaterra e na França, a iniciativa econômica estatal estava conectada aos interesses militares do Estado, na maioria das vezes hostis aos vizinhos (SANDRONI, 2005). Além disso, os mercantilistas aprofundaram os conhecimentos de questões econômicas relevantes, como as da balança comercial, das relações entre as taxas de câmbio e os movimentos de dinheiro na economia. Apesar desses avanços, a doutrina mercantilista não foi considerada uma escola de pensamento. Em geral, seus ideais não adquiriram caráter científico integral e, logo, não foram capazes de conferir à economia o status de ciência. Isso ocorreria com o surgimento do pensamento econômico clássico, que desenvolveria de maneira mais completa uma abordagem teórica acerca da economia. 3Economia política como campo científico Economia política clássica É o pensamento da economia política clássica (ou Escola Clássica) que inau- gura a economia como campo científi co — em outras palavras, é a origem do pensamento econômico como ciência. Essa economia política clássica surgiu no século surgiu no século XVIII, com a publicação do notável livro A Riqueza das Nações (em 1776), do escocês Adam Smith (SMITH, 1996). Entretanto, o pensamento clássico só se consolidou como uma linha de pensamento econômico no século XIX, com o surgimento de outros pensa- dores econômicos relevantes, que expandiram as análises teóricas, como, por exemplo, Jeremy Bentham, David Ricardo, Thomas Malthus, James Mill, Jean-Baptiste Say e John Stuart Mill (SILVA, 2010). É importante observar que esses pensadores clássicos estavam, geralmente, ligados à filosofia social, moral ou política. A origem da economia política como campo científico pode ser ilustrada,por exemplo, com fatos como o de que Adam Smith era professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Glasgow, na Escócia, no Reino Unido (RAS- MUSSEN, 2006); além disso, muitos dos predecessores da Escola Clássica eram historiadores, políticos e funcionários públicos, como Bernard de Mandeville, Richard Cantillon, Jacques Turgot e David Hume. Assim sendo, o pensamento da economia clássica se baseou em vários pre- ceitos filosóficos, em especial, do liberalismo e do individualismo. De acordo com Adam Smith, o objeto de estudo da economia clássica estava indicado no título completo da sua obra: é uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (SMITH, 1996). Ou seja, a riqueza das nações estava nos bens que possuíam valor de troca. Assim, a economia política clássica enfatizava a importância da produção — colocando em segundo plano o consumo e a demanda. Nesse contexto, os pensadores econômicos clássicos refutaram as tradições mercantilistas e as doutrinas dos fisiocratas. Eram, desse modo, contra as concepções mercantilistas de que a riqueza é constituída pelo entesouramento de ouro e de prata e contra as ideias fisiocratas de que somente a agricultura produz valor. É dessa crítica que os economistas clássicos organizam a teoria do valor-trabalho, mostrando que todas as atividades em uma economia pro- duzem valor e que a riqueza de uma nação é resultado dos valores de troca (SANDRONI, 2005). Além disso, Adam Smith revelou que o crescimento da riqueza de uma nação depende basicamente da produtividade do trabalho, que, por sua vez, é função do grau de especialização ou da divisão do trabalho, determinado Economia política como campo científico4 pela expansão do mercado e do comércio (SMITH, 1996). Por isso, Adam Smith concluiu que era fundamental, em qualquer nação, a remoção de todas as barreiras ao comércio interno e externo. Para ele, essa política liberal conduziria invariavelmente ao desenvolvimento das forças produtivas e ao sucesso do que ele chamou de “mão invisível”. Essas análises teóricas foram também defendidas por David Ricardo, que colocou o trabalho como um determinante do valor de troca. Em suas reflexões, David Ricardo observou, ainda, uma contradição entre o valor de troca e o preço relativo das mercadorias que só seria resolvida anos mais tarde por Karl Marx, ao analisar a transformação do valor de troca em preço de produção (RASMUSSEN, 2006). Além do mais, David Ricardo formulou o conceito de vantagem comparativa e demonstrou que o comércio internacional é uma situação de “ganho-ganho” para os países envolvidos. Já Thomas Malthus acrescentou ao corpo teórico da economia clássica a perspectiva de que a produção de alimentos cresce em progressão aritmética, enquanto a população tende a uma ampliação em progressão geométrica, o que acarretaria pobreza e fome generalizada. Para ele, as pestes, epidemias e mesmo as guerras encarregam-se de equilibrar a situação. O desdobramento econômico desse “princípio da população” é de que, “[...] com o número de trabalhadores crescendo acima da proporção do aumento da oferta de trabalho no mercado, o preço do trabalho (o salário) tende a cair, ao mesmo tempo que o preço dos alimentos tenderá a elevar-se” (SANDRONI, 2005, p. 508). Além disso, Thomas Malthus demonstrou que o nível de atividade numa economia dependida da demanda efetiva, uma ideia que mais tarde seria desenvolvida por Keynes. Enquanto isso, o industrial francês Jean-Baptiste Say contribuiu com o pensamento clássico ao elaborar a Lei dos Mercados (ou a chamada Lei de Say), na qual “a produção gera a sua própria demanda”. Assim, isso impossibilitaria uma crise de superprodução. Na época, a Lei de Say provocou muita polêmica com outros pensadores clássicos, como David Ricardo e Thomas Malthus, mas tal conceito econômico seria posteriormente empregado por outras escolas do pensamento econômico, como base para o conceito de equilíbrio econômico. Say elaborou, ainda, a teoria dos três fatores de produção, terra, trabalho e capital, e aprimorou a tradicional visão dos rendimentos ao incorporar as noções dos rendimentos do capital, os denominados juros. Para ele, existiam na economia quatro tipos de rendimentos: salários, lucros, aluguéis (renda da terra) e juros (SILVA, 2010). Outro importante pensador clássico foi John Stuart Mill, que analisou principalmente as teses de Thomas Malthus e David Ricardo. No que se refere 5Economia política como campo científico à teoria do valor, John Stuart Mill procurou demonstrar como o preço é deter- minado pela igualdade entre demanda e oferta e como a demanda recíproca de produtos afeta os termos do intercâmbio entre os países. Ele lançou, também, a ideia da elasticidade da demanda — expressão introduzida mais tarde por Alfred Marshall — para analisar as possibilidades alternativas de comércio. Por fim, cabe destacar que John Stuart Mill foi o único pensador clás- sico a abandonar o rigor doutrinário do liberalismo e do individualismo. Ele afirmava que deveria haver menor dependência da natureza e um maior grau de intervenção governamental para a resolução de determinados problemas econômicos. Por exemplo, John Stuart Mill defendia, para contrabalançar o poder dos grandes empresários, o fortalecimento dos sindicatos e o recurso da greve. Defendia, também, que a renda, por constituir um excedente, deveria ser submetida à tributação (SANDRONI, 2005; SILVA, 2010). As principais teorias da economia política A economia política faz uso de um amplo conjunto de categorias teóricas que, além de indispensáveis para a compreensão da economia, fazem referência ao próprio modo de ser dos homens e da sociedade (NETTO; BRAZ, 2006). Isso quer dizer que a economia política busca entender as relações sociais próprias oriundas da atividade econômica capitalista. Assim sendo, faz-se fundamental compreender três categorias teóricas da economia política que estão na base da atividade econômica capitalista: (1) o trabalho, que torna possível a produção de qualquer bem ou serviço; (2) a lei do valor, que constitui a noção de riqueza social; e (3) a mercadoria, o objeto indispensável para as relações de troca capitalista. Veja, a seguir, uma síntese de cada uma dessas três categorias teóricas da economia política. As teorias sobre o trabalho As condições materiais de existência e reprodução de uma sociedade são rea- lizadas a partir da atividade que denominamos trabalho. Em outras palavras, é o trabalho que dá forma material e imaterial à sociedade capitalista, o que signifi ca dizer que o trabalho viabiliza a satisfação das necessidades materiais e imateriais dos indivíduos que constituem uma sociedade. Assim, o trabalho, no seu padrão “natural”, seria aquele em que a sociedade transforma matérias naturais em produtos que atendam às suas necessidades. Economia política como campo científico6 No entanto, o que a economia política chama de trabalho é algo substan- cialmente mais complexo do que o trabalho no seu padrão “natural”. Algumas questões foram teoricamente desenvolvidas para explicar que o trabalho em uma sociedade capitalista é muito mais do que uma ação imediata sobre o que é natural (NETTO; BRAZ, 2006). Para iniciar, o trabalho no capitalismo exige instrumentos que, no seu desenvolvimento, vão cada vez mais se interpondo entre os que o executam e a matéria natural. Ou seja, o trabalho vai se tornando cada vez mais dependente de instrumentos/ferramentas específicas. A segunda questão teórica registrada pela economia política é de que o trabalho não se executa cumprindo determinações genéticas. Ao contrário, o trabalho passa a exigir habilidades e conhecimentos que se adquirem, ini- cialmente, por repetição e experimentação e, depois, transmitem-se mediante aprendizado. Nesse sentido, o aprendizado não se esgota em formas fixas. O capitalismo exige, quase sem limites, o desenvolvimento de novas formas de trabalho, gerando novasnecessidades e, por conseguinte, novas formas de aprendizado. Logo, a prática do trabalho diferencia-se e distancia-se do padrão “natural”. Assim, segundo Marx (1983, p. 149), “[...] o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Não se trata das primei- ras formas instintivas, animais, de trabalho. Dessa maneira, pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem”. No fim do processo de trabalho, obtém-se um resultado que já no início foi orientado pelo trabalhador. Assim, o trabalho é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural da vida humana e, portanto, comum a todas as suas formas sociais (MARX, 1996). Na economia política, é fundamental a distinção entre o sujeito — aquele que realiza a ação do trabalho — e o objeto — a matéria, o instrumento e/ ou o produto do trabalho. Além do mais, o trabalho é sempre uma atividade coletiva. No capitalismo, o sujeito nunca é um sujeito isolado, mas sempre se insere num conjunto de outros sujeitos. Essa é a divisão do trabalho, que faz do caráter coletivo da atividade do trabalho aquilo que se denominou social (NETTO; BRAZ, 2006). Isso revela que quanto mais o sujeito se humaniza, quanto mais se torna ser social, tanto menos o ser natural é determinante em sua vida. Na prática, qual foi o resultado desse fenômeno socioeconômico? A alie- nação, isto é, um fenômeno histórico característico de sociedades que têm 7Economia política como campo científico em vigência a divisão social do trabalho e a propriedade privada dos objetos/ meios de produção. Na prática, a atividade do trabalhador não lhe pertence, o trabalhador é “expropriado” dos resultados decorrentes dos seus esforços produtivos. Resumindo, o trabalho não é somente uma atividade específica de homens em sociedade, mas é também o processo histórico pelo qual surgiu o ser desses homens, o ser social. É por meio do trabalho que — dentro do modo de produção capitalista — a humanidade se estabelece como tal. Por isso, a análise do trabalho é central nas teorias da economia política (LANGE, 1966). A questão da lei do valor O valor é um conceito fundamental da economia política. No sistema ca- pitalista, as mercadorias são trocadas conforme a quantidade de trabalho socialmente necessário nelas investido. Essa é a chamada lei do valor, que, como todas as leis econômicas, não é descolada da história, mas tem uma validez determinada. Assim, a lei do valor regula as relações econômicas da produção mercantil no capitalismo. A lei do valor é, no âmbito da produção de mercadorias, o principal regulador efetivo da produção e da repartição do trabalho e funciona à revelia dos homens, como algo completamente fora do seu controle ou domínio. Isso acontece em razão da produção de mercadorias — à base da divisão social do trabalho e da propriedade privada dos meios de produção — desenvolver-se quase que espontaneamente — os produtores de mercadorias não se orientam segundo qualquer plano que indique a necessidade real de suas mercadorias e as levam ao mercado conforme o seu arbítrio. Logo, há conjunturas econômicas em que certas mercadorias são abundantes e outras praticamente desaparecem, o que revela a desorganização do conjunto da produção (NETTO; BRAZ, 2006; SILVA, 2010). Desde Aristóteles, começou a ser estabelecida uma distinção entre o valor de uso e o valor de troca. Essa diferença é fundamental para compreender por que existe uma desorganização do conjunto da produção em qualquer tipo de sistema econômico e, especialmente, no sistema capitalista. Enquanto o valor de uso revela as características físicas das mercadorias que as capacitam a ser usadas pelo homem, ou seja, para satisfazer suas necessidades de qualquer or- dem, materiais ou ideias, o valor de troca indica a proporção em que os bens são trocados uns pelos outros, direta ou indiretamente, por intermédio do dinheiro. Esses conceitos de valor de uso e valor de troca foram constantemente modificados na economia política ao longo dos séculos XVIII e XIX. Por exemplo, na economia política clássica, Adam Smith desenvolveu a teoria Economia política como campo científico8 do valor-trabalho, afirmando que o trabalho é a medida real e definitiva do valor das mercadorias, distinguindo-se de seu preço nominal. Já David Ricardo evidenciou que o próprio valor do trabalho variava com o preço dos bens necessários à subsistência (ou sobrevivência) dos trabalhadores, o que se refletia no salário e no valor das mercadorias. Enquanto isso, na economia política marxista, Marx (1996) definiu o valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção de uma mercadoria. Assim, da análise da força de trabalho — como uma mercadoria do tipo es- pecial — Karl Marx extraiu a teoria da mais-valia. Em contraposição, surgiu, no final do século XIX, a economia política marginalista, que subjetivou o conteúdo do valor, fundamentando-o na utilidade marginal. Sintetizando, a lei do valor assumiu diferentes perspectivas sobre a realidade concreta. O fenômeno da mercadoria Em termos práticos, a mercadoria é uma unidade que sintetiza valor de uso e valor de troca. No capitalismo, a produção das mercadorias tem como condi- ções indispensáveis a divisão social do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção (SILVA, 2010). Sem tais condições, pode haver bens com valores de uso, mas não há produção dos valores de troca (produção mercantil ou produção de mercadorias). Segundo Marx (1996), a mais importante característica do capitalismo é ser um modo de produção de mercadorias. Ou seja, “[...] a riqueza das so- ciedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias, e a mercadoria individual como sua forma elementar” (MARX, 1983, p. 45). Assim, a mercadoria se apresenta como o principal elemento universal na sociedade capitalista e serve de mediação a todas as relações sociais. Tudo isso parece muito óbvio, porque nos remete a fenômenos cotidianos. Nascemos, crescemos, vivemos e morremos em meio a mercadorias. Nesse contexto, aprendemos a comprar e a vender mercadorias. Logo, a troca é uma condição indispensável para a vida em sociedade e o intercâmbio mercantil é o ponto chave do modo de produção capitalista (NETTO; BRAZ, 2006). Assim, sem as mercadorias, o capitalismo perde a sua razão de existência como um sistema econômico (SILVA, 2010). Lembre-se de que a reprodução e a acumula- ção do capital dependem das mercadorias (inclusive da mercadoria “dinheiro”). É importante destacar que só se constituem mercadorias aqueles valores de uso que podem ser replicados ou reproduzidos, isto é, produzidos mais de uma vez, repetidamente. Essa reprodução repetida tem o propósito de produzir 9Economia política como campo científico a troca ou a venda sistemática. Nesse contexto, para que haja produção de mercadorias repetidas vezes, é fundamental o desenvolvimento da divisão social do trabalho e a garantia de que haverá a propriedade privada dos meios de produção (LANGE, 1966). Dessa forma, para que se produzam diferentes mercadorias, é preciso que o trabalho esteja de algum modo dividido entre diferentes trabalhadores (ou grupos de trabalhadores). Mas essa condição necessária não é suficiente para a produção repetida de mercadorias. A divisão social do trabalho deve articular- -se à propriedade privada dos meios de produção. Em outras palavras, só pode comprar ou vender qualquer tipo de mercadoria aquele que seja o seu dono e, para tanto, é indispensável que os meios ou os instrumentos (de produção) com os quais se produz pertençam a ele (o dono) (SANDRONI, 2005). Quando a propriedade dos meios de produção é coletiva, mesmo que haja alguma divisãodo trabalho, a compra e a venda não são possíveis, uma vez que o produto do trabalho pertence à coletividade. No sistema capitalista, a apropriação dos meios de produção é o que motiva os capitalistas a produzirem cada vez mais e a terem o direito legal de se apropriarem sempre da mais-valia resultante da troca de mercadorias. A lei do valor é uma teoria muito polêmica e, nisso, destaca-se o paradoxo do valor. Por exemplo, por que os diamantes custam mais do que a água? Apesar de os dia- mantes valerem mais do que a água, a água é mais útil do que os diamantes. Em 1769, Anne-Robert-Jacques Turgot observou que, apesar de necessária, a água não é tida como algo precioso num país com muita água. Às vezes, uma mina de diamante é mais estimada que uma mina de água. Posteriormente, Adam Smith levou adiante essa análise, notando que, embora nada seja mais útil que a água, quase nada pode ser trocado por ela. Ainda que um diamante tenha um valor bem pequeno quanto ao uso, uma quantidade muito grande de outros bens costuma ser trocada por ele. Resumindo, nas teorias do valor, existem contradições aparentes entre o valor de troca (o preço) e o valor de uso (importância) de certas mercadorias — como é o caso do diamante e da água. Liberalismo e democracia O liberalismo como pensamento econômico surgiu nos séculos XVII e XVIII. Naquele momento, as ideias liberais brotaram como substrato ideológico às Economia política como campo científico10 revoluções que combatiam o antigo sistema absolutista que predominava na Europa — fundamentalmente, na França e na Inglaterra (SANDRONI, 2005). Além disso, o pensamento econômico liberal constituiu-se no contexto do nascimento do processo da Revolução Industrial. Posteriormente, entre os séculos XVIII e XIX, o pensamento econômico liberal ganhou terreno no contexto da luta pela independência nos Estados Uni- dos, o que significa que o liberalismo permeou o “mundo ocidental relevante” durante quase três décadas, lançando desdobramentos políticos, econômicos e sociais sobre as sociedades em questão (SILVA, 2010). Nesse sentido, foram os economistas clássicos que deram forma e conteúdo às doutrinas liberais — isso inclui Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, Thomas Malthus, James Mill, Jean-Baptiste Say, entre outros. Diante disso, quais são os principais princípios do pensamento liberal? Vamos destacar quatro elementos básicos do liberalismo. Lembre-se de que o liberalismo (originário) defendeu os anseios de poder de uma burguesia nas- cente ante uma aristocracia (absolutista) em decadência (SANDRONI, 2005). Primeiro, o liberalismo defendeu a mais ampla liberdade individual, o que inclui um amplo conjunto de liberdades que, anteriormente, eram sufocadas pelas monarquias absolutistas. Ou seja, o liberalismo não era somente econômico, mas, ainda, político, social, religioso, cultural, entre outros (SILVA, 2010). Segundo, o liberalismo deveria estar acoplado a um regime democrático representativo com separação e independência dos três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário. Nesse sistema político, acreditava-se que o espírito liberal seria aflorado, protegido e evoluído ao dar aos cidadãos a capacidade de guiar os seus próprios destinos. Juntos, liberalismo e democracia dariam lugar a um sistema liberal-democrático. Terceiro, o liberalismo apoiava o direito inalienável à propriedade pri- vada dos meios de produção. Isso quer dizer que tudo na sociedade capitalista deve pertencer a algum proprietário privado, em especial, os meios de produção — capital, trabalho, máquinas, matérias-primas, entre outros. A lógica é a de que somente com a propriedade privada haverá desejo de produzir mercadorias e, assim, acumular capitais. Por fim, o liberalismo depende da livre iniciativa e da concorrência como princípios básicos capazes de harmonizar os interesses individuais e coletivos e, logo, gerar progresso social. Teoricamente, essa é a lógica introduzida por Adam Smith, do laissez-faire, laissez-passer (“deixar fazer, deixar passar”). Em outras palavras, o Estado não deve atrapalhar as iniciativas econômicas privadas. A única função do Estado deve ser garantir a livre concorrência e 11Economia política como campo científico o direito à propriedade privada, quando essa for ameaçada por distúrbios e revoltas sociais (SANDRONI, 2005; SILVA, 2010). Esses quatro princípios também deveriam ser aplicados nas relações comerciais internacionais. Isso quer dizer que as práticas mercantilistas eram ultrapassadas e um “atentado” ao desenvolvimento da economia ca- pitalista. Em termos práticos, o liberalismo significava o fim das barreiras alfandegárias e das tarifas/taxas protecionistas. Naquele contexto histórico, do século XVII ao XIX, a defesa do liberalismo era uma ação fundamen- talmente da Inglaterra, a nação mais industrializada da época e que tinha como estratégia colocar seus produtos em todos os mercados europeus e coloniais (SANDRONI, 2005). Com o avanço do sistema capitalista e a formação de monopólios e oligo- pólios no final do século XIX e começo do século XX, as ideias liberais foram cada vez mais entrando em contradição com a realidade concreta das econo- mias. Depois da Primeira Guerra Mundial, o pensamento liberal entrou em crise e só foi retomado nos anos 1980 e 1990 sob o termo de “neoliberalismo” ou “novo liberalismo”. Apesar disso, a retórica do pensamento liberal atual mantém-se mais no plano teórico do que na prática, já que os Estados Modernos participam ativamente (mediante o dirigismo) da atividade econômica. Democracia A democracia é um regime de governo que leva em consideração o direito de todos os cidadãos de participarem das decisões políticas de um país, seja direta ou indiretamente (DAHL, 2012; SANDRONI, 2005). É um regime político antigo, que apareceu nas antigas cidades-estado da Grécia Antiga. Naquele momento, as decisões políticas eram tomadas diretamente pelos cidadãos gregos, em cidades-estado onde a população era pequena. Essa era a democracia direta (BOBBIO, 1998). Atualmente, o regime democrático foi adotado por um amplo conjunto de Estados Nacionais. Assim, as práticas da participação nas decisões políticas foram transferidas das antigas cidades-estado para a escala maior do Estado Nacional, abarcando mais população, mais território e mais instituições políticas. Na era moderna, utiliza-se o regime da democracia representativa. Ambos os casos — democracia direta ou representativa — confirmam a própria origem etimológica da expressão democracia: “demo”, que quer dizer “povo”, e “cracia”, que quer dizer “governo”. Sendo assim, a palavra democracia significa “governo do povo”. Esse regime, conforme Aristóteles, Economia política como campo científico12 destoava das outras duas formas clássicas de governo: a monarquia, que é o governo de um só, e a aristocracia, que é o governo dos nobres (BOBBIO, 1998; DAHL, 2012). E você sabe a diferença entre a democracia direta e a democracia repre- sentativa? No regime democrático com participação direta, o funcionamento é bem simples, já que os cidadãos participam diretamente das decisões políticas. No caso da democracia representativa, a questão é um pouco mais complexa, já que envolve um conjunto amplo de instituições políticas que garantem a viabilidade das decisões políticas. Nesse sentido, como funciona a democracia representativa? Esse modelo de democracia desenvolveu-se durante os séculos XVIII e XIX na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. O poder é dividido em três: Executivo, Legislativo e Judiciário. Os dois primeiros poderes, Executivo e Legislativo, geralmente são eleitos diretamente pelos cidadãos. Já o poder Judiciário é escolhido indiretamente pela cidadania, via as indicações dos representantes do Executivo e Legislativo. A instituição central do regime democrático participativo é o Parlamento ou o Congresso Nacional, no qual se tomam decisões por maioria de votos.No regime parlamentarista, a autoridade máxima do Executivo (que pode ser um presidente ou primeiro-ministro) é escolhida a partir da coalizão que reúne uma maioria de legisladores. No sistema democrático presidencialista, o presidente do país é separadamente escolhido pelo voto direto dos cidadãos (SANDRONI, 2005). Qualquer que seja o formato do regime democrático adotado, é essencial notar os elementos imperativos para a garantia do sistema como um todo. São intrínsecos à democracia os seguintes elementos: eleições livres, diretas e regulares; independência dos três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário; sufrágio universal (a todos os cidadãos); preservação da liberdade de expressão, de imprensa, de organização de partidos políticos e de protesto; e defesa dos direitos civis como um todo. São esses cinco elementos que, segundo alguns economistas, garantem no regime político democrático o desenvolvimento e a expansão do regime econômico liberal. O sistema liberal-democrático retroalimenta a lógica po- lítica e a lógica econômica, que, juntas, desenvolvem as forças produtivas, garantindo a ordem social, política e econômica em questão. 13Economia política como campo científico BOBBIO, N. Dicionário de política. Brasília: Editora da UnB, 1998. DAHL, R. A. A democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. KISHTAINY, N. et al. O livro da economia. São Paulo: Globo, 2013. LANGE, O. Economía política: problemas generales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1966. MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. MARX, K. O Capital. Vol. 2. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1983. NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006. RASMUSSEN, U. W. Economia para não-economistas: a desmistificação das teorias econômicas. São Paulo: Saraiva, 2006. RUBIN, I. I. A history of economic thought. London: InkLinks, 1979. SANDRONI, P. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005. SILVA, F. P. M. O fator trabalho na teoria econômica. Lauro de Freitas: Editorial FPMS, 2010. SMITH, A. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Leituras recomendadas BELL, J. F. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. POLANYI, K. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 1980. Economia política como campo científico14
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