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III REALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS Josbertini Virgínio Clementino Ana Lourdes Maia Leitão GRATUITA Esta publicação não pode ser comercializada 1 Ilustração de Thalita Sophia Moreira da Silva com intervenção de Carlus Campos Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br Copyright©2021 Fundação Demócrito Rocha FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) Presidência Luciana Dummar Direção Administrativo-Financeira André Avelino de Azevedo Gerência Geral Marcos Tardin Gerência Editorial e de Projetos Raymundo Netto Análise de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Gerência Pedagógica Viviane Pereira Coordenação de Cursos Marisa Ferreira Design Educacional Joel Lima Front-End Isabela Marques CURSO PROTEÇÃO SOCIAL: PROGRAMA INTEGRADO DE EDUCOMUNICAÇÃO Concepção e Coordenação Geral Cliff Villar Coordenação Executiva Vanessa Fugi Coordenação Adjunta Patrícia Alencar Coordenação de Conteúdo Ana Lourdes Leitão Equipe de apoio da coordenação Adriana Josino e Priscila Moreira Revisão e Assessoria de Comunicação Daniela Nogueira Projeto Gráfico, Edição de Design e Coordenação de Marketing Andrea Araujo Design Miqueias Mesquita e Kamilla Damasceno Arte-terapia Joana Barroso Ilustrações Ana Luiza Travassos de Oliveira Carvalho, Anny Rammyli Nascimento da Silva, Antônia Travassos de Oliveira Carvalho, Bárbara Vazzoler Villar, Beatriz Vazzoler Villar, Bernardo Saraiva Pinheiro, Davi Bogea Caldas, Fernanda Vitória de Almeida Matos, Francisco Mateus Braga da Silva, Guilherme Araújo Carvalho, João Vazzoler Villar, João Victor Batista Veloso, Júlia Nogueira de Holanda, Luanna Madureira Marques, Lucas Mesquita Mororó, Lucas Sobreira de Araújo, Maia Alease Lima Oliphant, Maria Clara Negreiros Lobo, Maria Júlia Sousa de Oliveira, Mariana Negreiros Lobo, Mariana Vazzoler Villar, Mateus Saldanha Félix, Maurício Rafael Cipriano Gomes, Rafaela Microni Santos, Thalita Sophia Moreira da Silva, Yasmin Microni Santos, Yasmin Monteiro Gomes Bezerra, com intervenção de Carlus Campos Direção de Projetos Alexandre Medina Estratégia e Relacionamento Adryana Joca Gerência Executiva de Projetos Lela Pinheiro Análise de Projetos Daniele Andrade Análise de Marketing Digital Fábio Junior Braga Este curso é parte integrante do Curso de Capacitação sob o tema PROTEÇÃO SOCIAL na modalidade de Educação a Distância (EaD), em decorrência do Contrato celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos - SPS , sob o nº 143/20. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 P967 Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação / vários autores; organizado por Ana Lourdes Maia Leitão; vários ilustradores. - Fortaleza : Fundação Demócrito Rocha, 2021. 192 p. : il.; 26cm x 30cm. – (Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação ; 12v.) Inclui bibliografia e apêndice/anexo. ISBN: 978-65-86094-76-3 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-79-4 (Fascículo 1) 1. Direitos Humanos. 2. Políticas Públicas. 3. Assistência Social. 4. Drogas. 5. Igualdade Racial. 6. Segurança Alimentar e Nutricional. 7. Proteção à Vida. 8. Direito das Mulheres. 9. População LGBTQIA+. 10. Pessoas com deficiência. I. Leitão, Ana Lourdes Maia. II. Título. III. Série. 2021-1549 CDD 341.4 CDU 341.4 Índice para catálogo sistemático: Direitos Humanos 341.4 Direitos Humanos 341.4 SECRETARIA DE PROTEÇÃO SOCIAL, JUSTIÇA, CIDADANIA, MULHERES E DIREITOS HUMANOS (SPS) Secretária de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos - SPS Socorro França Coordenação Técnica PROARES III SPS Maria de Fátima Lourenço Magalhães Gerência Técnica do PROARES III Anete Morel Gonzaga Gerência de Fortalecimento Institucional do PROARES III Selma Maria Salvino Lôbo SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 DIREITOS HUMANOS 3 CIDADANIA 4 POLÍTICAS PÚBLICAS REFERÊNCIAS 4 4 9 12 15 Ilustração de João Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos 1 2 4 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste INTRODUÇÃO Os direitos humanos equivalem aos direitos naturais ga-rantidos a todo e qualquer indivíduo, que independe da sua classe social, etnia, gênero, nacionalidade ou po-sicionamento político, e têm um caráter universal cujo ponto de partida é a dignidade da pessoa humana. Cidadania é um conceito que se refere à situação de uma pessoa que pertence a comunidade de um país, apta a exercer a qualidade de ser cidadão. O vínculo com determinado país gera direitos e deveres civis, políticos e sociais assegurados pe- las leis. Política pública é a soma das escolhas governamentais traduzidas em ações e deliberações do governo orientadas para solução de problemas que ocorrem na sociedade. O objetivo deste fascículo é compreender essas três temá- ticas de grande importância para que as pessoas possam de- sempenhar o seu papel como cidadãos, buscando o exercício pleno da cidadania, conhecer seus direitos e deveres, inclusive o conjunto de direitos naturais que visam assegurar a dignidade da pessoa humana, acompanhar e reivindicar a criação de polí- ticas públicas assim como usufruir das já existentes. Ao longo deste fascículo, esses três conceitos serão expli- cados de forma detalhada para que cada um que faça a leitura possa assimilar as diversas compreensões e tenham elementos para uma atuação efetiva na construção da sociedade. DIREITOS HUMANOS 2.1 FUNDAMENTOS E DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS Dentre os diferentes significados, o da pa- lavra direito está ligado à teoria do Estado ou da política, que é o direito como orde- namento normativo, considerando que o nosso objeto de estudo está relacionado a uma ação pública governamental. Diante disso, direito é considerado: É o conjunto de normas de conduta e de organização, apresentando por conteúdo a regulamentação das relações fundamentais para a convivência e sobrevivência do grupo social. Tais como as relações: familiares, eco- nômicas, relações políticas, e ainda a regula- mentação dos modos e das formas através das quais o grupo social reage a violação das normas de primeiro grau ou a institucionali- zação da sanção. (BOBBIO, 1999, p.349). Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 5 O surgimento dos direitos humanos tem relação com o conceito de direito. Historicamente, aparecem como um ex- perimento dos homens para regulamen- tar os conflitos de interesses e disciplinar as relações entre eles. Foram pactuados e evoluíram diante da necessidade da sociedade de proporcionar direitos e de- veres para todos os homens igualmente, isto é, o que se chama equilíbrio da or- dem social (PIOVESAN, 2010). Os grandes acontecimentos de con- flitos, de guerras e de revoluções, como também das grandes invenções cientí- ficas e tecnológicas têm, em geral, uma ligação muito próxima, destacando a afirmação ou a ampliação dos direitos do homem. Exemplo disso, em 1948, após a 2ª Guerra Mundial, foi criada a Declara- ção dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, na Revolução Fran- cesa, inspirada nos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, a Declaração de Direitos da Revolução Americana e a Declaração Universal dos Direitos Huma- nos (PIOVESAN, 2010). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, formada por 30 artigos que tra- tam dos direitos inalienáveis que devem garantir a liberdade, dignidade humana, igualdade,justiça e a paz mundial, foi adotada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e traduzida em mais de 500 idiomas. Além disso, inspirou as constituições de muitos estados e demo- cracias recentes, inclusive o Brasil, que foi um dos países signatários. Hoje essa declaração é assinada pelos 192 países que compõem as Nações Unidas (LEÃO; NEVES; COUTINHO; NETO, 2019). Nesse entendimento, direitos humanos são aqueles que decorrem do reconheci- mento da dignidade intrínseca do homem com que lida e proporciona direitos co- muns a todo ser humano. Sabe-se que são universais, naturais ou acima e antes da lei, históricos e interdependentes, ou seja, independem do reconhecimento formal dos poderes políticos, embora devam ser garantidos por esses poderes. A igualdade aqui defendida não tem relação com: As condições físicas, intelectuais ou psico- lógicas, pois cada pessoa tem sua individu- alidade, sua personalidade, sua cultura, sua religiosidade, e tem de ser respeitada. As pessoas são diferentes em sua subjetividade, porém mostram-se iguais enquanto seres hu- manos, com as mesmas necessidades e facul- dades essenciais. Portanto, tem os mesmos direitos. (DALLARI, 1998, p.14). Os direitos humanos equivalem aos direitos naturais garantidos a todo e qualquer indivíduo, independentemente de sua classe social, etnia, gênero, nacio- nalidade ou posicionamento político, e têm um caráter universal cujo ponto de partida é a dignidade da pessoa humana. Ilustração de Ana Luiza Travassos de Oliveira Carvalho com intervenção de Carlus Campos 6 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste 2.2 AS DIVERSAS GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS Os direitos humanos são garantias que permutam ao longo do tempo e vão se adaptando às necessidades específicas de cada momento e se ressignificando no âmbito dos dados contextos históricos. FO N TE : E la bo ra do p el os a ut or es a p ar tir d e W ol km er (2 01 3) . AS GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS 1ª GERAÇÃO (LIBERDADE) São os direitos civis e políticos. Trata-se dos direitos individuais vinculados à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à resistência às diversas formas de opressão. Direitos inerentes à individualidade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, que, por serem de defesa e serem estabelecidos contra o Estado, têm especificidade de direitos “negativos” (WOLKMER, 2013, p. 127). 2ª GERAÇÃO (IGUALDADE) Os direitos humanos de segunda dimensão relacionam-se às transformações do papel do Estado, que, a partir daí, passar a agir mais ativamente, não sendo somente fiscal das regras jurídicas. Os direitos sociais são também titularizados pelo indivíduo e oponíveis ao Estado. São reconhecidos o direito a saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros, que demandam prestações positivas do Estado para seu atendimento e são denominados direitos de igualdade por garantirem, justamente às camadas mais miseráveis da sociedade, a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos (WOLKMER, 2013, p. 128). 3ª GERAÇÃO (FRATERDADE) São os direitos meta individuais, direitos coletivos e difusos, direitos de solidariedade. A nota caracterizadora desses “novos” direitos é a de que seu titular não é mais o homem individual (tampouco regulam as relações entre os indivíduos e o Estado), mas agora dizem respeito à proteção de categorias ou grupos de pessoas (família, povo, nação), não se enquadrando nem no público nem privado (WOLKMER, 2013, p. 128). Há uma classificação criada em 1979 pelo jurista tcheco-francês Karel Vasak, denominada de “gerações de direitos”, baseada nos princípios da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fra- ternidade (VASAK, 1983). Didaticamen- te, os direitos humanos estão distribuí- dos em três dimensões ou gerações. Ao buscar-se o conceito de direitos humanos, pode-se afirmar, sem gran- des dificuldades, que são os direitos próprios de todos os homens enquanto homens. Para Comparato (2010), três as- pectos devem ser levados em considera- ção no tocante à sua definição: primei- ramente, são direitos naturais, visto que existem antes de qualquer lei; segundo, são direitos históricos, uma vez que evo- luem em conformidade com novas ne- cessidades sociais bem como pressões populares; e por último, são direitos universais, dado que são amplos, exten- sivos e atingem a todos, independente- mente de fronteiras. Complementando tal conceito, San- tos (2004) afirma que a expressão “di- reitos humanos” pode ser atribuída aos valores ou direitos inatos e intrínsecos à pessoa humana, somente por ela ter nascido. São direitos que fornecem uma natureza essencial da pessoa humana, ou melhor, que não suscetíveis de volati- lidade dependendo da época. Logo, são direitos inalteráveis, intransferíveis e im- prescritíveis que se agregam à natureza da pessoa humana simplesmente pelo fato de ela existir no mundo do direito. Ilustração de João Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos FONTE: Elaborado pelos autores a partir da Constituição Federal de 1988. Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 7 Intrínsecos a todos os seres humanos, os direitos humanos independem de raça, etnia, nacionalidade, religião, sexo ou qual- quer outra condição em que o indivíduo se encontra. Os direitos humanos passam a figurar como direitos fundamentais a partir do momento que integram as legislações internacionais, caso da ONU e nacionais, por exemplo a Constituição Brasileira. No Brasil, a Constituição de 1988, co- nhecida como Constituição Cidadã, é con- siderada um grande avanço como marco dos direitos humanos, pois buscou garantir direitos civis, culturais, sociais, econômicos e políticos por meio da instituição de um estado democrático de direito, capaz de assegurar o exercício dos direitos coletivos e individuais numa sociedade sem precon- ceitos, plural e fraterna (BRASIL, 1988). Preceituam-se, na Constituição Fede- ral, inúmeros deveres do Estado brasileiro, quer em termos de garantia que ele é obri- gado a prestar, em razão do direito/obriga- ção que esta resguarda, quer em termos de prestação que se lhe impõe satisfazer. O que se designa competência, na realida- de, é um complexo de deveres que se con- fere ao Estado como principal responsável pela execução de políticas públicas. ART. 23 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; [...] V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; [...] IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos DEVERES DO ESTADO à segurança (art. 144: “A segurança pública, dever do Estado...”); à saúde (art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado...”); à educação (art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado...”); aos direitos culturais: (art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais...”); ao desporto (art. 217:“ É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um,...”); ao meio ambiente (art. 225:“ Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações...”) Ainda, no tocanteaos serviços públicos básicos, destaca-se como dever do Estado garantir: FONTE: Elaborado pelos autores a partir da Constituição Federal de 1988. 8 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste Ilustração de Beatriz Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos Logo, os direitos conferidos na Cons- tituição ao cidadão, quão grandemente à coletividade, pleiteiam a imposição de deveres ao Estado para efetivá-los. Nes- te ponto, defronta-se a relação cidadão e sociedade frente ao poder do Estado. Aos primeiros (cidadão/sociedade), os direi- tos; ao último (Estado), os deveres. Na Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais se explicitam de duas formas, os direitos expressamente positivados e os direitos implicitamen- te positivados. Os direitos fundamentais explícitos estão prescritos em diversas seções da Constituição Federal de 1988, no Título II - Dos Direitos e Garantias Fun- damentais, exatamente nos artigos 5º ao 17, da Carta Magna, no Capítulo I, preci- samente na seção referente - Dos direitos e deveres individuais e coletivos; já no Capítulo II, encontra-se na parte - Dos di- reitos sociais; no Capítulo III, na seção Da nacionalidade; no Capítulo IV consta na parte - Dos direitos políticos e, por último no Capítulo V situa-se - Dos partidos po- líticos. Isso posto, são direitos protetivos frente a atuação estatal (BRASIL, 1988). Os direitos fundamentais não estão restritos somente no Título II da nossa Carta Magna, mas também em seu artigo 5º, parágrafo 2º. Os direitos e as garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos prin- cípios por ela adotados ou dos tratados internacionais de que a República Federa- tiva do Brasil seja parte (BRASIL, 1988). Logo, Moraes (2011) afirma que os di- reitos e as garantias fundamentais estão previstos em todo o contexto da Consti- tuição, e a previsão desses direitos po- dem ter sede nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Ilustração de Bárbara Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos 3 Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 9 CIDADANIA 3.1 CONCEITO E DEFINIÇÕES A expressão “cidadania” vem do latim e refere-se ao indivíduo que ha- bita a cidade (civitas), induz diretamente à ideia de cidade, um núcleo urbano, ou seja, comunidade politicamente organizada. Então, etimo- logicamente pode-se dizer que cidadão é aquele que habita a cidade. Na Grécia, de acordo com Aristóteles, cidadão significava que não é cidadão porque vive na cidade, afinal, os estrangeiros e os escravos também ali vivem; tampouco são cidadãos aqueles que compartilham de um mesmo sistema legal, de levar ou ser conduzido diante do tribu- nal, pois residentes estrangeiros não possuem completamente esses direitos, sendo obrigados a apresentar um patrono, um cidadão res- ponsável por eles; chamamos de cidadãos apenas aqueles que têm o poder de tomar parte na administração deliberativa ou judicial da cidade (GORCZEVSKI; MARTIN, 2011). Devido às adversidades de se definir o termo cidadania, um concei- to clássico é do sociólogo britânico Marshall (2002), que, ao estudar o desenvolvimento histórico da cidadania na Inglaterra, estabeleceu a diferença entre as três dimensões: civil, política e social, visto que a pessoa titular dos três elementos de direitos seria considerada cidadã. Por uma ordem cronológica, primeiro veio o surgimento dos direitos civis, depois os direitos políticos e, por fim, os direitos sociais. Durante o nascimento dos direitos civis, ocorreu um acréscimo gradativo de ou- tros direitos associados a uns que já existiam e que faziam parte da vida de todos os adul- tos de uma comunidade (OLIVEIRA, 2010). A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social. (DALLARI, 1998, p.14). “A cidadania é um status conferido àque- les que são membros integrais de uma co- munidade” (MARSHALL, 2002, p. 24). Logo, em um sistema de parâmetro de igualdade, todas as pessoas que possuem o status de ci- dadania também terão um mesmo conjunto de direitos e obrigações. “A classe social, por outro lado, é um sistema de desigualdade” (MARSHALL, 2002, p. 24). Nesta perspectiva, a desigualdade presente no sistema de classes sociais é possível ser aceitável, contanto que a igualdade de cidadania se mantenha reco- nhecida (MARSHALL, 2002). TRÊS DIMENSÕES DO CONCEITO DE CIDADANIA DIMENSÃO CIVIL A dimensão civil da cidadania é formada pelos direitos essenciais à liberdade individual, liberdade de locomoção, liberdade de imprensa, liberdade de pensamento, liberdade religiosa, direito à propriedade e celebração de contratos. O autor aponta os tribunais de justiça como as entidades mais próximas à defesa dos direitos civis. DIMENSÃO POLÍTICA Entende-se o direito de participação no exercício do poder político, tanto como um detentor de um mandato político quanto como um eleitor que tem o direito de escolher seu representante. As entidades associadas são o parlamento e os conselhos do governo local. DIMENSÃO SOCIAL A dimensão social diz respeito a tudo que fala sobre direitos inerentes à sociedade, tais como segurança, transporte e bem-estar. Essa dimensão se refere a uma pessoa levar a vida de um modo civilizado de acordo com padrões da sociedade. FO N TE: Elaborado pelos autores a partir de M arshall (2002) 10 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste ART.1° DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Art.1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Na busca de compreensão do termo cidadania, a Lei nº. 9265/1996, de 12 de fevereiro de 2016, lista quais são esses atos e nos ajuda a compreender o que é cidadania segundo a legislação brasileira: ARTIGO 1° DA LEI Nº. 9265/1996 Art. 1º São gratuitos os atos necessários ao exercício da cidadania, assim considerados: I - Os que capacitam o cidadão ao exercício da soberania popular, a que se reporta o art. 14 da Constituição; II - Aqueles referentes ao alistamento militar; III - Os pedidos de informações ao poder público, em todos os seus âmbitos, objetivando a instrução de defesa ou a denúncia de irregularidades administrativas na órbita pública; IV - As ações de impugnação de mandato eletivo por abuso do poder econômico, corrupção ou fraude; V - Quaisquer requerimentos ou petições que visem as garantias individuais e a defesa do interesse público; VI - O registro civil de nascimento e o assento de óbito, bem como a primeira certidão respectiva; VII - O requerimento e a emissão de documento de identificação específico, ou segunda via, para pessoa com transtorno do espectro autista. V - O pluralismo político. Em 1988, sabe-se que ocorreu a Assembleia Constituinte que ori- ginou a Constituição Federal do Brasil. De todas as constituições que o país já teve, essa foi a democrática, recebendo o nome de Constituição Cidadã (SILVA, 2009). Na Constituição de 1988, a cidadania apresenta-se como fundamento do Estado brasileiro, também é conhecida como a “Constituição Cidadã”. Para compreender o conteúdo semânti- co dessa cidadania, é importante lembrar que a cidadania tem um sentido dinâmico, ou melhor, em constante construção; além disso, que não se pode apreender o presente sem conhe- cer o longo caminho histórico percorrido até os dias atuais, ou seja, é necessário olhar para o passado; e, por fim, a cidadania mostra-se como um horizonte de possibilidades, levando con- sigo a força do que se querfazer dela, isto é, mostrando o olhar para o futuro (SILVA, 2009). Na atual Carta Maior, o termo Cidadania figura-se já no seu primeiro artigo como um dos fundamentos da República Fede- rativa Brasileira: 3.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL/1988: A “CONSTITUIÇÃO CIDADÔ Ilustração de Thalita Sophia Moreira da Silva com intervenção de Carlus Campos Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 11 3.3 O QUE É SER CIDADÃO E COMO EXERCER A CIDADANIA? A atuação efetiva da população nos as- suntos do Estado é requisito para a cons- trução de Estado Democrático e Social de Direito retratado pela Constituição Federal de 1988. “A cidadania transforma o indiví- duo em elemento integrante da sociedade política, credenciando o sujeito a exercer direitos em face do Estado. A cidadania é o ápice dos direitos fundamentais” (SIQUEIRA JUNIOR, 2006, p.2). A política pública é uma forma para executar a ação ativa do Estado, solicitada pelos direitos constitucionais. Após compreender os conceitos, das leis e da etimologia da palavra, é importante agora salientar a importância da cidada- nia não só como um conjunto de regra- mentos fundamentos na legislação que abarcam direitos e deveres das pessoas. É imprescindível que cada indivíduo tenha consciência cívica acerca dos seus direitos e deveres e como devem ser exercidos. Portanto, para exercer a cidadania em todas as formas na sociedade, é dever de todos os sujeitos em conjunto. Morais (2013), nesse sentido, afirma que: Cidadania implica sentimento comunitário, processos de inclusão de uma população, um conjunto de direitos civis, políticos e econômicos e, significa também, inevitavel- mente, a exclusão do outro. Todo cidadão é membro de uma comunidade, como quer que essa se organize, e esse pertencimen- to, que é fonte de obrigações, permite-lhe também reivindicar direitos, buscar alterar as relações no interior da comunidade, ten- tar redefinir seus princípios, sua identidade simbólica, redistribuir os bens comunitários. A essência da cidadania, se pudéssemos defini-la, residiria precisamente nesse cará- ter público, impessoal, nesse meio neutro no qual se confrontam, nos limites de uma comunidade, situações sociais, aspirações, desejos e interesses conflitantes. Há, certa- mente, na história, comunidades sem cida- dania, mas só há cidadania efetiva no seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes maneiras, mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva e para a construção de projetos para o futuro (MORAIS, 2013, p.4). Os direitos e deveres de todos os brasi- leiros estão escritos na Constituição Fede- ral/88. Dessa forma, para conhecer os seus direitos, é importante conhecer o que diz os seus mais diversos artigos que a compõe. TIPOS DE DIREITOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 DIREITOS CIVIS Os direitos civis são referentes às garantias à liberdade (individuais e de expressão), à igualdade (perante a lei e à segurança), entre outros. Portanto, definidos no Artigo 5º ao longo de 77 incisos, da nossa Carta Magna. Conheça as principais garantias previstas na Lei Maior, essenciais para o exercício da cidadania Carta Magna. DIREITOS SOCIAIS Os direitos sociais estão descritos no Artigo 6º da Carta Maior e são relacionados a educação, saúde, moradia, previdência social, assistência aos desamparados, proteção à infância e aos idosos, entre outros. DIREITOS POLÍTICOS Os direitos políticos são referentes ao voto, ou seja, está ligado ao sistema político e à democracia, com o sigilo do voto respeitado e poder criar partidos políticos. Estes estão descritos nos Artigos 14 e 17 da Carta Magna. FONTE: Elaborado pelos autores a partir da Constituição Federal 1988. SAIBA MAIS Conheça as principais garantias previstas na Constituição Federal, essenciais para o exercício da cidadania. http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/constituicao/constituicao.htm 4 FONTE: Elaborado pelos autores a partir de SARAVIA (2006). 12 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste POLÍTICAS PÚBLICAS 4.1 EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO Políticas públicas têm sido objeto de estudo de muitos autores, não tendo uma precisão conceitual tão simples, por isso tendo inúme- ras definições. A pesquisadora Celina Souza evidencia a imprecisão do conceito de “políticas públi- cas” indicando que pode se referir a diferen- tes objetos, a saber: um campo de atividade governamental, como exemplifica a políti- ca agrícola; uma situação social desejada, como a política de igualdade de gênero; uma proposta de ação específica, como a políti- ca de ações afirmativas, uma norma quanto ao tratamento de determinado problema, como a política de fontes de energia reno- váveis; ou mesmo um conjunto de objetivos e programas que o governo possui em um campo de ação, como a política de direitos humanos (SOUZA, 2006). Para SARAIVA (2006), as definições sobre “políticas públicas” parecem bem semelhan- tes, entretanto há divergências de entendi- mento com ênfases diferenciadas, conforme se observa no quadro: Na ausência de um consenso conceitual, um importante elemento para compreensão do que vem a ser “políticas públicas” é a con- sideração do contexto histórico em que elas estão inseridas. No tempo presente, vivencia- mos a era das sociedades modernas que tem como característica a diferenciação social. Isso significa que seus membros não apenas pos- suem atributos diferenciados (idade, sexo, reli- CONCEITO DE POLÍTICA PÚBLICA ÊNFASE Conceito de política pública; SOBRE A FINALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS DECISÕES NELAS ENVOLVIDAS Curso de ação escolhido para lidar com um problema ou uma questão de interesse comum; Conjunto de decisões inter-relacionadas referentes à seleção de objetivos e dos meios para atingi-los; Conjunto de decisões adotado e posto em prática mediante processos selecionados que definem os recursos necessários, sua distribuição e gestão; Estratégias que apontam para diversos fins, todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos grupos que participam do processo decisório; NAS AÇÕES DOS AGENTES PÚBLICOS E DA SOCIEDADE QUE IMPACTAM NA VIDA DAS PESSOAS O conjunto das atividades de um governo, diretamente realizadas por agentes públicos ou por agentes da sociedade e que influenciam a vida dos cidadãos; Um curso de ação produzido por um governo (Executivo, Legislativo e/ou Judiciário) que satisfaz uma necessidade e que se expressa na forma de objetivos estruturados em um conjunto de diretrizes, de caráter imperativo, aceitos pela coletividade; NA INTERVENÇÃO DA REALIDADE VISANDO GERAR EQUILÍBRIO Fluxo de decisões públicas, orientado para manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade; TANTO NAS AÇÕES QUANTO NAS OMISSÕES DOS GOVERNOS Sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos. O PROCESSO DE EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Observem esse trecho: (...) uma vez que as políticas públi- cas são respostas, não ocorrerão a menos que haja uma provocação. Em linguagem mais especializada, as políticas públicas se destinam a solucionar problemas políticos, que são as demandas que logra- ram ser incluídas na agenda gover- namental. Enquanto essa inclusão não ocorre, o que se tem são ‘esta- dos de coisas’: situações mais ou menos prolongadas de incômodo, injustiça, insatisfação ou perigo, que atingem grupos mais ou me- nos amplos da sociedade sem, to- davia, chegar a compor a agenda governamental ou mobilizar as au- toridades políticas (RUA, 1998, p. 2) Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 13 gião, estado civil, escolaridade, renda, setor de atuaçãoprofissional etc.), como tam- bém possuem ideias, valores, interesses e aspirações diferentes e desempenham pa- péis distintos no decorrer da sua existência. Isso faz com que a vida em sociedade seja complexa e compreenda diferentes padrões de interação: cooperação, competição, con- flito (RUA; ROMANINI, 2013). Uma boa definição é a utilizada por Maria das Graças Rua, que é categórica ao apresentar o entendimento de políticas públicas como “conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de proble- mas políticos”. Historicamente, as políticas públicas no Brasil se caracterizavam pela aguda cen- tralização decisória e financeira na esfe- ra federal, cabendo apenas aos estados e municípios o papel de executores das iniciativas formuladas pelo governo fede- ral. As políticas públicas eram marcadas fortemente por uma fragmentação insti- tucional, havendo pouca ou ausência de coordenação das ações entre os diversos órgãos, além de forte caráter setorial com discriminação pormenorizadas das es- truturas especializadas em cada área de atuação governamental: educação, saú- de, habitação etc. Além disso, a sociedade civil praticamente era excluída do proces- so de formulação de políticas, da imple- mentação dos programas e do controle da ação governamental (CLEMENTINO, 2011). Com o advento da “Constituição Cida- dã” em 1988, que detém um caráter des- centralizador, buscou-se delinear um novo federalismo entre União, Estados e muni- cípios, afora a ampliação dos benefícios sociais garantidos pelo Estado visando criar um sistema de proteção social amplo destinado a redução das desigualdades socioeconômicas do País. Há também um avanço no sentido do surgimento de es- paços institucionalizados do Estado com a sociedade civil e com o setor privado como os conselhos. Nesse modelo o Esta- do deixa de ser o provedor direto exclusi- vo e passa a ser coordenador e fiscalizador de serviços que podem ser prestados pela sociedade civil ou pelo mercado ou em parceria com esses setores. A descentralização, por sua vez, não significa apenas transferir atribuições, de forma a garantir eficiência, mas é vista, sobretudo, como redistribuição de poder, favorecendo a democratização das rela- ções entre Estado e sociedade bem como do acesso aos serviços. No que concerne às noções de política pública e política social, existe uma dife- renciação que merece notoriedade: pode- -se mencionar que as políticas sociais fa- zem parte de um subconjunto pertencente a um conjunto maior que se denomina de políticas públicas, ou melhor, “toda políti- ca social é uma política pública, mas nem toda a política pública é uma política so- cial” (RODRIGUES, 2010, p. 9). A focalização das políticas sociais, por outro lado, é incorporada pelo reconheci- mento da necessidade de se estabelece- rem prioridades de ação em contexto de limites de recursos e pelo entendimento de que é preciso atender de forma diri- gida a alguns segmentos da população, que vivem situações de injustiça social. Nesse sentido, diversas iniciativas, ações, planos setoriais e políticas públicas foram constituídas e/ou fortalecidas, tais como po- líticas para: criança e adolescente, juventu- de, idoso, gênero, LGBTI+, igualdade racial, pessoas com deficiência, dentre outros. 4.2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL PÓS-CONSTITUIÇÃO CIDADà Ilustração de Mariana Negreiros Lobo com intervenção de Carlus Campos O PROCESSO DE EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Observem esse trecho: (...) uma vez que as políticas públi- cas são respostas, não ocorrerão a menos que haja uma provocação. Em linguagem mais especializada, as políticas públicas se destinam a solucionar problemas políticos, que são as demandas que logra- ram ser incluídas na agenda gover- namental. Enquanto essa inclusão não ocorre, o que se tem são ‘esta- dos de coisas’: situações mais ou menos prolongadas de incômodo, injustiça, insatisfação ou perigo, que atingem grupos mais ou me- nos amplos da sociedade sem, to- davia, chegar a compor a agenda governamental ou mobilizar as au- toridades políticas (RUA, 1998, p. 2) 14 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste Tudo se inicia a partir de um problema in- dividual que poderá derivar para um pro- blema social. Esse pode passar a ser um problema “público” quando ocorre a sua entrada na agenda pública. Dessa forma, não é qualquer problema social que terá sta- tus de problema político, mesmo que afete muitas pessoas. O chamado problema pú- blico é aquele presente na agenda pública e encampado pelas instituições na busca de soluções. O conceito já referido aqui por RUA (1998) de problema político é semelhante ao aqui agora utilizado de problema público. Tudo começa com o surgimento de um problema, não de qualquer problema, mas de um considerado “público”. Esse ele- mento é essencial porque existem proble- mas que, embora afetem muitas pessoas (problema social), podem não ser consi- derados públicos. Por exemplo, o status subordinado das mulheres durante muito tempo não foi considerado um problema público, assim como a violência contra a mulher também não era considerada um problema público, mas um problema que deveria ser resolvido na esfera privada e no qual o Estado não deveria intervir. O que atualmente é considerado problema pú- blico provavelmente antes não era e possi- velmente depois não será, pois a formação da agenda pública é mutante. Quando um problema tem o status de público? Quan- do é recuperado por alguma das múltiplas instituições que integram o governo (VÁZ- QUEZ; DELAPLACE, 2011, p. 36). O Ciclo das Políticas Públicas é segmentado, por esse entendimento, em sete fases distintas: entrada do problema na agenda pública, estruturação do pro- blema, conjunto das soluções possíveis, análise dos pontos positivos e negativos das soluções, tomada de decisão, imple- mentação e avaliação. Percebe-se que as etapas são com- preendidas como uma unidade contra- ditória, visto que o ponto de partida não está claramente definido. As atividades de etapas distintas podem ocorrer si- multaneamente ou podem apresentar- -se parcialmente superpostas (RUA, 2014). O ciclo de políticas é uma abor- dagem para o estudo das políticas públi- cas, identificando, assim, fases sequen- ciais e interativas-iterativas no processo de produção. Confira melhor essas fases no quadro ao lado (p.15). Souza (2006) afirma que uma política pública pode tanto ser parte de uma políti- ca de Estado quanto ser uma política de go- verno. Nesta perspectiva, é de suma impor- tante entender essa diferença: uma política de Estado é toda política que, independen- temente do governo e do governante, deve ser efetivada porque é resguarda pela carta constitucional. Em relação à política de go- verno, pode advir da alternância de poder. Consequentemente, cada governo tem seus projetos, que, por sua vez, se transfor- mam em políticas públicas. 4.3 CICLO DE VIDA DE UMA POLÍTICA PÚBLICA DEFINIÇÃO DO PROBLEMA FORMAÇÃO DE AGENDA FORMAÇÃO DE ALTERNATIVAS TOMADA DE DECISÃO: ADOÇÃO DA POLÍTICA IMPLEMENTAÇÃO AVALIAÇÃO AJUSTE MONITORAMENTO ANÁLISE DO PROBLEMA FIGURA 1: CICLO DE VIDA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FONTE: Elaborado pelos autores a partir de Rua (2014, p.33) Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 15 QUADRO 10: FASES SEQUENCIAIS E INTERATIVAS-ITERATIVAS NO PROCESSO DE PRODUÇÃO FORMAÇÃO DA AGENDA Formação da agenda ocorre quando uma situação qualquer é reconhecida como um problema político e a sua discussão passa a integrar as atividades de um grupo de autoridades dentro e fora do governo (RUA, 2014, p.34). FORMAÇÃO DAS ALTERNATIVAS E TOMADA DE DECISÃO Formação das alternativas e tomada de decisão: ocorre quando, após a inclusão do problema na agenda e alguma análise deste, os atores começam a apresentar propostas para sua resolução. Essas propostas expressam interesses diversos, os quais devem ser combinados, de tal maneira quese chegue a uma solução aceitável para o maior número de partes envolvidas (RUA, 2014, p.34). TOMADA DE DECISÃO A tomada de decisão não significa que todas as decisões relativas a uma política pública foram tomadas, mas, sim, que foi possível chegar a uma decisão sobre o núcleo da política que está sendo formulada. Quando a política é pouco conflituosa e agrega bastante consenso, esse núcleo pode ser bastante abrangente, reunindo decisões sobre diversos aspectos. Quando, ao contrário, são muitos os conflitos, as questões são demasiado complexas ou a decisão requer grande profundidade de conhecimentos, a decisão tende a cobrir um pequeno número de aspectos, já que muitos deles têm as decisões adiadas para o momento da implementação (RUA, 2014, p.34-35). IMPLEMENTAÇÃO A implementação consiste em um conjunto de decisões a respeito da operação das rotinas executivas das diversas organizações envolvidas em uma política, de tal maneira que as decisões inicialmente tomadas deixam de ser apenas intenções e passam a ser intervenção na realidade. Normalmente, a implementação se faz acompanhar do monitoramento: um conjunto de procedimentos de apreciação dos processos adotados, dos resultados preliminares e intermediários obtidos e do comportamento do ambiente da política. O monitoramento é um instrumento de gestão das políticas públicas e o seu objetivo é facilitar a consecução dos objetivos pretendidos com a política (RUA, 2014, p.35). AVALIAÇÃO A avaliação é um conjunto de procedimentos de julgamento dos resultados de uma política, segundo critérios que expressam valores. Juntamente com o monitoramento, destina-se a subsidiar as decisões dos gestores da política quanto aos ajustes necessários para que os resultados esperados sejam obtidos (RUA, 2014, p.35). FONTE: Elaborado pelos autores a partir de Rua (2014, p.34-35) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 5. CLEMENTINO, Josbertini Virgínio. As políticas de juventude na agenda pública brasileira: desafios e perspectivas. Fortaleza: EdMeta, 2011. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. MARSHALL, Thomas H. (2002). Cidadania e classe social. Volume I. Brasília: Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, Ministério da Ciência e Tecnologia. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. RUA, Maria das Graças; ROMANINI, Roberta. Para aprender políticas públicas. Volume I – Conceitos e teorias. Brasília: Instituto de Gestão, Economia e Políticas Públicas, 2013. SARAVIA, Enrique. Introdução à teoria da política pública. In SARAVIA & FERRAREZI, Políticas Públicas, Enap, 2006. SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias. Porto Alegre. v.8, n.16, p.20-45, jul./dez., 2006. VASAK, Karel. As Dimensões Internacionais dos Direitos do Homem. Lisboa: Editora Portuguesa de Livros Técnicos e Científicos, Unesco, 1983. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos. Revista Jurídica, v. 2, n. 31, p. 121-148, 2013. Referências III REALIZAÇÃOAPOIO Autores JOSBERTINI VIRGÍNIO CLEMENTINO Graduado em Administração Pública e de Empresas, mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e doutorando em Ciência Política pelo ISCSP/Universidade de Lisboa. Foi secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará, diretor do Departamento de Políticas de Trabalho e Emprego para a Juventude do Ministério do Trabalho e Emprego em Brasília e chefe de Gabinete da Liderança do PDT da Câmara dos Deputados em Brasília. Atuou como secretário de Juventude do Município de Maracanaú e consultor do Banco Mundial. Presidiu o Fórum Nacional dos Secretários Estaduais da Assistência Social (Fonseas) e o Conselho Estadual do Trabalho do Ceará. É fundador e atuou na direção das OSCs Universidade da Juventude e Comunidade Empreendedores de Sonhos. ANA LOURDES MAIA LEITÃO Graduada em Pedagogia em Regime Especial pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Tem especialização em Educação para Recuperação de Dependentes Químicos (Uece), em Direito Tributário, Trabalhista e Previdenciário pela (UniAteneu) e mestrado profissional em Planejamento e Políticas Públicas (Uece). Atualmente cursa Gestão Pública. É professora dos cursos graduação e pós-graduação em Administração, Ciências Contábeis, Direito, Gestão de Recursos Humanos e Serviço Social, e coordenadora de Estágio em Serviço Social (UniAteneu). É advogada. Discute os seguintes temas: Assistência Social, Cidadania, Políticas Públicas, Direitos da Criança e do Adolescente; Direito Trabalhista e Previdenciário e Seguridade Social. Ilustrações Desenhos originais das crianças Ana Luiza Travassos de Oliveira Carvalho, Anny Rammyli Nascimento da Silva, Antônia Travassos de Oliveira Carvalho, Bárbara Vazzoler Villar, Beatriz Vazzoler Villar, Bernardo Saraiva Pinheiro, Davi Bogea Caldas, Fernanda Vitória de Almeida Matos, Francisco Mateus Braga da Silva, Guilherme Araújo Carvalho, João Vazzoler Villar, João Victor Batista Veloso, Júlia Nogueira de Holanda, Luanna Madureira Marques, Lucas Mesquita Mororó, Lucas Sobreira de Araújo, Maia Alease Lima Oliphant, Maria Clara Negreiros Lobo, Maria Júlia Sousa de Oliveira, Mariana Negreiros Lobo, Mariana Vazzoler Villar, Mateus Saldanha Félix, Maurício Rafael Cipriano Gomes, Rafaela Microni Santos, Thalita Sophia Moreira da Silva, Yasmin Microni Santos, Yasmin Monteiro Gomes Bezerra, que participaram da Oficina de Ilustração com Joana Brasileiro Barroso, com intervenção artística de Carlus Campos. ENFRENTAMENTO DAS SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE E RISCOS SOCIAIS Maria do Socorro Ferreira Osterne 2 III REALIZAÇÃOAPOIO GRATUITA Esta publicação não pode ser comercializada Ilustração de Bárbara Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos Ilustração de Mariana Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 A QUESTÃO SOCIAL NO CENÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 3 DIREITOS SOCIAIS: A RECUSA DAS EXPLICAÇÕES SIMPLIFICADORAS 4 A POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CAMPO DA PROTEÇÃO SOCIAL NÃO CONTRIBUTIVA REFERÊNCIAS 20 21 25 26 31Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br Copyright©2021 Fundação Demócrito Rocha FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) Presidência Luciana Dummar Direção Administrativo-Financeira André Avelino de Azevedo Gerência Geral Marcos Tardin Gerência Editorial e de Projetos Raymundo Netto Análise de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis SECRETARIA DE PROTEÇÃO SOCIAL, JUSTIÇA, CIDADANIA, MULHERES E DIREITOS HUMANOS (SPS) Secretária de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos - SPS Socorro França Coordenação Técnica PROARES III SPS Maria de Fátima Lourenço Magalhães Gerência Técnica do PROARES III Anete Morel Gonzaga Gerência de Fortalecimento Institucional do PROARES III Selma Maria Salvino Lôbo UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Gerência Pedagógica Viviane Pereira Coordenação de Cursos Marisa Ferreira Design Educacional Joel Lima Front-End Isabela Marques CURSO PROTEÇÃO SOCIAL: PROGRAMA INTEGRADO DE EDUCOMUNICAÇÃO Concepção e Coordenação Geral Cliff Villar Coordenação de Conteúdo Ana Lourdes Leitão Revisão Daniela Nogueira Projeto Gráfico, Edição de Design e Coordenação de Marketing Andrea Araujo Design Mariana Araujo, Miqueias Mesquita e Kamilla Damasceno Arte-terapia Joana Barroso Ilustrações Ana Luiza Travassos de Oliveira Carvalho, Anny Rammyli Nascimento da Silva, Antônia Travassos de Oliveira Carvalho, Bárbara VazzolerVillar, Beatriz Vazzoler Villar, Bernardo Saraiva Pinheiro, Davi Bogea Caldas, Fernanda Vitória de Almeida Matos, Francisco Mateus Braga da Silva, Guilherme Araújo Carvalho, João Vazzoler Villar, João Victor Batista Veloso, Júlia Nogueira de Holanda, Luanna Madureira Marques, Lucas Mesquita Mororó, Lucas Sobreira de Araújo, Maia Alease Lima Oliphant, Maria Clara Negreiros Lobo, Maria Júlia Sousa de Oliveira, Mariana Negreiros Lobo, Mariana Vazzoler Villar, Mateus Saldanha Félix, Maurício Rafael Cipriano Gomes, Rafaela Microni Santos, Thalita Sophia Moreira da Silva, Yasmin Microni Santos, Yasmin Monteiro Gomes Bezerra, com intervenção de Carlus Campos Análise de Marketing Digital Fábio Júnior Braga Este curso é parte integrante do Curso de Capacitação sob o tema PROTEÇÃO SOCIAL na modalidade de Educação a Distância (EaD), em decorrência do Contrato celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos - SPS , sob o nº 143/20. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 P967 Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação / vários autores; organizado por Ana Lourdes Maia Leitão; vários ilustradores. - Fortaleza : Fundação Demócrito Rocha, 2021. 192 p. : il.; 26cm x 30cm. – (Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação ; 12v.) Inclui bibliografia e apêndice/anexo. ISBN: 978-65-86094-76-3 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-77-0 (Fascículo 2) 1. Direitos Humanos. 2. Políticas Públicas. 3. Assistência Social. 4. Drogas. 5. Igualdade Racial. 6. Segurança Alimentar e Nutricional. 7. Proteção à Vida. 8. Direito das Mulheres. 9. População LGBTQIA+. 10. Pessoas com deficiência. I. Leitão, Ana Lourdes Maia. II. Título. III. Série. 2021-1549 CDD 341.4 CDU 341.4 Índice para catálogo sistemático: Direitos Humanos 341.4 Direitos Humanos 341.4 1 2 20 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 21 INTRODUÇÃO Este fascículo, cujo teor se concentra no tema “Enfrenta-mento das Situações de Vulnerabilidade e Riscos Sociais”, no campo da proteção social não contributiva, vai expres-sar, prioritariamente, um esforço de compreender os múl- tiplos significados embutidos nesta temática. No sentido de facilitar esta compreensão, o fascículo se estrutu- rará em quatro tópicos. Em todos eles perpassará um fio condutor, cronologicamente articulado, no sentido de possibilitar entendi- mentos sobre a materialidade dos acontecimentos no plano do que se estabelece como proteção social não contributiva. O primeiro tópico trata da questão social no cenário brasi- leiro, abordando a história desse conceito, afunilando para, mediante seu significado, indicar que a questão social desvela contradições e expõe as fragilidades do sistema de produção capitalista, de onde emergem a pobreza, o desemprego, a fome, a insalubridade habitacional, as enfermidades, o analfabetis- mo, o desabrigo, a violência e o isolamento social. Segue dis- correndo sobre a noção de pobreza e subalternidade e termina por introduzir comentários a respeito dos conceitos de exclusão e desigualdade, termos correlatos à ideia de pobreza. Por oportuno, o segundo destaca reflexões sobre o que vêm a ser direitos sociais mediante as manifestações das questões so- ciais, de cuja base se originam as promessas de igualdade e justiça presentes no sistema de proteção social não contributiva. Seguindo este ordenamento lógico, o terceiro tópico põe em relevo a Política Nacional de Assistência Social, sua história, mode- los, estrutura e objetivos, em sua missão de encontrar um sentido mais abrangente para a proteção social, concebida como produto de esforços simultâneos entre o Estado e a sociedade. Tomando o reconhecimento das vulnerabilidades e riscos so- ciais enquanto condição de um dos eixos estruturantes da gestão do Sistema Único de Assistência Social (Suas), o tópico quarto discorre sobre a essência do conceito de vulnerabilidade e risco, observando onde eles se interpenetram e quais as estratégias de enfrentamento vivenciadas pelas famílias e pelos indivíduos nos territórios mediante as situações de instabilidade social. Finaliza pondo em pauta questões relacionadas à razão de ser da interse- torialidade como importante ferramenta de gestão no enfrenta- mento das situações de vulnerabilidade e riscos sociais no inte- rior da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). A QUESTÃO SOCIAL NO CENÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 2.1. QUESTÃO SOCIAL Pensar sobre a “questão social” supõe um encontro abrangente com significados de alta densidade explicativa. Isso acontece por envolver problemas da ordem da igualdade, da justiça, da liber- dade, das diferenças e da paridade, enfim, polêmicas revestidas de discussões ideológicas, históricas e culturais, muitas vezes, de difícil compreensão. Assim, convém começar dizendo que a “questão social” é impensável fora dos marcos da constituição da sociedade ca- pitalista. Historicamente falando, não se trata de um problema novo, pois começou bem antes dos ímpetos concentradores do sistema financeiro internacional. Em muitos casos, a questão social é também identificada como exclusão social, noção sobre a qual se vai falar nos pará- grafos posteriores. A nominação à questão social surgiu no sé- culo XIX, a partir do aparecimento das primeiras manifestações de miséria e pobreza advindas da sociedade industrial. Aliás, o que se observa ao longo da história é que sempre existiu uma estreita relação entre cada um dos períodos da formação das sociedades capitalistas e os modelos de proteção social. Para Castel, está-se vivendo uma nova velha questão social na contemporaneidade. E a maior novidade é sua relevância so- bretudo a partir de 1990. A visibilidade da questão social, onde quer que ela se manifeste mundialmente, é um fato de signifi- cativa magnitude que, segundo Santos (2012, p. 17), ninguém, independentemente do seu campo ideopolítico, será capaz de negar a existência. Reforçando o pensamento de que a questão social seja im- pensável fora dos marcos de constituição do modo de produção capitalista, cai por terra qualquer tentativa de compreendê-la na- turalizando suas manifestações, tentando caracterizá-la como mu- danças ocorridas nas formas de solidariedade ou coesão social na busca de uma aparente positividade capitalista. Afirma-se, então, a existência real não da “questão social”, mas, sim, de suas formas de expressão. Seria, por exemplo, expressão da questão social: a pobreza, o desemprego, a fome, a insalubri- dade habitacional, as enfermidades, o analfabetismo, o desabrigo, a violência, a insegurança e o isolamento social, dentre outras for- mas de manifestações, como a ignorância, a resignação e o medo. A emergência da questão social, portanto, desvela contradi- ções sociais e expõe as fragilidades de um sistema em sua mul- tidimensionalidade: econômica, política e social. A contradição fundamental inerente ao sistema de produção capitalista, cen- trado na exploração, na mais-valia e na repartição desigual da renda nacional entre as classes sociais, constitui a base do seu processo excludente, gerador e reprodutor da pobreza, assunto do próximo tópico deste fascículo. Ilustração de Lucas Sobreira de Araujo com intervenção de Carlus Campos Ilustração de Bárbara Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos 22 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 23 2.3. EXCLUSÃO SOCIAL Foi em 1980 que o termo exclusão social ganhou espaço e vi- sibilidadeno debate político internacional. Presume-se que esta visibilidade tenha ocorrido em face da necessidade de melhores explicações sobre o crescente processo de empo- brecimento e carência das populações. O termo começou a agregar tendências de análises das mais variadas, indo desde as explicações focadas em causas psicológicas, condições de moradia, pobreza, inadaptação para o progresso, deficiência, marginalidade, até a ideia de novos pobres, ou seja, aqueles com participação aleatória na dinâmica econômica e social. O certo é que esta expres- são ganhou notoriedade ao ponto de fazer supor que, enfim, havia surgido o entendimento final sobre a questão social. Porém, mais recentemente, a expressão exclusão social passou a ser criticada, tanto pela sua abrangência e incapa- cidade explicativa quanto pelo seu uso abusivo. Trata-se de uma noção polêmica que comportará sempre a necessidade de reconstruir seu processo de aparecimento, emergência e consolidação no plano do pensamento social. Por absorver os mais variados ângulos daquilo que pre- tende explicar, exclusão social tem se tornado uma noção por demais abrangente e essencializada, portanto desauto- rizada para proceder com caracterizações mais precisas na forma conceitual. 2.2 POBREZA E SUBALTERNIDADE Importa começar dizendo que a pobreza é uma categoria histórica e socialmente construída, jamais um fenômeno natural. Diz respeito a um fenômeno estrutural de natureza complexa e multidimensional que não pode ser interpretado como simples insuficiência de renda e privações de ordem material. Ela agrega a dimensão da desigual- dade na distribuição da riqueza socialmente produzida, o não aces- so a serviços básicos, à informação, ao trabalho, a uma renda digna e à participação política e social. Trata-se, portanto, de uma das mais significativas formas de manifestação da questão social que, em muitos casos, convive com a miséria. Para Silva (2010), os pobres são produtos das relações que produzem e reproduzem a desigualdade no plano social, político, econômico e cultural. Essas relações definem um lugar para eles na sociedade, um lugar que os desqualifica por suas crenças, seu modo de se expressar e seu comportamento social, percebidos como sinais de “quali- dades negativas” e indesejáveis, haja vis- ta sua procedência de classe e condição social. Trata-se, por conseguinte, de uma categoria política que se materializa na carência de direitos, de oportunidades, de informações, de possibilidades e es- perança (SILVA, 2010, p. 1). A pobreza faz parte da experiência co- tidiana das sociedades. Por isso, carrega consigo uma tendência à banalização, à tolerância, aos caminhos fáceis. Aceita-se com conformismo a profunda incompa- tibilidade entre os ajustes estruturais da economia sob a égide do capital e os investimentos sociais que deveriam ser complementados pelo Estado. A análise do fenômeno da pobreza deverá sempre levar em consideração as diferenças econômicas, históricas e cul- turais entre os países. Ser pobre no Brasil não é exatamente como ser pobre nos Es- tados Unidos, em Portugal ou na Espanha. Além disso, dentro de um mesmo país, existem diferenças de ma- nifestações regionais e entre áreas urbanas e rurais. No tocante à pobreza brasileira, em uma perspectiva históri- ca, sua sociedade tem sempre apresentado divergências entre indicadores econômicos que manifestam altos e baixos índices de indicadores sociais, sempre comparáveis aos países mais po- bres do mundo. Outro ponto de significativo destaque é que a pobreza brasileira raramente tem sido considerada uma priori- dade nacional, embora indicada como impossibilitada de redu- zir os índices de desigualdade, por meio de seus próprios recur- sos, uma vez concentrados nas mãos das elites. Isso sem contar com a sua dependência do capitalismo internacional. No momento atual, esse quadro tem se agravado, haja vista a lógica do modelo socioeconômico neoliberal globalizado, as- sentado no “mantra” do livre mercado, da livre competição e da redução do Estado no âmbito das políticas sociais públicas. Nesta linha de raciocínio, as políticas públicas de cunho so- cial, direcionadas para o enfrentamento da pobreza, não che- gam a erradicá-la, mas apenas aliviam seus efeitos mais ne- fastos. Como se vê, nenhuma situação de pobreza advém de causas naturais, portanto poderá ser enfrentada como priori- dade através de políticas públicas ativas e capazes de produzir bons resultados com o mínimo de desperdício nas áreas da edu- cação, da saúde, da moradia e, sobretudo, do acesso à renda. Enfim, a pobreza supõe inferioridade, dependência, subordi- nação em face de uma constante necessidade de auxílio, ajuda, proteção e também dependência emocional. A pobreza supõe lugares negativados para seus acometidos, o lugar da subalter- nidade. Entre estes encontram-se, principalmente, os moradores de rua, os presidiários, os doentes mentais e, mais fortemente, os sem-teto, os desempregados, os idosos asilados e os migrantes. Esses sujeitos, de forma acentuada, revelam as contradições sociais e expõem, marcantemente, as fragilidades da formação política da sociedade. Ilustração de Maurício Rafael Cipriano Gomes com intervenção de Carlus Campos Ilustração de Bárbara Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos 3 DIREITOS SOCIAIS: “A RECUSA DAS EXPLICAÇÕES SIMPLIFICADORAS” Falar de direitos sociais neste peculiar momento de pan-demia requer constante renovação dos instrumentos de análise para dar conta dos imensos desafios postos por esta nova situação que, além de esgarçar as desi- gualdades antes existentes, expõe novas desigualdades. A economia neoliberal está sendo fortemente impactada pelo coronavírus. A sociedade e o Estado estão se tornando im- prescindíveis para que as pessoas sobrevivam. A redistribuição de riquezas volta a ser prioridade na agenda dos países. Não há como esperar pelo funcionamento “automático infalível” dos mercados. Os direitos universais à renda, à saúde e à educação impõem-se como prioridades políticas. Reexaminar o que são os direitos sociais, neste momento singular, impõe-se, portanto, como tarefa obrigatória. A possi- bilidade de uma sociedade mais justa e mais igualitária exige esse reexame. Telles (1999, p. 2) observa que, não obstante a incorporação desses direitos na Carta Constitucional, percebe-se uma profun- da defasagem entre os princípios igualitários da lei e a materia- lidade das desigualdades e exclusões na dinâmica das relações sociais ao longo do tempo e nos dias atuais. Telles (1999) afirma, também, que falar de direitos sociais significa falar de perdas e sensações de impotência. Sendo as- sim, sugere deslocar a sensação de fragilidade para repensar sobre os direitos sociais a partir da materialidade dos reais pro- blemas vivenciados, rumo às promessas de igualdade e justiça social embutidas nas cartas de intenções. Em outras palavras, seria colocar os direitos na ótica dos su- jeitos que vivenciam os reveses do processo de exclusão social e não conviver com as subalternidades próprias daqueles que são privados da palavra ou cuja palavra é descredenciada. As questões sociais inerentes à exploração dos trabalhado- res, a pobreza dos sem-teto e dos sem-terra, a desproteção das populações dos bairros pobres das grandes cidades, as humi- lhações impostas aos negros discriminados, a inferiorização das mulheres, a matança dos índios, a desqualificação dos qui- lombos e as violências impostas às populações empobrecidas são algumas das situações que precisam sair do discurso ne- gativista para encontrar a promessa igualitária embutida na lei que propõe enfrentar as desigualdades, as discriminações e as violências cotidianas. Não é essa concepção desfigurada de igualdade e justiça que deverá constituir a figura do cidadão. A imagem da pessoa ne- cessitada, pedinte e pobre, despojada de sua dimensão ética, submetida aos imperativos da sobrevivência,não condiz com a noção de direitos, tampouco com a noção de cidadania. No próximo tópico se dará destaque à Política Nacional de Assistência Social no campo da proteção social não contributiva. 24 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 25 2.4. DESIGUALDADE SOCIAL A desigualdade social é considerada um problema social decor- rente, sobretudo, da má distribuição de renda e da precariedade de investimentos nas áreas relacionadas com as necessidades humanas básicas: alimentação nutritiva e água potável; habita- ção digna; cuidados com a saúde; trabalho desprovido de risco; transporte; proteção à infância/adolescência; segurança social; ambiente físico saudável; acesso à escolarização/educação. Ela expressa a diferença de renda entre determinados grupos de pessoas no interior de uma mesma sociedade. Hoje seus prin- cipais fatores relacionam-se à má distribuição de renda e admi- nistração dos recursos; à lógica de acumulação do mercado capi- talista (consumo e mais valia); à falta de investimento nas áreas sociais, culturais, da saúde e da educação; à falta de oportunida- de de trabalho e à corrupção. Suas consequências mais imediatas são: a fome, a desnutrição e a mortalidade infantil; o crescimento progressivo das taxas de desemprego; a distância entre ricos e pobres; as discriminações e privilégios entre as classes; o aumen- to dos índices de violência e criminalidade. A busca de seu significado tem sempre como ponto de par- tida as contradições inerentes à dimensão da sociedade capita- lista em sua dinâmica e estrutura. Mais comumente ela se relaciona às manifestações de mal- -estar na sociedade contemporânea marcadas pelo problema do desemprego e, consequentemente, pelo crescimento da pobreza. Em certas circunstâncias é adotada, pelo senso comum, para de- signar vítimas da crise econômica e social em situações de carên- cia pessoal, familiar e comunitária, entendidas como situações naturais inerentes àqueles que vivem à margem da sociedade. O termo exclusão social também é usado para caracterizar mino- rias (negros, homossexuais, migrantes e deficientes físicos), além de pobres, desempregados, população de rua e moradores de favelas. Por isso, tornou-se uma expressão bastante usual entre governantes, políticos, jornalistas e pesquisadores. Continua sendo tema de confe- rências, teses, livros, pesquisas e artigos, por apresentar considerável eficiência para designar todo tipo de situação ou condição social de carência, risco de discriminação, vulnerabilidade e precariedade. A ex- pressão exclusão social, portanto, corre o risco de não caracterizar ne- nhum fenômeno por querer dar conta de todos, explica. (ZIONI, 2006). No próximo tópico passar-se-á ao subitem Desigualdade Social, como noção correlata à ideia de pobreza e exclusão social. Segundo relatório da OXFAM (2019), o Brasil aparece como um dos piores países em matéria de desigualdade de renda. Isso porque mais de 16 milhões de pessoas vivem abaixo da li- nha da pobreza. Em relação à renda, o 1% mais rico recebe, em média, mais de 25% de toda a renda nacional. Atualizando esta incursão na temática das desigualdades so- ciais, importa também destacar que, no contexto de pandemia da covid-19, o fosso das disparidades sociais tem-se mostrado muito mais acentuado, tanto nacional como globalmente. Nesse cenário, caberá especialíssima atenção ao tema das de- sigualdades sociais no plano da garantia dos direitos e do fortale- cimento das políticas públicas no combate às suas manifestações. Ilustração de Fernanda Vitória de Almeida Matos com intervenção de Carlus Campos Ilustração de Bárbara Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos A POLÍTICA NACIONAL DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CAMPO DA PROTEÇÃO SOCIAL NÃO CONTRIBUTIVA Antes de discorrer sobre a Política Nacional da Assis-tência Social (PNAS), caracterizada como uma efetiva política de proteção social, é necessário adentrar o en-tendimento do que venha a ser o modelo de proteção social brasileiro. A Constituição Federal de 1988 é um marco histórico que am- plia legalmente a proteção social para além da vinculação com o emprego formal. Neste marco, ocorre uma mudança qualitativa na forma de entender a proteção que vigorou no país até então. Na Constituição de 1988, o modelo de proteção social pas- sou a ser compreendido como um sistema de referência voltado para possibilitar acesso a condições de vida alicerçadas na dig- nidade humana, na justiça social, nos direitos e na vigilância so- cial. Proteção Social que supõe guarda, amparo, apoio, defesa e socorro a quem dela necessitar. 4 A ênfase na matricialidade sociofamiliar, o financiamento partilhado entre as esferas governamentais, o reconhecimento das vulnerabilidades e riscos sociais do território e o envolvimento da população constituem eixos fundamentais da assistência social. Sobre vulnerabilidade e riscos, matricialidade sociofamiliar e território, se falará no próximo tópico deste fascículo. A consolidação da assistência social como política pública e direito social passou a exigir o enfrentamento de muitos e importantes desafios. A IV Conferência Nacional de Assistência Social, ocorrida em Brasília em dezembro de 2003, indicou, como principal deliberação, a constituição e a implementação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), condição essencial da Lei Orgânica da Assistência (Loas -1993), para garantir efetividade à assistência social como política pública. A versão preliminar da PNAS foi apresentada ao Conselho Nacional de Assistên- cia Social (CNAS) em 23 de junho de 2004, pelo Ministério de Desenvolvimento Social (MDS/SNAS), tendo sido amplamente discutida e divulgada em todos os estados bra- sileiros por meio de seminários, encontros, reuniões, oficinas e palestras que garanti- ram o caráter democrático do processo. A Resolução do CNAS N°145, de 15/10/2004, aprova enfim, a Política Nacional de Assistência. TODA ESSA EXPERIÊNCIA ACUMULADA ORIENTOU A PNAS (2004) A PROPOR COMO OBJETIVOS: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: a) Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção básica e ou especial às famílias, indivíduos e grupos que dela necessitem; b) Contribuir para a inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos, em áreas urbana e rural; c) Assegurar que as ações tenham centralidade na família e que garantam a convivência familiar e comunitária (BRASIL, MDS, PNAS, 2004, p.33). Sendo assim, a Política Nacional de Assistência (PNAS-2004) consolida que a proteção prevista em seu texto deverá afiançar segurança de acolhida e segu- rança de convívio relativo à vivência fa- miliar, defendendo uma proteção mais vigilante e proativa. Por meio da Constituição Federal de 1988, portanto, foi consolidada uma atenção especial para a proteção social, particularmente no capítulo de Segurida- de Social (BRASIL, 1988), no qual se as- segura o direito à saúde, à previdência e à assistência social. A saúde tem caráter universal, a previdência é contributiva e obrigatória e a assistência, constituída por indivíduos que não podem prover suas necessidades. Pela primeira vez na história, uma Constituição brasileira ga- rante a assistência como direito do cida- dão e dever do Estado. Não resta dúvida de que o advento da Política Nacional de Assistência representa uma conquista significativa no plano das garantias dos direitos sociais no Brasil. Po- rém sua aprovação não passou sem gran- des embates entre políticos e governantes, sobretudo de grupos adeptos da lógica ne- oliberal de “menos Estado e mais Mercado”, haja vista sua viabilidade econômica. Por isso, sua regulamentação só ocorreu em 1993, quando foram impulsionadas medi- das constrangedoras à sua efetivação (SIL- VEIRA & OLIVEIRA, 2014, p. 295). 26 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do NordesteCurso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 27 Ilustração de João Victor Batista Veloso com intervenção de Carlus Campos Ilustração de Mariana Vazzoler Villar com intervenção de Carlus Campos 28 | Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste Curso Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação | 29 4.2. INDICADORES DE ENFRENTAMENTO ÀS SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE E RISCOS SOCIAIS VIVENCIADAS PELAS FAMÍLIAS NOS TERRITÓRIOS A família constitui uma instituição de forte referência, haja vista o aprofundamento das condições de risco e vulnerabilidade social nas quais se encontra submetida a maioria das famílias brasileiras. Sendo assim, precisa ser alvo da atuação do Estado, por meio das políticas sociais públicas, em especial na área da assistência social. Essa visibilidade suscita reflexões sobre o que venha a ser a família contemporânea brasileira em sua multiplicidade de formas e sentidos. Considerada como instância básica da sociedade, dela se espera ser responsável, dentre outras funções, pela reprodução material e subjetiva de seus indivíduos, pelo cuidado com os seus membros e com a socialização primária de seus componentes. Há quem a considere ser a única instância responsável pelo bem- -estar de seus integrantes. Convém, entretanto, adiantar que a família nem sempre é lugar de proteção. A família no imaginário brasileiro é, de fato, um valor. É canal de iniciação e aprendizado dos afetos e das relações sociais. Em face desses múltiplos significados, Osterne (1991, p. 92) prefere compreender família como “unidade de referência”, ou seja, um ponto focal no qual se pode desfrutar do sentido de pertencer e experimentar a sensação de segurança afetiva e emocional, apesar de condições adversas e mesmo independente das rela- ções de parentesco e consanguinidade. Algo que possa ser pen- sado como o local de retorno, o destino mais certo. Reconhecida como instância submetida, cotidianamente, às adversidades impostas pelo modelo econômico desigual e pre- datório, a família passou a ser incorporada como público privi- legiado no âmbito da Política Nacional de Assistência, que traz como uma de suas diretrizes a centralidade na família para a concepção de seus benefícios, programas e projetos. Enfim, a PNAS entende que as circunstâncias e os requisitos so- ciais circundantes do indivíduo e dele em sua família são determi- nantes para sua proteção e autonomia. No próximo tópico serão abordadas questões relacionadas ao papel da intersetorialidade na operacionalização das políti- cas públicas voltadas para o enfretamento das situações de vul- nerabilidade e riscos sociais, no interior da PNAS. Foi na busca de compreender as grandes transformações ocor- ridas em algumas partes do mundo, na década de 1980, que os termos riscos e vulnerabilidade ganharam notoriedade no cam- po das Ciências Sociais, principalmente através dos estudos de Ulrich Beck e Anthony Giddens, autores de referência nas análi- ses sociológicas com foco nas sociedades de risco. Para Beck (2010), na sociedade de risco a ameaça global in- timida a vida no planeta sob todas as formas e atinge, portanto, o ser humano, a fauna e a flora. Beck admite que a expansão e a mercantilização de risco não rompem com a lógica capitalista, pelo contrário, apresentam-se sob um novo estágio. Já Anthony Giddens (1991) reconhece que o risco, na socie- dade capitalista, tenha um alto poder lucrativo. Afirma que o capitalismo é imprescindível e impraticável fora do comércio e da transferência de riscos. Sendo assim, sugere que risco não seja automaticamente sinônimo de perigo nem de infortúnio ainda que relacionado, pois a pressuposição de perigo depende de avaliação prévia de danos futuros. Como se percebe a noção de risco, tanto no ponto de vista de Beck como no de Giddens, é inseparável do sistema capitalista e crucial para o seu desenvolvimento. Outro pensador dedicado ao entendimento dos rumos da pro- teção social foi Castel (2005), que se contrapôs à noção de “cultu- ra do risco” formulada por Giddens. Para Castel os riscos não são democráticos e as injustiças sociais são gritantes na distribuição desses riscos nas sociedades de classe. Sugere, portanto, instân- cias políticas transnacionais poderosas para impor limites às ex- citações do lucro, além de domesticar o mercado globalizado. É comum entre os autores, até aqui citados, dizer que os termos risco e vulnerabilidade são inerentes à história do próprio capita- lismo e que, em momentos de crise, eles ganham relevância, por referirem-se a uma considerável parcela da população que vive do trabalho, pondo em discussão a natureza da questão social. Já Sposati, em sua tarefa de constituir uma proposta de polí- tica pública centrada na assistência social no Brasil, em 2001 já usava os termos vulnerabilidade e risco, que posteriormente fo- ram incluídos no texto da Política Nacional da Assistência Social (PNAS). Os termos têm os seguintes empregos e concepções: vul- nerabilidade no sentido de identificar situações de insegurança às quais os cidadãos se encontram expostos na sociedade de merca- do, ou seja, insegurança e ameaças a serem cobertas pela PNAS; risco não em seu sentido imediato de perigo, mas como possibili- dade de se antepor a situações futuras de perda da qualidade de vida pela ausência de uma ação preventiva (SPOSATI, 2001, p. 69). Para Sposati (2006, p. 61), a assistência social exerce o papel de detectora de vulnerabilidades, ou seja, a PNAS deve definir quais vulnerabilidades sociais devem ser cobertas, indicando uma certa indissociabilidade entre os termos risco e vulnera- bilidade, uma vez que, no seu raciocínio, os riscos expõem os sujeitos a situações vulneráveis. Percebe-se, dessa forma, que os termos risco e vulnerabili- dade ampliam o acesso à PNAS para além dos grupos indicados pela Loas, quais sejam: idosos, crianças e adolescentes e pesso- as com deficiência. Diante dos debates e múltiplas concepções provocadas pelos sentidos de risco e vulnerabilidade, Sposati (2006), admite a existência de múltiplos sentidos, apontando, porém, sua intimidade com o sistema capitalista e que, no to- cante ao risco, apenas um sentido estaria relacionado à assis- tência social, qual seja: aqueles riscos que levam à apartação, ao isolamento, ao abandono e à exclusão, podendo estender-se à violência física e sexual. Enfim, Sposati, desta feita citada por Alvarenga, indica cinco fatores de risco que agravam as vulnerabilidades das famílias e das pessoas: separação espacial (territórios com acessos precá- rios e infraestrutura ruim); padrão de coesão e convivência fami- liar comunitária e social (apartação, isolamento, discriminação, ausência de pertencimento); contingência da natureza (enchen- tes, deslizamentos e seca); etnias, gênero, religião, orientação sexual; e desigualdade econômica. (ALVARENGA, 201, p.63-64) Como vimos, risco e vulnerabilidade não são termos sinôni- mos, atingem os sujeitos de formas e intensidades diferentes. Cada sujeito ou família responde de forma diferente às situa- ções, e nem todas essas situações são motivo da ação, tampou- co cobertas pela assistência social, embora seja, de sua compe- tência, capacitar os sujeitos para o enfretamento das situações de risco e vulnerabilidade. 4.3. A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ENFRENTAMENTO DAS SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE E RISCOS SOCIAIS A abordagem intersetorial no âmbito da gestão pública signi- fica mudança de paradigma no modelo de administração pú- blica tradicional, antes baseada no modelo burocrático. Para Inojosa (2002), a ideia de intersetorialidade supõe um projeto político diferente para as políticas públicas, ou seja, um projeto que ponha efetivamente o cidadão no centro das decisões. A intersetorialidade supõe também o cumprimento de deci- sões coletivas de planejamento e avaliação, além de uma atua- ção governamental em rede de compromissos. No detalhamen-
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