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20º Congresso Brasileiro de Sociologia 12 a 17 de julho de 2021 UFPA – Belém, PA GT13 - Sociologia da Juventude Movimentos Sociais Regressivos, Juventudes e Fronteiras. Gilberto Geribola Moreno UEM – Universidade Estadual de Maringá Introdução. Entre os anos de 2018 e 2019 realizei uma pesquisa exploratória com jovens estudantes do ensino superior na região oeste do estado do Paraná, Brasil, visando traçar um quadro parcial e provisório sobre suas percepções políticas. A pesquisa se originou de minha imersão como professor em uma instituição pública de ensino superior. Este ambiente se apresentou à observação como um universo no qual muitos jovens se intitulam “de direita” ou manifestam algum grau de identificação com o pensamento conservador e as pautas políticas defendidas por diferentes movimentos de cunho regressistas quanto aos direitos civis e sociais. O campo de observação constituiu-se prioritariamente de jovens moradores de Foz do Iguaçu, uma cidade de médio porte localizada na região de fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. Cabe pontuar que alguns jovens moram nas cidades vizinhas, no Brasil e nos países que compõem essa fronteira, de modo que, para efeito de campo empírico de pesquisa, seguiu-se Pozzo (2014), ao afirmar que a fronteira deve ser observada como um espaço articulado e não como a soma de distintos território e culturas. Com esse sentido, lançou um olhar para grupos juvenis de Ciudad del Este, Paraguai, que manifestam semelhanças com os grupos brasileiros quanto à identificação política. O texto a seguir apresenta alguns apontamentos baseados em entrevistas semidirigidas, na realização de debates em grupos focais e na observação dos espaços de sociabilidade desses jovens. O material analisado constitui um conjunto de elementos caracterizado como um exercício de artesanato intelectual (WRIGHT MILLS, 1975) cujo objetivo foi demarcar um campo empírico de pesquisa a ser trabalhado em profundidade nos anos de 2019 e 20201. No ano de 2018 foram realizadas as eleições que levaram ao comando do executivo federal o candidato de extrema direita cujas manifestações públicas sempre evocaram a defesa da ditadura militar instaurada com o golpe de 1964, bem como de seus agentes repressores e torturadores. Durante vinte e oito anos como deputado federal suas propostas políticas sempre foram contrárias aos 1 No ano de 2019 obtive parecer favorável para a realização da pesquisa em foco na Universidade Federal de São Paulo por meio da seleção para o pós-doutoramento. Porém, por conta dos cortes orçamentários realizados pelo governo federal a pesquisa não pode contar com suporte financeiro e, desse modo, não pôde ser concretizada nos moldes que fora apresentada no projeto de pesquisa. direitos civis e sociais de amplos seguimentos da população brasileira manifestando, em inúmeras ocasiões, preconceitos e ódio em relação a negros, índios, mulheres, gays, etc. Para selecionar os jovens interlocutores dessa pesquisa e que viriam a ser entrevistados e/ou acompanhados o primeiro passo foi adotar como filtro seu apoio ou manifestação de voto neste candidato. Em seguida aplicou-se uma breve entrevista a qual tentava-se auferir a identificação desses jovens com as posições políticas defendidas publicamente por segmentos da extrema direita, tais como a crítica ou o combate às políticas sociais e de ação afirmativa (bolsa família, cotas raciais); o rechaço à defesa dos grupos minoritários tais como índios, quilombolas, LGBTTQIA+ etc. Por fim, caminhou-se para a identificação e observação dos espaços de sociabilidade e encontros com finalidades políticas. Visando compreender a percepção desses jovens sobre o universo da política de extrema direita evitou-se partir de uma preconcepção ditada pelos referenciais do investigador. Desse modo adotou-se como critério para definir a identificação política desses espaços de sociabilidade política a percepção atribuída pelos frequentadores aos seus encontros e atividades. Quem são os jovens conservadores? A emergência de agrupamentos juvenis autodefinidos como “de direita” é algo relativamente surpreendente, embora não seja uma novidade histórica. Esses grupos apresentam diferentes matizes discursivas que abarcam desde certa discordância, no caso brasileiro, com os governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores, a promoção de agenda neoliberal contrária à intervenção do Estado na intermediação de conflitos e diminuição as desigualdades sociais, a defesa explícita da ditadura militar que vigorou no pais desde o golpe de Estado de 1964 até 1985, bem como a defesa e muitas vezes a celebração da ação de seus agentes e, também, o apoio à proposta de soluções autoritárias para resolver os problemas do país. Os jovens que acompanhei durante os anos de 2018 e 2019 viveram na esfera do poder executivo federal, desde a transição da infância para a adolescência e juventude, sob os governos de perfil de centro-esquerda encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores. Ao ouvi-los percebe-se a aderência que o discurso anti petista tem em sua percepção do universo da política. Não tendo vivido outra experiência social no âmbito do governo federal veem o partido que governou por treze anos o país como principal responsável por suas dificuldades e inquietações quanto ao presente e o futuro. A pesquisa sobre juventudes de certo modo foi pega de surpresa com a emergência desses movimentos pelo fato de ao longo dos últimos anos ter dado pouca atenção aos agrupamentos políticos juvenis com perfil conservador ou regressista. Fato que se deve, de um lado, provavelmente à pouca amplitude que tinham esses movimentos até há pouco tempo e, de outro, pelas preocupações de uma parcela importante dos pesquisadores que mantiveram o foco sobre as juventudes e sua interface com o mundo da política atentando-se prioritariamente ao âmbito dos movimentos estudantis, à participação institucional via partidos políticos, às relações intergeracionais na esfera pública e à conquista de direitos de cidadania. Muitos estudos sobre juventude e política inscrevem-se no esforço de compreender os âmbitos do “comportamento político, cultua política, socialização e valores políticos, tendo os jovens como grupo a ser perscrutado quanto aos seus interesses, atitudes e formas de ação” (SPOSITO (coord.) 2009)2. Depois de um período em que governos de orientação de centro esquerda dominaram o cenário político na América Latina assistimos ao recrudescimento de movimentos conservadores e, até mesmo, de viés regressista com forte apoio social. Esses movimentos têm colocado em xeque o conjunto de conquistas político-sociais obtidas por amplos segmentos da população durante os governos progressistas. Estes novos grupos e movimentos conservadores vêm promovendo manifestações públicas e ações pautadas pelo pensamento conservador e, em alguns casos, defendendo pautas regressivas quanto aos direitos de cidadania construídos, no caso brasileiro, a partir da constituição 1988. Parte dos grupos dedica-se exclusivamente a conquistar mudanças nas políticas educacionais e se volta para os jovens do ensino médio e superior. Questionam, em suas ações ou 2 As relações dos jovens no e com mundo do trabalho e a inserção dos jovens nas diferentes dimensões do campo da educação formal e não formal compõem outros focos de importantes pesquisas sobre as juventudes. plataformas as discussões acerca das relações de gênero, relações étnico-raciais, direitos trabalhistas, cotas para estudantes negros e indígenas etc. De modo geral esses grupos têm grande presença nas redes sociais, mas, também, organizamações presenciais, fóruns de discussão, encontros de jovens conservadores e participam da vida partidária trabalhando como cabos eleitorais para candidatos conservadores ou se candidatando para cargos no legislativo em diferentes níveis de legislaturas. Esses grupos conservadores vêm se organizando desde o início dos anos 2000 em Thinks Thanks (FERREIRA, 2018) como o Instituto Millenium, por exemplo, de inspiração neoliberal. Porém, foi especialmente a partir de 2013, por ocasião das jornadas de junho nas grandes cidades e sobretudo na cidade de São Paulo, que esses grupos e movimentos ganharam notoriedade. A articulação entre Thinks Thanks e movimentos como o Movimento Brasil Livre - MBL, Escola Se Partido, Revoltados Online entre outros introduziu uma nova agenda política voltada especialmente para a conquista de espaço político, inserção entre os jovens e base política nos espaços dominados por parcelas progressistas das juventudes. No estado do Paraná, mais especificamente na região da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai onde desenvolvo a pesquisa sobre jovens e movimentos conservadores, grupos intitulados “Direita Paraná”; “Direita Foz”; “UNILA Livre” entre outros vem promovendo ações nas escolas e universidades com vistas a conquistar simpatizantes às pautas conservadoras e regressivas quanto aos direitos civis e sociais. Entre essas ações consta a prática da intimidação de professores, como por exemplo, a promovida por membros do MBL local na Escola Estadual Paulo Freire, recentemente. Nesta ação um grupo de jovens interveio no cotidiano da escola protestando contra “a doutrinação dos alunos” promovida pelos professores. Aparentemente os grupos de perfil conservador ou regressista priorizam os espaços educacionais. No entanto, ações políticas no espaço público têm sido observadas na região focando especialmente as pautas referentes às questões de gênero, tema com forte apelo mobilizador nesse segmento. A expressividade que esses movimentos conservadores juvenis vêm ganhando desde 2013 tem colocado novos desafios epistemológicos para a pesquisa sobre juventudes nos levando a pensar junto com Mannheim (1993) que a juventude não é conservadora e nem progressista, mas que pode apontar, por meio de suas manifestações, as tendências da sociedade em determinados períodos históricos. Esse trabalho pretende contribuir para os esforços de desvelamento das lógicas que orientam a ação coletiva desse segmento das juventudes tendo como hipótese que, embora esses grupos e/ou movimentos sejam em alguma medida uma novidade, eles conseguiram prosperar porque encontraram determinados elementos dispersos pelo território que conformam uma cultura política propensa ao conservadorismo e ao autoritarismo. Esses elementos podem ser da esfera dos acontecimentos históricos reanimados pela memória social. A história brasileira e os elementos de sua formação como nação são fatores que contribuem para a valorização das hierarquias e do autoritarismo (SCHWARCZ, 2019). Vale lembrar que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Por outro lado, a própria organização político-social da região de fronteira até recentemente território de expansão agrícola e dos modos capitalistas de produção apresenta fortes componentes autoritários. Sobretudo em relação às populações originárias expulsas de suas terras no período da ditadura militar. Diferentes analistas (RUNCIMAN, 2018; LEVITSKY & ZIBLATT, 2018; MOUNK, 2018; VÁRIOS AUTORES, 2019) têm apontado o risco que os novos movimentos conservadores ou regressistas representam para as liberdades democráticas. Esses autores apontam o apelo antidemocrático desses movimentos que tentam contaminar a democracia por dentro sem o uso explícito de estratégias explicitas de ruptura institucional. Diferentes das tradicionais quarteladas que instauraram regimes autoritários nos países da América Latina no século passado, os atuais movimentos regressistas não prescindem de eleições livres para conquistar posições e implantar seu ideário político. Essa característica os mantém, aparentemente, distantes das quarteladas, mas os aproxima de movimentos e partidos políticos do século passado cujo ideal político é a dominação social por meio do apoio de parcelas dos segmentos populares e da vitória nas urnas. Desse modo os grupos juvenis regressistas desenvolvem uma intensa agenda de intervenção no espaço público amplificando o alcance de suas propostas políticas. DIPEM Realce Ouvindo jovens conservadores. A demonização da diferença. Este trabalho não tem por objetivo fazer uma incursão na história local desvelando aspectos do passado que poderiam informar o presente. No entanto, por meio das declarações dos jovens com os quais interagi é possível auferir certos elementos que fazem referência à história da região que se articulam à pauta promovida pelos diferentes segmentos juvenis que propugnam o ideário conservador/regressista3. Embora haja distinções entre os diferentes grupos que se orientam pelo pensamento conservador e/ou regressista, uma característica lhes é comum. Certa demonização de todo pensamento ou ação coletiva que questione as desigualdades sociais; que vise debater questões referentes à diferença social; os direitos das minorias e, por consequência, qualquer ação que coloque em questão ou que se proponha a alterar as hierarquias sociais. Ao traçar comentários sobre a presença de índios na região um de meus interlocutores se manifestou afirmando que “meus pais batalharam muito aqui. Não ganharam nada de graça. É por isso que minha mãe, minha avó, ficam indignadas com esse negócio de dar terra pra índio, quilombola, essas coisas” (Andreia, 22 anos)4. Certa ode aos desbravadores da terra, àqueles que “chegaram aqui quando só tinha mato e fizeram tudo” permeia o discurso desses jovens quando o assunto é demarcação de terras, por exemplo. No mesmo sentido as disputas em torno de indenizações por parte dos grupos prejudicados pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, como os guaranis são minimizadas em prol do discurso propagado pela própria empresa de geração de energia. “Cara, o pessoal fica falando da Itaipu. Que ela expulsou índio e tal, mas se não fosse ela aqui não tinha desenvolvido” (Andreia, 22 anos). A discussão sobre indenizações devidas às pessoas atingidas pela construção da usina ou a demarcação de terras indígenas é subsumida pela ideologia do desenvolvimento. Outro aspecto que se sobrepõe é a defesa das conquistas individuais frente aos problemas sociais. “Tudo que meu pai conquistou pra gente 3 Adoto o termo regressista por compreender que esses grupos juvenis adotam uma posição política calcada num ideário não apenas conservador, mas especialmente reativo e contrário às conquistas de direitos sociais e civis por parte dos segmentos subalternizados da sociedade. 4 Os nomes dos interlocutores foram trocados para garantir-lhes o anonimato. Optei por discriminar suas idades com o intuito de confirmar a inserção no grupo etário jovens, embora reconheça que esse descritor não seja suficiente para auferir o pertencimento às juventudes. foi graças à Itaipu. Por isso eu acho que não tem nada a ver ficar metendo o pau na usina” (Mauricio, 25 anos). A proeminência dos brancos sobre os demais grupos também é afirmada por esses jovens que dizem “trabalhar, trabalhar pra valer quem trabalha somos nos. É a gente que planta, que constrói e tal. Esse pessoal só sabe falar de direitos”. Desse modo naturalizam-se as desigualdades sociais como componentes intrínsecos do comportamento empreendedor de uns e da inabilidade para o trabalho de outros. Até mesmo a presença de terras indígenas demarcadas é vista como empecilho. “Minha avó sempre fala que a únicacoisa boa de morar onde tem reserva é que no dia do índio é feriado. Além disso não serve pra nada” (Marcelo, 23 anos). Outro traço marcante desses jovens é a defesa da família. Indagados sobre o que é a família suas respostas afirmam como padrão familiar a família nuclear. Família é homem e mulher, assim como Deus fez” (Carolina, 24 anos). Aliás, essa frase foi proferida mais de uma vez por diferentes interlocutores, apontando um viés religioso na concepção da família. O celibato é outro componente presente na narrativa de parte desses jovens que afirmam ser “um dever do bom cristão resistir à tentação e casar virgem, evitando o pecado e a perdição” (Adilson, 18 anos). Para esses jovens o espaço de maior convívio e sociabilidade entre os pares são as igrejas de diferentes denominações: católica, pentecostal e neopentecostal. Além do espaço religioso a maioria dos jovens do grupo estudado tem nas reuniões doméstica outro espaço de sociabilidade. “A gente gosta de se reunir em casa. Comprar umas cervejas, ficar ouvindo música e trocando ideias” (Erikson, 20 anos). Desse modo parece que o convívio entre os diferentes é bastante limitado entre esses jovens que ora estão nas redes sociais, ora no grupo de amigos da igreja ou em casa. As pautas políticas e a conquista de direitos por parte dos grupos LGBTTQIA+ está em contraponto à defesa da família nuclear. O combate a “gayzificação” ou à “ditadura gay” é uma preocupação constante. “O senhor acha normal um cara andar de mãos dadas com outro cara na rua? ”, me pergunta um dos jovens. A contraposição entre família e gays cria um par dicotômico que aponta o universo LGBTTQIA+ como o inimigo da família. “Eu quero ter minha família. Ter filhos. Aí eu posso estar na rua ou em outro lugar e minha filha ou filho ver dois homens se beijando. Isso não tá certo” (Marcos, 23 anos). Indagado por mim por que isso não está certo ele responde: Porque não é assim que Deus quer! Outro jovem pondera a questão afirmando que “eu não vejo problema em o cara ser gay. Eu tenho amigo gay. Eu só acho que não precisa ficar se catando na rua ou em qualquer lugar. Nem a gente faz isso. Por que eles têm que fazer? ”. De certo modo, os depoimentos apontam certo pânico moral propiciado por uma perspectiva desviante do comportamento do universo LGBTTQIA+. “Se o cara é gay, mas fica de boa não tem problema. Agora se ele quiser ficar defendendo a ideologia gay aí não dá” (Gabriel, 19 anos). O racismo, embora seja um fenômeno estrutural na sociedade brasileira, é negado por esses jovens. Apresentando-se nos moldes assinalados por Florestan Fernandes (1975) como um “preconceito reativo”. Ou seja, os jovens manifestam certo preconceito de ter preconceito que, no entanto, não os livra de serem preconceituosos. “Veja bem, eu sou negro, certo? Mas eu nunca senti preconceito. Tudo depende de como você saber se colocar” (Tiago, 24 anos). Perguntado como que é isso de “saber se colocar” o rapaz diz que “é não ficar posando de vítima. De coitado. Eu faço por onde. Não tem essa de racismo comigo”. Um detalhe chama a atenção nesses jovens: o fascínio pelas insígnias militares. Mesmo sem fazer parte das forças armadas alguns ostentam símbolos do exército compondo seu estilo, tais como camisetas pretas com o símbolo do exército ou roupas camufladas. Em seus perfis sociais há aqueles que tem como página de rosto fotos com roupas militares e dizeres de apoio à ditadura militar instaurada com o golpe de 1964. A uso de armas de fogo e a defesa da flexibilização da aquisição e posse de armamentos é um tema caro ao conservadorismo/regressismo brasileiros e central no discurso do candidato vencedor das últimas eleições. No entanto, a posse de armas não é uma unanimidade entre os jovens presentes em meu ambiente de pesquisa. Rapazes e moças divergem quanto à posse e a pertinência do porte como elemento de defesa. Segundo alguns jovens emulando o discurso da flexibilização da posse de armamentos “quem não tem arma é o cidadão comum. Os bandidos têm acesso fácil às armas e, então, eles sabem que não vão encontrar dificuldade. Se eles soubessem ou tivessem receio de que quem eles vão assaltar pode estar armado eles não iam se arriscar”. Nesse quesito as mulheres são mais prudentes e ponderam o efeito surpresa, “a dificuldade de reagir se um bandido vem te assaltar”. “Eu não vejo como uma arma vai me proteger. Pelo contrário ela pode até ser mais perigosa. Tipo numa discussão boba a pessoa usar a arma pra se garantir e acabar fazendo uma besteira ” (Amanda, 23 anos). A percepção da insegurança entra no rol de sentimentos que aponta um mundo de lugares trocados. “Hoje bandido tem mais direitos que a gente de bem” (Lucas, 27 anos). Ciosos e defensores de um mundo hierarquizado que veem como diluído esses jovens compreendem a sociedade e a política por meio do estabelecimento de uma série de pares binários. Desse modo a “gente de bem” se opõem aos bandidos, vagabundos e no âmbito estritamente da política ao “pessoal da esquerda”. A defesa da ordem é recorrentemente acionada como elemento que estaria “faltando hoje em dia”. Noções como respeito e “se dar ao respeito” são recorrentemente acionadas. “Hoje ninguém respeita nada. Nem pai, nem mãe, nada”, diz uma jovem seguida por uma amiga que afirma: “Nem as mulheres se dão ao respeito. Eu fico observando essas meninas que ficam bebendo, farreando. Depois acontece alguma coisa elas vão reclamar. Vão reclamar com quem se não se dão ao respeito”? (Estela, 22 anos). Ordem e respeito compõem um universo simbólico que justifica a necessidade de controle e se necessário a atuação, mesmo que truculenta, da polícia em face de qualquer evento que corresponda à quebra das normas. Essas noções também servem para alimentar um imaginário que vê nas forças armadas a instituição que melhor representa a lisura, a correção quanto aos costumes e a possibilidade de “dar um jeito no país”. Como diz um rapaz: “Eu sou a favor de uma intervenção militar. Pra pôr ordem na bagunça. O país tá muito zoado” (Marcos, 23 anos). Da perspectiva deste grupo de interlocutores um elemento que contribui para o estado geral de desordem ou de descaracterização do país é um conjunto de manifestações abarcado pela noção de “politicamente correto”. Essa noção comporta todo tipo de ação ou manifestação que inibi certas atitudes que fazem parte da norma. A discussão em torno desse elemento coloca certa percepção de cerceamento da liberdade de expressão e o ressentimento por não “poder falar o que se pensa” ou ser jocoso em relação a negros, gays, índios, enfim com pessoas e grupos que não se coadunam com o perfil valorizado e reconhecido como hegemônico. “Não pode mais falar nada que o pessoal já cai de pau. Não tem nada a ver isso. Eu tenho amigo gay e não posso fazer uma brincadeira com ele que sempre tem alguém pra olhar meio torto” (Henrique, 23 anos). “A mesma coisa se tu faz uma brincadeira com alguém que é escurinho”, diz Aline, (22 anos). A noção de brincadeira é sempre acionada nos casos em que se discute a convivência entre os diferentes. “Então não pode mais brincar? ” Essa noção dispõe sobre certos comportamentos no quais impera a permissividade no trato com o outro. A brincadeira é sempre proferida de modo jocoso salientando alguma característica, em muitos casos socialmente estigmatizante, daquele sobre o qual se faz o comentário. Mesmo que o comentário seja ofensivo, que seu conteúdo seja racista, homofóbico, misógino etc, na brincadeira a ofensa se transmuta aos olhos daqueles que a defendem por ser algo que não corresponde àquilo que “a gente pensa. É só brincadeira”. A ideia envolvida na noção de brincadeira é que se pode dizer qualquer coisa porque ela promove certo deslocamento do lugar ocupado pelos interlocutores de modo que se pode falar o que se pensade modo irresponsável sem sofrer represálias. Esse deslocamento aponta para definições no âmbito do próximo e do distante estabelecendo ou restabelecendo as hierarquias sociais (DA MATTA, 1997). Aquela frase que poderia ser ofensiva para alguém distante torna-se algo representativo da capacidade de contornar as hierarquias sociais, as aproximações e distanciamentos que por meio do acionamento de expressões jocosas faz transmutar o próximo em distante e vise versa. “É claro que eu não vou brincar com alguém que eu não conheço, mas qual o problema de fazer uma brincadeira com um amigo se ele é preto ou gay, por exemplo? ” (Anderson, 25 anos). Análoga ao “jeitinho” (BARBOSA, 1992) a brincadeira se apresenta como um elemento da cultura brasileira que em face do desconforto com a diferença é acionado como mecanismo que visa minimizar as tensões sociais oriundas das dificuldades em conviver com a diferença social. O antônimo da brincadeira é o que esses jovens denominam como “politicamente correto”, noção que para esses jovens traz uma série de limitações ao comportamento. “Agora tudo é “politicamente correto. Não pode falar mais nada que já caem de pau. Esse negócio enche o saco” (Marisa, 26 anos). Tido com o antípoda da “brincadeira” o “politicamente correto” é sempre lembrado como “coisa da esquerda”. Toda manifestação que tenha por orientação o respeito à diferença, a defesa de direitos e a interseção de manifestações ofensivas a grupos vulneráveis é classificada como politicamente correto. Enquadra-se nesse grupo a defesa dos direitos humanos. O grupo de jovens que eu abordei nessa pesquisa estabelecem poucas relações cotidianas com os grupos de direita no sentido de terem vínculos orgânicos como participarem de partidos políticos de extrema direita ou de ações planejadas por grupos extremistas. Além do forte vínculo religioso, apontado acima, o meio de informação e formação política são blogs e chats de grupos como Movimento Brasil Livre, Direita Foz, Direita Paraná entre outros. “Eu acompanho os blogs e coisas que o pessoal envia pra mim. Foi assim que eu percebi que eu sempre fui de direita. Só que eu não sabia. Fui vendo o que eles postavam e aí eu vi que eu pensava igual” (Matheus, 22 anos). Manifestando certa dubiedade quanto ao seu posicionamento político um jovem me diz que “eu penso que eu sou de direita, mas, ao mesmo tempo, eu penso nos direitos dos outros. Então eu não sei bem se eu sou de direita ou de esquerda” Alisson, 23 anos). O sonho desse rapaz é ser empresário e em sua representação “querer ser empresário me faz um cara de direita”. Diante da ponderação de que há empresários que podem ser considerados progressistas ou até mesmo de esquerda ele suspira e diz: “Bom, então eu devo ser isso”. A perspectiva de “ser empresário” encontra eco em um conjunto de manifestações que interseccionam o mundo do trabalho na vida desses jovens. Alguns dedicam-se a atividades intermitentes e sazonais no comércio e na prestação de serviços compreendendo-se como autônomos. Ainda que, em boa medida, estejam dedicados à “viração” imaginam uma ascensão social que lhes encaminhará para o empresariado. Dessa percepção deriva certa compreensão de que a flexibilização dos direitos trabalhistas, por exemplo, os beneficia pois eliminaria empecilhos à realização de seus negócios. A ética do trabalho e da mobilidade social ascendente pelo esforço pessoal contribui para a defesa do mérito pessoal em detrimento da defesa de políticas públicas voltadas à população necessitada. “Eu acho que tem que se esforçar. Não adianta ficar reclamando, botando a culpa do governo. Tem que ir à luta e não esperar ajuda de ninguém” (Marcelo 23 anos). Considerações finais: Estudos recentes vêm se dedicando ao fenômeno dos grupos de jovens ou movimentos sociais conservadores. A etnografia longitudinal desenvolvida pelas antropólogas Machado & Scalco com jovens que se identificam como bolsonaristas nas periferias de Porto Alegre aponta um deslocamento dos jovens outrora próximos ao ideário de esquerda, mais apropriadamente petista para as hordas bolsonaristas. O trabalho destas antropólogas aponta transmutações e alterações no apoio às pautas conservadoras desse eleitorado jovem especialmente quando estratificado por gênero. Assim entre os jovens impera certo ressentimento especialmente frente ao feminismo e a mudança do papel da mulher na sociedade. Por outro lado, as jovens tendem a ter posturas mais moderadas a respeito de várias das pautas caras ao regressismo brasileiro. Cotejando o trabalho supracitado com os resultados preliminares de meu universo de pesquisa eu arriscaria afirmar que parte dos jovens com os quais estabeleci relações e que se declaravam “de direita” podem alterar sua posição, transmutá-la para outras perspectivas, ponderar escolhas, voltar atrás, reconhecer escolhas e equívocos. As pesquisas de Machado & Scalco supracitadas apontam mudanças nas percepções e perspectivas políticas de jovens das periferias de Porto Alegre. Estes teriam, segundo as autoras, transitado de uma posição política à esquerda do espectro político para posições à direita, notadamente bolsonaristas. Talvez estejamos defronte de uma onda passageira a ser compreendida pelas ciências humanas. As posições regressivas de parcelas das juventudes brasileiras podem estar sinalizando uma resposta às provas (MARTUCELLI, 2007a; 2007b) que esses segmentos juvenis vem enfrentando no mundo contemporâneo, cuja característica é a centralidade no sujeito como ator de sua experiência à revelia das instituições que não conseguem responder aos seus papéis sociais (DUBET, 1994). No entanto, é necessário atentar para as particularidades da realidade brasileira. Muitos jovens não experimentaram os frutos oriundos das políticas públicas desenvolvidas nos governos progressistas. Pelo contrário, seguiram em empregos precários e mal remunerados e quando cursaram o ensino superior o fizeram em instituições que lhes ofertaram um ensino de baixa qualidade que não lhes permitiu galgar posições de prestígio na rígida estrutura social brasileira (ALMEIDA, 2014). Finalizando, acredito que a noção de “deriva” desenvolvida por Matza (2014) pode contribuir para o entendimento das percepções e posições políticas dos segmentos regressivos das juventudes brasileiras. Ao desenvolver essa noção Matza nos aponta para o caráter contingente e transitório das escolhas juvenis em relação ao universo das legalidades e da delinquência. Por óbvio os grupos políticos regressivos não se filiam, necessariamente, ao universo delinquente. Embora alguns grupos encontrem suas referências no mundo das ilegalidades. Parece-me promissor, ou pelo menos alentador, que ao nos debruçarmos sobre os grupos de jovens conservadores ou regressistas, compreender suas posições e percepções políticas como manifestações cambiantes, transitórias e contingenciais. Parafraseando WRIGHT MILLS (1975) eu diria que trabalhar com os jovens e suas inquietudes e posições políticas exige mais do que imaginação sociológica, é imperativo que se tenha esperança. Bibliografia: ALMEIDA, W. M. ProUni e o ensino superior privado lucrativo em São Paulo: uma análise sociológica. São Paulo: Musa/FAPESP, 2014. BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros. São Paulo: Editora Campus, 1992. DA MATTA, R. O que faz o brasil, Brasil. São Paulo: Editora Rocco, 1997. DUBET, F. Sociologie de l’expérience. Paris, Ed. Du Seuil, 1994. FERREIRA, E. C. Think tanks da nova direita e suas estratégias de cooptação: o caso do programa Imil (Instituto Millenium) na sala de aula. In: Critica Educativa: Programa de Pós-Graduação em Educação UFSCar. Campus Sorocaba: 2018. LEVITSKY, S & ZIBLATT, D. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2018. LOUZANOP. & MORICONIG. Uma guinada equivocada na agenda da educação. In : Vários Autores. Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. MACHADO, R. P. & SCALCO, L. M. Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista. In: GALLEGO, E. S. (org.) O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2018. MANNHEIM, K. El problema de las generaciones. Revista Reis, N° 62, 1993. MARTUCCELLI, D. Gramáticas del individuo. Buenos Aires: Losada, 2007a. _____. Cambio de rumbo: La sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones, 2007b. MATZA, D. Delicuencia y deriva: como e por qué algunos jovenes llegan a quebrantar la ley. Buenos Aires, Siglo Viinteuno Editores, 2014. WRIGHT MILLS, C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. MOUNK Y. O Povo Contra a Democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. POZZO, A. O. Paraguay y sus fronteras. Apuntes sobre culturas em movimento em territórios que se reconfiguram. In: PEREIRA, D. A. (org.) Cartografia Imaginaria da tríplice fronteira. São Paulo: Dobra Editorial, 2014. RUCIMAN, D. Como a Democracia chega ao fim. São Paulo: TODAVIA, 2018. SCHWARCZ, L. M. 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