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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck Objetivos 1- Debater sobre a epidemiologia, etiologia, fatores de risco, fisiopatologia (ciclo), manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento da leishmaniose tegumentar. (*leishmaniose difusa e a relação entre tegumentar e visceral). Leishmaniose Tegumentar ↠ A leishmaniose tegumentar (LT), também denominada úlcera de Bauru ou ferida brava, é uma doença infecciosa não contagiosa, com grande impacto à saúde pública (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ A leishmaniose tegumentar americana é uma doença de evolução crônica que acomete a pele e as mucosas do nariz, da boca, da faringe e da laringe. É causada por protozoários do gênero Leishmania e transmitida por insetos conhecidos genericamente como flebotomíneos (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ As leishmanioses são antropozoonoses consideradas um grande problema de saúde pública e representam um complexo de doenças com importante espectro clínico e diversidade epidemiológica (BRASIL, 2017). OBS.: As observações epidemiológicas iniciais levaram os pesquisadores a denominá-la “leishmaniose americana das florestas”, em alusão ao fato de que sua transmissão se associava ao ambiente silvestre (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). IMPORTANTE: Apesar de ser uma zoonose, a moléstia acomete milhares de indivíduos a cada ano, deixando como resultado um vasto espectro de formas clínicas, abrangendo desde infecções sem sintomas até as mutilações graves que ocorrem nas formas mucosas (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). TIPOS DE LEISHMANIOSE TEGUMENTAR: Estão incluídos nesse grupo a leishmaniose cutânea (LC), a mucocutânea (LMC) e a leishmaniose cutânea difusa (LCD). A LC é a forma de leishmaniose que resulta em lesões cutâneas limitadas, ulcerosas ou não. A LMC é a aquela em que surgem lesões ulcerosas destrutivas nas mucosas do nariz, da boca e da faringe. A forma cutânea difusa (LCD), não-ulcerosa, manifesta-se em indivíduos anérgicos, ou surge mais tardiamente, naqueles que foram tratados de calazar (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). EPIDEMIOLOGIA ↠ Não existem, nas Américas, dados seguros para se avaliar o número de pessoas atingidas pela doença. No Brasil, as estatísticas oficiais têm registrado pelo menos 35 mil novos casos por ano, número este que não traduz a realidade, devido às deficiências no sistema de notificação das doenças transmissíveis (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ Além disso, a assistência médica precária nas zonas rurais faz com que muitos doentes deixem que o mal se cure espontaneamente, passando sem registro (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ A doença é endêmica no continente americano (do sul dos EUA ao norte da Argentina, com exceção do Chile, Uruguai e a maior parte das ilhas do Caribe) e no Velho Mundo (região mediterrânea e outras partes da Ásia e da África), com surtos epidêmicos esporádicos (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Estima-se que 0,7 a 1 milhão de novos casos de leishmaniose tegumentar ocorra a cada ano, 90% deles no Afeganistão, Paquistão, Síria, Arábia Saudita, Argélia, Irã, Brasil e Peru (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Em 2018, foram registrados 16.432 casos autóctones de LTA no Brasil, 91% deles em pessoas com idade superior a 10 anos e 74% em homens (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ No Brasil, a leishmaniose tegumentar vem sendo registrada em todas as regiões, inclusive no Sul do país, onde predomina no estado do Paraná. As populações rurais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste pagam maior tributo à moléstia, que assola extensas áreas de colonização recente, com florestas ainda abundantes. Pelo menos 75% dos casos registrados no país procedem das regiões Norte e Nordeste. No Nordeste, a endemia persiste também em áreas de colonização antiga, especialmente nas zonas serranas do Ceará, da Paraíba e da Bahia (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). FATORES DE RISCO ↠ A expansão da LTA está relacionada com intervenções do homem no meio ambiente pela necessidade de novos espaços habitacionais em função do crescimento urbano e de migrações forçadas por conflitos, mormente na Ásia, ou para a expansão de atividades econômicas, que implicam em desmatamentos APG 26 – “O ÚLTIMO ZUMBI” 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck e exploração de florestas primárias. Tais ações terminam por aumentar a exposição de hospedeiros intermediários e de humanos ao vetor e por adaptar ciclos de transmissão a ambientes peridomésticos (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ A infecção por leishmânias, como nas infecções por outros organismos intracelulares (micobactérias, Histoplasma, Toxoplasma e tripanossomos), é exacerbada nas condições que interferem na função das células T, como a AIDS (ROBBINS & COTRAN). ETIOLOGIA ↠ É causada por protozoários flagelados do gênero Leishmania, parasito pertencente à família Trypanosomatidae, transmitido aos humanos pela picada das fêmeas de flebotomíneos do gênero Lutzomyia (Américas) ou Phlebotomus (Velho Mundo)., cujo nome popular é “mosquito-palha” ou “birigui” (SIQUEIRA- BATISTA, 2020). VETORES DAS LEISHMANIOSES ↠ Os insetos vetores das leishmanioses pertencem ao filo Arthropoda São conhecidos por flebotomíneos, ou flebótomos, e só estes apresentam espécies com importância em medicina humana e/ou veterinária (FERREIRA, 2020). ↠ Nas Américas, os flebotomíneos estão predominantemente associados a matas e florestas. No Brasil os flebotomíneos têm nomes regionais como mosquito-palha, birigui, cangalhinha, tatuquira, asa-dura, asa-branca ou anjinho (FERREIRA, 2020). ↠ Só as fêmeas são hematófagas e telmofágicas, isto é, durante a refeição sanguínea fazem pequenos movimentos de vaivém com suas peças bucais, dando origem a micro-hematomas na derme do vertebrado. O sangue coletado nesse local não coagula devido às enzimas que a saliva de tais insetos contém (FERREIRA, 2020). ↠ A atividade dos adultos é principalmente crepuscular e/ou noturna. As larvas são saprófagas e fitófagas, e as pupas não se alimentam. O ciclo de vida, desde a postura até a eclosão dos adultos, corresponde a um período de cerca de 37 a 76 dias a uma temperatura de 28°C e alimentação adequada. Quando a temperatura ambiente é de cerca de 18°C, o ciclo de vida é ainda mais longo: 116 a 165 dias. Abaixo de 12°C, os flebotomíneos cessam a sua atividade (FERREIRA, 2020). ↠ Em revisões recentes, leishmânias associadas a leishmaniose tegumentar no Brasil foram encontradas em 31 espécies de flebotomíneos, enquanto o parasito associado (FERREIRA, 2020). PROTOZOÁRIO ↠ Pelo menos 14 espécies de Leishmania causam a leishmaniose tegumentar no homem, ao passo que várias outras só foram encontradas em animais (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). OBS.: Causada por protozoários parasitas intracelulares obrigatórios, contendo cinetoplasto (cinetoplastídeos) (ROBBINS & COTRAN). ↠ Parasito intracelular obrigatório das células do sistema fagocítico mononuclear, com duas formas principais: uma flagelada ou promastigota, encontrada no tubo digestivo do inseto vetor, e outra aflagelada ou amastigota, observada nos tecidos dos hospedeiros vertebrados (BRASIL, 2017). OBS.: Reproduzem-se por divisão binária e apresentam duas formas evolutivas principais: a amastigota, que é imóvel, esférica, localizada nos tecidos do hospedeiro vertebrado, no interior dos macrófagos; e a promastigota, que é infectante, móvel, flagelada e localizada no tubo digestivo do vetor (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ No continente americano, as espécies de Leishmania mais associadas à leishmaniose tegumentar são L. braziliensis, L. mexicana e L. amazonensis, enquanto na Europa, na Ásia e na África predominam L. tropica, L. major e L. aethiopica (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ No Brasil, as principais espécies causadoras de LT são a L. braziliensis, com distribuição em todo o país, L. amazonensis, presente em áreas de florestas primáriase secundárias de todas as regiões do país, e L. guyanensis, restrita à região Norte. Na maioria dos casos, parece que a leishmaniose tegumentar é zoonótica (BOGLIOGO, 10ª ed.). CICLO BIOLÓGICO ↠ O ciclo biológico da Leishmania é heteroxeno (digenético), com dois hospedeiros, um vertebrado e outro invertebrado (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ O hospedeiro invertebrado, a fêmea do flebotomíneo, durante o repasto sanguíneo em animal infectado, ingere sangue contendo macrófagos com as formas amastigotas. Durante a passagem pelo intestino do vetor, ocorre a diferenciação em promastigotas e a multiplicação por divisão binária. O processo de metaciclogênese culmina na formação das promastigotas metacíclicas, que representam a forma infectante do parasito (SIQUEIRA- BATISTA, 2020). OBS.: Os parasitos ingeridos junto com o sangue diferenciam-se rapidamente em formas promastigotas chamadas de procíclicas, que sobrevivem no meio extracelular e passam a multiplicar-se por divisão binária. Esses protozoários nutrem-se do conteúdo intestinal do inseto, utilizando principalmente a glicose e a prolina como fontes de carbono. À medida que os nutrientes no tubo digestivo do inseto escasseiam, ocorre uma diferenciação dos promastigotas procíclicos em promastigotas metacíclicos. Essa diferenciação traduz-se em mudanças morfológicas, como o aumento da extensão do flagelo e o encurtamento do corpo do parasito, bem como em alterações fisiológicas. O promastigota metacíclico é incapaz de multiplicar-se, e deve ser inoculado no mamífero para dar continuidade ao ciclo (FERREIRA, 2020). OBS.: Cerca de quatro dias depois de se infectar, o inseto já pode transmitir o parasita a um novo hospedeiro. A infecção no flebotomíneo persiste ao longo de sua vida, perdurando por quatro a seis semanas, período em que o inseto pode se alimentar duas a três vezes (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). IMPORTANTE: Os promastigotas metacíclicos, agora livres no interior do tubo digestório, fazem então uma migração retrógrada até as porções anteriores do esôfago do inseto, onde passam a secretar fosfolipídios. Formam, assim, uma substância de consistência gelatinosa capaz de obstruir parcialmente a luz da válvula estomodeal, por onde deve ser conduzido o sangue ingerido no próximo repasto sanguíneo. Por isso, o flebotomíneo infectado precisa picar inúmeras vezes até atingir a saciedade, regurgitando saliva e porções desse material gelatinoso com parasitos a cada picada. Os promastigotas metacíclicos são injetados no mamífero, pela picada do inseto, misturados à saliva e ao gel secretado anteriormente, ambos representando fatores importantes para o estabelecimento da infecção (FERREIRA, 2020). ↠ Ao picar um hospedeiro suscetível, o vetor infectado poderá regurgitar os promastigotas metacíclicos, os quais, por fagocitose, são internalizados pelos macrófagos, reduzem de tamanho, perdem o flagelo e se transformam em amastigotas. Estes se multiplicam até o rompimento dos macrófagos, quando podem infectar outras células ou serem ingeridos pelo flebotomíneo, viabilizando a manutenção e o prosseguimento do ciclo (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). OBS.: O pH ácido remanescente e o aumento drástico de temperatura ao passar do inseto (temperatura ambiente) para o mamífero (em torno de 37°C) funcionam como sinais desencadeadores de uma nova 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck transformação do parasito: eles passam agora ao estágio amastigota (FERREIRA, 2020). IMPORTANTE: Nos mamíferos silvestres, as leishmânias causam pouco ou nenhum efeito patológico, caracterizando uma relação de equilíbrio entre o parasita e o hospedeiro; assim, muitos animais albergam amastigotas na pele e nas vísceras, sem qualquer sinal de doença. Hospedeiros acidentais, incluindo o homem, reagem intensamente à presença do invasor, resultando daí o aparecimento das lesões. Muitas vezes, porém, a infecção no homem é inaparente ou se manifesta sob a forma de lesão mínima. Além das características ligadas ao hospedeiro, fatores relacionados com a espécie parasitária concorrem para a gênese das diferentes formas clínicas da doença (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). CARACTERÍSTICAS DOS PROTOZOÁRIOS EM SUAS DIFERENTES FASES: Enquanto parasitam o inseto vetor, sobrevivem sob a forma promastigota, alongada e com um único flagelo, que emerge na região anterior da célula. O flagelo origina-se a partir do cinetoplasto, região especializada da única mitocôndria encontrada nesses parasitos. O cinetoplasto contém grande quantidade de DNA extranuclear, organizado em moléculas circulares: os maxicírculos, que apresentam genes que codificam principalmente enzimas mitocondriais, e os minicírculos, presentes em milhares de cópias e que dão origem aos RNA guias, pequenos transcritos responsáveis pelo fenômeno de edição de RNA. A edição de RNA, encontrada em diversos tripanossomatídeos, é o mecanismo pelo qual transcritos primários de diversos genes mitocondriais têm resíduos de uridina acrescentados ou removidos depois da transcrição. Nos promastigotas são também encontradas outras organelas citoplasmáticas presentes na maioria das células eucariotas, como o retículo endoplasmático, o complexo de Golgi e os lisossomos, além do núcleo. Entretanto, diferentemente do que ocorre em outros organismos superiores, a cromatina não se condensa durante a divisão celular dos promastigotas, e os cromossomos não podem ser visualizados individualmente. Os protozoários do gênero Leishmania contêm ainda glicossomos, organelas essenciais que participam da regulação metabólica necessária à adaptação a ambientes tão diversos quanto os encontrados nos diferentes hospedeiros (FERREIRA, 2020). FISIOPATOLOGIA ↠ Outra característica importante do promastigota metacíclico é sua capacidade de resistir à lise por moléculas do sistema complemento, uma das primeiras linhas de defesa do hospedeiro mamífero. Entretanto, o complemento é ativado pelo parasito e por fatores inflamatórios presentes na saliva do inseto. Os produtos da cascata do complemento depositam-se na superfície do promastigota, opsonizando-o. Desse modo, o promastigota metacíclico torna-se mais “apetitoso” para a fagocitose por células especializadas. Dois tipos celulares principais no mamífero são responsáveis por essa fagocitose precoce: leucócitos polimorfonucleares e macrófagos (FERREIRA, 2020). ↠ Um grande número de neutrófilos é atraído precocemente para o sítio de inoculação dos parasitos, graças à lesão mecânica causada pela picada e pela atividade inflamatória de componentes da saliva do inseto. Os neutrófilos são capazes de fagocitar os promastigotas inoculados e desempenham um papel importante na defesa inata. Promastigotas fagocitados por neutrófilos são, em grande parte, destruídos no interior do fagossomo. Normalmente os neutrófilos têm um período curto de vida, que termina pela entrada em apoptose. Os neutrófilos apoptóticos são então fagocitados por macrófagos (FERREIRA, 2020). ↠ Entretanto, parte dos neutrófilos que fagocitam promastigotas tem sua fisiologia alterada, tornando-se incapazes de destruir os parasitos. Os promastigotas de Leishmania que conseguem instalar-se em compartimentos não líticos do neutrófilo retardam o programa de apoptose e prolongam a vida da célula hospedeira, tornando possível que os parasitos permaneçam viáveis durante as primeiras horas da infecção enquanto os macrófagos e as células dendríticas são progressivamente atraídos para o local. Em um segundo momento, os neutrófilos parasitados transferem os parasitos para o interior de macrófagos, por serem fagocitados por eles ou por liberarem os parasitos nas vizinhanças de macrófagos que chegam ao sítio da lesão (FERREIRA, 2020). ↠ Os macrófagos são, de fato, a célula hospedeira por excelência para as leishmânias. Componentes do complementodepositados na superfície do promastigota favorecem a fagocitose pelo macrófago por meio do receptor CR3, que, quando ativado, induz fagocitose sem estimular a produção de intermediários reativos de oxigênio e nitrogênio. O parasito fagocitado permanece 5 Júlia Morbeck – @med.morbeck envolto pela membrana que forma o fagossomo ou vacúolo parasitóforo. Como consequência da formação do vacúolo, são a seguir recrutados lisossomos que se fundem ao fagossomo, despejando em seu interior seu conteúdo ácido e rico em enzimas proteolíticas. Os promastigotas sobrevivem no interior do vacúolo fagolisossômico, neutralizando seu conteúdo proteolítico graças à liberação, a partir da membrana plasmática, de proteases de superfície (glicoproteína de 63 kDa, gp63) que serão responsáveis pela inativação das enzimas lisossômicas (FERREIRA, 2020). ↠ Promastigotas e amastigotas de Leishmania utilizam um mecanismo que mimetiza a sua própria apoptose para escapar das defesas do hospedeiro. Desse modo, parte da população de promastigotas metacíclicos no inseto vetor, assim como amastigotas recuperados de lesão, tem a propriedade de expor moléculas semelhantes à fosfatidilserina (PS) em sua superfície. A PS é habitualmente encontrada na face interna de membranas plasmáticas. Quando exposta na superfície celular, é considerada típica de células em apoptose (FERREIRA, 2020). ↠ Assim, parasitos que expõem moléculas semelhantes à PS em sua superfície induzem fagocitose mediante receptores de PS no macrófago. A fagocitose mediada por esses receptores modula a resposta da célula hospedeira, induzindo citocinas anti-inflamatórias e inibindo a resposta oxidativa, como ocorre quando o macrófago fagocita uma célula em apoptose (FERREIRA, 2020). OBS.: O tropismo das espécies de Leishmania parece estar ligado, em parte, à temperatura ótima para os seus crescimentos. Os parasitas que causam doença visceral crescem melhor a 37 °C, enquanto os parasitas que causam doença mucocutânea crescem melhor em temperaturas mais baixas. Entretanto, as espécies de Leishmania cutâneas frequentemente são viscerotrópicas nos pacientes com HIV (ROBBINS & COTRAN). ↠ A Leishmania manipula as defesas inatas do hospedeiro para facilitar a sua entrada e a sobrevivência nos macrófagos. Os promastigotas produzem dois glicoconjugados de superfície abundantes, os quais contribuem para sua virulência (ROBBINS & COTRAN). • O lipofosfoglicano forma um glicocálice denso, que tanto ativa o complemento (levando à deposição de C3b na superfície do parasita), como inibe a ação do complemento (evitando a inserção do complexo de ataque à membrana na membrana do parasita). Portanto, o parasita torna-se coberto por C3b, mas evita a destruição pelo complexo de ataque à membrana. Em vez disso, o C3b na superfície do parasita se liga ao Mac-1 e ao CR1 nos macrófagos, levando o promastigota para a fagocitose. • A Gp63 é uma proteinase dependente de zinco, que cliva o complemento e algumas enzimas lisossômicas antimicrobianas. A Gp63 também se liga aos receptores de fibronectina nos macrófagos e promove a adesão de promastigotas aos macrófagos. ↠ Os mecanismos primários de resistência e suscetibilidade à Leishmania são mediados através das respostas TH1 e TH2. As células parasita-específicas CD4 + TH1 são necessárias para controlar a Leishmania em camundongos e humanos. A Leishmania evade a imunidade do hospedeiro ao impedir o desenvolvimento da resposta TH1. Em modelos animais, os camundongos que são resistentes à infecção por Leishmania produzem altos níveis de IFN-γ derivado de TH1, o qual ativa macrófagos para destruírem os parasitas, através das espécies reativas de oxigênio. Por outro lado, as linhagens de camundongo que são suscetíveis à leishmaniose montam uma resposta TH2 dominante. As citocinas TH2, como a IL-4, IL-13 e IL-10, impedem a morte efetiva da 6 Júlia Morbeck – @med.morbeck leishmânia através da inibição da atividade microbicida dos macrófagos (ROBBINS & COTRAN). O que já está bem estabelecido é que, para o controle da infecção, é necessária a predominância da resposta imune celular com características de tipo 1, envolvendo linfócitos CD4 e CD8 e citocinas como IL-12, IFN-γ, fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), linfotoxina e algumas quimiocinas produzidas por macrófagos. Esta resposta tem como resultado a ativação de macrófagos, tornando-os capazes de eliminar o parasito, controlando a infecção. Dentro desta perspectiva, a diminuição do número de parasitos leva a uma redução do estímulo da resposta imune pelo menor aporte de antígenos. Com isto, a cicatrização inicia-se por meio do controle do processo inflamatório (morte de células efetoras não estimuladas), aumento da função de fibroblastos, com produção de fibrose e tecido de cicatrização (BRASIL, 2017). IMPORTANTE: A localização intracelular das formas amastigotas no hospedeiro mamífero determina que anticorpos sejam ineficazes para o controle da infecção. Além de não terem influência no destino da infecção, os níveis de anticorpos circulantes são diretamente proporcionais à gravidade da doença e à atividade da infecção. Os títulos de anticorpos específicos são mais altos nas formas graves, multiparasitárias, como a LCD e a leishmaniose visceral. Embora os níveis de anticorpos específicos na LM sejam mais baixos do que os encontrados na LCD, eles são superiores aos observados na LC. Os níveis de anticorpos tendem a ser baixos ou indetectáveis na LC não complicada. Considerando-se exclusivamente esta forma clínica, os níveis de anticorpos antileishmania são mais altos nos casos com lesões múltiplas que nos com lesão única. Após a cura clínica, os títulos dos testes sorológicos tendem a cair rapidamente (em poucos meses) (BRASIL, 2017). MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS ↠ As manifestações clínicas da LTA têm caráter espectral e dependem da espécie do parasito e da resposta imunitária do hospedeiro. Em indivíduos capazes de montar resposta efetora mediada por linfócitos T, considerado o polo responsivo (reativo, hiperérgico), a doença manifesta-se como leishmaniose cutânea (LC) ou leishmaniose mucocutânea (LMC). No Brasil, a maioria dos casos com estas formas têm infecção pela L. braziliensis, embora outras espécies de parasitos possam estar envolvidas. Na região amazônica, a L. guyanensis e a L. amazonensis são responsáveis pela maioria dos casos (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Em pacientes incapazes de montar resposta imunitária celular (anergia) do tipo Th1, que induz a síntese de IFN- γ, infecção por L. amazonensis resulta na leishmaniose cutânea difusa (LCD). Esses dois polos da doença, hiperérgico e anérgico, diferem nos aspectos clínicos, histopatológicos e de resposta terapêutica. O espectro da LTA é, de certa forma, semelhante ao descrito na hanseníase e, como nesta, as lesões correlacionam-se com a resposta imunitária (BOGLIOGO, 10ª ed.). A leishmaniose cutânea é uma doença relativamente leve, localizada, que consiste em úlceras ou pele exposta. A lesão se inicia como uma pápula circundada por induração, que sofre modificação para uma úlcera rasa que se expande lentamente, com frequência com bordas elevadas, e usualmente cura-se por involução dentro de 6 a 18 meses, sem tratamento. Ao exame microscópico, a lesão mostra uma inflamação granulomatosa, usualmente com muitas células gigantes e poucos parasitas (ROBBINS & COTRAN). A leishmaniose mucocutânea é encontrada apenas no Novo Mundo. Lesões úmidas, ulceradas ou não ulceradas desenvolvem-se nas áreas nasofaríngeas e, com a progressão, podem ser altamente destrutivas e desfigurantes. O exame microscópico revela um infiltrado inflamatório misto composto por macrófagos, contendo parasitas, linfócitos e plasmócitos. Mais tarde, a resposta inflamatória tecidual se tornagranulomatosa e o número de parasitas declina. Finalmente, as lesões diminuem e cicatrizam, apesar de a reativação poder ocorrer após longos intervalos, por meio de mecanismos que não são atualmente entendidos (ROBBINS & COTRAN). A leishmaniose cutânea difusa é uma forma rara de infecção dérmica, encontrada na Etiópia e na África Oriental adjacente e nas Américas Central e do Sul. A leishmaniose cutânea difusa se inicia como um único nódulo na pele, que continua a se disseminar até que todo o corpo esteja coberto por lesões nodulares. Microscopicamente, elas contêm agregados de macrófagos espumosos repletos de leishmanias (ROBBINS & COTRAN). LEISHMANIOSE CUTÂNEA ↠ O período de incubação varia de 2 semanas a 6 meses. No local da picada do inseto, forma-se uma pápula que se transforma em nódulo que depois ulcera. A úlcera tende a aumentar de tamanho nas primeiras semanas e 7 Júlia Morbeck – @med.morbeck torna-se crônica. Em áreas endêmicas, muitos pacientes têm cura espontânea e outros controlam a infecção mesmo antes de desenvolver lesão. Nesses casos, reação de Montenegro positiva indica resposta imunitária mediada por células (BOGLIOGO, 10ª ed.). OBS.: A úlcera característica da leishmaniose apresenta contorno circular, com borda elevada, talhada a pique, lembrando a imagem de uma cratera. É pouco exsudativa, sem tendência a sangramento espontâneo, e mostra um fundo granuloso, de coloração vermelha, ou então amarelada, quando há deposição de fibrina. Pode estar coberta por crosta, cuja remoção expõe o aspecto ulcerado típico (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ O aumento de linfonodos de drenagem da área de inoculação pode ser manifestação precoce da infecção, antes mesmo do desenvolvimento da lesão cutânea. Comprometimento de linfonodos é encontrado em 75 a 95% dos casos. Punção desses linfonodos, seguida de cultura ou de exame direto, pode demonstrar parasitos . Alguns pacientes com linfonodomegalia não desenvolvem lesão cutânea, enquanto outros, mesmo tratados para a doença, formam úlceras. Há uma forma de apresentação clínica peculiar, a forma bubônica, descrita em indivíduos infectados com L. braziliensis no estado do Ceará, que se caracteriza por grande linfonodomegalia, que pode, ocasionalmente, supurar e drenar material (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ A apresentação clínica mais característica da LTA (90% dos casos) é lesão cutânea ulcerada, crateriforme, úmida, indolor, com bordas elevadas, bem definidas, fundo plano, recoberto por crosta que, quando retirada, mostra tecido de granulação. Úlceras com infecção bacteriana secundária podem ser dolorosas e apresentar secreção fétida. Em indivíduos infectados por L. braziliensis, as úlceras em geral são únicas (forma cutânea localizada), grandes e mais frequentes nos membros inferiores (60% dos casos) (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Em geral, as úlceras têm cura espontânea em 6 a 15 meses e associam-se a imunidade protetora. O tratamento específico reduz o tempo de cura e previne recidivas. Em infecções por L. guyanensis, as úlceras tendem a ser múltiplas e localizadas acima da linha da cintura, em regiões variadas do corpo. As úlceras tendem a ser pequenas e a curar-se espontaneamente, mas com alta taxa de recidiva (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Diferenças na localização das lesões têm sido atribuídas à altura de voo dos vetores que transmitem os parasitos de diferentes espécies. Disseminação linfática (forma linfangítica) é frequente e apresenta-se como lesões múltiplas ao longo do vaso linfático de drenagem da lesão ulcerada inicial, semelhante ao que ocorre na esporotricose, daí ser também referida como forma esporotricoide da leishmaniose cutânea (BOGLIOGO, 10ª ed.). OBS.: Uma forma bastante peculiar de leishmaniose cutânea é a forma disseminada, descrita em alguns pacientes infectados por L. braziliensis ou L. amazonensis, que se caracteriza por grande número de lesões (de dezenas a mais de 700). Tal forma deve-se, muito provavelmente, 8 Júlia Morbeck – @med.morbeck à disseminação sanguínea dos parasitos. As lesões apresentam aspecto acneiforme, com pápulas e pequenas úlceras disseminadas pelo corpo, frequentemente com comprometimento também de mucosas (BOGLIOGO, 10ª ed.). Os pacientes têm títulos mais altos de anticorpos antileishmânia do que aqueles com a forma cutânea típica; alguns mostram teste de hipersensibilidade tardia negativo. A quantidade de parasitos nas lesões é pequena, a resposta terapêutica a antimoniais é boa e os pacientes tratados passam a apresentar resposta imunitária celular a antígenos de leishmânia. Esta forma não deve ser confundida com a leishmaniose cutânea difusa, da qual difere dos pontos de vista clínico, histopatológico e imunitário (BOGLIOGO, 10ª ed.). Ocasionalmente, outras formas atípicas podem ser encontradas em áreas endêmicas, em que as lesões têm aspecto exofítico e bordas mal definidas, sangram com frequência e não respondem bem ao tratamento convencional, a despeito de a resposta imunitária e os aspectos histopatológicos não diferirem daqueles dos casos clássicos. Em gestantes, lesões verrucosas ou vegetantes com abundante tecido de granulação têm sido descritas. Nesses quadros atípicos, parece que variantes do parasito ou do vetor estejam implicados nas manifestações clínicas (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Em torno ou no interior de cicatrizes de lesões de leishmaniose aparentemente curadas, podem surgir tubérculos ou pápulas que confluem e formam lesões anulares contendo poucos ou muitos parasitos. Esta forma, conhecida como leishmaniose recidiva cutis, descrita na infecção tanto por L. braziliensis quanto por L. amazonensis, tem curso protraído e baixa resposta ao tratamento. Em estudos realizados em área endêmica no estado da Bahia, esta forma parece ser mais frequente do que antes se suspeitava (BOGLIOGO, 10ª ed.). LEISHMANIOSE MUCOCUTÂNEA ↠ Esta forma grave e desfigurante de leishmaniose tegumentar, também conhecida como “espúndia”, “nariz de tapir” ou “nariz de anta”, ocorre em até 4% dos indivíduos com lesão cutânea infectados com L. braziliensis em áreas endêmicas (alguns pacientes são infectados por L. amazonensis). No Oriente (Velho Mundo), a forma mucocutânea resulta de infecção por L. major (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Em até 30% dos casos, a lesão mucosa aparece algumas semanas ou meses após a lesão cutânea, enquanto esta ainda se encontra ativa, embora possa surgir muitos anos após cicatrização da úlcera na pele. Cerca de 50% dos pacientes que desenvolvem lesão mucosa apresentam-na nos dois primeiros anos após cura da lesão cutânea (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Na fase inicial, o exame local evidencia apenas eritema e erosão superficial na mucosa do septo anterior, que pode estar desviado para o lado oposto ao da lesão (FOCACCIA, 5ª ed.). OBS.: Em estudo feito em área endêmica no estado da Bahia, encontrou-se concomitância de lesões cutânea e mucosa em 2,7% de 220 pacientes sistematicamente examinados. Além disso, em 16% dos casos as lesões mucosas foram encontradas em pacientes sem história de lesão cutânea prévia. A possibilidade de inoculação direta de parasitos em mucosas pode ser considerada, mas o mais provável é que o agente se dissemine a partir de infecção cutânea assintomática (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ A manifestação mais comum é obstrução nasal. O componente mais atingido é a mucosa do nariz, que pode apresentar desde eritema, pequenas lesões vegetantes, placas granulomatosas ou pontos esbranquiçados até erosão, ulceração e perfuração. Destruição do septo nasal causa desabamento do nariz para a frente e para baixo (BOGLIOGO, 10ª ed.). Forma atípica de leishmaniose cutânea: A. Lesão que aparentemente se curava e em seguida ulcerava nas bordas. B. Aspecto histológico mostrando infiltrado inflamatório de mononucleares, com macrófagos contendo formasamastigotas de leishmânia (setas). C. Formas amastigotas de leishmânia em macrófagos da pele (setas), evidenciadas por imuno-histoquímica. 9 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ O processo pode atingir a pele e causar lesões infiltrativas, hiperêmicas e edemaciadas, ou úlceras extensamente destrutivas. A evolução da lesão é imprevisível: alguns pacientes apresentam cura espontânea, enquanto outros desenvolvem lesões progressivas. Além do nariz, as lesões podem atingir os palatos mole e duro, a úvula, a faringe, as bochechas, o lábio superior, a laringe, os brônquios e o esôfago. Comprometimento da laringe pode causar disfonia, disfagia e mesmo morte por obstrução respiratória alta (BOGLIOGO, 10ª ed.). LEISHMANIOSE CUTÂNEA DIFUSA ↠ Leishmaniose cutânea difusa é rara e ocorre em pacientes com resposta imunitária celular efetora deficiente contra antígenos de leishmânia. Nas Américas, é causada por L. amazonensis e L. mexicana e ocorre sobretudo no norte do Brasil, na República Dominicana e na Venezuela. Na África, é encontrada na Etiópia e associa-se somente à L. aethiopica (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ A doença tem características clínicas e laboratoriais peculiares como: (BOGLIOGO, 10ª ed.). ➢ nódulos e placas disseminados pelo corpo, não ulcerados, semelhantes aos da hanseníase virchowiana; ➢ ausência de comprometimento visceral; ➢ reação cutânea de hipersensibilidade tardia a antígenos de leishmânia (reação de Montenegro) negativa; ➢ falha na resposta à quimioterapia; ➢ quadro histológico com muitos macrófagos vacuolados, abarrotados de parasitos, escassez de linfócitos e ausência de granulomas. ↠ As lesões iniciais são semelhantes às da forma cutânea localizada, mas não ulceram e, em geral, começam na infância. As lesões plenamente desenvolvidas são eritematosas e mostram pápulas, nódulos, tubérculos, placas infiltradas ou infiltrações difusas no corpo; surgem na face, predominando em orelhas, regiões malares e nariz, mas podem aparecer também nos membros 10 Júlia Morbeck – @med.morbeck inferiores e no tronco, com tendência a distribuição simétrica (BOGLIOGO, 10ª ed.). OBS.: Um aspecto peculiar da leishmaniose tegumentar é a forma denominada difusa ou hansenoide, causada por parasitas do subgênero Leishmania. No Brasil, a L. amazonenses tem sido a única espécie responsável por essa forma da doença. A moléstia caracteriza-se pela presença de nódulos isolados ou agrupados, máculas, pápulas e placas infiltradas (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ As lesões ulceram por causa de traumatismos, mas não espontaneamente. Algumas lesões regridem espontaneamente, deixando cicatrizes. Tentativas de tratamento com IFN-γ resultaram em resposta favorável transitória, reforçando o papel de imunodeficiência específica dos pacientes (BOGLIOGO, 10ª ed.). DIAGNÓSTICO ↠ O diagnóstico de leishmaniose tegumentar baseia-se em dados clínicos, epidemiológicos e histopatológicos e no encontro do parasito em tecidos por meio de exame citológico de material obtido por punção na borda da úlcera ou de exame microscópico e imuno-histoquímico de amostras colhidas por biópsias (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ Por causa da baixa sensibilidade dos exames microscópicos convencionais (citológico e histopatológico), o emprego de exames parasitológicos (isolamento em cultura) e testes moleculares baseados na amplificação do DNA nuclear ou do cinetoplasto por PCR assume grande importância. A identificação precisa da espécie do parasito tem óbvias implicações terapêuticas. Os testes sorológicos e o teste de hipersensibilidade cutânea à leishmanina têm valor limitado (BOGLIOGO, 10ª ed.). DIAGNÓSTICO LABORATORIAL ↠ Na prática, são utilizados, para diagnóstico da leishmaniose tegumentar, o teste intradérmico de Montenegro e a pesquisa direta do parasita nas lesões (FOCACCIA, 5ª ed.). INTRADERMORREAÇÃO ↠ A intradermorreação idealizada por Montenegro em 1936 constitui um método indireto de diagnóstico, que consiste na injeção intradérmica de 0,1 mL do antígeno, preparado com promastigotas de cultura, e serve para avaliar o grau de sensibilização do hospedeiro contra o parasita (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ Considera-se positiva a reação em que houve, no prazo de 48 a 72 horas, o aparecimento de uma enduração, perceptível à palpação, com diâmetro igual ou superior a 5 mm (FOCACCIA, 5ª ed.). A positividade do teste indica que o indivíduo já foi sensibilizado, mas não necessariamente que seja portador da doença. Em áreas com elevada incidência de leishmaniose, chega a 30% a proporção de indivíduos sadios, com intradermorreação positiva. Alguns deles apresentam cicatrizes sugestivas ou história de tratamento prévio, ao passo que outros, sem vestígios da moléstia, podem ter sido sensibilizados a partir de infecções subclínicas. Esta é, sem dúvida, uma importante causa de erro na interpretação do teste, pois, em qualquer desses indivíduos, a presença de lesão suspeita, mas de origem não leishmaniótica, pode levar a um falso diagnóstico (FOCACCIA, 5ª ed.). Na prática, as úlceras crônicas em membros inferiores constituem a principal causa de diagnósticos falso-positivos, especialmente em pacientes idosos acometidos por diabetes, insuficiência venosa, erisipela de repetição, entre outras causas de distúrbios vasculares e metabólicos. Entretanto, pessoas portadoras de leishmaniose às vezes não reagem ao teste de Montenegro, especialmente na fase inicial da doença, ou nas formas disseminadas. É comum, no entanto, observar-se a viragem do teste durante o tratamento (FOCACCIA, 5ª ed.). Respostas exacerbadas ao teste intradérmico são observadas em pacientes com doença de longa evolução, principalmente nas mucosas; nesse caso, o índice de positividade chega próximo a 100%, com reações geralmente superiores a 10 mm. Assim, um teste de Montenegro não reator, em paciente com lesão de mucosa, tem 11 Júlia Morbeck – @med.morbeck elevado valor preditivo negativo, devendo-se pensar em outra patologia, que não a leishmaniose (FOCACCIA, 5ª ed.). Em indivíduos com a forma cutânea da doença, a positividade do teste varia de 85 a 97%, segundo diferentes autores. As pessoas tratadas, que retornam à área endêmica, podem manter a reação positiva por toda a vida, raramente contraindo a doença pela segunda vez. Aqueles que saem da área ou não sofrem novas exposições ao parasita tendem a se tornar negativos no período de 5 a 10 anos. Nesse caso, ficam propensos a contrair novamente a doença. Da mesma forma, a exposição a uma nova espécie do parasita pode gerar o segundo episódio da doença, fato este mais comum na Amazônia, onde circulam diferentes espécies (FOCACCIA, 5ª ed.). HISTOPATOLOGIA ↠ A histopatologia também tem valor no diagnóstico da leishmaniose tegumentar, apresentando resolutividade em torno de 60%, em termos de visualização do parasita. Ao microscópio, observa-se infiltrado inflamatório crônico, muitas vezes inespecífico, onde predominam linfócitos, plasmócitos e histiócitos, distribuídos desordenadamente, em proporções variadas (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ O quadro histopatológico varia em função das características imunitárias do hospedeiro e do tempo de evolução da doença. Em lesões mais antigas, o processo inflamatório pode se organizar, constituindo granulomas tuberculoides (FOCACCIA, 5ª ed.). TÉCNICAS DE BIOLOGIA MOLECULAR ↠ Diversas técnicas de biologia molecular, entre elas a reação em cadeia da polimerase (PCR), têm sido utilizadas na detecção de parasitas em material obtido de lesões. Apesar de úteis no diagnóstico da doença, tais métodos são exequíveis somente em laboratórios especializados (FOCACCIA, 5ª ed.). SOROLÓGICOS ↠ O diagnóstico sorológico tem sido tentado por meio de técnicas variadas. O teste de imunofluorescência indireta, mais utilizado, revelou-se pouco sensível,além de dar reações cruzadas com a leishmaniose visceral e a doença de Chagas (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ O ensaio imunoenzimático (ELISA), mais sensível, mostra especificidade semelhante à da imunofluorescência. Em pacientes tratados, os títulos de anticorpos podem permanecer elevados por vários anos após a cura clínica. Admite-se que a persistência do teste sorológico positivo seja sinal de infecção latente, o que poderia servir de prognóstico para uma possível recidiva nas mucosas (FOCACCIA, 5ª ed.). TRATAMENTO ↠ Atualmente, existem duas formulações de antimoniais pentavalentes disponíveis no mercado internacional: o antimoniato de meglumina e o estibogluconato de sódio, sendo este último não comercializado no Brasil (BRASIL, 2017). ↠ O antimoniato de N-metil-glucamina (Glucantim®), único disponível no Brasil, é apresentado em ampolas com 5 mL de solução a 30%, contendo 300 mg/mL do sal (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ O Glucantim® pode ser aplicado por via intramuscular ou endovenosa. Quando esta última via for utilizada, recomenda-se diluir o produto em 10 mL de solução de glicose a 25% e injetá-lo lentamente, em dois minutos; também pode ser diluído em 200 mL de soro glicosado a 5%, para infusão venosa em 10 minutos (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ O mecanismo de ação preciso dos antimoniais pentavalentes permanece incerto. É pressuposto que várias enzimas de Leishmania spp sejam inibidas seletivamente. Esses agentes também parecem inibir a fosfofrutoquinase, com subseqüente bloqueio da produção de adenosina trifosfato. IMPORTANTE: Diversos esquemas terapêuticos alternativos são utilizados no Brasil, entre os quais aquele proposto pelo Ministério da Saúde, que preconiza séries contínuas de 20 e 30 aplicações, respectivamente, para as formas cutâneas e mucosas. Apesar de mostrar eficácia semelhante, tem como desvantagem a menor adesão dos pacientes ao tratamento, devido ao incômodo provocado pela série prolongada de injeções, especialmente quando se utiliza a via intramuscular (FOCACCIA, 5ª ed.). ↠ Apesar da relativa segurança que oferecem, os antimoniais podem causar efeitos colaterais sérios, principalmente os relacionados com a função elétrica do coração. Entre as alterações eletrocardiográficas, são mais comuns a inversão ou o achatamento de onda T, geralmente sem maior gravidade. No entanto, arritmias severas, taquicardia supraventricular e bloqueios atrioventriculares podem causar a morte de pacientes que utilizam antimoniais. Quando detectadas em tempo, essas alterações obrigam à suspensão imediata do medicamento (FOCACCIA, 5ª ed.). OBS.: A Anfotericina-B, na forma de desoxicolato, surge como segunda opção de tratamento, ficando reservada para doentes que não responderam aos antimoniais (FOCACCIA, 5ª ed.). 12 Júlia Morbeck – @med.morbeck Leishmaniose tegumentar x Leishmaniose visceral ↠ De modo geral, essas enfermidades se dividem em leishmaniose tegumentar americana, que ataca a pele e as mucosas, e leishmaniose visceral (ou calazar), que ataca órgãos internos. ↠ A LV é uma afecção espectral com um polo hiperérgico, que traduz resposta eficaz do hospedeiro contra a infecção, e um polo anérgico, resultado de resposta imunitária deficiente. Com base no padrão de resposta, as formas de apresentação clínica da doença são: (BOGLIOGO, 10ª ed.). ➢ Infecção assintomática, que ocorre em indivíduos que vivem em áreas endêmicas, sem história ou sinais de doença clínica aparente e que têm reações sorológicas e/ou testes intradérmicos positivos para leishmânias ➢ Infecção subclínica ou oligossintomática, associada a manifestações inespecíficas como febrícula, tosse seca, diarreia, sudorese, adinamia e hepatoesplenomegalia discreta. O quadro pode regredir espontaneamente ou evoluir para doença manifesta. ➢ Forma aguda, em geral com duração inferior a 2 meses, com febre alta, tosse, diarreia, hepatoesplenomegalia discreta, alterações hematológicas, acentuada elevação de globulinas séricas e anticorpos IgM e IgG específicos. ➢ Forma clássica ou plenamente manifesta. A doença tem início insidioso e evolução crônica, com período de incubação de 2 a 6 meses, com relatos de casos extremos de dias ou anos. Se não tratada, é doença fatal. Os pacientes apresentam febre diária, anorexia, fraqueza, emagrecimento e desnutrição (pele seca, cabelos secos e quebradiços, cílios longos). Há ainda edema das mãos e dos pés, aumento progressivo do volume abdominal, do baço e do fígado. São frequentes manifestações gastrointestinais (particularmente diarreia), hemorragias (epistaxe, gengivorragia) e tosse seca (pneumonia intersticial). Manifestações não habituais incluem linfonodomegalia, petéquias, púrpuras e hemorragia na retina ou no sistema nervoso central. Em casos de longa duração, icterícia é sinal de mau prognóstico. Pode haver variações clínicas regionais, como pigmentação escura da pele, observada no calazar indiano e tonalidade pardacenta nas Américas. É constante pancitopenia periférica com hipergamaglobulinemia. Os pacientes apresentam reação de Montenegro negativa. ➢ Forma plenamente manifesta em pacientes imunocomprometidos, em indivíduos com coinfecção LV/HIV, transplantados ou imunossuprimidos por tratamento de neoplasias malignas. Nesses casos, as manifestações clínicas são atípicas, como ausência de esplenomegalia, comprometimento dos pulmões, intenso parasitismo e falta de resposta ao tratamento com antimoniais. A doença resulta em geral de reativação de infecção anterior. A reação de Montenegro é negativa. ↠ As lesões morfológicas são semelhantes em diferentes regiões endêmicas do mundo, embora existam particularidades relacionadas com as características dos diferentes ecossistemas. Leishmaniose visceral é uma doença que se caracteriza primordialmente por comprometimento do sistema fagocitário mononuclear (SFM), no qual os parasitos permanecem, multiplicam-se e disseminam-se. Frente ao parasitismo, o SFM exibe hipertrofia e hiperplasia. O interstício dos diferentes órgãos participa também de maneira importante no processo com modificações de seus componentes celulares, fibrilares e da matriz extracelular, que se associam a infiltrado inflamatório e reatividade vascular. Os sinais e sintomas mais exuberantes da doença plenamente manifesta relacionam-se justamente com o acometimento de órgãos ricos em SFM, como fígado, baço e medula óssea (BOGLIOGO, 10ª ed.). ↠ No exame físico são observados hepatomegalia e esplenomegalia, que podem alcançar grandes dimensões; nesses casos, sinais de desnutrição são também evidentes. Em áreas de transmissão mais recente tem-se observado evolução mais rápida para as formas graves e/ou complicadas de leishmaniose (BOGLIOGO, 10ª ed.). 13 Júlia Morbeck – @med.morbeck Referências KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul; ASTER, Jon. Robbins & Cotran Patologia - Bases Patológicas das Doenças. Grupo GEN, 2016. E-book. FOCACCIA et. al. Tratado de Infectologia, 5ª edição. São Pulo: Editora Atheneu, 2015. SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo. Parasitologia - Fundamentos e Prática Clínica. Grupo GEN, 2020. E-book. FILHO, Geraldo B. Bogliolo - Patologia. Grupo GEN, 2021. E-book. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de vigilância da leishmaniose tegumentar [recurso eletrônico] - Brasília: Ministério da Saúde, 2017. FERREIRA, Marcelo U. Parasitologia Contemporânea. Grupo GEN, 2020. E-book.
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