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Alfredo Naffah Neto - A Psicoterapia em busca de Dioniso_ Nietzsche vista Freud (1)

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Naffah Neto nos conduz, com habilidade e 
. segurança, pelos percursos labirínticos da alma 
humana. Aqui somos confrontados com a proposta 
de uma psicoterapia nietzschiana, que procede 
genealogicamente. Reapropriando-se de sentidos 
etimológicos originários, de há muito caídos no 
esquecimento, essa psicoterapia se anuncia como 
radicalmente emancipatória. (. .. ) O importante ri 
que o autor recusa a mera justaposição eclética de 
perspectivcas teóricas; aliando teoria e decantada 
prática psicoterapêutica, Naffah Neto não drdxa dP 
nos fazer ouvir seu acento prój,rio, não ahdir:a da 
inflexão rigorosamente j,essoal com que dirigri tanto 
a orquestraçrio dos lemas qua.11/0 a trrfir'l!íria da 
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A pSicoterapia, 
em busca de 
Dioniso 
Nietzsche visita Freud 
.'\lfrc.·clc> Naffah Neto 
~~ hy Alfredo Nalfah Neto 
~-, hy Editora Escuta e EDUC, para a edição em língua portuguesa 
1• cdiçiío: abril de 1994 
Catalogação na Fonte - Biblioteca Central/PUC-SP 
Natfoh Neto, Alfredo 
Psi<.:oterapia em busca de Diqniso: Nietzsche visita 
r rcucl/Alfredo Naffah Neto. - São Paulo: EDUC/Escuta, 1994. 
147 p.; 21 cm. - (Linhas de fuga) 
ISBN 85-283-0059-5 (EDUC) 
ISBN 85-7137-069-9 (Escuta) 
1. Ps icoterapia. 1. Título. II. Série. 
EDVC - Editora da PUC-SP 
Rna Monte Alegre, 984 
05014-000 - São Paulo - SP 
1:onc: (O 11 ) 62-0280 
l~ditorn Escuta Lida. 
Rnu Dr. l lomem de Mello, 351 
05007-001 - Siío Paulo - SP 
'foi. : (O 11 ) 65-8950 
Fond i,x: (O 11 ) 87 1-2542 
CDD6 16.8914 
Alfredo N affah Neto 
A psicoterapia em busca de Dioniso: 
Nietzsche visita Freud 
SUMÁRIO 
APRESENTAÇÃO - Oswaldo Giacoia Jr . .............................. l l 
ABERTURA ................... ....... .. ..... .... ...... : .................................. 15 
PRIMEIRA PARTE: 
POR UMA PSICOTERAPIA GENEALÓGICA 
aforismo l: Genealogia, psicologia, psicoterapia ............... 19 
aforismo 2: O psicoterapeuta-genealogista ................. .. ...... 20 
aforismo 3: Psicoterapia: etimologia ................ .................. 21 
aforismo 4: Psicoterapia e vida .............. ............................. 23 
SEGUNDA PARTE: 
PSICOPATOLOGIAS 
aforismo 5: Psicopatologia: etimologia ............................... 27 
Seção 1: Saúde, doença, nobreza, escravidão e livramento 
aforismo 6: Saúde e livramento ......................... .................. 28 
aforismo 7: A sabedoria do perspectivismo ................ .. ....... 30 
aforismo 8: A nobreza salutar .............................................. 32 
aforismo 9: A escravidão como aprisionamento pelo Outro .. 35 
Seção 2: Neurose, escravidão, sonhos e.forças marginais 
aforismo 10: Escravidão e neurose ............................ .. ........ 37 
aforismo 11: Neurose, escravidão e angústia .......... ..... ........ 38 
aforismo 12: Histeria: escravidão sem recalque .................. 40 
aforismo l 3: A fobia e a dissociação da consciência .......... 44 
aforismo 14: A consciência e as defesas contra a 
escravidão ........................................................................ 45 
aforismo 15: O sonho ................ .......................................... .48 
aforismo 16: Neurose obsessiva: a escravidão levada 
às últimas conseqüências ..... ............ .. ................. ........ .... 5 l 
aforismo 17: O circuito-neurótico e as forças marginais ........ 53 
Seção 3: Criminalidade, perversão, loucura e devir errante 
aforismo 18: Crime e loucura: a marginalização da 
diferença ................................................................. ......... 55 
aforismo 19: Perversões são doenças? ............................. ... 58 
aforismo 20: O delírio: uma interpretação do sem-lugar ........ 61 
aforismo 21: A alucinação: as intensidades projetadas 
numa meta-extensão ........................................................ 65 
aforismo 22: O circuito-louco e a errância das forças 
ativas ...................................... .......................................... 68 
TERCEIRA PARTE: 
UMA CONCEPÇÃO DE PERSONALIDADE 
aforismo 23: A personalidade e as máscaras-personagens ..... 73 
aforismo 24: A personalidade, o ego e o self... .. .. ... .......... ... 76 
QUARTA PARTE: 
A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
aforismo 25: O ensinamento de Dioniso .............................. 83 
aforismo 26: O éthos psicoterapêutico ............................. .... 86 
aforismo 27: Desconstmindo representações, decodificando 
sintomas: notas sobre a interpretação ... ............... .. ......... 89 
aforismo 28: A transferência e o etemo retomo .......... ....... . 93, 
aforismo 29: O cotidiano da psicoterapia: mapeando forças .. 96 
aforismo 30: A psicoterapia individual e a morte do 
indivíduo ........................................... ............................. l 99 
aforismo 3 l: A psicoterapia de grnpo no encontro de 
Dioniso:sociabilidades cm transmutação ..................... 102 
NOTAS ................... ............ ...................... ... ................ .... ........ 107 
APRESENTAÇÃO 
Sob condução de Alfredo Naffah Neto. orientada por uma 
interpretação original da filosofia de Nietzsche, a psicoterapia se 
aventura vertiginosamente na busca de Dioniso. Ao longo do 
percurso, cuja trajetória se deten11 ina a partir de uma suposta visita 
de Nietzsche a Freud, o autor se transfomrn no hospedeiro de 
ambos. Com isso, a direção sugerida pelo subtítulo do livro se 
inverte e é Naffah Neto quem na verdade revisita Nietzsche a 
partir de Freud, em fecunda convivência partilhada por ilustres 
companheiros de viagem: Deleuze, Foucault. Guattari, Sacher-
Masoch , Bento Prado Jr., Moreno, Laplanche, Espinosa, 
Heráclito, o obscuro etc. 
A fonna aforística da escrita - adequada ao perspectivismo 
subjacente às posições filosóficas do autor - facilita ao leitor o 
acesso a conjuntos temáticos de dificil assimilação. Para além do 
poder sugestivo e da fascinação provocada pela beleza literária. a 
escrita aforística se ajusta com perfeição ao conteúdo. sem pre-
juízo da orgfu1ica articulação do material conceituai ; ela também 
toma viável a ntultiplicidadc de acessos possíveis a esse conteúdo, 
produzindo arranjos e cnrzamentos surpreendentes entre questões 
12 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
e conceitos, problemas e propostas. A ham1oniadas quatro pa1tes 
aliada à dinâmica inteligente da argumentação concitam o leitor 
a efetuar, por si mesmo, os mais criativos circuitos entre os 
contextos teóricos abordados pelo autor. É assim que Naffah Neto 
nos conduz, com habilidade e segurança, pelos percursos labirín-
ticos da alma humana. 
Aqui somos confrontados com a proposta de uma psicoterapia 
nietzschiana, que procede genealogicamente. Reapropriando-se 
de sentidos etimológicos originários, de há muito caídos no 
esquecimento, essa psicoterapia genealógica se enuncia como 
radicalmente emancipatória. Ao defini-la cm sua natureza e 
propósitos, Naffah Neto não pode deixar de reverter categorias e 
noções fundamentais da psicopatologia e psicoterapia, como por 
exemplo: saúde, doença, nonnalidade, perversão, neurose, aluci-
nação, delírio, personalidade, subjetivação, fazendo-o com o 
auxílio de ferramentas filosóficas cuja significação está muito 
longe de ser objeto de pacífico consenso: aqui figuram , por 
exemplo, conceitos como marginalidade, criminalidade, 
escravidão, livramento, éthos, necessidade, acaso, devir, vontade 
de potência etc. 
Certa irreverência teórica nem sempre dissimulada (capaz, 
sem dúvida, de exasperar veneráveis escrúpulos acadêmicos) atua 
em provei-todo sabor e leveza do estilo. Afinal, a sedução 
irresistível da ousada aventura de Naffah Neto reside menos nos . 
rigores da exegese filosófica do que na profusão surpreendente de 
combinações e circuitos, fazendo cmzar com inesgotável produ-
tividade posturas teóricas e metodologias originalmente distantes 
entre si. 
São esses múltiplos agenciamentos produzindo espaços con-
ceituais onde se inscrevem novas ·significações que, a meu ver, 
tomam bela, provocativa e estimulante esta freqüentação de Freud 
por Nietzsche. via Naffah Neto, ou vice-versa. O importante é 
que o autor recusa a mera justaposição eclética de perspectivas 
teóricas e clínicas. Aliando teoria e decantada prática psi-
coterapêu_tica, Naffah Neto não deixa de nos fazer ouvir seu acento 
próprio, não abdica da inflexão rigorosamente pessoal com que 
APRESENTAÇÃO 13 
dirige tanto a orquestração dos temas quanto a trajetória da busca 
que, ao final, nos conduz ao encontro entre a psicoterapia e 
Dioniso, o an1bíguo. 
Penso que a melhor maneira de fazer justiça aos méritos 
inegáveis deste livro e à elevação especulativa a que nos conduz 
o autor é aceitar seu convite para empreender o esforço de se 
apropriar criticamente do seu conteúdo e, assim, dialogar com ele. 
Nesse sentido, e para encerrar, gostaria de destacar três dos 
múltiplos aspectos interessantes que animam o debate: a com-
preensão profunda da gênese simbólica e semiótica da neurose; a 
proposta do espaço terapêutico como "acolhimento su ra-moral ' ' 
onde se processa a interpretação que atÍxilia na libertação (saúde) 
do espírito, no movimento que leva à reapropriação de sua " potên-
cia afectiva ' ' ; o bem fundamentado reconhecimento da virtus 
específica da psicoterapia de gmpo. 
Berlim, 21 de outubro de 1993 
OSWALDO·GJACOIA JR. 
V,-ve em mim um Nietzsche que anseia por se tornar psi-
coterape11ta. Desde que ele tomou conta de mim e me convenceu. 
com todas as letras. que a hospedagem era para valer, nossa 
relação tem sido uma grande aventura. No começo tentei ofere-
cer-lhe um espaço no casamento que eu mantinha com o psico-
drama há vinte anos mas. depois de algum tempo. estávamos 
todos incomodados e insatisfeitos. Aí não tive alternativa: aban-
donei a antiga relação e lancei-me, de corpo e alma. na cons-
tnição da nova proposta terapêutica. De lá para cá temos vivido 
como dois irmãos siameses, às vezes sem saber quem é o hóspede 
e quem é o hospedeiro. E ele vai-me emprestando pedaços, 
cuidadosamente escolhidos, para lançar os alicerces da nova 
moradia. Até me indicou alguns intérpretes mais audazes para 
.fimcionarem como nossos ajudantes na construção. E eu vou-lhe 
oferecendo as minhas artes de arquiteto: de conceitos e de almas. 
Levei-o, várias vezes, à casa de Fi·eud - um velho amigoíinter-
locutor de muitos anos - e tenho aprendido muito nos calorosos 
debates em que sempre nos lançamos. E nesse caminhar juntos, 
eu me torno.filósofo, ele se.faz psicoterapeuta. 
Primeira Parte 
POR UMA PSICOTERAPIA GENEALÓGICA 
' 
l 
Genealogia, psicologia, psicoterapia - "Toqa a psicologia 
pennaneceu até o momento prisioneira de prejuízos e apreensões 
morais: ela não se arriscou nas profundezas. Considerá-la en-
quanto morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade 
de potência, como eu a considero, é uma idéia que ainda não 
ocorreu a ninguém". Assim Nietzsche inicia o aforismo 23 de 
Para além de bem e mal'. E o conclui dizendo: ... "ao psicólogo 
( ... ) será lícito aspirar pelo menos que a psicologia volte a ser 
reconhecida como senhora das ciências, para cujó serviço e 
preparação existem todas as outras ciências. Pois a partir de agora 
a psicologia volta a ser o caminho que conduz aos problemas 
fundamentais"2. Ora, se lembrarmos que a função da psicologia, 
assim redefinida por Nietzsche, passa a ser a de investigar a 
origem e a história dos sentimentos morais3; que, como tal, ela 
passa a ser o ponto de intersecção entre as ciências da natureza e 
as ciências do espírito no interior do projeto genealógico4, sua 
importância ganha ainda mais relevo. Se, por fim, atentannos para 
o fato de que a moral vigente, niilista, é vista como uma doença5 
A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
e o filósofo-psicólogo-genealogista como um "médico da civili-
zação"6, lançado na transmutação dos valores, na recriação do 
sentido da vida, toma-se possível aspirar a uma psicoterapia que 
retome e realize aspirações da genealogia nietzschiana. Cabe, 
entretanto, investigar os sentidos e usos que pode assumir tal 
expressão. 
2 
O psicoterapeuta-genealogista - Não podemos identificar o 
projeto do psicoterapeuta-genealogista com o que nonnalmente 
se entende por psicoterapia nos dias de hoje. Em primeiro lugar 
porque a psicologia vigente ainda pemrn.nece, em grande parte, 
prisioneira dos pré-juízos e apreensões morais; portanto, nos 
dizeres de Nietzsche, ainda não se arriscou nas profundezas 7. Em 
segundo lugar porque o projeto nietzschiano é muito mais amplo 
e diversificado do que o âmbito de uma profissão recortada e 
circunscrita aos limites da clinica, como é a do psicoterapeuta 
contemporâneo 8. A psicoterapia-genealógica pode estar-se reali-
zando através de múltiplas categorias profissionais: o professor, 
o artista plástico, o ator. o psicoterapeuta etc; com maior probabili-
dade, estará acontecendo em espaços menos controlados pelos 
códigos instituídos: em qualquer parte do corpo social onde 
alguém. por alguma razão, esteja denunciando, colocando cm 
xeque valores que apequenem e empobreçam a vida. Estou 
falando de ações efetivas, capazes de produzir mudanças e não de 
meras demagogias: convém não confundir o psicoterapeuta-gene-
alogista com o vendedor de ilusões, comumente disfarçado de 
revolucionário. Este, embora possa denunciar valores do mundo 
vigente. está sempre aponta.não para um ideal futuro , um outro 
mundo. Não! A revolução que interessa tem que acontecer aqui e 
agora. neste mundo, deve afetar esta realidade, revolução do 
cotídiano. E para ser efetiva deve ser capaz de mergulhar nas 
tessituras do corpo social. político, simbólico. atingir as mínimas 
dobras. os espaços mais microscópicos. para, então. isolar o vírns 
da doença e poder combatê-lo. Esse vírus estará sempre disfarçado 
POR UMA PSICOTERAPIA GENEALÓGICA 2 1 
como um va 1.~'"º ;ve,sal.;serà pred so, então, rasgam su fanta- / 
sia tira por tira, denunciando que ele tem uma gênese uma y 
provemenci e uma emergência9 . E mostrar que a contextura 
histórica que o pro uz1ürõC por sua vez. produzida por um 
conjunto de casualidades, uma convergência de fo1·ças absolu-
tamente singular que só pode explicar-se como obra do acaso. 
Com isso o vírus perderá toda a dimensão representativa que lhe 
dava força e poder; reencontrará sua origem casual e, a partir daí, 
seu devir transmutante. Pois a tarefa da psicoterapia nietzschiana 
é essa mesmo: a transmutação dos valores. Seja pacientemente 
/ rastreando a composição de um valor instituído, seja mapeando 
os vários pontos do corpo social onde irrompem movimentos 
marginais que o questionam e o põem em xeque, o psicoterapeuta-
genealogista será primordialmente um instrumentador da 
mudança. Cuidando para que a vida retome seus valores mais 
nobres. 
3 
Psicoterapia: etimologia - O termo psicoterapia é fomrndo 
por duas palavras gregas: psykhé e therapéia. Psykhé significa: 
sopro de vida, alento, alma, vida, ser vivo e. por extensão. as 
faculdades da alma: entendimento, prudência, sentimento, de-
• • • Jfl 
seJo, apetite, a pessoa e a coisa amada . Entretanto. o sentido 
mais originário do tenno é respiração, sopro vital, vida, derivado 
do verbo psykhein que significa soprar, respirar 11• Therapéia. 
por sua vez, significa cuidado, previsão, solicitude, trato cui-
dadoso· e, por extensão, cuidados médicos, tratamento 12. Psi-
~oterapia significa, pois. etimologicamente. o cuidado pela vida. 
E curioso, entretanto, observar que o tenno therapeutés (ou 
therapeutér) designa. ao mesmo tempo. o serviçal-escravo,o 
servidor ou adorador de um Deus e o médicol:1_ Que o 
terapeuta-médico possa esta r associado a serviços religiosos não 
chega a causar espanto. se nos lembrannos das origens mágico-
religiosas da medicina, na Grécia antiga. Entretanto, que o mesmo 
tem10 possa, simultaneamente, designar funções ligadas à mais 
A PSIC'OTERAPIA EM I3USCA DE DIONISO 
baixa e à mais alta hierarquia social é algo que merece maiores 
considerações 14• Não se trata, em absoluto, de buscar associações 
possíveis entre o escravo e o médico enquanto realidades em píri-
cas: Platão nos conta que o médico de escravos tratava seu 
paciente quase como coisa. não lhe falando mais do que o sufi-
ciente para passar suas instrnçõcs práticas. Ou seja, o escravo não 
era considerado sequer digno de explicações sobre a sua doença; 
a ele cabia somente obedecer, ao outro ditar ordens 15• No nível da 
hierarquia social. há. pois, uma separação absoluta entre médico 
e escravo. As associações devem ser buscadas num âmbito semân-
tico : é possível que o terapeuta-médico seja servo. escravo, cm 
alguma dimensão do seu ser? Por um lado não: como poderia uma 
existência-escrava praticar uma medicina que. em suas origens, 
busca uma libertação do espírito como condição para a cura do 
corpo 11;? Um escravo jamais poderia ser um guia para a liberdade. 
Por outro lado. sim: somente alguém que conheceu. em algum 
nível. a escravidão c conseguiu libertar-se pode entrar em res-
sonânciacom a psykhé escravizada do doente e, então, conduzi-lo 
a uma cura possível. A mitologia grega é rica desses enredos. nos 
quais a participação cm certas realidades aprisionantes é condição 
para conhecê-las e poder transcendê-las. Assim. o herói-trágico 
devia submeter-se à moira (o destino) como condição para ultra-
passá-la 17. E não é à toa que a figura primordial do médico, na 
mitologia grega. era o centauro Quirão (em grego Kheíron. 
possivelmente uma abreviatura de Kcirurgós = "que trabalha ou 
age com as mãos. cirurgião " 1s): por ter. ao mesmo tempo, natureza 
animal e humana (meio cavalo, meio homem), conhecia as vicis-
situdes da carne e do espírito: por ter sido acidentalmente ferido 
por Héracl es, sabia, mais do q uc ninguém, compreender a si tu ação 
de seus pacientes 19• Assim, posso agora arriscar uma interpretação 
que. se não for exata na derivação etimológica. será pelo menos 
sugestiva no âmbito do sentido: o terapeuta designa o escravo-
livre, aquele que, por conhecer na própria pele as cadeias do 
servilismo, da doença, e a transmutação libertadora, pode, 
melhor do que ninguém, servir como guia nessa viagem pelo 
devir. Ele será, em algum nível, um ser(vo)-transmutante20 
\ 
POR UMA PSIC'OTERAPIA GENEALÓGICA 
Acredito que os psicoterapeutas concordarão comigo. muitos, 
talvez, ao lembrarem que o primeiro impulso para a profissão 
surgiu da necessidade de cuidarem da própria neurose. 
4 
Psicoterapia e vida - Se a psicologia, para Nietzsche, é a 
" morfolog ia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potên-
cia". a psicoterapia será o tratamento das fonnas patológicas 
dessa vontade. dos descaminhos por onde se enredou e se perdeu. 
Tratamento: esta palavra pode, sem dúvida, cxprim ir a dimensão 
mais técnica do grego therapéia, com a condição de que guarde 
em si o sentido mais originário do tem10. psico-terapia signifi- · 
cando, pois. o cuidado (therap~ ia) p~la vida (psykhé). Entretanto:",:$ 
no presente caso, cvideÍÚemente não por mera coi · dência. os 
tennos se recobrem, dado que a v tade de..potê ia, n âmbito 
da genealogia nietzschiana. designa a própria vi. a21. ortanto, 
nesse caso. precisamente, a psicoterapia não poderia designar 
nada além de cuidado pela vida . Esse cuidado assume a fonna 
de tratamento na medida exata em que a vida se encontra 
doente22• necessitando desenvolvimento. Des-envolvimento sig-
nifica aqui exatamente o que a origem etin10lógicã c.xplicita, ou 
seja. des-enredamento, diferenciação: portanto. nada que tenha 
a vercorn a idéia de evolução ou progresso. no sentido de uma 
direção pré-determinada ou de uma seqüência de configurações2J_ 
A vida~s_ é a vida enredada por valores que a infu~: 1, 
~bstrnem, empobrecem, necessitando dcs-énvolvimcnt~ soltur,a. 
liberdade. para recuperar a sua potência cria.dora e produzir novas 
fonnas . A psicoterapia cuidará, pois, do des-envolvimento da 
vida no desabrochar das suas formas. 
Segunda Parte 
PSICOPATOLOGIAS 
5 
Psicopatologia: etimologia - O tem10 psicopatologia é for-
mado por três palavras gregas: psykhé, páthos e lógos. Um dos 
significados de páthos é o de "mudança produzida nas coisas " 24: 
este parece ser precisamente o sentido absorvido pelo tem10 
patologia = "ramo da medicina que se ocupa da natureza e das 
modificações estruturais e/ou funcionais produzidas pela doença 
no organismo " 25. Mas páthos significa além disso "experiência" , 
" prova", "acontecimento", "estado agitado de alma, paixão , ,z6, 
sentidos que descrevem justamente o que se produz quando dois 
ou mais corpos se afetam num acontecimento e se modificam 
através destas afecções, que podem atingir o cotpo e/ou o espírito. 
O termo latino affectione gerou tanto o tem10 português afecção 
- que passou a designar doença - quanto o tenno afeição - que 
significa afeto. Entretanto, a afecção designa justamente a doença 
cuja origem foi esquecida ou descartada: "processo mórbido 
considerado em suas manifestações atuais, com abstração de sua 
causa primordial: doença" 27. Ou seja. o tenno remete a um estado 
final (= doença), proveniente de transformações produzidas pelo 
) 
A PSICOTERAPIA EM susr A DE DIONJSO 
encontro de corpos no ato de se afetarem, mas num momento em 
que já se separou este ato do seu efeito. Afeição, por sua vez, 
passou a designar afeto, mas abstraída também a sua origem: o 
ato de afetar e ser afetado. Após estas considerações -inspiradas 
nos ensinamentos de Spinoza-posso, enfim, definir psicopatolo-
gia como o relato (lógos) das afecções e das mudanças afetivas 
(páthos) produzidas nos seres vivos (psykhé) e provenientes dos 
seus encontros, dos acontecimentos (páthos) em que se 
afetaram mutuamente. Pode~a acrescentar - 'spinozanamente' 
falando -que o caráter doentio dessas afecções consiste no fato 
de gerarem uma diminuição ou impedimento na potência de 
ação do(s) corpo(s)/espírito(s) afetado(s), sendo esta a 
mudança afetiva básica produzida. Acredito que esta definição 
possa servir bem aos propósitos da genealogia nietzschiana. 
Saúde, doença, nobreza, escravidão e livramento 
6 
Saúde e livramento - No prefácio ao primeiro volume de 
Humano, demasiado humano, escrito em 1886, Nietzsche des-
creve o que ele denomina " grande livramento'', processo através 
do qual um espírito toma-se livre, rompendo com as suas raízes, 
com a tradição que o nutriu e acalentou e se impondo um " isola-
mento doentio" até atingir uma "descomunal segurança e saúde 
transberdante " 28 . Essa saúde ele define como: " aquela madura 
liberdâ(;lç do espírito que é também auto-domínio e disciplina do 
coração e: pennite os caminhos para muitos e opostos modos de 
pensar, ( ... ) aquela interior envergadura e mimo do excesso de 
riqueza, que exclui de si o perigo de que o espírito porventura se 
perca em seu próprio caminho e se enamore de si e em algum canto 
fique sentado ineb1iado. ( ... ) aquele excedente de forças plásticas, 
regeneradoras, confonnadoras e restauradoras, que é justamente 
o sinal da grande saúde, aquele excedente que dá ao espírito a 
perigosa prerrogativa de viver para o ensaio e poder oferecer-se 
PSICOPATOLOGIAS 29 
à aventura: a prerrogativa de maestria do espírito livre "
29
. Saúde, ) ~ 
significa, pois, autodomínio e disciplina capazes de permitir -
ao espírito habitar a multiplicidade; envergadura interior ~ 
para contornar os narcisismos paralisantes de meio-caminho; ' 
excesso de forças plásticas que dão forma à vida e a 1·egene-
ram, lançando-a no ensaio, na aventura. Através do grande 
livramento o espírito toma-seinicialmente um estrangeiro na 
própria terra, nômade iconoclasta que revira tudo do avesso> 
estraçalh~ o que o atrai, age por puro arbítrio. "No fundo de sua ' 
agitação e errância - pois ele é intranqüilo e sem rumo. ern..,seu 
caminho_ c~m~f~ est_á o pónto de interrogação_ de 
uma cunos1dade cada vez mais perigosa: 'Não se pode desv1rar 
todos os vafores? E bom é talvez mau? E Deus apenas uma 
invenção e refinan1ento do diabo? É talvez tudo, no último fundo, 
falso? E se somos os enganados, não somos por isso mesmo 
também enganadores? não temos de ser também enganadores?' 
-tais pensamentos o conduzem e seduzem, cada vez mais adiante, 
cada vez mais além. A solidão o rodeia e enrodilha, cada vez mais 
ameaçadora, mais sufocante, apertando mais o cÓração ... "
30
. O 
segundo momento da metamorfose pode envolver longos anos de 
convalescença, "um estado intermediário ( ... ), uma pálida, refi-
nada felicidade de sol e luz que lhe é própria, um sentimento de 
liberdade de pássaro, panorama de pássaro, desenvoltura de pás-
saro,( ... ) em que curiosidade e delicado desprezo se ligaram.( ... ) 
Vive-se, não mais nas cadeias de amor e ódio, sem sim, sem não, 
voluntariamente perto, voluntariamente longe, e de preferência 
esquivando-se, desviando-se, esvoaçando para longe, outra vez 
além, outra vez voando para o alto; está-se mal acostumado, como 
todo aquele que viu uma vez uma descomunal multiplicidade 
abaixo de si - é-se agora o reverso daqueles que se afligem com 
coisas que não lhe dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem 
respeito somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o 
afligem ... " 31. A terceira e última etapa da transmutação é uma 
lenta reconciliação com a vida, com o mundo: ''Fica outra vez 
mais quente ao seu redor, mais amarelo, por assim dizer; senti-
mento e simpatia adquirem profundeza. brisas de degelo de toda 
30 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
espécie passam por sobre ele( ... ) Ele olha com gratidão para trás 
- grato a sua andança, a sua dureza e estranhamento de si, a seu 
olhar à distância e a seu vôo de pássaro em frias altitudes. Que 
bom que ele não permaneceu, como alguém delicado, embotado, 
que fica em seu canto, sempre 'em casa', sempre 'junto de si'! ( ... ) 
l
Que felicidade ainda no cansaço, na velha doença, na recaída do 
CO!)vale çente! Como lhe agrada sentar-se quieto sofrendo, urdir 
paciencia, estar deitado ao sol! Quem entende, igual a ele, de 
felicidade de inverno, de manchas de sol sobre o muro! São os 
animais mais gratos do mundo, e também os mais humildes, estes 
convalescentes e lagartos semi voltados outra vez à vida: -há entre 
eles os que não deixam partir nenhum dia sem pendurar-lhe um 
pequeno hino de louvor na orla do manto que se afasta. E, falando 
sério: há uma cura radical contra todo pessimismo (o câncer dos 
velhos idealistas e heróis da mentira, como é sabido) ... " 32 . Quando 
tiver atingido esse estágio, o espírito terá se tornado senhor das 
suas próprias virtudes, terá aprendido o perspectivismo de toda 
estimativa de valor, "e também a parte da estupidez referente a 
valores opostos e a toda penitência intelectual com que se faz 
pagar todo pró, todo contra,(. .. ) a conceber a injustiça necessária 
de todo pró e contra, a injustiça como indissolúvel da vida, a vida 
mesma como condicionada pelo perspectivismo e sua in-
justiça"33. Então, ele dirá: "Como aconteceu comigo, assim deve 
acontecer com todo aquele em quem uma tarefa quer tomar corpo 
e ' vir ao mundo'. "34 
7 
A sabedoria do perspectivismo - À primeira vista, pode 
parecer que a descrição nietzschiana do "grande livramento" do 
espírito estaria, sub-repticiamente, reintroduzindo um processo de 
evolução no desenvolvimento da vida. Afinal, não se trata de 
fases necessárias pelas quais o espírito teria de passar, atraves-
sando estágios contraditórios - a pertinência-aprisionamento e a 
errância-livramento-para atingir a síntese dos estágios anteriores: 
pertinência-livre, à semelhança da velha dialética?35 Nietzsche 
l'~IC'OPATOLOGIAS 31 
diz: "O secreto poder e necessidade dessa tarefa reinará sob e em 
seu destino particular (do espírito) igual a uma gravidez incons-
ciente - muito antes de ele mesmo ter colhido no olho essa tarefa 
e saber seu nome. Nossa destinação dispõe sobre nós, mesmo 
quando ainda não a conhecemos; é o futuro que dita as regras do 
nosso hoje " 36. Entretanto, a afim1ação da necessidade da tarefa 
não significa a afirmação da necessidade de um percurso pré-
determinado, nem movido pela contradição. Ao contrário desse 
tipo de leitura, o próprio Nietzsche descreve esses estados como 
"1>reparativos ", "ensaios", "desvios", ou seja, o contrário de 
um caminho pré-detemlinado; também os descreve como estados 
" múltiplos e contraditórios de indigência e felicidade na alma e 
no corpo " 37, o que quer dizer estados ambivalentes, contendo 
simultaneamente qualidades múltiplas e não estados opostos 
em contradição38. O que é necessário no livramento é apenas 
o próprio livramento, nada mais. Que, a partir daí, o espírito 
erre a esmo é apenas conseqüência de quem perdeu o chão; que 
se distancie e sobrevoe o mundo como um pássaro, significa 
apenas que sente medo de chegar perto demais e perdera liberdade 
recém-adquirida; que tem1ine por se reconciliar com a vida e o 
mundo é conseqüência de que, desde o início, ele era inerência à 
vida e ao mundo. A errância, o sobrevôo e a reconciliação não 
são, aliás, comumente, fases seqüenciais ordenadas, mas estados 
que se interpenetram e se sobrepõem e a partir dos quais se 
compõe a coreografia de cada espírito singular: um misto de 
ensaios, preparativos, desvios, errâncias, vôos e pousos, resultan-
tes dos seus encontros (Spinoza) e através dos quais se persegue 
a necessidade posta: a liberdade(= saúde) do espírito: apro-
priação da sua potência afectiva. A psicoterapia genealógica 
tem justamente por função cuidar desta dança, instrumentando a 
sua coreografia e incentivando os seus movimentos. para que ela 
não se enrede nos valores instituídos, no caminho pré-detenni-
nado que a cultura impõe sob o nome evolução. Reconhecer o 
perspectivismo e a injustiça do perspectivismo significa saber 
que qualquer direção tomada tem seus prós e seus contras, 
suas vantagens e desvantagens e que nada é absoluto, que a 
32 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
Vida é um constante ensaio sem direção pré-determinada. 
Enredar-se na injustiça do perspectivismo significa - diria 
Heráclito de Éfeso - a limitação de só conseguir visualizar a 
vida de uma perspectiva particular, sem perceber que ela é 
particular e sem ter acesso ao lógos constitutivo do devir. 
Então, certos acontecimentos que, daquela perspectiva, 
poderão aparecer como injustos, serão de fato tomados como 
tal, não sendo associada a sua injustiça com a injustiça ne-
cessária a toda perspectiva, pois, na imanência do lógos cons-
titutivo do devir - e para a avaliação do deus que dele 
participa, dizia Heráclito - o mundo é fundamentalmente 
justo. A injustiça do mundo é a injustiça do perspectivismo, 
. h 19~0 , . 1· ' b d merente ao umano.- espanto 1vre, que so revoou o mun o 
e viu a multiplicidade abaixo de si, e pôde experimentar os mais 
diferentes ângulos de visão - todos limitados e injustos em si 
próprios - sabe disso melhor do que ninguém; ele caminha para 
além-do-homem.40 
8 
A nobreza salutar-O nobre corresponde, dentro da tipologia 
nietzschiana, à fomrn de vida afinnativa e criadora de valores, o 
que significa que a nobreza é, por definição, salutar. Nenhum 
outro conceito se presta, entretanto, a tantos mal-entendidos, na 
filosofia nietzschiana, quanto este de nobreza e o seu par oposto, 
escravidão. Talvez porque o filósofo tenha, de fato, se inspirado 
em diferentes culturas e até aponte uma origem histórica para a 
formação desses dois tipos 4 1, o nobre e o escravo acabam, dentro 
da interpretação popularizada de Nietzsche, bastante confundidos 
com as classes sociais que lhes deram origem.É impo,tante deixar 
claro, pois, mais uma vez, que eles designam antes de tudo formas 
de vida ou tipos de moral42 que, à parte sua suposta origem 
histórica, não se confundem com classes sociais. grupos ou 
mesmo indivíduos: ' ·acrescento desde logo que, cm todas as 
culturas superiores e mais mistas, aparecem também tentativas de 
mediação entre ambas as morais, e ainda mais freqüentemente 
i'SK'OPATOLOGIAS 33 
a mescla das mesmas e seu recíproco mal-entendido, e até 
mesmo, às vezes, seu duro lado-a-lado-até no mesmo homem, 
no interior de uma única alma"
43
. Assim, pois, se o nobre· e ºI. 
escravo podem -nas palavras de Nietzsche -habitar o interior de 
uma única alma, fica, de uma vez por todas, desfeito o equívoco: "-n 
eles designam, antes de tudo, formas de viver que se alternam ti 
se 111isturan1 ou se sobrepõem na constituição de uma subjetivi- \ \."-d,t 
dade. Eu costumo designá-las como circuitos de vida. O circuito- J 1.~t nobre define-se por uma composição de forças ativas e de 
forças reativas, com o predomínio das primeiras sobre as 
segundas ou, como já o defini num outro texto, com o pre-
domínio do inconsciente ativo sobre o inconsciente reativo44. 
Mas o que significa isso de fato? Significa que as forças ativas -
que são as forças fortes, em completa posse da sua potência -
controlani as forças reativas - que são as forças fracas, separadas 
do seu potencial para finalidades adaptativas45 . Por exemplo, 
quando eu como um prato de comida, um conjunto de forças 
ativas, que a consciência traduz no seu código uti_litário como 
apetite 46, controla as forças reativas envolvidas nos movimentos 
de tronco, boca, braço, mão e dedos; se estas últimas não fossem 
separadas das suas potências totais, reduzidas em suas potências 
para compor a força necessária à produção do movimento 
global, jamais o ato de comer seria possível. Dito de outra fonna, 
as forças ativas representam a vontade de potência em plena 
potência, controlando as forças reativas que são vontade de 
potência domesticada, disponível sob a forma de traços 
mnêmicos articulados a movimentos corporais e/ou mentais. 
Um outro exemplo: se sou agredido, imediatamente as forças 
ativas acionam as forças reativas, catalisando lembranças e pro-
duzindo atos motores e/ou verbais de defesa. O que possibilita 
esse controle das forças ativas sobre as reativas é um mecanismo 
que Nietzsche denomina esquecimento e que separa a consciên-
cia desse inconsciente reativo, fo nado de marcas mnêmicas; 
não fosse o esquecimento, a consciênc1âse veria invadida por 
lembranças e sentimentos do passado, incapacitada de operar em \ 
sintonia com o presente-em-devir e as forças reativas tomariam o 
A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
controle das forças ativas (que é o que define justamente o 
circuito-escravo). O esquecimento, por sua vez, tem o seu fim-
cionamento garantido pela capacidade de o corpo e o espírito 
' 'digerirem", metabolizarcm os acontecimentos, o que significa 
que sempre que isso não acontece esses acontecimentos passados 
pennanecem, sob a fonna de lembranças e de sentimentos, como 
fantasmas, invadindo o presente e subvertendo o controle das 
forças ativas47 . Isso posto, posso agora tentar caracterizar mais 
precisamente o que vem a ser essa saúde, própria ao funciona-
mento do circuito-nobre. Quando uma subjetividade está co-
mandada por um circuito-nobre, isso significa, em primeiro 
lugar, que ela tem sua referência vital na afirmação da sua 
vida ·enqt~ devir. Assumeã própriá força e, por isso, jamais 
vai· buscar justificativa para as suas alegrias e infelicidades nas 
ações dos outros. O outro é apenas outrem, um outro ser diferente 
de si, com quem é possível entrar em ressonância, trocar amor ou 
agressão, dependendo dos afetos gerados nos encontros. Mas a 
agressividade que brota de si é uma agressividade salutar, que 
afinna e demarca as diferenças e, mesmo na cólera, é capaz de 
reconhecer e respeitar a força do inimigo; não é jamais uma 
agressividade defensiva e ressentida que, quando emerge é jus-
tamente sinal de que o circuito-nobre foi suplantado por um 
circuito-escravo. Na agressividade nobre impera, em geral, uma 
serenidade de quem se sabe em posse dos seus recursos, de quem 
~ afinna a própria força como fundamentalmente produtora de 
1 realidade, construtora de valores, onde a destmição é parte inte-
\ 
grante do movimento transfigurador, criador. As raivas, os ódios. 
são geralmente passageiros, na medida em que o esquecimento é 
aí uma função ativa. uando o a.mor acontece, ele traz, por sua 
vez, uma expansão mútua das subjetividades envolvidas, através 
de suas ressonâncias como intensidades vibráteis. Às vezes é 
inevitável que essa expansão gere possessividade e desejo de 
domínio - desembocando, então, em conflitos e disputas - mas 
aprende-se logo que a autonomia de cada um é a fonte de riquezas 
da relação. Quando o amor degenera em pura dependência. indi-
ferenciação e mesmice, isso significa que um circuito-escravo 
1 lt P I 'i\ 1 OI,< K H AS 35 
.i.,•,umiu o controle das subjetividades. Enquanto ativo, o amor 
1111h1c propicia, também, a vivência de momentos únicos e raros. 
1111d1.: o que nos toma conta é um movimento de exaltação à vida, 
rnm Ludo o que ela tem de bom e de mim, de perfeito ou de 
1111pc rfoito, de prazer ou de dor. Puro amor de viver, coragem 
~•,1,111cle de dizer sim, momentos que valem a eternidade. Através 
th.:ssa exaltação à vida, desse amor fati, sentimo-nos capazes de 
" digerir", metabolizar os acontecimentos, extraindo deles o que 
IGm de melhor: seu br~· 1-l:5,;eu fulgor, aprendendo, assiin, a crescer 
l' Olll a experiência. ' Viver isso significa para nós: transmudar 
constantemente-tudo o somos em luz e chama; e também tudo 
o que nos atinge", dizia Nietzsche 48. Mas tudo isso pode cheirar; 
a idealização se nos esquecemos de que o homem não é feito s@ 
desses ing redientes e que esta descrição é a da he emonia de uma .,p..-----certa c_onjuntura de forças, portanto de um modus vivendi 
tipico, não de uma subjetividade tomada no seu devir mundano, 
onde circuitos-nobres e escravos nom1almente disputam a supre- \ 
macia da psykhé49 . Trata-se, pois, da descrição de um tipo, o tipo 
11obre, hoje bastante raro, na medida em que atrofiàdo ou suplan-
tado pelo tipo escravo na maior parte da humanidade. Pois a 
civilização, em seu progresso, é o oposto disso: a .proliferação da 
moral e da culpa, a doença disseminada e posta como norma 5°. 
9 
A escravidão como aprisionamento pelo Outro - Dentro da 
tipologia nietzschiana, a escravidão define-se como um cir-
cuito-de-vida composto de forças ativas e de forças reativas, 
com o predomínio das segundas sobre as primeiras ou, melhor 
dizendo, com a sobrepujança do inconsciente reativo sobre o 
inconsciente ativo51 • CYprocesso que conduz a esta conjuntura 
tem a sua gênese nos acontecimentos, na luta entre campos deÍ .-
força, onde o vencedor toma o vencido impotente, incapaz de 1 \.' 
reação, separando-o da sua potência e marcando-o celm o • .J 
código vitorioso. Retomo aqui um exemplo já usado anterior-
mente52: uma menina, adotada por pais brancos, ainda recém-nas-
36 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
cida e quando se pensava ser ela também branca, revelou-se, com 
o crescimento, ser de cor parda e cabelos encarapinhados, sendo 
então, imediatamente desqualificada e tachadà de "feia". Despo-
~ tencializada na sua diferença, na sua singularidade; t~ndo tido um 
ãcÕlhin1ento afetivo mais forjado do que real, ela era, aos nove 
anos, u~ poçÓ de ressentimento e de ódio. Na gênese desse 
~ ressentimento temos, pois, dois campos de forças estético-morais 
....._ ; em confronto: valoresdaraçanegrae da raça branca, com a vitória 
dos segundos sobre os primeiros. A partir daí, a criança, como 
\ 
expressão da raça desqualificada, é destituída das suas qualidades, 
ou seja, separada da sua potência pela marca do código vencedor: 
"feia". Separada da sua potência, na medida em que qualquer, ação sua é impotente frente à força interpretante: qualquer 
coisa que ela faça, será sempre "feia". Essa impotência, cir-
cunstancialmente produzida - fossem os pais negros ou menos 
narcisistas, o resultado seria outro - é a gênese do circuito-
escravo: seu impacto é tal que ela inverte o domínio das forças 
naquele circuito. Doravante ele será regido pelos efeitos de 
reação a essa marca, ou seja, por forças reativas, na sua luta 
impotente frente ao acontecido. Isso quer dizer que as forças 
dominantes no circuito são, agora, aquelas despotencializadas 
pela marca escravizante -forças reativas -ou, em outros termos, 
que quem domina no circuito é a impotência. A dinâmica que 
se segue é a luta inglória dessas forças: elas tentam reagir à 
marca mas estão, ao mesmo tempo, regidas pela marca: 
qualquer expansão bélica, empreendida significa não só o 
fracasso de não conseguir destruir a marca mas, ainda, o efeito 
de propagá-la a outros circuitos-de-forças da personalidade, 
separando-os da sua potência, escravizando-os. Num universo 
humano onde dominam valores morais: sofrimento passivo, 
auto-piedade, etc., as forças ativas acabam progressivan1ente 
despotencializadas pelas forças reativas, que tendem a controlar 
a personalidade. Ao ser possuído pela impotência generalizada, o 
ser humano não tem alternativa: "privado de si, só pode tomar o 
outro como fonte de referência; castrado, só pode invejar e culpa-
bilizar a potência do outro; impossibilitado de ação presente, só 
"I ,.... 
') 
\ r.,<-t 
'~); 
1 1ll'<ll'ATOLü< ;IAS , 1' 37 
'tJ 
pode rc-sentir o passado, eternizando o que era contingente e 
lni luito " 53. O ressentimento designa, como a etimologia do 
1 •11110 revela (re-sentimento), uma reiteração do sentimento 
pnssado que, enquanto vivência passiva, toma o lugar da ativi-
d11de presente. Esta está muito dificultada porque as forças sub-
Jt:livas que, em épocas normais, articulam e conformam as ações 
(forças ativas), foram despotencializadas, rebaixadas pelas 
forças reativas; e também devido à dupla inscrição temporal do 
circuito-escravo: o passado, invadindo o presente, torna !._ 
qualquer ação atual necessariamente inoperante: é impossível 
lutar contra o que já aconteceu e que só persiste através das / 
mudanças que produziu, da marca que deixou. Assim, pois, o 
escravo define-se por um aprisionamento pelo Outro: outro-
imaginário no qual ele busca a própria potência castrada, que 
pcns,a ~ue o outr?_det~m c?m~o_mn troféu,_ diri~!ndo-lhe, e~tão, ~ 
seu od10, culpab1hzaçao e mveJa; Outro-s1mbohco que designa o / 
próprio código com que foi marcado, como com ferro-em-brasa. 
Mas a chave da cadeia do escravo não está com o outro-imaginário 
e sim com o Outro-simbólico: ela é chave da gênese e produção < - __ _; 
dessa marca que o aprisiona e o castra, genealogia da cons-
trução desse valor, desse código. O que quer, dizer, também: 
genealogia da sua desconstrução possivel." ~ 
Neurose, escravidão, sonhos e forças marginais 
10 
Escravidão e neurose - O termo neurose é formado por duas 
palavras gregas: neuron, que significa nervo e ose, que significa 
ação, remetendo, pois, a uma suposta ação envolvendo os nervos. 
Sua origem remonta ao século XIX, quando a medicina supunha 
que as neuroses tinham sua etiologia numa disfunção do sistema 
nervoso, concepção da qual o próprio Freud chegou a partilhar, 
embora não completamente - vide o famoso Projeto de uma 
psicologia para neurólogos que escreveu, mas não quis publicar 
38 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
enquanto vivo. Essa linha de investigação continua tendo desen-
volvimentos ainda hoje, principalmente através das pesquisas 
bioquímicas, mas não é isso que interessa aqui, dado que o tema 
desta reflexão é a psicoterapia e não a psicofannacologia55 . O que 
interessa é que a etimologia do tenno fala de uma ação afetando 
os nervos e produzindo mudanças nervosas que se exprimem, 
então, nos sintomas neuróticos; ora, a mesma interpretação 
neurofisiológica pode ser transposta para um nível psicológico: 
uma ação afetando uma psykhé e produzindo mudanças afetivas 
(páthos ), que se expressam num conjunto de sintomas, o que, sem 
dúvida, define a neurose como uma psicopatia. Essa ação, con-
fon11e já defini anterionnente, é sempre um encontro afetivo, na 
medida em que tem a capacidade de afetar e produzir mudanças. 
\' Se for possível interpretar essa afecção e essa mudança como 
pt:o.@..ç_ão 4e irn.P-O!_ê_!!_9JJ ___ (~ afeta~ endo separada da sua / 
potência). esse encontro, portanto, como uma luta entre campos 
de força, onde o vencedor marca o vencido com o seu código, 
será possível identificar escravidão e neurose como sinônimos. 
Resta investigar até que ponto essa sinonímia pode fazer justiça a 
ambas as noções. 
11 
Neurose, escravidão e angústia - Uma das primeiras noções 
de que Freud lança mão para entender a gênese da histeria é a de 
trauma posto como: "acontecimento da vida do indivíduo que se 
define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se acha 
o indivíduo de lhe responder de forma adequada, pelo trans-
torno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na 
organização psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo 
car~cteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo, 
relativamente à tolerância do indivíduo e à sua capacidade de 
dominar e de elaborar psiquicamente essas excitações"56 . Isso ,h 
poderia nos levar, prematuramente, a pensar em algo como um ,../ 
trauma na gênese do ressentimento e do circuito-escravo. Afinal , 
como diz Assoun, ' 'tudo procede, na verdade, do fato de que o 
J•~J( '()i 'ATOLOGIAS 3!) 
cíeito não se descarregou imediatamente, pela atividade. A partir 
dai se desencadeia um mecanismo tóxico. É em termos de en-
venenamento que Nietzsche evoca justamente este efeito pelo 
qual o que não pode descarregar-se como reação motora cria um 
verdadeiro foco de infecção que ganha o conjunto do psiquismo. 
Assim é a doença do ressentimento, que age à maneira de um 
' parasita' e 'se instala permanentemente'' '57. Assim, poderíamos 
pcnsarqi.ieã impossibilidade de ab-reação da afecção traumática, 
devida à incapacidade do indivíduo, ao estado de desamparo 
cm que se encontra - que também lhe impede de dominar e 
elaborar as excitações -estaria tanto na gênese da histeria quanto 
do circuito-escravo (do ressentimento); poderíamos, inclusive. a 
partir daí, procurar relações entre tal neurose e tal estado afetivo. 
Entretanto, convém não caminhar tão apressadamente. Em 
primeiro lugar, porque a noção de estado de desamparo (motori-
sche Hilflosigkeit) designa, na perspectiva freudiana, mais o es!ado 
de impotência característico da total dependência do lactente~8 do 
que um acontecimento produzido pela luta entre. campos de 
força; ou sejaaimpotênsia aí é um estado dado, característico da 
imaturidade biológica e não produto deum afrontan1ento através / 
do quâl um campo de forças é se arado da sua potência por outro. • 
Quase como se reud, 1iêsse-momento, se contentasse com uma 
gênese da neurose mais biológica, considerando pouco as forças 
interpretantes e a dimensão simbólica nelas presente. Mais tarde, 
a noção de trauma perdeu, relativamente, a sua importância, no 
desenvolvimento da teoria freudiana, para outras como: fantasia, 
desejo, recalque, superego, onde a dimensão simbólica era mais 
levada em conta. Por isso, também, é preciso caminhar com mais 
, cuidado e menos pressa. De qualquer fonna, com Nietzsche J 
somos levados a pensar na gênese do escravo considerando a 
/ 
importância do efeito interpretante das forças vencedoras na 
produção da impotência das forças vencidas; é frente a essa 
codificação doadora de sentido que o outro -incapaz de dominar 
{ 
oc'ódigo estrangeiro - toma-se impotente. Essa impotência não 
é, pois, a impotência pura e simples de uma reação motora, mas a ) 
impossibilidade de qualquer reação motora alterar a marca im-
40 A PSICOTERAPIA EM BUSC A DE DION ISO 
posta e as conseqüências afetivas que delaadvêm. O envenena-
mento, o efeito tóxico, não decorre da impossibilidade de reações 
motoras, mas da sua inutilidade. A proliferação passiva das 
forças, cuja descarga torna-se impossível devido à impotência 
das reações motoras, clefine justamente a angústia, um dos 
principais sintomas da neurose.59 ':. _ .... 
12 
Histeria: escravidão sem recalque - Quando Freud descreve 
o caso de Elisabeth von R.60 - cujos sintomas histéricos eram as 
dores nas pernas que lhe impediam de caminhar bem, associadas 
a uma sensação de frio
6 1 
- ele tennina, ao longo da análise, por 
apontar como gênese da histeria um conflito desencadeado na 
época em que a paciente cuidava do pai doente, ao mesmo tempo 
em que saía com um rapaz de quem se enamorara. Freud supõe, 
então, que o caráter inconciliável - perante a sua consciência 
moral - entre o estado de beatitude vivido nos passeios em 
companhia do rapaz e a miséria em que estava seu pai doente 
produziu um recalque da representação erótica, sendo o afeto a 
ela ade rido aplicado para reanimar uma dor, de origem reumática, 
então presente
62
. Indo mais além na análise, ele descobre que o 
lugar da perna direi ta que doía era onde a paciente apoiava a perna 
doente do pai para trocar as ataduras. "Sem dúvida, deve ter sido 
decisiva para o rumo que tomou a conversão a outra modalidade 
do enlace associativo: a circunstância de que durante uma série de 
dias uma de suas pernas doloridas entrava em contato com a perna 
inchada do pai, tendo como origem a troca de ataduras. O lugar 
da perna direita marcado por esse contato pennaneceu desde 
então como o foco e o ponto de partida das dores, a zona his-
terógena artificial cuja gênese pude penetrar com claridade nesse 
caso "
63
. Temos, pois, aí, um encontro de corpos e afecções/afetos 
sendo gerados nesse encontro, através de marcas produzidas por 
um corpo sobre o outro: a partir daí, um dos sujeitos tem a sua 
potência corporal/espiritual diminuída64 . Embora esta seja a 
origem da histeria, ela não é , nos conta Freud, a origem dos 
1 1, <>l'I\ ICII Cl< HAS 41 
'l llt tomas histéricos de Elisabeth von R.; na verdade os sintomas 
11 l'Omcçam mais tarde, por um efeito retardado, quando a en-
. - t ~ o ti•, 11111 reproduziu essas tmpressoes em seus pensamen os . 
111•P,11nclo período da doença é descrito por Freud como ligado a 
11111 segundo conflito, da mesma modalidade que o primeiro: o 
1
1
11 ótcr inconciliável entre o amor/desejo que Elisabeth sente pelo 
v1111hado e o amor/respeito que sente pela innã. A representação 
:imorosa é então, segundo ele, recalcada e o afeto ligado a ela 
rnnvcrtido em dor tisica, tomando a perna esquerda, na medida 
111stamcnte em que a dor psíquica é evitada pelo recalcamento. A 
Hugunda conversão apóia-se na escolha anatômica já delimitada 
pela primeira conversão, constituindo-se numa ampliação e num 
n.:fo rço da mesma. De todas essas análises, que Freud realiza entre 
1 X93 e 1895, é possível que pelo menos uma delas tivesse sido 
reformulada se ele tivesse reinterpretado o caso mais tarde, 
quando o com plexo de Édipo tomou-se nuclear na sua teoria. Ele 
te ria, provavelmente, descrito o conflito originário da histeria de 
Elisabeth von R. como a condição inconciliável entre o desejo 
incestuoso, produzido pelo contato entre a sua pema·e a do pai, e 
as exigências morais do seu superego; teria ainda perseguido 
ramificações mais precoces desse conflito na vida da paciente. 
Para as considerações que quero realizar aqui, tanto faz tomar a / 
primeira como a segunda (possível) interpretação, dado que o que 
pretendo questionar não é o desejo incestuoso ~ as a idéi a _g.e?' 
rccalgue66 . Tomo, pois, a segunda interpretação como ponto de 
p~ O contato entre a pema do pai e a perna de Elisabeth pode 
ser descrito como colocru1do em ação três campos de força: o 
primeiro deles é um campo de forças conjuntivas envolvendo amor, 
carinho, sensualidade, quiçá sentimento de posse -afinal, Elisabeth 
não dedica toda a sua vida ao pai e à sua doença? Não se culpa pelo 
prazer que sente na companhia de outro homem? Quando a sua perna 
entra em contato com a perna do pai é como que possuída por essa 
onda de afetos. O segundo campo de forças aparece como um 
crunpo disjuntivo: é o conjunto de regras, normas, prescrições 
morais já incorporado aos hábitos motores de Elisabeth e que 
articulrun os modos de lidar com o corpo paterno; no mesmo 
·12 A PSICOTERAPIA EM BtJSC'A DE DIONISO 
instante em que a perna sente-se aconchegada, envolvida, seduzida 
pelo contato da outra perna, ela reconhece nesse envolvimento a 
perna do pai, sendo como que paralisada na suas sensações. O 
terceiro campo, também de forças disjuntivas, é a presença da 
morte que já se anuncia pelo inchaço da perna, pela atadura que 
deve ser trocada e que corta o calor e o aconchego com a sensação 
do frio. Nesse confronto entre os três campos, o segundo e o 
terceiro, disjuntivos, unem-se para capturar o primeiro, conjun-
tivo, e separar as suas forças - de sensualidade, aconchego, amor 
-de suas potências. Ou seja, se a inscrição erógena produzida pelo 
contato entre as pernas seria, em princípio, um signo de sensuali-
dade, a sua forma final, resultante do confronto das forças é a de 
sensualidade paralisada, envolta em morte, cuja expressão é 
dor e frieza. Dor e frio são, pois, as sensações que a perna em 
questão experimenta algum tempo depois. Com esse processo a 
consciência não tem nada a ver, nem no nível do sentir, nem no 
do codificar e decodificar, muito menos, portanto, no nível do 
recalcar. Freud supõe que a consciência já experimentou esse 
desejo e o recalcou baseado no pressuposto de que só a consciên-
cia é capaz de interpretar, de dar sentido aos acontecimentos67.;1A 
segunda etapa da formação da neurose pode ter seguido um 
caminho análogo ao anterior: frente ao envolvimento também 
proibido com o cunhado, o contraste entre a sua solidão e a 
felicidade conjugal da innã lhe gera dor6x e essa dor se expressa 
nas pernas, ao caminhar, como se elas dissessem, nos seus signos 
próprios, de pernas, que não conseguem avançar um passo na 
constnição de uma vida afetiva6(). Aqui, também. a dor nas pernas 
não substitui, necessariamente, uma dor expulsa da consciência, 
nem expressa um sentido simbólico recalcado; pelo menos esta 
interpretação não é a única possível, se se considerar que o corpo 
tem uma semiótica própria que não é, evidentemente, a da lin-
guagem da consciência. tampouco um arremedo seu. Que a cons-
ciência permanece dissociada de todo esse processo parece-me 
uma hipótese mais plausível. Porquê? Simplesmente porque o seu 
código moral não lhe permite representar os envolvimentos 
afetivos em questão, nem com o pai, nem com o cunhado. Assim, 
1';,l( '( li'ATOLOGIAS 43 
pois, quando Freud comunica a Elisabeth sua con~t~ção verbal 
interpretativa, ela a rejeita de todos os modos poss1ve1s: pode-se, 
sem dúvida, chamar isso de resistência, mas é a resistência de um 
código a uma interpretação que não cabe dentro dele. Ela só caberá 
através de uma espécie de ampliação, transmutação do código, 
que é o que acontece quando a interpretação é bem-sucedida. Mas, 
então. poder-se-ia perguntar: por que é fundamental que a ex-
periência das pernas ganhe o espaço da consciência? Afinal, não 
é isso que produz a cura? A resposta é uma só: a expe1iência das 
pcmas poderia ter-se desenrolado à margem e até a despeito da 
consciência se ela não tivesse sido paralisada numa marca e numa 
dor. ou seja, se as circunstâncias não envolvessem uma sensuali-
dade proibida e ela pudesse ter-se realizado como desejo. ao nível 
cio corpo, da sensibilidade e do entendimento que lhe são próprios. 
pois, na perspectiva nietzschiana, "não só o querer, m~ também 
o sentir e o pensar estariam disseminados pelo orga111smo: e a 
relação entre eles seria de tal ordem que, no querer. já estariam 
embutidos o sentir e o pensar. Entendendo que pensamentos, 
sentimentos e impulsos já se acham presentes nascélulas, tecidos 
e órgãos, Nietzsche não se limita a afirn1ar que os processos 
psicológicos teriam base neurofisiológica, mas, mais do que isso. 
procura suprimir a distinção entre fisico e psíquico ( ... ) no seu 
entender, não é todo pensamento que se dá cm palavras: apenas \ 
aquele que se toma consciente. Se a vontade da potência se exerce 
nos numerosos seres vivos que constituem o organismo e se, no 
querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, o pensamento 
está disseminado por todo o corpo. Nessa medida. ele é totalmente 
autônomo em relação à consciência, mesmo porque esta não passa 
de 'um órgão de direção', ·um meio de comunicabilidade'"
70
. 
Entretanto, quando a experiência afetiva e o movimento das forças 
nos espaços marginais à consciência são paralisados no circuito 
que lhes é próprio e nele não podem encontrar expressão possível 
senão numa dor e num congelamento - testemunhas do seu 
aprisionamento por um Outro -, a consciência é o circuito alte~-
nativo que resta. Como órgão central, de direção e de comu111- \ 
cação. ela é capaz de traduzir a experiência marginal num signo 
44 A PSICOTERAPIA EM B USC A DE DIO NISO 
verbal comunicável e colocar novamente em movimento, na 
esfera intersubjetiva, o que estava paralisado, aprisionado, no 
circuito originário. Mas essa tradução é sempre uma construção, 
dado que não se trata, de fato, de qualquer sentido la.tente, en-
coberto, que se deva descobrir, mas de construir uma ponte 
possível entre dois circuitos diferentes, ligados a experiências e 
códigos originalmente incomunicáveis, intraduzíveis um pelo 
outro. A sicoter ia genealógica não trata, pois, de tomar o incons~ 
ciente consciente -visto que, para ela, o inconsciente não designa o 
recalcado, mas o próprio jogo das forças, produtor de vida e de 
neurose. A t~refa a.q_ui é libertar circuitos para que, justamente, as 
suas forças inconscientes possam reencontrar a função que lhes é 
própria: a eterna desconstrução-reconstrução da vida, a produçãoj 
de um devir possível , que para o neurótico está comprometido. 
13 
A.fobia e a dissociaçcio da co11sciê11cia -Os circuitos margi-
na.is à consciência. não estão sempre ancorados numa dimensão 
corporal, como na histeria dita conversiva. Na histeria de 
angústia ou neurose fóbica, por exemplo, a experiência marginal 
apóia-se numa dimensão mais mental, abstrata: são construções 
interpretativas dissociadas da consciência. porque envolvem 
uma mentalidade diferente, desnivelada da funcionalidade adap-
tativa que lhe é própria. Às vezes são circuitos infantis, onipoten-
tes, totalmente domina.dos pelas formas de interpretação do 
mundo, características da criança que um dia se foi e que persis-
tem, lado a lado com as fonnas adultas, seus códigos, seus valores. 
Freud partia sempre da idéia de recalque. Para ele, a angústia da 
fobia originava-se da separação da carga afetiva da representação 
recalcada.; esse afeto, em vez de ser convertido num sintoma 
somático, era tra.nsfomrndo em angústia livre, que precisava., 
então, ser rei iga.da a algum objeto, como mecanismo da defesa do 
ego, para que a angústia. pudesse ser evita.da. a.través da fuga. 
Assim Freud explicava, por exemplo, a fobia de cavalos do 
pequeno Hans e todas as outras. Eu continuo pensando que a 
1', 1( 'Ol 'i\TOLOfHAS 4 5 
hipótese do recalque é desnecessária. Gostaria de dizer por quê, 
çontando o caso de uma cliente que apresentava fobia de lugares 
:tllos - como prédios ou aviões - ou de qualquer lugar fechado 
cuj a saída se encontrasse distante . A fantasia era sempre a de que, 
1n1m incêndio ou qualquer outra eventualidade, não teria como 
sair dali. A fantasia envolvia., pois, a vivência. de uma impotência 
de locomoção. Ora, essa paciente tinha um innão que havia sido 
paralisado pela poliomielite (só andava de muletas e ~o~ grande 
dificuldade) numa época em que ela, menina sapeca, v1v1a trepada 
nas árvores e andando pelos muros. Por alguma razão, surgiu na 
época a idéia de que ela passara o vírus para o innão - ela " se 
lembrava." de os pais dizerem isso! - advindo daí intensa sen-
sação de culpa. Havia, pois, aí, um circuito onipotente-_culpado 
que, dominado por crenças religiosas, esperava um castigo, que 
só poderia vir via espelho: ela também se tomando i":1pot~nte na 
locomoção. Evitar lugares altos ou fechados, de sa1da distante, 
era apenas uma fomrn de se proteger dessa angústia. Essa fantasia 
de castigo era produzida num circuito-escravo, dominado por 
valores morais e totalmente dissociado da consciência, mas nem 
por isso recalcado. A dissociação era devida ao tipo de interpre-
tação de realidade dominante no circuito e que era totalmente 
dissonante dos valores " adultos", conscientes, que ela exibia para 
o mundo e para si mesma. Com o desenvolvimento da psi-
coterapia, veio a articular ma.is tarde a esse mapeamento de forças 
uma inveja (que sentia do irmão) que -como sentimento pecami-
noso - poderia estar na gênese da culpa. Inveja porque ela o 
percebia como o filho querido, o que nos levou à suposição de 
que a fantasia de castigo era, ao mesmo tempo, também, desejo 
de ser igual a.o innão e receber as mesmas atenções. Desejo que, 
dado o seu caráter, reforçava a hipótese da existência de um 
circuito-infantil, dissocia.do da consciência. 
14 
A consciência e as defesas contra a escravidtio - A idéia do 
recalque está apoia.da, filosoficamente falando, em dois precon-
A PSICOTERAPIA EM RUSC'A DE DIONISO 
ceitas. O primeiro deles, idealista, pressupõe que há uma repre-
sentação fechada, conclusiva, dos acontecimentos. que a cons-
ciência não pode modificar a não ser expulsando-a para fora de 
si: tomada marginal, ela permaneceria intacta, como testemunha 
do evento: desejo ou trauma. Como se o significado dos acon-
tecimentos não fosse algo continuamente constrnído e recons-
truído pela consciência ou como se cada acontecimento não 
comportasse sempre uma multiplicidade de interpretações, uma 
diversidade de ângulos de visão, intercambiáveis e transmutáveis, 
mesmo que se trate do que a psicanálise nomeou realidade 
. t 71 F d · · m ema . reu sempre ms1ste em que, quando a situação an-
gustiante é externa, o ser humano pode lançar mão da fuga, mas 
de que quando ela é interna, o recalque seria a única defesa 
possível do organismo. Esta forma de interpretação poderia levar-
nos a pensar o recalque primordial como desencadeado pela 
incapacidade de o bebê suportar a intensidade da excitação gerada 
pe lo contato seio-boca - que aplacaria a fome mas não a pulsão 
sexual aí desencadeada. Essa excitação, impossível de ser descar-
regada. seria a angústia geradora do recalque da representação 
excitante. Com isso, a pulsão se fixaria na representação-seio, 
recalcada, e logo buscaria o substituto-dedo, como fonna de 
prescntificar. alucinar o seio ausente. Mas não podemos simples-
mente pensar que o bebê usa o seio e o dedo como equivalentes e 
que essa equivalência é possibilitada pela polivalência do corpo 
e do mundo? Ou seja. que a criança reinterpreta a realidade e 
transforma dedo em seio para acalmar a angústia e simular a 
presença da mãe'? Dentro desta perspectiva, pensaríamos na 
próp1ia formação da consciência como se dando na aprendizagem 
dessas táticas de interpretação e simulação da realidade, capazes 
de protegê-la da angústia. Sem que para isso tenha sido preciso 
recalcar nada. dado que, na polivalência das coisas próprias e do 
mundo. os acontecimentos são móveis. deslocantes, reinter-
pretáveis -mesmo que o universo adulto já tenha, desde o início, 
inserido a criança num espaço simbólico pré-detenninado, pois a 
consciência se fonna,justamente, nesse espaço gregário. com suas 
regras e seus princípios. E é justamente pela absorção do código 
l'Slt 'Ol'ATC )LOU I/\S 47 
vigente nesse espaço que ela se toma um órgão de adaptação. Isso 
não quer dizer, entretanto que, em espaços marginais à consciên-
cia. não existam circuitos comandados por outros códigos que, 
ao assumirem dominâncias locais.possam ter passado a controlar 
a dinâmica do circuito e até se generalizado. Mas isso não é 
conseqüência de qualquer significado traumático, absoluti-
zado e mantido inalterado via recalque e sim do domínio 
despótico e arbitrário de um código estranho, num campo 
alheio à consciência n O problema é todo este: a consciência 
não abarca todo o psiquismo; existem circuitos marginais 
produtores de angústia e envolvendo experiências que esca-
pam à consciência por todos os lados. São circuitos-escravos 
articulados por códigos estrangeiros, cujas semióticas são 
intraduzíveis na linguagem vulgar da consciência. E aqui 
chegamos ao segundo preconceito filosófico presente na idéia de 
recalque - originário da tradição racionalista: o que outorga à 
consciência uma função central e necessária nos prncessos de 
interpretação da realidade. Frente a este postulado -mesmo que 
se conceba a formação de sentidos marginais, 110 interior do 
psiquismo - a consciência designa, sempre, uma espécie de sede 
o nde todos os sentidos buscam acesso e reconhecimento. A partir 
de diferentes ângulos,já mostrei que, da perspectiva nietzschiana, 
i;so não faz o menor sentido 73 • Mas. então, poder-se-ia perguntar, 
como é que a consciência se protege desses circuitos marginais, 
das forças impotentes nele aprisionadas sob a fonna de angústia? 
A primeira fonna de proteção é a dissociação: a consciência tenta 
111anter-se afastada do circuito em questão e do que acontece nele. 
agindo como uma avestmz que enfia a cabeça no buraco de areia. 
Entretanto. nem sempre o consegue: as forças reativas tendem a 
se disseminar e a controlar cada vez mais o psiquismo. Ela pode, 
então, tentar transfom1ar a interpretação do que acontece no 
interior do circuito, para tomar a angústia mais suportável ou fazer 
com que os acontecimentos fiquem mais consoantes com os seus 
valores morais7"'. Mas tudo isso pode não funcionar e as forças 
reativas podem invadir a consciência. obrigando-a a lançar mão 
de uma série de malabarismos interpretativos, como a denegação, 
4M A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DION ISO 
a formação reativa, a projeção, a identificação projetiva, entre 
outros. Todos esses mecanismos de defesa podem ser vistos 
como construções interpretativas, maneiras de transfom1ar o 
sentido das coisas para tentar eliminar a angústia75. Por fim, 
quando todos os malabarismos fracassam , a consciência é, então, 
possuída pelo circuito-escravo: toma-se prisioneira das lem-
branças e, impotente para qualquer ação efetiva, busca saídas 
fantasiosas: a vingança imaginária do Outro - transformado, 
então, em outro - o ódio à realidade e à vida, a inveja, a culpa 
- que pode ser projetada no outro ou interiorizar-se sob a 
forma de má-consciência. Através da busca de culpados, da 
inveja e do ódio, a consciência alimenta alguma fonna de vin-
gança ou constrói outras saídas imaginárias para a impotência que 
adomina.76 
15 
O sonho - Esse foi o sonho que eu tive na noite passada, logo 
após tenninar de escrever o décimo quarto aforismo, numa dessas 
noites agita.das, típicas de quando estou escrevendo alguma coisa 
importante e que exige fôlego. Sonhei que meu filho Henrique, 
de cinco anos, estava trepado numa árvore bem alta, brincando 
com uma corda. A fom1a como ele havia disposto a corda não me 
aparece até agora muito clara, mas é como se ela devesse sustentá-
lo lá em cima e não o fizesse. Então, de repente, com aquela sua 
carinha marota e, ao mesmo tempo inocente, de quem faz uma 
arte, ele pula lá de cima e se estatela no chão. Eu só ouço o rnído 
do corpo batendo e vejo minha mulher correndo, aflita, para ver 
o que houve. Então, tomado de pavor e angústia, penso: "Ele deve 
ter, no mínimo. quebrado a espinha". E acordo. Passei o resto da 
noite bastante agitado e ainda era assim que eu me encontrava 
quando entrei na sessão de análise, deitei no divã e relatei o sonho 
ao analista. O que ele me disse, logo de cara. é que tanto o 
Henrique quanto a minha mulher representavam, provavelmente, 
pa,tes minhas e que, embora eu figurasse tudo sob a fonna de 
acontecimentos externos. o sonho, provavelmente falava de acon-
l'Sll'OPATü LOGIAS 49 
tccimentos internos. E que era possível que uma parte minha mais 
sensata de maior contato com a realidade, tivesse muito medo de 
' outra parte, mais infantil e onipotente, cometer atos insensatos e 
se esborrachar. Minha resposta eclodiu tentando recuperar " o 
externo'': " Mas alguma coisa deve estar acontecendo também 
externamente para fazer eclodir esse medo, essa angústia ... ,. E 
antes de tenninar a frase, fui imediatamente levado para os meus 
escritos, o estado de agitação que me toma no período em que 
estou escrevendo, as noites mal donnidas dos últimos dias. E 
disse: "Se pensar nos meus escritos, talvez tudo isso que você 
falou faça sentido; acho que tenho mesmo medo de que, quando 
escrevendo, não esteja suficiente seguro e possa despencar lá de 
cima". Ao que ele replicou: " Se você estiver querendo forçar as 
coisas e não deixar que elas amadureçam em você, corre mesmo 
o risco de perder contato com a realidade, ficar sem chão" . Então 
me lembrei de que tenho tentado forçara ritmo da minha produção 
em função dos prazos da minha bolsa de pesquisa e do medo de 
não conseguir cumpri-los. E uma grande paz de espírito me 
tomou. como se um grande peso tivesse saído 'do meu peito. 
" Então era só isso? ... " (o dragão é sempre menor e menos 
perigoso do que a gente fantasia ... ). O restante das associações 
foram vindo aos poucos: o medo de quebrar a espinha tem a ver 
com o fato de eu estar questionando a noção de ~ alque, espinha- / 
dorsal do pensamento de Freud, êõinõse, questionando essa noção 
et1 corresse o riscó de ficar sem eixo nas minhas formulações 
teóricas. E o fato de me representar como uma criança pequena, 
arteira, brincando, é um pouco como me sinto no processo de 
criação: jogando o meu laço, pescando coisas e juntando todas 
elas em novos arranjos, novas arrumações. tão ousado e tão afoito. 
às vezes. como meu filho Henrique quando brinca. Meu sonho 
representou tudo isso na semiótica própria ao circuito que o 
produziu: lá eu sou mesmo uma criança atrevida e escrever quer 
mesmo dizer galgar alturas e correr perigo; também a queda será 
mesmo inevitável se eu não souber enlaçar meus argumentos e me 
sustentar lá, na posição em que me coloquei. Aí nenhuma imàgem 
substitui qualquer representação recalcada; o que supostamente 
A l'S[('OTER,\l'IA EM BI JS( ' A IJE Dl<>N ISll 
estaria recalcado está presente nas próprias imagens e nas relações 
de equivalências que se cohdensam ou se deslocam por· seu 
intcnm:dio. Assim. a imagem Henrique condensa: criança-escri-
tor (criador) - inocentc-atrcvida(o)-afoita(o): isso quer dizer que 
ela remete a todos esses sentidos sem substituir nenhum pelo 
outro. Da' i11e·s111a maneira. a imagem da corda se desloca por 
várias formas sem se fechar cm nenhuma delas - na memória ela 
se insinua ora como laço. ora como nó. ora como aquelas annadi-
lhas que levantam o animal pela perna. Mas esse deslocamento. 
que mantém a forma sempre cm suspenso. não significa. de forma 
alguma. que exista aí um significante encoberto e aludido: ele é a 
própria possibilidade de o sonho expressar o medo da falta de 
sustentação. O proj cto-de-1 aço-que-não.-se-to ma-laço-e-nem -nó-
c-nem-armad ilha representa, justamente. a hesitação. a insegu-
rança. a falta de assertividade que impedem uma escolha mais 
clara e segura de um caminho e que estão na raiz do medo: a pressa 
como a armadilha na qual ficam suspensas todas as fonnas. Se 
pudéssemos falar aí de conteúdo manifesto e de conteúdo la-
tente. teríamos de dizer que eles se interpenetram. o que significa 
dizer que essas categorias não são mais distintivas de nada. Tal vez 
a melhor descrição do sentido do sonho seja afirmar que ele está 
cm constante devir. que não se conclui cm nenhuma imagem. não 
se fecha cm nenhuma forma, e que ele é também um devir 
múltiplo. abrindo-se cminúmeras redes associativas, constnr-
indo-sc por várias linhas de força, lugar onde a interpretação do 
psicoterapeuta representa sempre uma tentativa de traduzir, re-
construir em palavras, esse movimento originalmente 
imagético. Nietzsche vê nas imagens do sonho a forma de ra-
ciocínio do homem primitivo. que ainda subsiste cm nós: "A 
nitidez perfeita de todas as representações oníricas, que resulta da 
crença absoluta na realidade delas, !em bra-nos. por sua vez. certos 
estados da humanidade primitiva. no qual a alucinação era extre-
mamente freqüente e se apoderava. muitas vezes ao mesmo 
tempo. de comunidades. de povos inteiros. Assim. pois. nós 
refazemos de lado a lado. no sono e no sonho. a lição de um estado 
anterior de humanidade "
77 
... É essa parte arcaica da humanidade 
l '~ IC 'C )l ';\T( 1LOc H!\S 51 
que, no sonho. continua a agir em nós, pois ela é o fundamento 
sobre o qual a razão superior se desenvolveu e se desenvolve 
níuda em todo homem: o sonho nos leva de volta a estados 
n.:cuados da civilização humana e nos fornece um meio de com-
preendê-los melhor"78_ A partir daí -e de vários outros argumea-
tos - pode dizer: " Nada te é mais próprio que o teu sonho! Nada 
é ma is tua que essa obra! Matéria, forma. duração. atores, espec-
t:1dores - nessas comédias és completamente tu-,mesmo1 E é 
precisamente lá que tens medo e vergonha de ti , e já Edipo. o sábio 
Édipo, sabia tirar um consolo da idéia de que nós não podemos 
nada sobre o que sonhamos! Concluo daí que a maior parte dos 
homens deve ser consciente de ter sonhos abomináveis. Se fosse 
de outra fonna. como o homem teria sabido explorar a sua noturna 
fantasia poética para nutrir o seu orgulho! Devo acrescentar que 
o sábio Édipo tinha razão. que nós não somos realmente respon-
sáveis por nossos sonhos -mas. tampouco. aliás. por nossa vigília 
- e que a doutrina do livre-arbítrio tem por pai e mãe o orgulho 
' . '1" 19 D d dos homens e o seu sentimento de potencia . en~ro o mesmo 
'espírito, Zaratustra falará do seu sonho com carinho e devoção: 
;·Mensurável para quem tem tempo. pesável para o bom pesador. 
sobrevoável para asas fortes. decifrável para divinos quebra-
nozes: assim meu sonho encontrou o .mundo. Meu sonho, 
navegante audaz, meio barco. meio borrasca. silencioso como as 
borboletas, impaciente como os falcões-reais: como. hoje. entre-
d , .. xo P . tanto. tinha paciência e tempo para pesar o mun o . ors a 
função do sonho. situada na própria gênese e constituição da 
razão civilizada, será pesar o mundo. avaliá-lo: para além dos 
nossos preceitos morais. quiçá reencontrando um pouco da 
inocência perdida da criança.
81 
16 
Neurose ob.<,essiva: a escravid,ío levada às últimas co11-
seqüê11das - A neurose obsessiva pode. sem dúvida. ser consi-
derada a mais intelectiva de todas as neuroses. na medida em que 
os seus sintomas característicos giram em tomo de idéias ou de 
52 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO 
rituais que dominam o psiquismo e que expressam os imperativos 
de uma ordem superior, arbitrária e despótica, à qual o obsessivo 
vive escravizado e à qual obedece realmente como um escravo ao 
seu senhor. Essa ordem é, sem dúvida, a fonna mais abstrata que 
pode assumir o Outro: marca simbólica do campo de forças 
vencedor, codificador da neurose. Devemos supor, pois, que na 
gênese da neurose obsessiva essa marca se fez num registro menos 
corpóreo, mais intelectivo? Isto não é impossível, mas também 
podemos pensar que ela é um tipo de marca que tem por carac-
terística o deslocamento intemlinável da afecção para regiões 
sempre mais distantes e abstratas do psiquismo82. Esta é, penso 
eu, a hipótese do próprio Freud83. E não é muito dificil imaginar 
exemplos desse tipo de marca: um código moral que, ao se impor, 
desloque as nomrns de um domínio mais imediato para Deus ou 
para outros registros mais poderosos, incognoscíveis e distantes 
da experiência cotidiana e que opere, reiteradamente, através 
desse deslocamento, pode, frente à mentalidade primitiva da 
. fi . 1 d ' 84 M -cnança, 111c10nar como a go o genero . as nao penso que as 
questões etiológicas devam tomar muito tempo e espaço, na 
medida em que elas são sempre muito relativas, produzidas pe los 
destinos do acaso, mesmo que se considere a import.:-'lncia de 
predisposições hereditá1ias na composição das forças produtoras. 
Ter nascido numa certa família e estar sujeito ao devir daquelas 
forças e ao seu intercâmbio com outras forças sociais, políticas e 
econômicas, características de uma ceita época histórica, ou 
mesmo ser portador de certas predisposições hereditárias são 
casualidades, nada mais. Estar bem ou mal equipado para enfren-
tar ess~ circunstâncias no momento em que os confrontos se dão 
decorre de outras casualidades. O importante aqui, pois, é evi-
denciar as características escravas do circuito-obsessivo, as 
forças morais, despóticas que estão na sua gênese e a forma 
abstrata, intelectiva dos sintomas, gerada pelo tipo de código 
envolvido na produção da neurose. Isso explica, evidentemente, 
o fato de o obsessivo estar sempre perdido num labirinto de idéias, 
fadado à rnminação mental, à dúvida, aos escn'.1pulos, quando não 
aos rituais arbitrários que ele realiza de fomrn mecânica e sem 
l'SIC'OPATOLOGIAS 53 
nunca entender, de fato, o que está envolvido ali. Sintomas da sua 
escravidão a uma ordem imaginária que ele cria e recria a todo 
instante, na tentativa impotente e desesperada de tentar dominar 
um código que lhe escapa por todos os lados, e frente ao qual se 
sente culpado, recriminado, infrator. A neurose-obsessiva 
constitui , assim, um dos exemplos mais típicos do que 
Nietzsche descreveu como má-consciência e que Assoun sin-
tetiza bastante bem: "'Todos os instintos que não se descarregam 
para fora voltam-se (wenden) para dentro - isto é o que eu chamo 
de interiorização (verinnerlichung) do homem' . Esta é a transfor-
mação (verãnde mng) radical que vai criar uma doença aguda e 
crônica ao mesmo tempo: ' O homem doente do homem, doente 
de si mesmo' . Esta doença procede de um entrave ao ' instinto de 
liberdade' : este é submetido a um tratamento durante o qual ele 
se tomou 'latente à força( ... ), reprimido, recuado, encarcerado no 
íntimo (zurückgedrangte, zurückgetretente, ins Innere eingeker-
kertre ), por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo' . A 
cmeldade, expressa na vingança, no ressentimef1:tO, converte-se, 
a partir de então, em 'vontade de torturar a si próprio'. Daí o 
surgimento de um novo registro - desinteresse, abnegação, auto-
sacrificio -onde o Si é carrasco e vítima. A culpa é, enfim, o que 
traduz esse sofrimento paradoxal ministrado a si mesmo "
8
' . En-
tretanto, mesmo tendo se tomado carrasco e vítima de si mesmo, 
o obsessivo sabe que obedece a desígnios que o transcendem de 
ponta a ponta, pois habita os vestígios do Outro e reconhece, 
plenamente, sua condição de seu escravo. 
17 
O circuito-neurótico e as.forças marginais - É preciso dizer 
que, quando se constrói um circuito-neurótico, nem todas as 
forças do campo dominado são aprisionadas e marcadas pelo 
código do Outro. Algumas escapam a essa captura e conseguem, 
assim, manter a sua potência, continuando a existir como forças-
ativas. Tomam-se, entretanto, forças marg inais ao circuito, na 
medida em que não têm lugar possível no seu interior. Mas por 
54 A PS ICOTERAPIA EM RUSC'A DE DIONISO 
que isso acontece assim? A explicação está no fato de que nã.o 
existe código absoluto, capaz de abarcar a diversidade e a poli-
valência das forças vivas; em outros tem10s, a vida é sempre mais 
, r .1 múltipla e mais rica do que a possibilidade de qualquer código de 
:: capturá-la nas suas malhas e nos seus filtros. Desta fom1a. um 
~ 1 circuito-histérico ou um circuito-obsessivo sempre comportam -
mesmo quando aparentam um total fechamento e uma total cap-
, , tura - forças a.tivas marginais. funcionando nas suas bordas e 
buscando subverter o status quo e prosseguira. luta 86

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