Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Resumo parasitologia – Livro Parasitologia Contemporânea – Marcelo Urbano Kézia Signer Santos As leishmanioses constituem um grupo de doenças causadas por protozoários do gênero Leishmania,. Mais de 20 espécies nesse gênero foram descritas como agentes etiológicos de doenças humanas. As diferentes formas clínicas podem ser agrupadas em leishmaniose tegumentar e visceral. As leishmanioses são endêmicas em 88 países, distribuídos na América, na África, na Ásia e na Europa, com cerca de 2 milhões de casos novos a cada ano. Nas últimas décadas, a epidemiologia da leishmaniose tem-se alterado no Brasil. Com frequência cada vez maior, identificam- se novos focos de transmissão em áreas urbanas, decorrentes da adaptação do inseto vetor a esses ambientes. Apesar de ser uma doença de notificação compulsória, o caráter crônico das leishmanioses, as dificuldades no diagnóstico e a ocorrência de casos em regiões remotas do país fazem crer que exista grande subnotificação. A maioria das espécies de Leishmania tem como hospedeiros vertebrados naturais diversos mamíferos silvestres ou domésticos, sendo o homem um hospedeiro acidental. Os animais mais frequentemente infectados são os roedores e os canídeos, os principais reservatórios do parasito. Classicamente, o homem adquire a doença ao adentrar áreas silvestres onde o ciclo de Leishmania ocorre sem prejuízo para a saúde dos animais ou dos insetos vetores. A principal espécie causadora de leishmaniose tegumentar no Brasil, tanto em número de casos como em distribuição geográfica, é Leishmania (Viannia) braziliensis. Outras espécies que também ocorrem no Brasil são Leishmania (Leishmania) amazonensis e Leishmania (Viannia) guyanensis. Um menor número de casos, especialmente na Amazônia, é atribuído às espécies Leishmania (Viannia) shawi, Leishmania (Viannia) naiffi e Leishmania (Viannia) lainsoni. A leishmaniose visceral, por outro lado, é causada no Brasil pela espécie Leishmania (Leishmania) infantum chagasi. O ciclo de vida dos protozoários do gênero Leishmania é heteroxeno, envolvendo um hospedeiro mamífero e um inseto. Os insetos vetores são pequenos dípteros que pertencem aos gêneros Phlebotomus, na Europa, no Oriente Médio, na Ásia e na África, e Lutzomyia e, em menor escala, Psychodopygus, nas Américas. No Brasil, os flebotomíneos são conhecidos como mosquito palha, birigui, cangalha ou tatuíra, dependendo da região. As leishmânias são transmitidas ao hospedeiro mamífero pela picada do flebotomíneo fêmea. Enquanto parasitam o inseto vetor, sobrevivem sob a forma promastigota, alongada e com um único flagelo, que emerge na região anterior da célula. A infecção do flebotomíneo fêmea ocorre mediante a ingestão de sangue contaminado de um hospedeiro mamífero. Os parasitos ingeridos junto com o sangue diferenciam-se rapidamente em formas promastigotas chamadas de procíclicas, que sobrevivem no meio extracelular e passam a multiplicar-se por divisão binária. 2 Resumo parasitologia – Livro Parasitologia Contemporânea – Marcelo Urbano Kézia Signer Santos Esses protozoários nutrem-se do conteúdo intestinal do inseto, utilizando principalmente a glicose e a prolina como fontes de carbono. À medida que os nutrientes no tubo digestivo do inseto escasseiam, ocorre uma diferenciação dos promastigotas procíclicos em promastigotas metacíclicos. Essa diferenciação traduz-se em mudanças morfológicas, como o aumento da extensão do flagelo e o encurtamento do corpo do parasito, bem como em alterações fisiológicas. O promastigota metacíclico é incapaz de multiplicar-se, devendo ser inoculado no mamífero para dar continuidade ao ciclo. Os promastigotas metacíclicos são injetados no mamífero, pela picada do inseto, misturados à saliva e ao gel secretado anteriormente, ambos representando fatores importantes para o estabelecimento da infecção. Outra característica importante do promastigota metacíclico é sua capacidade de resistir à lise por moléculas do sistema complemento, uma das primeiras linhas de defesa do hospedeiro mamífero. Entretanto, o complemento é ativado pelo parasito e por fatores inflamatórios presentes na saliva do inseto. Os produtos da cascata do complemento depositam-se na superfície do promastigota, opsonizando-o. Desse modo, o promastigota metacíclico torna-se mais "apetitoso" para a fagocitose por células especializadas. Dois tipos celulares principais no mamífero são responsáveis por essa fagocitose precoce: leucócitos polimorfonucleares e macrófagos. Um grande número de neutrófilos é atraído precocemente para o sítio de inoculação dos parasitos, e são capazes de fagocitar os promastigotas. Promastigotas fagocitados por neutrófilos são, em grande parte, destruídos no interior do fagossomo. Os promastigotas de Leishmania que conseguem instalar-se em compartimentos não líticos do neutrófilo retardam o programa de apoptose e prolongam a vida da célula hospedeira, tornando possível que os parasitos permaneçam viáveis durante as primeiras horas da infecção, enquanto os macrófagos e as células dendríticas são progressivamente atraídos para o local. Em um segundo momento, os neutrófilos parasitados transferem os parasitos para o interior de macrófagos, por serem fagocitados por eles ou por liberarem os parasitos nas vizinhanças de macrófagos que chegam ao sítio da lesão. Os macrófagos são, de fato, a célula hospedeira por excelência para as leishmânias. O parasito fagocitado permanece envolto pela membrana que forma o fagossomo ou vacúolo parasitóforo. Como consequência da formação do vacúolo, são a seguir recrutados lisossomos que se fundem ao fagossomo, despejando em seu interior seu conteúdo ácido e rico em enzimas proteolíticas. Os promastigotas sobrevivem no interior do vacúolo fagolisossômico, neutralizando seu conteúdo proteolítico graças à liberação, a partir da membrana plasmática, de proteases de superfície que serão responsáveis pela inativação das enzimas lisossômicas. O pH ácido remanescente e o aumento drástico de temperatura ao passar do inseto (temperatura ambiente) para o mamífero (em torno de 37ºC) funcionam como sinais desencadeadores de uma nova transformação do parasito: eles passam agora ao estágio amastigota. Os amastigotas, diferentemente dos promastigotas, são formas de vida intracelulares. Perfeitamente adaptados ao ambiente do vacúolo fagolisossômico, multiplicam-se por divisão binária, até que a quantidade de amastigotas intracelulares seja suficiente para romper a célula hospedeira. Nesse momento, os amastigotas liberados no meio extracelular podem ser fagocitados por outros macrófagos ou podem migrar, por via hematogênica, a outros órgãos do hospedeiro mamífero. Promastigotas e amastigotas de Leishmania utilizam um mecanismo que mimetiza a sua própria apoptose para escapar das defesas do hospedeiro. Assim, parte da população de promastigotas metacíclicos no inseto vetor, assim como amastigotas recuperados de lesão, tem a propriedade de expor fosfatidilserina (PS) em sua superfície, que é típica de células em apoptose e induz a fagocitose dos parasitos. A fagocitose mediada por esses receptores modula a resposta da célula hospedeira, induzindo citocinas anti-inflamatórias e inibindo a resposta oxidativa, como ocorre quando o macrófago fagocita uma célula em apoptose. 3 Resumo parasitologia – Livro Parasitologia Contemporânea – Marcelo Urbano Kézia Signer Santos Embora os principais reservatórios de L. (V.) braziliensis e L. (L.) amazonensis sejam roedores silvestres, esses parasitos também infectam animais domésticos e peridomésticos, como cães, gatos e equinos. L. (L.) infantum chagasi é encontrada em reservatórios silvestres, como raposas e roedores, mas também acomete cães, considerados um importante reservatório no peridomicílio e em regiões urbanas.Na maior parte dos casos, o local de inoculação do parasito, após a picada do flebotomíneo, é difícil de ser reconhecido. Em algumas circunstâncias, uma pápula ou mesmo uma pequena pústula pode se desenvolver, com duração de alguns dias. Após um período de incubação de duração incerta (provavelmente em torno de 2 a 8 semanas), podem surgir sinais e sintomas de leishmaniose. No entanto, muitas infecções por Leishmania são completamente assintomáticas. Leishmaniose tegumentar A forma mais comum é chamada de leishmaniose tegumentar localizada ou cutânea. Na região próxima à inoculação dos parasitos desenvolve-se uma lesão cutânea, inicialmente papular, que pode ou não ser seguida de lesões satélites ou secundárias. A maior parte das lesões cutâneas na leishmaniose assume a forma ulcerada.Considera-se uma lesão típica aquela com bordas elevadas e infiltradas, 4 Resumo parasitologia – Livro Parasitologia Contemporânea – Marcelo Urbano Kézia Signer Santos com fundo granular, indolor e não pruriginosa, lembrando o topo de uma "cratera de vulcão". Infecções bacterianas secundárias podem ocorrer, levando à formação de uma secreção purulenta, com edema, rubor e calor locais. Podem ocorrer também outras apresentações, como lesões polipoides, nodulares, verrucoides e impetigoides. A progressão da doença acarreta aumento de diâmetro da úlcera, às vezes com extensões laterais e formação de lesões satélites. Pode haver linfadenopatia regional. Em infecções por L.(V.) guyanensis, é possível observar linfangite nodular. Após uma evolução de muitos meses, a(s) úlcera(s) pode(m) cicatrizar espontaneamente, com resolução da lesão cutânea. Mesmo após a cicatrização, espontânea ou após a quimioterapia específica, parasitos viáveis são frequentemente encontrados no tecido subcutâneo e em linfonodos. Uma segunda forma de doença tegumentar, geralmente associada a infecções por L. (L.) amazonensis, é a leishmaniose cutaneodifusa. Nesse caso, as lesões demoram muito para ulcerar e evoluem inicialmente como nódulos. Essa forma é rara e extremamente grave. Os pacientes desenvolvem múltiplas lesões, em todo o tegumento, e eventualmente têm perda de tecido nas extremidades, devido às lesões crônicas que determinam necrose tecidual. A terceira forma clássica de leishmaniose tegumentar é a cutaneomucosa. Acredita-se que, no Brasil, esta apresentação clínica esteja associada perferencialmente a infecções por L. (V.) braziliensis. As lesões em mucosas oral e nasal podem surgir muitos anos após o aparecimento das lesões cutâneas, mas também podem precedê-las ou mesmo surgir sem manifestações cutâneas. Essas lesões mucosas são encontradas mais frequentemente no palato, nos lábios, nas cavidades nasais, na faringe e na laringe. São lesões infiltradas, indolores, que eventualmente ulceram, levando à perda tecidual e a perfurações, com desabamento do septo nasal, formação de fístulas oronasais etc. Leishmaniose visceral A leishmaniose visceral tem início insidioso, com febre alta, porém irregular. O quadro febril é acompanhado de astenia, mal-estar geral e perda de peso. No exame físico são observadas hepatomegalia e esplenomegalia, que podem alcançar grandes dimensões; nestes casos, sinais de desnutrição são também evidentes. Os exames laboratoriais inespecíficos mostram anemia, leucopenia e plaquetopenia intensas, assim como hipergamaglobulinemia. A leishmaniose visceral pode ser uma das doenças oportunistas associadas à síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). Nessas circunstâncias, o quadro clínico é muito variável e atípico; em geral, a evolução da doença é muito grave e a resposta ao tratamento muito precária, quando comparadas a infecções em hospedeiros imunocompetentes. Os métodos mais frequentemente utilizados para o diagnóstico de leishmaniose humana tomam como base a demonstração de formas amastigotas no tecido infectado. Na leishmaniose tegumentar, o material a ser examinado é obtido por biopsia, punção ou escarificação de lesões cutâneas ou mucosas. Na leishmaniose visceral, o material é obtido por aspiração da medula óssea ou, mais raramente, do fígado ou do baço. Uma alternativa para aumentar a sensibilidade de detecção do exame direto é a utilização de parte do material para a inoculação de culturas in vitro ou a inoculação em animais. Os meios de cultura utilizados imitam as condições existentes no inseto vetor e possibilitam que os amastigotas se diferenciem em promastigotas e se multipliquem. O material obtido a partir desses promastigotas de cultivo pode, então, ser utilizado para 5 Resumo parasitologia – Livro Parasitologia Contemporânea – Marcelo Urbano Kézia Signer Santos tipagem do parasito, mediante determinação de padrões de migração de isoenzimas ou reação com anticorpos monoclonais. Outra alternativa diagnóstica de alta sensibilidade é a detecção de DNA do parasito no material de punção ou biopsia mediante reações de polimerização em cadeia. Métodos imunológicos podem ser utilizados como auxiliares no diagnóstico. Um teste classicamente utilizado em pacientes com leishmaniose tegumentar é a intradermorreação de Montenegro, um teste de hipersensibilidade tardia. A positividade da reação de Montenegro é alta em pacientes com leishmaniose cutânea, exceto naqueles infectados por L. (L.) amazonensis. Essa reação é negativa em pacientes com leishmaniose visceral ativa, tornando-se positiva após o tratamento bem-sucedido. O teste de Montenegro também é positivo em indivíduos com infecção assintomática ou em indivíduos curados de leishmanioses pregressas. A detecção de anticorpos circulantes específicos também pode ser feita, mas a utilização de antígenos totais de promastigotas em técnicas sorológicas clássicas, como a reação de imunofluorescência indireta e o imunoensaio enzimático, resulta em grande proporção de resultados falso-positivos. Observam-se reações cruzadas em pacientes com doença de Chagas, tuberculose, sífilis e malária, entre outras. Também vêm sendo utilizados testes sorológicos rápidos de imunodifusão e aglutinação (DAT) para o diagnóstico em zonas endêmicas, mas esses métodos ainda estão em fase de teste em nosso país. O diagnóstico da infecção em cães em áreas endêmicas também merece atenção. O método mais utilizado na prática para a detecção de anticorpos específicos é a reação de imunofluorescência indireta, que oferece baixas sensibilidade e especificidade. Os medicamentos de primeira escolha na terapêutica das leishmanioses são os antimoniais pentavalentes. O tratamento com antimoniais pentavalentes pode provocar efeitos colaterais, por vezes graves, como febre, mialgia, hepatite, pancreatite e arritmias cardíacas. O medicamento de segunda escolha é a anfotericina B, também administrada por via intravenosa e capaz de induzir toxicidade grave, especialmente nefrotoxicidade. A pentamidina é um medicamento alternativo, utilizado principalmente nas infecções por L. (V.) guyanensis, que não respondem bem aos antimoniais. Recentemente, foi aprovado o primeiro medicamento de uso oral para o tratamento das leishmanioses. Trata-se da miltefosina, introduzida inicialmente na Índia para o tratamento da leishmaniose visceral causada por L. (L.) donovani. Por ser teratogênica, a miltefosina não pode ser utilizada em gestantes. Os flebotomíneos são insetos pequenos, com 2 a 3 mm de comprimento, muito pilosos, que não fazem barulho ao voar. Encontram-se perto de habitações humanas e multiplicam-se próximos a restos orgânicos, como material de decomposição de folhas, restos alimentares, lixo etc. Os ovos são encontrados em tocas de animais, no tronco de árvores, em orifícios nas paredes, em abrigos de animais peridomésticos como galinheiros e estábulos, ou próximos a depósitos de lixo. Os adultos não são capazes de voarlongas distâncias; geralmente, são mais ativos ao amanhecer e ao entardecer, sendo que apenas as fêmeas se alimentam de sangue. Para a leishmaniose tegumentar clássica de ciclo silvestre, no interior ou nas proximidades de regiões de mata, a profilaxia da infecção só é possível por meio de métodos de proteção individual, como o uso de repelentes, janelas teladas e mosquiteiros impregnados com inseticidas. 6 Resumo parasitologia – Livro Parasitologia Contemporânea – Marcelo Urbano Kézia Signer Santos No caso da leishmaniose visceral, recomendam-se em geral o tratamento dos doentes, a aplicação de inseticidas de efeito residual em habitações, utilização de mosquiteiros impregnados com inseticidas. Além disso, passou a ser recomendada a utilização de coleiras impregnadas com repelentes em cães domésticos, com a intenção de evitar a infecção do animal. Não existem vacinas contra leishmaniose para uso humano.
Compartilhar