Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Naffah Neto nos conduz, com habilidade e . segurança, pelos percursos labirínticos da alma humana. Aqui somos confrontados com a proposta de uma psicoterapia nietzschiana, que procede genealogicamente. Reapropriando-se de sentidos etimológicos originários, de há muito caídos no esquecimento, essa psicoterapia se anuncia como radicalmente emancipatória. (. .. ) O importante ri que o autor recusa a mera justaposição eclética de perspectivcas teóricas; aliando teoria e decantada prática psicoterapêutica, Naffah Neto não drdxa dP nos fazer ouvir seu acento prój,rio, não ahdir:a da inflexão rigorosamente j,essoal com que dirigri tanto a orquestraçrio dos lemas qua.11/0 a trrfir'l!íria da busca que, ao final, ·1ws cmuluz ao ,,w·o·11/m r'nlre a psicoterapia e Dioniso, o m11bíguo. ( hwaldo ( ;,,,rnlil Jr . -•... • ' . ; '~ ' - . . . . li ! 1 1 1· o ~ _, ,u z ~, ... , ..._ ~ <.i-i csJ z Iº --o , ,u e.;: . < Q -~ 1 ;! ;j -~ 1 ~ ' l:l i ~' ' .~ I ' : 1::1 I • <:.l i "' 1 ,; :.:: ' .Q · i1l ~ ' 1 l::l • ('li,) 1· tr ~ I . 0 I <:.) 1 1 • ('li,) ' "' i ~ 1~, ·1 1 ' ' .. ·-1 ' ' li A pSicoterapia, em busca de Dioniso Nietzsche visita Freud .'\lfrc.·clc> Naffah Neto ~~ hy Alfredo Nalfah Neto ~-, hy Editora Escuta e EDUC, para a edição em língua portuguesa 1• cdiçiío: abril de 1994 Catalogação na Fonte - Biblioteca Central/PUC-SP Natfoh Neto, Alfredo Psi<.:oterapia em busca de Diqniso: Nietzsche visita r rcucl/Alfredo Naffah Neto. - São Paulo: EDUC/Escuta, 1994. 147 p.; 21 cm. - (Linhas de fuga) ISBN 85-283-0059-5 (EDUC) ISBN 85-7137-069-9 (Escuta) 1. Ps icoterapia. 1. Título. II. Série. EDVC - Editora da PUC-SP Rna Monte Alegre, 984 05014-000 - São Paulo - SP 1:onc: (O 11 ) 62-0280 l~ditorn Escuta Lida. Rnu Dr. l lomem de Mello, 351 05007-001 - Siío Paulo - SP 'foi. : (O 11 ) 65-8950 Fond i,x: (O 11 ) 87 1-2542 CDD6 16.8914 Alfredo N affah Neto A psicoterapia em busca de Dioniso: Nietzsche visita Freud SUMÁRIO APRESENTAÇÃO - Oswaldo Giacoia Jr . .............................. l l ABERTURA ................... ....... .. ..... .... ...... : .................................. 15 PRIMEIRA PARTE: POR UMA PSICOTERAPIA GENEALÓGICA aforismo l: Genealogia, psicologia, psicoterapia ............... 19 aforismo 2: O psicoterapeuta-genealogista ................. .. ...... 20 aforismo 3: Psicoterapia: etimologia ................ .................. 21 aforismo 4: Psicoterapia e vida .............. ............................. 23 SEGUNDA PARTE: PSICOPATOLOGIAS aforismo 5: Psicopatologia: etimologia ............................... 27 Seção 1: Saúde, doença, nobreza, escravidão e livramento aforismo 6: Saúde e livramento ......................... .................. 28 aforismo 7: A sabedoria do perspectivismo ................ .. ....... 30 aforismo 8: A nobreza salutar .............................................. 32 aforismo 9: A escravidão como aprisionamento pelo Outro .. 35 Seção 2: Neurose, escravidão, sonhos e.forças marginais aforismo 10: Escravidão e neurose ............................ .. ........ 37 aforismo 11: Neurose, escravidão e angústia .......... ..... ........ 38 aforismo 12: Histeria: escravidão sem recalque .................. 40 aforismo l 3: A fobia e a dissociação da consciência .......... 44 aforismo 14: A consciência e as defesas contra a escravidão ........................................................................ 45 aforismo 15: O sonho ................ .......................................... .48 aforismo 16: Neurose obsessiva: a escravidão levada às últimas conseqüências ..... ............ .. ................. ........ .... 5 l aforismo 17: O circuito-neurótico e as forças marginais ........ 53 Seção 3: Criminalidade, perversão, loucura e devir errante aforismo 18: Crime e loucura: a marginalização da diferença ................................................................. ......... 55 aforismo 19: Perversões são doenças? ............................. ... 58 aforismo 20: O delírio: uma interpretação do sem-lugar ........ 61 aforismo 21: A alucinação: as intensidades projetadas numa meta-extensão ........................................................ 65 aforismo 22: O circuito-louco e a errância das forças ativas ...................................... .......................................... 68 TERCEIRA PARTE: UMA CONCEPÇÃO DE PERSONALIDADE aforismo 23: A personalidade e as máscaras-personagens ..... 73 aforismo 24: A personalidade, o ego e o self... .. .. ... .......... ... 76 QUARTA PARTE: A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO aforismo 25: O ensinamento de Dioniso .............................. 83 aforismo 26: O éthos psicoterapêutico ............................. .... 86 aforismo 27: Desconstmindo representações, decodificando sintomas: notas sobre a interpretação ... ............... .. ......... 89 aforismo 28: A transferência e o etemo retomo .......... ....... . 93, aforismo 29: O cotidiano da psicoterapia: mapeando forças .. 96 aforismo 30: A psicoterapia individual e a morte do indivíduo ........................................... ............................. l 99 aforismo 3 l: A psicoterapia de grnpo no encontro de Dioniso:sociabilidades cm transmutação ..................... 102 NOTAS ................... ............ ...................... ... ................ .... ........ 107 APRESENTAÇÃO Sob condução de Alfredo Naffah Neto. orientada por uma interpretação original da filosofia de Nietzsche, a psicoterapia se aventura vertiginosamente na busca de Dioniso. Ao longo do percurso, cuja trajetória se deten11 ina a partir de uma suposta visita de Nietzsche a Freud, o autor se transfomrn no hospedeiro de ambos. Com isso, a direção sugerida pelo subtítulo do livro se inverte e é Naffah Neto quem na verdade revisita Nietzsche a partir de Freud, em fecunda convivência partilhada por ilustres companheiros de viagem: Deleuze, Foucault. Guattari, Sacher- Masoch , Bento Prado Jr., Moreno, Laplanche, Espinosa, Heráclito, o obscuro etc. A fonna aforística da escrita - adequada ao perspectivismo subjacente às posições filosóficas do autor - facilita ao leitor o acesso a conjuntos temáticos de dificil assimilação. Para além do poder sugestivo e da fascinação provocada pela beleza literária. a escrita aforística se ajusta com perfeição ao conteúdo. sem pre- juízo da orgfu1ica articulação do material conceituai ; ela também toma viável a ntultiplicidadc de acessos possíveis a esse conteúdo, produzindo arranjos e cnrzamentos surpreendentes entre questões 12 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO e conceitos, problemas e propostas. A ham1oniadas quatro pa1tes aliada à dinâmica inteligente da argumentação concitam o leitor a efetuar, por si mesmo, os mais criativos circuitos entre os contextos teóricos abordados pelo autor. É assim que Naffah Neto nos conduz, com habilidade e segurança, pelos percursos labirín- ticos da alma humana. Aqui somos confrontados com a proposta de uma psicoterapia nietzschiana, que procede genealogicamente. Reapropriando-se de sentidos etimológicos originários, de há muito caídos no esquecimento, essa psicoterapia genealógica se enuncia como radicalmente emancipatória. Ao defini-la cm sua natureza e propósitos, Naffah Neto não pode deixar de reverter categorias e noções fundamentais da psicopatologia e psicoterapia, como por exemplo: saúde, doença, nonnalidade, perversão, neurose, aluci- nação, delírio, personalidade, subjetivação, fazendo-o com o auxílio de ferramentas filosóficas cuja significação está muito longe de ser objeto de pacífico consenso: aqui figuram , por exemplo, conceitos como marginalidade, criminalidade, escravidão, livramento, éthos, necessidade, acaso, devir, vontade de potência etc. Certa irreverência teórica nem sempre dissimulada (capaz, sem dúvida, de exasperar veneráveis escrúpulos acadêmicos) atua em provei-todo sabor e leveza do estilo. Afinal, a sedução irresistível da ousada aventura de Naffah Neto reside menos nos . rigores da exegese filosófica do que na profusão surpreendente de combinações e circuitos, fazendo cmzar com inesgotável produ- tividade posturas teóricas e metodologias originalmente distantes entre si. São esses múltiplos agenciamentos produzindo espaços con- ceituais onde se inscrevem novas ·significações que, a meu ver, tomam bela, provocativa e estimulante esta freqüentação de Freud por Nietzsche. via Naffah Neto, ou vice-versa. O importante é que o autor recusa a mera justaposição eclética de perspectivas teóricas e clínicas. Aliando teoria e decantada prática psi- coterapêu_tica, Naffah Neto não deixa de nos fazer ouvir seu acento próprio, não abdica da inflexão rigorosamente pessoal com que APRESENTAÇÃO 13 dirige tanto a orquestração dos temas quanto a trajetória da busca que, ao final, nos conduz ao encontro entre a psicoterapia e Dioniso, o an1bíguo. Penso que a melhor maneira de fazer justiça aos méritos inegáveis deste livro e à elevação especulativa a que nos conduz o autor é aceitar seu convite para empreender o esforço de se apropriar criticamente do seu conteúdo e, assim, dialogar com ele. Nesse sentido, e para encerrar, gostaria de destacar três dos múltiplos aspectos interessantes que animam o debate: a com- preensão profunda da gênese simbólica e semiótica da neurose; a proposta do espaço terapêutico como "acolhimento su ra-moral ' ' onde se processa a interpretação que atÍxilia na libertação (saúde) do espírito, no movimento que leva à reapropriação de sua " potên- cia afectiva ' ' ; o bem fundamentado reconhecimento da virtus específica da psicoterapia de gmpo. Berlim, 21 de outubro de 1993 OSWALDO·GJACOIA JR. V,-ve em mim um Nietzsche que anseia por se tornar psi- coterape11ta. Desde que ele tomou conta de mim e me convenceu. com todas as letras. que a hospedagem era para valer, nossa relação tem sido uma grande aventura. No começo tentei ofere- cer-lhe um espaço no casamento que eu mantinha com o psico- drama há vinte anos mas. depois de algum tempo. estávamos todos incomodados e insatisfeitos. Aí não tive alternativa: aban- donei a antiga relação e lancei-me, de corpo e alma. na cons- tnição da nova proposta terapêutica. De lá para cá temos vivido como dois irmãos siameses, às vezes sem saber quem é o hóspede e quem é o hospedeiro. E ele vai-me emprestando pedaços, cuidadosamente escolhidos, para lançar os alicerces da nova moradia. Até me indicou alguns intérpretes mais audazes para .fimcionarem como nossos ajudantes na construção. E eu vou-lhe oferecendo as minhas artes de arquiteto: de conceitos e de almas. Levei-o, várias vezes, à casa de Fi·eud - um velho amigoíinter- locutor de muitos anos - e tenho aprendido muito nos calorosos debates em que sempre nos lançamos. E nesse caminhar juntos, eu me torno.filósofo, ele se.faz psicoterapeuta. Primeira Parte POR UMA PSICOTERAPIA GENEALÓGICA ' l Genealogia, psicologia, psicoterapia - "Toqa a psicologia pennaneceu até o momento prisioneira de prejuízos e apreensões morais: ela não se arriscou nas profundezas. Considerá-la en- quanto morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potência, como eu a considero, é uma idéia que ainda não ocorreu a ninguém". Assim Nietzsche inicia o aforismo 23 de Para além de bem e mal'. E o conclui dizendo: ... "ao psicólogo ( ... ) será lícito aspirar pelo menos que a psicologia volte a ser reconhecida como senhora das ciências, para cujó serviço e preparação existem todas as outras ciências. Pois a partir de agora a psicologia volta a ser o caminho que conduz aos problemas fundamentais"2. Ora, se lembrarmos que a função da psicologia, assim redefinida por Nietzsche, passa a ser a de investigar a origem e a história dos sentimentos morais3; que, como tal, ela passa a ser o ponto de intersecção entre as ciências da natureza e as ciências do espírito no interior do projeto genealógico4, sua importância ganha ainda mais relevo. Se, por fim, atentannos para o fato de que a moral vigente, niilista, é vista como uma doença5 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO e o filósofo-psicólogo-genealogista como um "médico da civili- zação"6, lançado na transmutação dos valores, na recriação do sentido da vida, toma-se possível aspirar a uma psicoterapia que retome e realize aspirações da genealogia nietzschiana. Cabe, entretanto, investigar os sentidos e usos que pode assumir tal expressão. 2 O psicoterapeuta-genealogista - Não podemos identificar o projeto do psicoterapeuta-genealogista com o que nonnalmente se entende por psicoterapia nos dias de hoje. Em primeiro lugar porque a psicologia vigente ainda pemrn.nece, em grande parte, prisioneira dos pré-juízos e apreensões morais; portanto, nos dizeres de Nietzsche, ainda não se arriscou nas profundezas 7. Em segundo lugar porque o projeto nietzschiano é muito mais amplo e diversificado do que o âmbito de uma profissão recortada e circunscrita aos limites da clinica, como é a do psicoterapeuta contemporâneo 8. A psicoterapia-genealógica pode estar-se reali- zando através de múltiplas categorias profissionais: o professor, o artista plástico, o ator. o psicoterapeuta etc; com maior probabili- dade, estará acontecendo em espaços menos controlados pelos códigos instituídos: em qualquer parte do corpo social onde alguém. por alguma razão, esteja denunciando, colocando cm xeque valores que apequenem e empobreçam a vida. Estou falando de ações efetivas, capazes de produzir mudanças e não de meras demagogias: convém não confundir o psicoterapeuta-gene- alogista com o vendedor de ilusões, comumente disfarçado de revolucionário. Este, embora possa denunciar valores do mundo vigente. está sempre aponta.não para um ideal futuro , um outro mundo. Não! A revolução que interessa tem que acontecer aqui e agora. neste mundo, deve afetar esta realidade, revolução do cotídiano. E para ser efetiva deve ser capaz de mergulhar nas tessituras do corpo social. político, simbólico. atingir as mínimas dobras. os espaços mais microscópicos. para, então. isolar o vírns da doença e poder combatê-lo. Esse vírus estará sempre disfarçado POR UMA PSICOTERAPIA GENEALÓGICA 2 1 como um va 1.~'"º ;ve,sal.;serà pred so, então, rasgam su fanta- / sia tira por tira, denunciando que ele tem uma gênese uma y provemenci e uma emergência9 . E mostrar que a contextura histórica que o pro uz1ürõC por sua vez. produzida por um conjunto de casualidades, uma convergência de fo1·ças absolu- tamente singular que só pode explicar-se como obra do acaso. Com isso o vírus perderá toda a dimensão representativa que lhe dava força e poder; reencontrará sua origem casual e, a partir daí, seu devir transmutante. Pois a tarefa da psicoterapia nietzschiana é essa mesmo: a transmutação dos valores. Seja pacientemente / rastreando a composição de um valor instituído, seja mapeando os vários pontos do corpo social onde irrompem movimentos marginais que o questionam e o põem em xeque, o psicoterapeuta- genealogista será primordialmente um instrumentador da mudança. Cuidando para que a vida retome seus valores mais nobres. 3 Psicoterapia: etimologia - O termo psicoterapia é fomrndo por duas palavras gregas: psykhé e therapéia. Psykhé significa: sopro de vida, alento, alma, vida, ser vivo e. por extensão. as faculdades da alma: entendimento, prudência, sentimento, de- • • • Jfl seJo, apetite, a pessoa e a coisa amada . Entretanto. o sentido mais originário do tenno é respiração, sopro vital, vida, derivado do verbo psykhein que significa soprar, respirar 11• Therapéia. por sua vez, significa cuidado, previsão, solicitude, trato cui- dadoso· e, por extensão, cuidados médicos, tratamento 12. Psi- ~oterapia significa, pois. etimologicamente. o cuidado pela vida. E curioso, entretanto, observar que o tenno therapeutés (ou therapeutér) designa. ao mesmo tempo. o serviçal-escravo,o servidor ou adorador de um Deus e o médicol:1_ Que o terapeuta-médico possa esta r associado a serviços religiosos não chega a causar espanto. se nos lembrannos das origens mágico- religiosas da medicina, na Grécia antiga. Entretanto, que o mesmo tem10 possa, simultaneamente, designar funções ligadas à mais A PSIC'OTERAPIA EM I3USCA DE DIONISO baixa e à mais alta hierarquia social é algo que merece maiores considerações 14• Não se trata, em absoluto, de buscar associações possíveis entre o escravo e o médico enquanto realidades em píri- cas: Platão nos conta que o médico de escravos tratava seu paciente quase como coisa. não lhe falando mais do que o sufi- ciente para passar suas instrnçõcs práticas. Ou seja, o escravo não era considerado sequer digno de explicações sobre a sua doença; a ele cabia somente obedecer, ao outro ditar ordens 15• No nível da hierarquia social. há. pois, uma separação absoluta entre médico e escravo. As associações devem ser buscadas num âmbito semân- tico : é possível que o terapeuta-médico seja servo. escravo, cm alguma dimensão do seu ser? Por um lado não: como poderia uma existência-escrava praticar uma medicina que. em suas origens, busca uma libertação do espírito como condição para a cura do corpo 11;? Um escravo jamais poderia ser um guia para a liberdade. Por outro lado. sim: somente alguém que conheceu. em algum nível. a escravidão c conseguiu libertar-se pode entrar em res- sonânciacom a psykhé escravizada do doente e, então, conduzi-lo a uma cura possível. A mitologia grega é rica desses enredos. nos quais a participação cm certas realidades aprisionantes é condição para conhecê-las e poder transcendê-las. Assim. o herói-trágico devia submeter-se à moira (o destino) como condição para ultra- passá-la 17. E não é à toa que a figura primordial do médico, na mitologia grega. era o centauro Quirão (em grego Kheíron. possivelmente uma abreviatura de Kcirurgós = "que trabalha ou age com as mãos. cirurgião " 1s): por ter. ao mesmo tempo, natureza animal e humana (meio cavalo, meio homem), conhecia as vicis- situdes da carne e do espírito: por ter sido acidentalmente ferido por Héracl es, sabia, mais do q uc ninguém, compreender a si tu ação de seus pacientes 19• Assim, posso agora arriscar uma interpretação que. se não for exata na derivação etimológica. será pelo menos sugestiva no âmbito do sentido: o terapeuta designa o escravo- livre, aquele que, por conhecer na própria pele as cadeias do servilismo, da doença, e a transmutação libertadora, pode, melhor do que ninguém, servir como guia nessa viagem pelo devir. Ele será, em algum nível, um ser(vo)-transmutante20 \ POR UMA PSIC'OTERAPIA GENEALÓGICA Acredito que os psicoterapeutas concordarão comigo. muitos, talvez, ao lembrarem que o primeiro impulso para a profissão surgiu da necessidade de cuidarem da própria neurose. 4 Psicoterapia e vida - Se a psicologia, para Nietzsche, é a " morfolog ia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potên- cia". a psicoterapia será o tratamento das fonnas patológicas dessa vontade. dos descaminhos por onde se enredou e se perdeu. Tratamento: esta palavra pode, sem dúvida, cxprim ir a dimensão mais técnica do grego therapéia, com a condição de que guarde em si o sentido mais originário do tem10. psico-terapia signifi- · cando, pois. o cuidado (therap~ ia) p~la vida (psykhé). Entretanto:",:$ no presente caso, cvideÍÚemente não por mera coi · dência. os tennos se recobrem, dado que a v tade de..potê ia, n âmbito da genealogia nietzschiana. designa a própria vi. a21. ortanto, nesse caso. precisamente, a psicoterapia não poderia designar nada além de cuidado pela vida . Esse cuidado assume a fonna de tratamento na medida exata em que a vida se encontra doente22• necessitando desenvolvimento. Des-envolvimento sig- nifica aqui exatamente o que a origem etin10lógicã c.xplicita, ou seja. des-enredamento, diferenciação: portanto. nada que tenha a vercorn a idéia de evolução ou progresso. no sentido de uma direção pré-determinada ou de uma seqüência de configurações2J_ A vida~s_ é a vida enredada por valores que a infu~: 1, ~bstrnem, empobrecem, necessitando dcs-énvolvimcnt~ soltur,a. liberdade. para recuperar a sua potência cria.dora e produzir novas fonnas . A psicoterapia cuidará, pois, do des-envolvimento da vida no desabrochar das suas formas. Segunda Parte PSICOPATOLOGIAS 5 Psicopatologia: etimologia - O tem10 psicopatologia é for- mado por três palavras gregas: psykhé, páthos e lógos. Um dos significados de páthos é o de "mudança produzida nas coisas " 24: este parece ser precisamente o sentido absorvido pelo tem10 patologia = "ramo da medicina que se ocupa da natureza e das modificações estruturais e/ou funcionais produzidas pela doença no organismo " 25. Mas páthos significa além disso "experiência" , " prova", "acontecimento", "estado agitado de alma, paixão , ,z6, sentidos que descrevem justamente o que se produz quando dois ou mais corpos se afetam num acontecimento e se modificam através destas afecções, que podem atingir o cotpo e/ou o espírito. O termo latino affectione gerou tanto o tem10 português afecção - que passou a designar doença - quanto o tenno afeição - que significa afeto. Entretanto, a afecção designa justamente a doença cuja origem foi esquecida ou descartada: "processo mórbido considerado em suas manifestações atuais, com abstração de sua causa primordial: doença" 27. Ou seja. o tenno remete a um estado final (= doença), proveniente de transformações produzidas pelo ) A PSICOTERAPIA EM susr A DE DIONJSO encontro de corpos no ato de se afetarem, mas num momento em que já se separou este ato do seu efeito. Afeição, por sua vez, passou a designar afeto, mas abstraída também a sua origem: o ato de afetar e ser afetado. Após estas considerações -inspiradas nos ensinamentos de Spinoza-posso, enfim, definir psicopatolo- gia como o relato (lógos) das afecções e das mudanças afetivas (páthos) produzidas nos seres vivos (psykhé) e provenientes dos seus encontros, dos acontecimentos (páthos) em que se afetaram mutuamente. Pode~a acrescentar - 'spinozanamente' falando -que o caráter doentio dessas afecções consiste no fato de gerarem uma diminuição ou impedimento na potência de ação do(s) corpo(s)/espírito(s) afetado(s), sendo esta a mudança afetiva básica produzida. Acredito que esta definição possa servir bem aos propósitos da genealogia nietzschiana. Saúde, doença, nobreza, escravidão e livramento 6 Saúde e livramento - No prefácio ao primeiro volume de Humano, demasiado humano, escrito em 1886, Nietzsche des- creve o que ele denomina " grande livramento'', processo através do qual um espírito toma-se livre, rompendo com as suas raízes, com a tradição que o nutriu e acalentou e se impondo um " isola- mento doentio" até atingir uma "descomunal segurança e saúde transberdante " 28 . Essa saúde ele define como: " aquela madura liberdâ(;lç do espírito que é também auto-domínio e disciplina do coração e: pennite os caminhos para muitos e opostos modos de pensar, ( ... ) aquela interior envergadura e mimo do excesso de riqueza, que exclui de si o perigo de que o espírito porventura se perca em seu próprio caminho e se enamore de si e em algum canto fique sentado ineb1iado. ( ... ) aquele excedente de forças plásticas, regeneradoras, confonnadoras e restauradoras, que é justamente o sinal da grande saúde, aquele excedente que dá ao espírito a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio e poder oferecer-se PSICOPATOLOGIAS 29 à aventura: a prerrogativa de maestria do espírito livre " 29 . Saúde, ) ~ significa, pois, autodomínio e disciplina capazes de permitir - ao espírito habitar a multiplicidade; envergadura interior ~ para contornar os narcisismos paralisantes de meio-caminho; ' excesso de forças plásticas que dão forma à vida e a 1·egene- ram, lançando-a no ensaio, na aventura. Através do grande livramento o espírito toma-seinicialmente um estrangeiro na própria terra, nômade iconoclasta que revira tudo do avesso> estraçalh~ o que o atrai, age por puro arbítrio. "No fundo de sua ' agitação e errância - pois ele é intranqüilo e sem rumo. ern..,seu caminho_ c~m~f~ est_á o pónto de interrogação_ de uma cunos1dade cada vez mais perigosa: 'Não se pode desv1rar todos os vafores? E bom é talvez mau? E Deus apenas uma invenção e refinan1ento do diabo? É talvez tudo, no último fundo, falso? E se somos os enganados, não somos por isso mesmo também enganadores? não temos de ser também enganadores?' -tais pensamentos o conduzem e seduzem, cada vez mais adiante, cada vez mais além. A solidão o rodeia e enrodilha, cada vez mais ameaçadora, mais sufocante, apertando mais o cÓração ... " 30 . O segundo momento da metamorfose pode envolver longos anos de convalescença, "um estado intermediário ( ... ), uma pálida, refi- nada felicidade de sol e luz que lhe é própria, um sentimento de liberdade de pássaro, panorama de pássaro, desenvoltura de pás- saro,( ... ) em que curiosidade e delicado desprezo se ligaram.( ... ) Vive-se, não mais nas cadeias de amor e ódio, sem sim, sem não, voluntariamente perto, voluntariamente longe, e de preferência esquivando-se, desviando-se, esvoaçando para longe, outra vez além, outra vez voando para o alto; está-se mal acostumado, como todo aquele que viu uma vez uma descomunal multiplicidade abaixo de si - é-se agora o reverso daqueles que se afligem com coisas que não lhe dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o afligem ... " 31. A terceira e última etapa da transmutação é uma lenta reconciliação com a vida, com o mundo: ''Fica outra vez mais quente ao seu redor, mais amarelo, por assim dizer; senti- mento e simpatia adquirem profundeza. brisas de degelo de toda 30 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO espécie passam por sobre ele( ... ) Ele olha com gratidão para trás - grato a sua andança, a sua dureza e estranhamento de si, a seu olhar à distância e a seu vôo de pássaro em frias altitudes. Que bom que ele não permaneceu, como alguém delicado, embotado, que fica em seu canto, sempre 'em casa', sempre 'junto de si'! ( ... ) l Que felicidade ainda no cansaço, na velha doença, na recaída do CO!)vale çente! Como lhe agrada sentar-se quieto sofrendo, urdir paciencia, estar deitado ao sol! Quem entende, igual a ele, de felicidade de inverno, de manchas de sol sobre o muro! São os animais mais gratos do mundo, e também os mais humildes, estes convalescentes e lagartos semi voltados outra vez à vida: -há entre eles os que não deixam partir nenhum dia sem pendurar-lhe um pequeno hino de louvor na orla do manto que se afasta. E, falando sério: há uma cura radical contra todo pessimismo (o câncer dos velhos idealistas e heróis da mentira, como é sabido) ... " 32 . Quando tiver atingido esse estágio, o espírito terá se tornado senhor das suas próprias virtudes, terá aprendido o perspectivismo de toda estimativa de valor, "e também a parte da estupidez referente a valores opostos e a toda penitência intelectual com que se faz pagar todo pró, todo contra,(. .. ) a conceber a injustiça necessária de todo pró e contra, a injustiça como indissolúvel da vida, a vida mesma como condicionada pelo perspectivismo e sua in- justiça"33. Então, ele dirá: "Como aconteceu comigo, assim deve acontecer com todo aquele em quem uma tarefa quer tomar corpo e ' vir ao mundo'. "34 7 A sabedoria do perspectivismo - À primeira vista, pode parecer que a descrição nietzschiana do "grande livramento" do espírito estaria, sub-repticiamente, reintroduzindo um processo de evolução no desenvolvimento da vida. Afinal, não se trata de fases necessárias pelas quais o espírito teria de passar, atraves- sando estágios contraditórios - a pertinência-aprisionamento e a errância-livramento-para atingir a síntese dos estágios anteriores: pertinência-livre, à semelhança da velha dialética?35 Nietzsche l'~IC'OPATOLOGIAS 31 diz: "O secreto poder e necessidade dessa tarefa reinará sob e em seu destino particular (do espírito) igual a uma gravidez incons- ciente - muito antes de ele mesmo ter colhido no olho essa tarefa e saber seu nome. Nossa destinação dispõe sobre nós, mesmo quando ainda não a conhecemos; é o futuro que dita as regras do nosso hoje " 36. Entretanto, a afim1ação da necessidade da tarefa não significa a afirmação da necessidade de um percurso pré- determinado, nem movido pela contradição. Ao contrário desse tipo de leitura, o próprio Nietzsche descreve esses estados como "1>reparativos ", "ensaios", "desvios", ou seja, o contrário de um caminho pré-detemlinado; também os descreve como estados " múltiplos e contraditórios de indigência e felicidade na alma e no corpo " 37, o que quer dizer estados ambivalentes, contendo simultaneamente qualidades múltiplas e não estados opostos em contradição38. O que é necessário no livramento é apenas o próprio livramento, nada mais. Que, a partir daí, o espírito erre a esmo é apenas conseqüência de quem perdeu o chão; que se distancie e sobrevoe o mundo como um pássaro, significa apenas que sente medo de chegar perto demais e perdera liberdade recém-adquirida; que tem1ine por se reconciliar com a vida e o mundo é conseqüência de que, desde o início, ele era inerência à vida e ao mundo. A errância, o sobrevôo e a reconciliação não são, aliás, comumente, fases seqüenciais ordenadas, mas estados que se interpenetram e se sobrepõem e a partir dos quais se compõe a coreografia de cada espírito singular: um misto de ensaios, preparativos, desvios, errâncias, vôos e pousos, resultan- tes dos seus encontros (Spinoza) e através dos quais se persegue a necessidade posta: a liberdade(= saúde) do espírito: apro- priação da sua potência afectiva. A psicoterapia genealógica tem justamente por função cuidar desta dança, instrumentando a sua coreografia e incentivando os seus movimentos. para que ela não se enrede nos valores instituídos, no caminho pré-detenni- nado que a cultura impõe sob o nome evolução. Reconhecer o perspectivismo e a injustiça do perspectivismo significa saber que qualquer direção tomada tem seus prós e seus contras, suas vantagens e desvantagens e que nada é absoluto, que a 32 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO Vida é um constante ensaio sem direção pré-determinada. Enredar-se na injustiça do perspectivismo significa - diria Heráclito de Éfeso - a limitação de só conseguir visualizar a vida de uma perspectiva particular, sem perceber que ela é particular e sem ter acesso ao lógos constitutivo do devir. Então, certos acontecimentos que, daquela perspectiva, poderão aparecer como injustos, serão de fato tomados como tal, não sendo associada a sua injustiça com a injustiça ne- cessária a toda perspectiva, pois, na imanência do lógos cons- titutivo do devir - e para a avaliação do deus que dele participa, dizia Heráclito - o mundo é fundamentalmente justo. A injustiça do mundo é a injustiça do perspectivismo, . h 19~0 , . 1· ' b d merente ao umano.- espanto 1vre, que so revoou o mun o e viu a multiplicidade abaixo de si, e pôde experimentar os mais diferentes ângulos de visão - todos limitados e injustos em si próprios - sabe disso melhor do que ninguém; ele caminha para além-do-homem.40 8 A nobreza salutar-O nobre corresponde, dentro da tipologia nietzschiana, à fomrn de vida afinnativa e criadora de valores, o que significa que a nobreza é, por definição, salutar. Nenhum outro conceito se presta, entretanto, a tantos mal-entendidos, na filosofia nietzschiana, quanto este de nobreza e o seu par oposto, escravidão. Talvez porque o filósofo tenha, de fato, se inspirado em diferentes culturas e até aponte uma origem histórica para a formação desses dois tipos 4 1, o nobre e o escravo acabam, dentro da interpretação popularizada de Nietzsche, bastante confundidos com as classes sociais que lhes deram origem.É impo,tante deixar claro, pois, mais uma vez, que eles designam antes de tudo formas de vida ou tipos de moral42 que, à parte sua suposta origem histórica, não se confundem com classes sociais. grupos ou mesmo indivíduos: ' ·acrescento desde logo que, cm todas as culturas superiores e mais mistas, aparecem também tentativas de mediação entre ambas as morais, e ainda mais freqüentemente i'SK'OPATOLOGIAS 33 a mescla das mesmas e seu recíproco mal-entendido, e até mesmo, às vezes, seu duro lado-a-lado-até no mesmo homem, no interior de uma única alma" 43 . Assim, pois, se o nobre· e ºI. escravo podem -nas palavras de Nietzsche -habitar o interior de uma única alma, fica, de uma vez por todas, desfeito o equívoco: "-n eles designam, antes de tudo, formas de viver que se alternam ti se 111isturan1 ou se sobrepõem na constituição de uma subjetivi- \ \."-d,t dade. Eu costumo designá-las como circuitos de vida. O circuito- J 1.~t nobre define-se por uma composição de forças ativas e de forças reativas, com o predomínio das primeiras sobre as segundas ou, como já o defini num outro texto, com o pre- domínio do inconsciente ativo sobre o inconsciente reativo44. Mas o que significa isso de fato? Significa que as forças ativas - que são as forças fortes, em completa posse da sua potência - controlani as forças reativas - que são as forças fracas, separadas do seu potencial para finalidades adaptativas45 . Por exemplo, quando eu como um prato de comida, um conjunto de forças ativas, que a consciência traduz no seu código uti_litário como apetite 46, controla as forças reativas envolvidas nos movimentos de tronco, boca, braço, mão e dedos; se estas últimas não fossem separadas das suas potências totais, reduzidas em suas potências para compor a força necessária à produção do movimento global, jamais o ato de comer seria possível. Dito de outra fonna, as forças ativas representam a vontade de potência em plena potência, controlando as forças reativas que são vontade de potência domesticada, disponível sob a forma de traços mnêmicos articulados a movimentos corporais e/ou mentais. Um outro exemplo: se sou agredido, imediatamente as forças ativas acionam as forças reativas, catalisando lembranças e pro- duzindo atos motores e/ou verbais de defesa. O que possibilita esse controle das forças ativas sobre as reativas é um mecanismo que Nietzsche denomina esquecimento e que separa a consciên- cia desse inconsciente reativo, fo nado de marcas mnêmicas; não fosse o esquecimento, a consciênc1âse veria invadida por lembranças e sentimentos do passado, incapacitada de operar em \ sintonia com o presente-em-devir e as forças reativas tomariam o A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO controle das forças ativas (que é o que define justamente o circuito-escravo). O esquecimento, por sua vez, tem o seu fim- cionamento garantido pela capacidade de o corpo e o espírito ' 'digerirem", metabolizarcm os acontecimentos, o que significa que sempre que isso não acontece esses acontecimentos passados pennanecem, sob a fonna de lembranças e de sentimentos, como fantasmas, invadindo o presente e subvertendo o controle das forças ativas47 . Isso posto, posso agora tentar caracterizar mais precisamente o que vem a ser essa saúde, própria ao funciona- mento do circuito-nobre. Quando uma subjetividade está co- mandada por um circuito-nobre, isso significa, em primeiro lugar, que ela tem sua referência vital na afirmação da sua vida ·enqt~ devir. Assumeã própriá força e, por isso, jamais vai· buscar justificativa para as suas alegrias e infelicidades nas ações dos outros. O outro é apenas outrem, um outro ser diferente de si, com quem é possível entrar em ressonância, trocar amor ou agressão, dependendo dos afetos gerados nos encontros. Mas a agressividade que brota de si é uma agressividade salutar, que afinna e demarca as diferenças e, mesmo na cólera, é capaz de reconhecer e respeitar a força do inimigo; não é jamais uma agressividade defensiva e ressentida que, quando emerge é jus- tamente sinal de que o circuito-nobre foi suplantado por um circuito-escravo. Na agressividade nobre impera, em geral, uma serenidade de quem se sabe em posse dos seus recursos, de quem ~ afinna a própria força como fundamentalmente produtora de 1 realidade, construtora de valores, onde a destmição é parte inte- \ grante do movimento transfigurador, criador. As raivas, os ódios. são geralmente passageiros, na medida em que o esquecimento é aí uma função ativa. uando o a.mor acontece, ele traz, por sua vez, uma expansão mútua das subjetividades envolvidas, através de suas ressonâncias como intensidades vibráteis. Às vezes é inevitável que essa expansão gere possessividade e desejo de domínio - desembocando, então, em conflitos e disputas - mas aprende-se logo que a autonomia de cada um é a fonte de riquezas da relação. Quando o amor degenera em pura dependência. indi- ferenciação e mesmice, isso significa que um circuito-escravo 1 lt P I 'i\ 1 OI,< K H AS 35 .i.,•,umiu o controle das subjetividades. Enquanto ativo, o amor 1111h1c propicia, também, a vivência de momentos únicos e raros. 1111d1.: o que nos toma conta é um movimento de exaltação à vida, rnm Ludo o que ela tem de bom e de mim, de perfeito ou de 1111pc rfoito, de prazer ou de dor. Puro amor de viver, coragem ~•,1,111cle de dizer sim, momentos que valem a eternidade. Através th.:ssa exaltação à vida, desse amor fati, sentimo-nos capazes de " digerir", metabolizar os acontecimentos, extraindo deles o que IGm de melhor: seu br~· 1-l:5,;eu fulgor, aprendendo, assiin, a crescer l' Olll a experiência. ' Viver isso significa para nós: transmudar constantemente-tudo o somos em luz e chama; e também tudo o que nos atinge", dizia Nietzsche 48. Mas tudo isso pode cheirar; a idealização se nos esquecemos de que o homem não é feito s@ desses ing redientes e que esta descrição é a da he emonia de uma .,p..-----certa c_onjuntura de forças, portanto de um modus vivendi tipico, não de uma subjetividade tomada no seu devir mundano, onde circuitos-nobres e escravos nom1almente disputam a supre- \ macia da psykhé49 . Trata-se, pois, da descrição de um tipo, o tipo 11obre, hoje bastante raro, na medida em que atrofiàdo ou suplan- tado pelo tipo escravo na maior parte da humanidade. Pois a civilização, em seu progresso, é o oposto disso: a .proliferação da moral e da culpa, a doença disseminada e posta como norma 5°. 9 A escravidão como aprisionamento pelo Outro - Dentro da tipologia nietzschiana, a escravidão define-se como um cir- cuito-de-vida composto de forças ativas e de forças reativas, com o predomínio das segundas sobre as primeiras ou, melhor dizendo, com a sobrepujança do inconsciente reativo sobre o inconsciente ativo51 • CYprocesso que conduz a esta conjuntura tem a sua gênese nos acontecimentos, na luta entre campos deÍ .- força, onde o vencedor toma o vencido impotente, incapaz de 1 \.' reação, separando-o da sua potência e marcando-o celm o • .J código vitorioso. Retomo aqui um exemplo já usado anterior- mente52: uma menina, adotada por pais brancos, ainda recém-nas- 36 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO cida e quando se pensava ser ela também branca, revelou-se, com o crescimento, ser de cor parda e cabelos encarapinhados, sendo então, imediatamente desqualificada e tachadà de "feia". Despo- ~ tencializada na sua diferença, na sua singularidade; t~ndo tido um ãcÕlhin1ento afetivo mais forjado do que real, ela era, aos nove anos, u~ poçÓ de ressentimento e de ódio. Na gênese desse ~ ressentimento temos, pois, dois campos de forças estético-morais ....._ ; em confronto: valoresdaraçanegrae da raça branca, com a vitória dos segundos sobre os primeiros. A partir daí, a criança, como \ expressão da raça desqualificada, é destituída das suas qualidades, ou seja, separada da sua potência pela marca do código vencedor: "feia". Separada da sua potência, na medida em que qualquer, ação sua é impotente frente à força interpretante: qualquer coisa que ela faça, será sempre "feia". Essa impotência, cir- cunstancialmente produzida - fossem os pais negros ou menos narcisistas, o resultado seria outro - é a gênese do circuito- escravo: seu impacto é tal que ela inverte o domínio das forças naquele circuito. Doravante ele será regido pelos efeitos de reação a essa marca, ou seja, por forças reativas, na sua luta impotente frente ao acontecido. Isso quer dizer que as forças dominantes no circuito são, agora, aquelas despotencializadas pela marca escravizante -forças reativas -ou, em outros termos, que quem domina no circuito é a impotência. A dinâmica que se segue é a luta inglória dessas forças: elas tentam reagir à marca mas estão, ao mesmo tempo, regidas pela marca: qualquer expansão bélica, empreendida significa não só o fracasso de não conseguir destruir a marca mas, ainda, o efeito de propagá-la a outros circuitos-de-forças da personalidade, separando-os da sua potência, escravizando-os. Num universo humano onde dominam valores morais: sofrimento passivo, auto-piedade, etc., as forças ativas acabam progressivan1ente despotencializadas pelas forças reativas, que tendem a controlar a personalidade. Ao ser possuído pela impotência generalizada, o ser humano não tem alternativa: "privado de si, só pode tomar o outro como fonte de referência; castrado, só pode invejar e culpa- bilizar a potência do outro; impossibilitado de ação presente, só "I ,.... ') \ r.,<-t '~); 1 1ll'<ll'ATOLü< ;IAS , 1' 37 'tJ pode rc-sentir o passado, eternizando o que era contingente e lni luito " 53. O ressentimento designa, como a etimologia do 1 •11110 revela (re-sentimento), uma reiteração do sentimento pnssado que, enquanto vivência passiva, toma o lugar da ativi- d11de presente. Esta está muito dificultada porque as forças sub- Jt:livas que, em épocas normais, articulam e conformam as ações (forças ativas), foram despotencializadas, rebaixadas pelas forças reativas; e também devido à dupla inscrição temporal do circuito-escravo: o passado, invadindo o presente, torna !._ qualquer ação atual necessariamente inoperante: é impossível lutar contra o que já aconteceu e que só persiste através das / mudanças que produziu, da marca que deixou. Assim, pois, o escravo define-se por um aprisionamento pelo Outro: outro- imaginário no qual ele busca a própria potência castrada, que pcns,a ~ue o outr?_det~m c?m~o_mn troféu,_ diri~!ndo-lhe, e~tão, ~ seu od10, culpab1hzaçao e mveJa; Outro-s1mbohco que designa o / próprio código com que foi marcado, como com ferro-em-brasa. Mas a chave da cadeia do escravo não está com o outro-imaginário e sim com o Outro-simbólico: ela é chave da gênese e produção < - __ _; dessa marca que o aprisiona e o castra, genealogia da cons- trução desse valor, desse código. O que quer, dizer, também: genealogia da sua desconstrução possivel." ~ Neurose, escravidão, sonhos e forças marginais 10 Escravidão e neurose - O termo neurose é formado por duas palavras gregas: neuron, que significa nervo e ose, que significa ação, remetendo, pois, a uma suposta ação envolvendo os nervos. Sua origem remonta ao século XIX, quando a medicina supunha que as neuroses tinham sua etiologia numa disfunção do sistema nervoso, concepção da qual o próprio Freud chegou a partilhar, embora não completamente - vide o famoso Projeto de uma psicologia para neurólogos que escreveu, mas não quis publicar 38 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO enquanto vivo. Essa linha de investigação continua tendo desen- volvimentos ainda hoje, principalmente através das pesquisas bioquímicas, mas não é isso que interessa aqui, dado que o tema desta reflexão é a psicoterapia e não a psicofannacologia55 . O que interessa é que a etimologia do tenno fala de uma ação afetando os nervos e produzindo mudanças nervosas que se exprimem, então, nos sintomas neuróticos; ora, a mesma interpretação neurofisiológica pode ser transposta para um nível psicológico: uma ação afetando uma psykhé e produzindo mudanças afetivas (páthos ), que se expressam num conjunto de sintomas, o que, sem dúvida, define a neurose como uma psicopatia. Essa ação, con- fon11e já defini anterionnente, é sempre um encontro afetivo, na medida em que tem a capacidade de afetar e produzir mudanças. \' Se for possível interpretar essa afecção e essa mudança como pt:o.@..ç_ão 4e irn.P-O!_ê_!!_9JJ ___ (~ afeta~ endo separada da sua / potência). esse encontro, portanto, como uma luta entre campos de força, onde o vencedor marca o vencido com o seu código, será possível identificar escravidão e neurose como sinônimos. Resta investigar até que ponto essa sinonímia pode fazer justiça a ambas as noções. 11 Neurose, escravidão e angústia - Uma das primeiras noções de que Freud lança mão para entender a gênese da histeria é a de trauma posto como: "acontecimento da vida do indivíduo que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se acha o indivíduo de lhe responder de forma adequada, pelo trans- torno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo car~cteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo, relativamente à tolerância do indivíduo e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente essas excitações"56 . Isso ,h poderia nos levar, prematuramente, a pensar em algo como um ,../ trauma na gênese do ressentimento e do circuito-escravo. Afinal , como diz Assoun, ' 'tudo procede, na verdade, do fato de que o J•~J( '()i 'ATOLOGIAS 3!) cíeito não se descarregou imediatamente, pela atividade. A partir dai se desencadeia um mecanismo tóxico. É em termos de en- venenamento que Nietzsche evoca justamente este efeito pelo qual o que não pode descarregar-se como reação motora cria um verdadeiro foco de infecção que ganha o conjunto do psiquismo. Assim é a doença do ressentimento, que age à maneira de um ' parasita' e 'se instala permanentemente'' '57. Assim, poderíamos pcnsarqi.ieã impossibilidade de ab-reação da afecção traumática, devida à incapacidade do indivíduo, ao estado de desamparo cm que se encontra - que também lhe impede de dominar e elaborar as excitações -estaria tanto na gênese da histeria quanto do circuito-escravo (do ressentimento); poderíamos, inclusive. a partir daí, procurar relações entre tal neurose e tal estado afetivo. Entretanto, convém não caminhar tão apressadamente. Em primeiro lugar, porque a noção de estado de desamparo (motori- sche Hilflosigkeit) designa, na perspectiva freudiana, mais o es!ado de impotência característico da total dependência do lactente~8 do que um acontecimento produzido pela luta entre. campos de força; ou sejaaimpotênsia aí é um estado dado, característico da imaturidade biológica e não produto deum afrontan1ento através / do quâl um campo de forças é se arado da sua potência por outro. • Quase como se reud, 1iêsse-momento, se contentasse com uma gênese da neurose mais biológica, considerando pouco as forças interpretantes e a dimensão simbólica nelas presente. Mais tarde, a noção de trauma perdeu, relativamente, a sua importância, no desenvolvimento da teoria freudiana, para outras como: fantasia, desejo, recalque, superego, onde a dimensão simbólica era mais levada em conta. Por isso, também, é preciso caminhar com mais , cuidado e menos pressa. De qualquer fonna, com Nietzsche J somos levados a pensar na gênese do escravo considerando a / importância do efeito interpretante das forças vencedoras na produção da impotência das forças vencidas; é frente a essa codificação doadora de sentido que o outro -incapaz de dominar { oc'ódigo estrangeiro - toma-se impotente. Essa impotência não é, pois, a impotência pura e simples de uma reação motora, mas a ) impossibilidade de qualquer reação motora alterar a marca im- 40 A PSICOTERAPIA EM BUSC A DE DION ISO posta e as conseqüências afetivas que delaadvêm. O envenena- mento, o efeito tóxico, não decorre da impossibilidade de reações motoras, mas da sua inutilidade. A proliferação passiva das forças, cuja descarga torna-se impossível devido à impotência das reações motoras, clefine justamente a angústia, um dos principais sintomas da neurose.59 ':. _ .... 12 Histeria: escravidão sem recalque - Quando Freud descreve o caso de Elisabeth von R.60 - cujos sintomas histéricos eram as dores nas pernas que lhe impediam de caminhar bem, associadas a uma sensação de frio 6 1 - ele tennina, ao longo da análise, por apontar como gênese da histeria um conflito desencadeado na época em que a paciente cuidava do pai doente, ao mesmo tempo em que saía com um rapaz de quem se enamorara. Freud supõe, então, que o caráter inconciliável - perante a sua consciência moral - entre o estado de beatitude vivido nos passeios em companhia do rapaz e a miséria em que estava seu pai doente produziu um recalque da representação erótica, sendo o afeto a ela ade rido aplicado para reanimar uma dor, de origem reumática, então presente 62 . Indo mais além na análise, ele descobre que o lugar da perna direi ta que doía era onde a paciente apoiava a perna doente do pai para trocar as ataduras. "Sem dúvida, deve ter sido decisiva para o rumo que tomou a conversão a outra modalidade do enlace associativo: a circunstância de que durante uma série de dias uma de suas pernas doloridas entrava em contato com a perna inchada do pai, tendo como origem a troca de ataduras. O lugar da perna direita marcado por esse contato pennaneceu desde então como o foco e o ponto de partida das dores, a zona his- terógena artificial cuja gênese pude penetrar com claridade nesse caso " 63 . Temos, pois, aí, um encontro de corpos e afecções/afetos sendo gerados nesse encontro, através de marcas produzidas por um corpo sobre o outro: a partir daí, um dos sujeitos tem a sua potência corporal/espiritual diminuída64 . Embora esta seja a origem da histeria, ela não é , nos conta Freud, a origem dos 1 1, <>l'I\ ICII Cl< HAS 41 'l llt tomas histéricos de Elisabeth von R.; na verdade os sintomas 11 l'Omcçam mais tarde, por um efeito retardado, quando a en- . - t ~ o ti•, 11111 reproduziu essas tmpressoes em seus pensamen os . 111•P,11nclo período da doença é descrito por Freud como ligado a 11111 segundo conflito, da mesma modalidade que o primeiro: o 1 1 11 ótcr inconciliável entre o amor/desejo que Elisabeth sente pelo v1111hado e o amor/respeito que sente pela innã. A representação :imorosa é então, segundo ele, recalcada e o afeto ligado a ela rnnvcrtido em dor tisica, tomando a perna esquerda, na medida 111stamcnte em que a dor psíquica é evitada pelo recalcamento. A Hugunda conversão apóia-se na escolha anatômica já delimitada pela primeira conversão, constituindo-se numa ampliação e num n.:fo rço da mesma. De todas essas análises, que Freud realiza entre 1 X93 e 1895, é possível que pelo menos uma delas tivesse sido reformulada se ele tivesse reinterpretado o caso mais tarde, quando o com plexo de Édipo tomou-se nuclear na sua teoria. Ele te ria, provavelmente, descrito o conflito originário da histeria de Elisabeth von R. como a condição inconciliável entre o desejo incestuoso, produzido pelo contato entre a sua pema·e a do pai, e as exigências morais do seu superego; teria ainda perseguido ramificações mais precoces desse conflito na vida da paciente. Para as considerações que quero realizar aqui, tanto faz tomar a / primeira como a segunda (possível) interpretação, dado que o que pretendo questionar não é o desejo incestuoso ~ as a idéi a _g.e?' rccalgue66 . Tomo, pois, a segunda interpretação como ponto de p~ O contato entre a pema do pai e a perna de Elisabeth pode ser descrito como colocru1do em ação três campos de força: o primeiro deles é um campo de forças conjuntivas envolvendo amor, carinho, sensualidade, quiçá sentimento de posse -afinal, Elisabeth não dedica toda a sua vida ao pai e à sua doença? Não se culpa pelo prazer que sente na companhia de outro homem? Quando a sua perna entra em contato com a perna do pai é como que possuída por essa onda de afetos. O segundo campo de forças aparece como um crunpo disjuntivo: é o conjunto de regras, normas, prescrições morais já incorporado aos hábitos motores de Elisabeth e que articulrun os modos de lidar com o corpo paterno; no mesmo ·12 A PSICOTERAPIA EM BtJSC'A DE DIONISO instante em que a perna sente-se aconchegada, envolvida, seduzida pelo contato da outra perna, ela reconhece nesse envolvimento a perna do pai, sendo como que paralisada na suas sensações. O terceiro campo, também de forças disjuntivas, é a presença da morte que já se anuncia pelo inchaço da perna, pela atadura que deve ser trocada e que corta o calor e o aconchego com a sensação do frio. Nesse confronto entre os três campos, o segundo e o terceiro, disjuntivos, unem-se para capturar o primeiro, conjun- tivo, e separar as suas forças - de sensualidade, aconchego, amor -de suas potências. Ou seja, se a inscrição erógena produzida pelo contato entre as pernas seria, em princípio, um signo de sensuali- dade, a sua forma final, resultante do confronto das forças é a de sensualidade paralisada, envolta em morte, cuja expressão é dor e frieza. Dor e frio são, pois, as sensações que a perna em questão experimenta algum tempo depois. Com esse processo a consciência não tem nada a ver, nem no nível do sentir, nem no do codificar e decodificar, muito menos, portanto, no nível do recalcar. Freud supõe que a consciência já experimentou esse desejo e o recalcou baseado no pressuposto de que só a consciên- cia é capaz de interpretar, de dar sentido aos acontecimentos67.;1A segunda etapa da formação da neurose pode ter seguido um caminho análogo ao anterior: frente ao envolvimento também proibido com o cunhado, o contraste entre a sua solidão e a felicidade conjugal da innã lhe gera dor6x e essa dor se expressa nas pernas, ao caminhar, como se elas dissessem, nos seus signos próprios, de pernas, que não conseguem avançar um passo na constnição de uma vida afetiva6(). Aqui, também. a dor nas pernas não substitui, necessariamente, uma dor expulsa da consciência, nem expressa um sentido simbólico recalcado; pelo menos esta interpretação não é a única possível, se se considerar que o corpo tem uma semiótica própria que não é, evidentemente, a da lin- guagem da consciência. tampouco um arremedo seu. Que a cons- ciência permanece dissociada de todo esse processo parece-me uma hipótese mais plausível. Porquê? Simplesmente porque o seu código moral não lhe permite representar os envolvimentos afetivos em questão, nem com o pai, nem com o cunhado. Assim, 1';,l( '( li'ATOLOGIAS 43 pois, quando Freud comunica a Elisabeth sua con~t~ção verbal interpretativa, ela a rejeita de todos os modos poss1ve1s: pode-se, sem dúvida, chamar isso de resistência, mas é a resistência de um código a uma interpretação que não cabe dentro dele. Ela só caberá através de uma espécie de ampliação, transmutação do código, que é o que acontece quando a interpretação é bem-sucedida. Mas, então. poder-se-ia perguntar: por que é fundamental que a ex- periência das pernas ganhe o espaço da consciência? Afinal, não é isso que produz a cura? A resposta é uma só: a expe1iência das pcmas poderia ter-se desenrolado à margem e até a despeito da consciência se ela não tivesse sido paralisada numa marca e numa dor. ou seja, se as circunstâncias não envolvessem uma sensuali- dade proibida e ela pudesse ter-se realizado como desejo. ao nível cio corpo, da sensibilidade e do entendimento que lhe são próprios. pois, na perspectiva nietzschiana, "não só o querer, m~ também o sentir e o pensar estariam disseminados pelo orga111smo: e a relação entre eles seria de tal ordem que, no querer. já estariam embutidos o sentir e o pensar. Entendendo que pensamentos, sentimentos e impulsos já se acham presentes nascélulas, tecidos e órgãos, Nietzsche não se limita a afirn1ar que os processos psicológicos teriam base neurofisiológica, mas, mais do que isso. procura suprimir a distinção entre fisico e psíquico ( ... ) no seu entender, não é todo pensamento que se dá cm palavras: apenas \ aquele que se toma consciente. Se a vontade da potência se exerce nos numerosos seres vivos que constituem o organismo e se, no querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, o pensamento está disseminado por todo o corpo. Nessa medida. ele é totalmente autônomo em relação à consciência, mesmo porque esta não passa de 'um órgão de direção', ·um meio de comunicabilidade'" 70 . Entretanto, quando a experiência afetiva e o movimento das forças nos espaços marginais à consciência são paralisados no circuito que lhes é próprio e nele não podem encontrar expressão possível senão numa dor e num congelamento - testemunhas do seu aprisionamento por um Outro -, a consciência é o circuito alte~- nativo que resta. Como órgão central, de direção e de comu111- \ cação. ela é capaz de traduzir a experiência marginal num signo 44 A PSICOTERAPIA EM B USC A DE DIO NISO verbal comunicável e colocar novamente em movimento, na esfera intersubjetiva, o que estava paralisado, aprisionado, no circuito originário. Mas essa tradução é sempre uma construção, dado que não se trata, de fato, de qualquer sentido la.tente, en- coberto, que se deva descobrir, mas de construir uma ponte possível entre dois circuitos diferentes, ligados a experiências e códigos originalmente incomunicáveis, intraduzíveis um pelo outro. A sicoter ia genealógica não trata, pois, de tomar o incons~ ciente consciente -visto que, para ela, o inconsciente não designa o recalcado, mas o próprio jogo das forças, produtor de vida e de neurose. A t~refa a.q_ui é libertar circuitos para que, justamente, as suas forças inconscientes possam reencontrar a função que lhes é própria: a eterna desconstrução-reconstrução da vida, a produçãoj de um devir possível , que para o neurótico está comprometido. 13 A.fobia e a dissociaçcio da co11sciê11cia -Os circuitos margi- na.is à consciência. não estão sempre ancorados numa dimensão corporal, como na histeria dita conversiva. Na histeria de angústia ou neurose fóbica, por exemplo, a experiência marginal apóia-se numa dimensão mais mental, abstrata: são construções interpretativas dissociadas da consciência. porque envolvem uma mentalidade diferente, desnivelada da funcionalidade adap- tativa que lhe é própria. Às vezes são circuitos infantis, onipoten- tes, totalmente domina.dos pelas formas de interpretação do mundo, características da criança que um dia se foi e que persis- tem, lado a lado com as fonnas adultas, seus códigos, seus valores. Freud partia sempre da idéia de recalque. Para ele, a angústia da fobia originava-se da separação da carga afetiva da representação recalcada.; esse afeto, em vez de ser convertido num sintoma somático, era tra.nsfomrndo em angústia livre, que precisava., então, ser rei iga.da a algum objeto, como mecanismo da defesa do ego, para que a angústia. pudesse ser evita.da. a.través da fuga. Assim Freud explicava, por exemplo, a fobia de cavalos do pequeno Hans e todas as outras. Eu continuo pensando que a 1', 1( 'Ol 'i\TOLOfHAS 4 5 hipótese do recalque é desnecessária. Gostaria de dizer por quê, çontando o caso de uma cliente que apresentava fobia de lugares :tllos - como prédios ou aviões - ou de qualquer lugar fechado cuj a saída se encontrasse distante . A fantasia era sempre a de que, 1n1m incêndio ou qualquer outra eventualidade, não teria como sair dali. A fantasia envolvia., pois, a vivência. de uma impotência de locomoção. Ora, essa paciente tinha um innão que havia sido paralisado pela poliomielite (só andava de muletas e ~o~ grande dificuldade) numa época em que ela, menina sapeca, v1v1a trepada nas árvores e andando pelos muros. Por alguma razão, surgiu na época a idéia de que ela passara o vírus para o innão - ela " se lembrava." de os pais dizerem isso! - advindo daí intensa sen- sação de culpa. Havia, pois, aí, um circuito onipotente-_culpado que, dominado por crenças religiosas, esperava um castigo, que só poderia vir via espelho: ela também se tomando i":1pot~nte na locomoção. Evitar lugares altos ou fechados, de sa1da distante, era apenas uma fomrn de se proteger dessa angústia. Essa fantasia de castigo era produzida num circuito-escravo, dominado por valores morais e totalmente dissociado da consciência, mas nem por isso recalcado. A dissociação era devida ao tipo de interpre- tação de realidade dominante no circuito e que era totalmente dissonante dos valores " adultos", conscientes, que ela exibia para o mundo e para si mesma. Com o desenvolvimento da psi- coterapia, veio a articular ma.is tarde a esse mapeamento de forças uma inveja (que sentia do irmão) que -como sentimento pecami- noso - poderia estar na gênese da culpa. Inveja porque ela o percebia como o filho querido, o que nos levou à suposição de que a fantasia de castigo era, ao mesmo tempo, também, desejo de ser igual a.o innão e receber as mesmas atenções. Desejo que, dado o seu caráter, reforçava a hipótese da existência de um circuito-infantil, dissocia.do da consciência. 14 A consciência e as defesas contra a escravidtio - A idéia do recalque está apoia.da, filosoficamente falando, em dois precon- A PSICOTERAPIA EM RUSC'A DE DIONISO ceitas. O primeiro deles, idealista, pressupõe que há uma repre- sentação fechada, conclusiva, dos acontecimentos. que a cons- ciência não pode modificar a não ser expulsando-a para fora de si: tomada marginal, ela permaneceria intacta, como testemunha do evento: desejo ou trauma. Como se o significado dos acon- tecimentos não fosse algo continuamente constrnído e recons- truído pela consciência ou como se cada acontecimento não comportasse sempre uma multiplicidade de interpretações, uma diversidade de ângulos de visão, intercambiáveis e transmutáveis, mesmo que se trate do que a psicanálise nomeou realidade . t 71 F d · · m ema . reu sempre ms1ste em que, quando a situação an- gustiante é externa, o ser humano pode lançar mão da fuga, mas de que quando ela é interna, o recalque seria a única defesa possível do organismo. Esta forma de interpretação poderia levar- nos a pensar o recalque primordial como desencadeado pela incapacidade de o bebê suportar a intensidade da excitação gerada pe lo contato seio-boca - que aplacaria a fome mas não a pulsão sexual aí desencadeada. Essa excitação, impossível de ser descar- regada. seria a angústia geradora do recalque da representação excitante. Com isso, a pulsão se fixaria na representação-seio, recalcada, e logo buscaria o substituto-dedo, como fonna de prescntificar. alucinar o seio ausente. Mas não podemos simples- mente pensar que o bebê usa o seio e o dedo como equivalentes e que essa equivalência é possibilitada pela polivalência do corpo e do mundo? Ou seja. que a criança reinterpreta a realidade e transforma dedo em seio para acalmar a angústia e simular a presença da mãe'? Dentro desta perspectiva, pensaríamos na próp1ia formação da consciência como se dando na aprendizagem dessas táticas de interpretação e simulação da realidade, capazes de protegê-la da angústia. Sem que para isso tenha sido preciso recalcar nada. dado que, na polivalência das coisas próprias e do mundo. os acontecimentos são móveis. deslocantes, reinter- pretáveis -mesmo que o universo adulto já tenha, desde o início, inserido a criança num espaço simbólico pré-detenninado, pois a consciência se fonna,justamente, nesse espaço gregário. com suas regras e seus princípios. E é justamente pela absorção do código l'Slt 'Ol'ATC )LOU I/\S 47 vigente nesse espaço que ela se toma um órgão de adaptação. Isso não quer dizer, entretanto que, em espaços marginais à consciên- cia. não existam circuitos comandados por outros códigos que, ao assumirem dominâncias locais.possam ter passado a controlar a dinâmica do circuito e até se generalizado. Mas isso não é conseqüência de qualquer significado traumático, absoluti- zado e mantido inalterado via recalque e sim do domínio despótico e arbitrário de um código estranho, num campo alheio à consciência n O problema é todo este: a consciência não abarca todo o psiquismo; existem circuitos marginais produtores de angústia e envolvendo experiências que esca- pam à consciência por todos os lados. São circuitos-escravos articulados por códigos estrangeiros, cujas semióticas são intraduzíveis na linguagem vulgar da consciência. E aqui chegamos ao segundo preconceito filosófico presente na idéia de recalque - originário da tradição racionalista: o que outorga à consciência uma função central e necessária nos prncessos de interpretação da realidade. Frente a este postulado -mesmo que se conceba a formação de sentidos marginais, 110 interior do psiquismo - a consciência designa, sempre, uma espécie de sede o nde todos os sentidos buscam acesso e reconhecimento. A partir de diferentes ângulos,já mostrei que, da perspectiva nietzschiana, i;so não faz o menor sentido 73 • Mas. então, poder-se-ia perguntar, como é que a consciência se protege desses circuitos marginais, das forças impotentes nele aprisionadas sob a fonna de angústia? A primeira fonna de proteção é a dissociação: a consciência tenta 111anter-se afastada do circuito em questão e do que acontece nele. agindo como uma avestmz que enfia a cabeça no buraco de areia. Entretanto. nem sempre o consegue: as forças reativas tendem a se disseminar e a controlar cada vez mais o psiquismo. Ela pode, então, tentar transfom1ar a interpretação do que acontece no interior do circuito, para tomar a angústia mais suportável ou fazer com que os acontecimentos fiquem mais consoantes com os seus valores morais7"'. Mas tudo isso pode não funcionar e as forças reativas podem invadir a consciência. obrigando-a a lançar mão de uma série de malabarismos interpretativos, como a denegação, 4M A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DION ISO a formação reativa, a projeção, a identificação projetiva, entre outros. Todos esses mecanismos de defesa podem ser vistos como construções interpretativas, maneiras de transfom1ar o sentido das coisas para tentar eliminar a angústia75. Por fim, quando todos os malabarismos fracassam , a consciência é, então, possuída pelo circuito-escravo: toma-se prisioneira das lem- branças e, impotente para qualquer ação efetiva, busca saídas fantasiosas: a vingança imaginária do Outro - transformado, então, em outro - o ódio à realidade e à vida, a inveja, a culpa - que pode ser projetada no outro ou interiorizar-se sob a forma de má-consciência. Através da busca de culpados, da inveja e do ódio, a consciência alimenta alguma fonna de vin- gança ou constrói outras saídas imaginárias para a impotência que adomina.76 15 O sonho - Esse foi o sonho que eu tive na noite passada, logo após tenninar de escrever o décimo quarto aforismo, numa dessas noites agita.das, típicas de quando estou escrevendo alguma coisa importante e que exige fôlego. Sonhei que meu filho Henrique, de cinco anos, estava trepado numa árvore bem alta, brincando com uma corda. A fom1a como ele havia disposto a corda não me aparece até agora muito clara, mas é como se ela devesse sustentá- lo lá em cima e não o fizesse. Então, de repente, com aquela sua carinha marota e, ao mesmo tempo inocente, de quem faz uma arte, ele pula lá de cima e se estatela no chão. Eu só ouço o rnído do corpo batendo e vejo minha mulher correndo, aflita, para ver o que houve. Então, tomado de pavor e angústia, penso: "Ele deve ter, no mínimo. quebrado a espinha". E acordo. Passei o resto da noite bastante agitado e ainda era assim que eu me encontrava quando entrei na sessão de análise, deitei no divã e relatei o sonho ao analista. O que ele me disse, logo de cara. é que tanto o Henrique quanto a minha mulher representavam, provavelmente, pa,tes minhas e que, embora eu figurasse tudo sob a fonna de acontecimentos externos. o sonho, provavelmente falava de acon- l'Sll'OPATü LOGIAS 49 tccimentos internos. E que era possível que uma parte minha mais sensata de maior contato com a realidade, tivesse muito medo de ' outra parte, mais infantil e onipotente, cometer atos insensatos e se esborrachar. Minha resposta eclodiu tentando recuperar " o externo'': " Mas alguma coisa deve estar acontecendo também externamente para fazer eclodir esse medo, essa angústia ... ,. E antes de tenninar a frase, fui imediatamente levado para os meus escritos, o estado de agitação que me toma no período em que estou escrevendo, as noites mal donnidas dos últimos dias. E disse: "Se pensar nos meus escritos, talvez tudo isso que você falou faça sentido; acho que tenho mesmo medo de que, quando escrevendo, não esteja suficiente seguro e possa despencar lá de cima". Ao que ele replicou: " Se você estiver querendo forçar as coisas e não deixar que elas amadureçam em você, corre mesmo o risco de perder contato com a realidade, ficar sem chão" . Então me lembrei de que tenho tentado forçara ritmo da minha produção em função dos prazos da minha bolsa de pesquisa e do medo de não conseguir cumpri-los. E uma grande paz de espírito me tomou. como se um grande peso tivesse saído 'do meu peito. " Então era só isso? ... " (o dragão é sempre menor e menos perigoso do que a gente fantasia ... ). O restante das associações foram vindo aos poucos: o medo de quebrar a espinha tem a ver com o fato de eu estar questionando a noção de ~ alque, espinha- / dorsal do pensamento de Freud, êõinõse, questionando essa noção et1 corresse o riscó de ficar sem eixo nas minhas formulações teóricas. E o fato de me representar como uma criança pequena, arteira, brincando, é um pouco como me sinto no processo de criação: jogando o meu laço, pescando coisas e juntando todas elas em novos arranjos, novas arrumações. tão ousado e tão afoito. às vezes. como meu filho Henrique quando brinca. Meu sonho representou tudo isso na semiótica própria ao circuito que o produziu: lá eu sou mesmo uma criança atrevida e escrever quer mesmo dizer galgar alturas e correr perigo; também a queda será mesmo inevitável se eu não souber enlaçar meus argumentos e me sustentar lá, na posição em que me coloquei. Aí nenhuma imàgem substitui qualquer representação recalcada; o que supostamente A l'S[('OTER,\l'IA EM BI JS( ' A IJE Dl<>N ISll estaria recalcado está presente nas próprias imagens e nas relações de equivalências que se cohdensam ou se deslocam por· seu intcnm:dio. Assim. a imagem Henrique condensa: criança-escri- tor (criador) - inocentc-atrcvida(o)-afoita(o): isso quer dizer que ela remete a todos esses sentidos sem substituir nenhum pelo outro. Da' i11e·s111a maneira. a imagem da corda se desloca por várias formas sem se fechar cm nenhuma delas - na memória ela se insinua ora como laço. ora como nó. ora como aquelas annadi- lhas que levantam o animal pela perna. Mas esse deslocamento. que mantém a forma sempre cm suspenso. não significa. de forma alguma. que exista aí um significante encoberto e aludido: ele é a própria possibilidade de o sonho expressar o medo da falta de sustentação. O proj cto-de-1 aço-que-não.-se-to ma-laço-e-nem -nó- c-nem-armad ilha representa, justamente. a hesitação. a insegu- rança. a falta de assertividade que impedem uma escolha mais clara e segura de um caminho e que estão na raiz do medo: a pressa como a armadilha na qual ficam suspensas todas as fonnas. Se pudéssemos falar aí de conteúdo manifesto e de conteúdo la- tente. teríamos de dizer que eles se interpenetram. o que significa dizer que essas categorias não são mais distintivas de nada. Tal vez a melhor descrição do sentido do sonho seja afirmar que ele está cm constante devir. que não se conclui cm nenhuma imagem. não se fecha cm nenhuma forma, e que ele é também um devir múltiplo. abrindo-se cminúmeras redes associativas, constnr- indo-sc por várias linhas de força, lugar onde a interpretação do psicoterapeuta representa sempre uma tentativa de traduzir, re- construir em palavras, esse movimento originalmente imagético. Nietzsche vê nas imagens do sonho a forma de ra- ciocínio do homem primitivo. que ainda subsiste cm nós: "A nitidez perfeita de todas as representações oníricas, que resulta da crença absoluta na realidade delas, !em bra-nos. por sua vez. certos estados da humanidade primitiva. no qual a alucinação era extre- mamente freqüente e se apoderava. muitas vezes ao mesmo tempo. de comunidades. de povos inteiros. Assim. pois. nós refazemos de lado a lado. no sono e no sonho. a lição de um estado anterior de humanidade " 77 ... É essa parte arcaica da humanidade l '~ IC 'C )l ';\T( 1LOc H!\S 51 que, no sonho. continua a agir em nós, pois ela é o fundamento sobre o qual a razão superior se desenvolveu e se desenvolve níuda em todo homem: o sonho nos leva de volta a estados n.:cuados da civilização humana e nos fornece um meio de com- preendê-los melhor"78_ A partir daí -e de vários outros argumea- tos - pode dizer: " Nada te é mais próprio que o teu sonho! Nada é ma is tua que essa obra! Matéria, forma. duração. atores, espec- t:1dores - nessas comédias és completamente tu-,mesmo1 E é precisamente lá que tens medo e vergonha de ti , e já Edipo. o sábio Édipo, sabia tirar um consolo da idéia de que nós não podemos nada sobre o que sonhamos! Concluo daí que a maior parte dos homens deve ser consciente de ter sonhos abomináveis. Se fosse de outra fonna. como o homem teria sabido explorar a sua noturna fantasia poética para nutrir o seu orgulho! Devo acrescentar que o sábio Édipo tinha razão. que nós não somos realmente respon- sáveis por nossos sonhos -mas. tampouco. aliás. por nossa vigília - e que a doutrina do livre-arbítrio tem por pai e mãe o orgulho ' . '1" 19 D d dos homens e o seu sentimento de potencia . en~ro o mesmo 'espírito, Zaratustra falará do seu sonho com carinho e devoção: ;·Mensurável para quem tem tempo. pesável para o bom pesador. sobrevoável para asas fortes. decifrável para divinos quebra- nozes: assim meu sonho encontrou o .mundo. Meu sonho, navegante audaz, meio barco. meio borrasca. silencioso como as borboletas, impaciente como os falcões-reais: como. hoje. entre- d , .. xo P . tanto. tinha paciência e tempo para pesar o mun o . ors a função do sonho. situada na própria gênese e constituição da razão civilizada, será pesar o mundo. avaliá-lo: para além dos nossos preceitos morais. quiçá reencontrando um pouco da inocência perdida da criança. 81 16 Neurose ob.<,essiva: a escravid,ío levada às últimas co11- seqüê11das - A neurose obsessiva pode. sem dúvida. ser consi- derada a mais intelectiva de todas as neuroses. na medida em que os seus sintomas característicos giram em tomo de idéias ou de 52 A PSICOTERAPIA EM BUSCA DE DIONISO rituais que dominam o psiquismo e que expressam os imperativos de uma ordem superior, arbitrária e despótica, à qual o obsessivo vive escravizado e à qual obedece realmente como um escravo ao seu senhor. Essa ordem é, sem dúvida, a fonna mais abstrata que pode assumir o Outro: marca simbólica do campo de forças vencedor, codificador da neurose. Devemos supor, pois, que na gênese da neurose obsessiva essa marca se fez num registro menos corpóreo, mais intelectivo? Isto não é impossível, mas também podemos pensar que ela é um tipo de marca que tem por carac- terística o deslocamento intemlinável da afecção para regiões sempre mais distantes e abstratas do psiquismo82. Esta é, penso eu, a hipótese do próprio Freud83. E não é muito dificil imaginar exemplos desse tipo de marca: um código moral que, ao se impor, desloque as nomrns de um domínio mais imediato para Deus ou para outros registros mais poderosos, incognoscíveis e distantes da experiência cotidiana e que opere, reiteradamente, através desse deslocamento, pode, frente à mentalidade primitiva da . fi . 1 d ' 84 M -cnança, 111c10nar como a go o genero . as nao penso que as questões etiológicas devam tomar muito tempo e espaço, na medida em que elas são sempre muito relativas, produzidas pe los destinos do acaso, mesmo que se considere a import.:-'lncia de predisposições hereditá1ias na composição das forças produtoras. Ter nascido numa certa família e estar sujeito ao devir daquelas forças e ao seu intercâmbio com outras forças sociais, políticas e econômicas, características de uma ceita época histórica, ou mesmo ser portador de certas predisposições hereditárias são casualidades, nada mais. Estar bem ou mal equipado para enfren- tar ess~ circunstâncias no momento em que os confrontos se dão decorre de outras casualidades. O importante aqui, pois, é evi- denciar as características escravas do circuito-obsessivo, as forças morais, despóticas que estão na sua gênese e a forma abstrata, intelectiva dos sintomas, gerada pelo tipo de código envolvido na produção da neurose. Isso explica, evidentemente, o fato de o obsessivo estar sempre perdido num labirinto de idéias, fadado à rnminação mental, à dúvida, aos escn'.1pulos, quando não aos rituais arbitrários que ele realiza de fomrn mecânica e sem l'SIC'OPATOLOGIAS 53 nunca entender, de fato, o que está envolvido ali. Sintomas da sua escravidão a uma ordem imaginária que ele cria e recria a todo instante, na tentativa impotente e desesperada de tentar dominar um código que lhe escapa por todos os lados, e frente ao qual se sente culpado, recriminado, infrator. A neurose-obsessiva constitui , assim, um dos exemplos mais típicos do que Nietzsche descreveu como má-consciência e que Assoun sin- tetiza bastante bem: "'Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se (wenden) para dentro - isto é o que eu chamo de interiorização (verinnerlichung) do homem' . Esta é a transfor- mação (verãnde mng) radical que vai criar uma doença aguda e crônica ao mesmo tempo: ' O homem doente do homem, doente de si mesmo' . Esta doença procede de um entrave ao ' instinto de liberdade' : este é submetido a um tratamento durante o qual ele se tomou 'latente à força( ... ), reprimido, recuado, encarcerado no íntimo (zurückgedrangte, zurückgetretente, ins Innere eingeker- kertre ), por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo' . A cmeldade, expressa na vingança, no ressentimef1:tO, converte-se, a partir de então, em 'vontade de torturar a si próprio'. Daí o surgimento de um novo registro - desinteresse, abnegação, auto- sacrificio -onde o Si é carrasco e vítima. A culpa é, enfim, o que traduz esse sofrimento paradoxal ministrado a si mesmo " 8 ' . En- tretanto, mesmo tendo se tomado carrasco e vítima de si mesmo, o obsessivo sabe que obedece a desígnios que o transcendem de ponta a ponta, pois habita os vestígios do Outro e reconhece, plenamente, sua condição de seu escravo. 17 O circuito-neurótico e as.forças marginais - É preciso dizer que, quando se constrói um circuito-neurótico, nem todas as forças do campo dominado são aprisionadas e marcadas pelo código do Outro. Algumas escapam a essa captura e conseguem, assim, manter a sua potência, continuando a existir como forças- ativas. Tomam-se, entretanto, forças marg inais ao circuito, na medida em que não têm lugar possível no seu interior. Mas por 54 A PS ICOTERAPIA EM RUSC'A DE DIONISO que isso acontece assim? A explicação está no fato de que nã.o existe código absoluto, capaz de abarcar a diversidade e a poli- valência das forças vivas; em outros tem10s, a vida é sempre mais , r .1 múltipla e mais rica do que a possibilidade de qualquer código de :: capturá-la nas suas malhas e nos seus filtros. Desta fom1a. um ~ 1 circuito-histérico ou um circuito-obsessivo sempre comportam - mesmo quando aparentam um total fechamento e uma total cap- , , tura - forças a.tivas marginais. funcionando nas suas bordas e buscando subverter o status quo e prosseguira. luta 86
Compartilhar