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133948763-Por-uma-escuta-Nomade-a-musica-dos-sons-da-rua

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Prévia do material em texto

por uma escuta nômade:
a música dos sons da rua
fátima carneiro dos santos
eclu~ -JAPESP
Escutar a música da rua: eis o exercício
que Fátima Carneiro propõe neste livro.
Mas como é este escutar a rua? Não é
escutar a rua como se ela fosse uma
música tal qual aquela que ouvimos nos
rádios e salas de concerto, com temas,
contra pontos e outros modos de relacio-
nar e dar nomes aos sons. Também não é
escutar aquelas músicas cujo espaço de
performance são as ruas, o rop, o hip-hop,
os ambulantes. É, sim, escutar uma outra
idéia de música que estaria escondida em
meio aos sons de carros, transeuntes,
ônibus, aviões, estrondos ou ainda um
pássaro perdido. Abrir as janelas dos
ouvidos para depois, como a própria
autora propõe, levar a música das ruas
para as outras escutas, até que a própria
idéia de música se veja mudada e escan-
carada.
Este é um livro resultante de uma
pesquisa que se lançou em meio a um
terreno praticamente inexistente, mesmo
que a idéia de paisagens sonoras seja
quase um senso comum que vai além do
campo da música e invade a geografia, a
ecologia, a biologia, a arquitetura.
Não se restringindo a uma abordagem
teórica e árida, a autora percorre uma
linha tênue que não distingue mais a
educação musical da composição, ou da
interpretação, pois é da escuta que se fala
quando falamos de uma composição
musical, é da escuta que se trata quando
se propõem novos exercícios sonoros a
alunos em salas de aulas. Não é apenas
a idéia de música que se vê aqui estuda-
da - sob a luz não menos que a de John
Cage -, mas a idéia de educação, de
convívio, de existir em um meio tão sonoro
quanto musical.
Este livro vem assim cobrir ainda mais o
terreno que define a "linguagem musical",
esta linguagem que não fala praticamente
nada, esta linguagem que não dá ordens;
linguagem que quase não é linguagem.
Silvio Ferroz
por uma escuto nômade:
o músico dos sonsdo ruo
PUC-SP
Reitor: Antonio Carlos Caruso Ronca
Vice-Reitora Acadêmica: Raquel Raichelis Degenszajn
EDUC - Editora da PUC-SP
ConselhoEditorial Ana Maria Rapassi, Bernardete A. Gatti, Dino Preti, José
Roberto Pretel Pereira Job, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli
Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso,
Raquel Raichelis Degenszajn (presidente), Scipione Di Pierro Netto.
tD5i)<iii:lilllliiIIIIU~'
1~I~il~Ciii.
ASSOCtAC;AO 81l.MIUIlA
DAS, (OIlORAS UNIVUISlIARlM
As.socloçOo Brasileira
da Editores Clentitlcos[6J[IDW[QC]\iO[[J
~ ••.ll'tO~.,.
S:r \
~ ~~~T'-[DlTORA AFlLlAD.-\
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~ ---~
r-
Fátima Carneiro dos Santos
por uma escuta nômade:
a música dos sonsda rua
~clu~ -JAPESP
São Paulo
2002
)
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP
Santos, Fátima Carneiro dos
Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua / Fátima Carneiro dos
Santos; pref. Carlos Kater. - São Paulo: EDUC, 2002.
117 p.; 23 em
Bibliografia.
Originalmente apresentado como dissertação para obtenção do grau de Mes-
tre em Comunicação e Semiótica - PUC-SP, 2000.
ISBN 85.283.0223-7
1. Música - Século XX. 2. Escuta. 3. Educação Musical. 4. Paisagem
Sonora. 5. Nomadismo. 6. Cage, John. 7. Shaeffer, Pierre. 8. Schafer, Murray.
r. Santos, Fátima Carneiro dos. lI. Kater, Carlos. llI. Título.
CDD 781.1
EDUC - Editora da PUC-SP
Direção
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Produção editorial
Magali Oliveira Fernandes
Preparação e Revisão
Sonia Range!
editor ação Eletrônica
Digital Press
Tratamento de imagens
Waldir Antonio Alves
Capa
Ilustração: Foto da autora
Realização: Waldir Antonio Alves
Todas as imagens deste livro são de autoria de Fátima Carneiro dos Santos.
ecJut:
Rua Ministro Godói, 1213
05015-001 - São Paulo - SP
Tel: (11) 3873-3359 - Fax: (11) 3873-6133
E-mail: educ@pucsp.br
".•
A memória de José Carlos de Oliveira Carneiro, -
meu avô, que me ensinou
a escutar as estrelas ...
AGRADECIMENTOS
o texto deste livro foi originalmente apresentado como disser-
tação de mestrado junto ao programa de Comunicação e Semiótica
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. I Como nada na
vida é fruto exclusivamente do trabalho de uma só pessoa quero,
neste momento, externar minha imensa gratidão e carinho a todos
aqueles que têm estado comigo na construção deste trabalho, inicia-
do muito antes do mestrado e, ainda, muito longe de se encerrar.
Primeiramente, agradeço Alice e ]ulia, minhas filhas; meus pais
e também H. J. Koellreutter,]anete El Haouli e Udhi ]ozzolino, meus
queridos e eternos mestres.
Agradeço também Silvio Ferraz, meu orientador, que soube, com
rigor e doçura, conduzir-me pelos labirintos do pensamento musical
e do pensamento filosófico de Gilles Deleuze. Os professores Carlos
Kater, Denise Garcia e Rogério da Costa, pelas valiosas sugestões
apresentadas na qualificação e na defesa.
Agradeço meus queridos amigos Mauro, Leo, César, Mário,
Renan, Regina Márcia, Teca, Marisa, Gabriel, Rase, Bira e Maria Irene,
que em vários momentos me escutaram e me apoiaram.
Agradeço também o apoio recebido pelos professores do
Departamento de Arte da Universidade Estadual de Londrina e a
todos meus alunos, por suas dúvidas e inquietações.
1 A pesquisa teve apoio Capes e Fapesp.
PREFÁCIO
Este livro de Fátima Carneiro dos Santos é resultado do
envolvimento de uma educadora musical com uma das problemáti-
cas mais presentes em nossa realidade e que melhor pode provocar
uma mudança de atitude em nível individual e coletivo: a consciência
sobre o valor do ambiente sonoro e das naturezas de nosso relacio-
namento com ele. Apenas por isso, que fosse, justificaria já seu gran-
de interesse. Sendo ainda uma contribuição rara entre as produções
que têm aflorado em nosso pais, torna-se proposta, além de bem-
vinda, oportuna, necessária, imprescindível mesmo, não apenas em
vista da percepção, teoria e prática, mas também em alcance mais
amplo: da criação e da educação musical.
Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua nos oferece uma
abordagem sobre os fatos marcantes que determinaram os rumos da
música nos grandes centros urbanos mundiais desde o início do sé-
culo xx. Satie, Russolo, Vares e, Schaeffer, Cage aparecem como re-
presentativos protagonistas na continuada reformulação do fenômeno
musical e suas definições, incorporando progressivamente elemen-
tos da então "não-música" de suas épocas. E isso implica em mobi-
lidade. Mobilidade de fronteiras conceituais, de formas de escuta, de
procedimentos expressivos. Sempre, porém, mobilidades como con-
seqüência ou resultado de impulso vital e saudável de transgressão
de limites em direção ao não conhecido, às inusitadas interpretações,
às inovadoras criações, às originais descobertas do ser e do' estar.
10 Por tlma escuta nômade: a música dos sons da ma
o discurso de Fátima é um contraponto a várias vozes. Ela dia-
loga, às vezes explicitamente, outras, sutilmente, com o pensamento do
educador e compositor canadense Murray Schafer, por um lado; por
outro, com o dos filósofos franceses G. Deleuze e F. Guattari. E é dessa
maneira que se constroem as formulações aqui propostas, conduzindo
agradavelmente o leitor a elevados mirantes de escuta, desde os quais
podem ser experimentadas oportunidades autênticas de percepção.
E é de um deles que proponho a seguinte reflexão.
Ninguém, hoje, ignora as mudanças essenciais que marcaram
decisivamente a trajetória da humanidade, de seus primórdios até a
contemporaneidade. Se, por volta de 500.000 a.c., o homem primiti-
vo adquiriu o domínio do fogo e, em torno de 12.000 a.c., domesti-
cou animais, ele era, porém, ainda obrigado a caminhar perigosa-
mente em busca de alimentos. Nossos antepassados percorriam, as-
sim, itinerários em direção às fontes que pudessem assegurar sua
subsistência, partindo em razão do esgotamento dos alimentos, acom-
panhando o deslocamento das manadas cuja caça preferiam.
Estima-se que em apenas cerca de 8.000 a.c. é que tenha surgi-
do a agricultura - o domínio da natureza sob forma de controle da
multiplicação de vegetais - e, com ela, a tendênciade fixação num
local determinado por períodos até antes inimaginados. Como con-
seqüência direta, constituíram-se as cidades, o princípio das civiliza-
ções e, em decorrência, um estilo novo, bem mais complexo de vida.
Os representantes existentes de nossa linhagem de nômades
sedentarizarn-se, mas suas escutas preservam o vigor - senão tam-
bém o nomadismo - que veio sendo forjado durante milênios nos
movimentos de transformação vitais próprios às seguidas fases de
adaptação para a sobrevivência da espécie.
A escuta que temos hoje parece ser incomparavelmente menos
inquieta e necessária do que aquela que já chegamos a possuir, quan-
do todos os sons - e, muito provavelmente, absolutamente todos! -
eram significantes, numa realidade instigante, desafiadora, misterio-
sa, ameaçante.
Assim como hoje, só pertencia ao mundo aquele que o ausculta-
va, assim como somente a ele pertencia de fato o mundo. Nosso
Prefácio 11
sentimento de apropriação e de pertencimento ao universo é exata-
mente proporcional àquilo que dele escutamos e, em conseqüência,
compreendemos. Isso porque é através da percepção e das formas
criativas de audição que temos condições de re-interpretar continua-
mente o mundo - o "outro" - e suas manifestações (sonoras e não
apenas sonoras).
A grandeza do universo de nossa escuta só pode ser melhor
avaliada em contraposição à dimensão do que não escutamos. To-
mar consciência da capacidade de direcioná-la e dominar os meca-
nismos de ampliação, seleção e discernimento auditivo não é um
atributo exclusivo de músicos, profissionais ou amadores, assim como
não o é o olhar para o pintor, o artista visual ou plástico. É, sim,
condição fundamental para o desenvolvimento de nossas
potencialidades humanas, exercidas tanto de maneira individual quan-
to coletiva.
Se, por um lado, a escuta ocidental se refinou com o aperfeiçoa-
mento dos instrumentos musicais, das técnicas interpretativas e dos
procedimentos compositivos, por outro lado ela parece ter perdido
parte significativa de sua espontaneidade, vigor e ousadia.
Escutar é, acima de tudo, ouvir o ouvir, observando-o, explo-
rando-o de maneira decisiva e sincera. Pressupõe dar estado de exis-
tência às fontes sonoras, aos materiais, formas de ser e seus
agenciamentos. Escutar na individualidade e na pluralidade, na me-
lodia e no contexto, em si e no diálogo que cada um mantém insus-
peitamente e a todo instante com cada uma das partes de um supos-
to todo é atitude engajada e relacional.
Assim, a importância do "nomadismo" é a característica chance
de movimento instaurada desde aquele que lhe deu origem. E uma
escuta migratória, estimulada por razões vitais de sobrevivência, é
sempre resultado tanto de descobertas quanto de invenções, deman-
dando uma prontidão dinâmica do próprio ser.
Vale enfatizar: nômade e não disperso ou à deriva! É por força
do centramento individual - este eixo interiorizado, evidenciando
que o "centro do mundo" se encontra em toda parte - que podemos
12 Por uma escuta nômade: a música dos som da rua
nos tornar mais seguros a ponto de estabelecer associação profunda
com o universo, sonoro em particular. Na situação oposta, a insegu-
rança interna impele a uma representação cristalizada de mundo como
imagem fixa, duradoura e padronizada, como resposta imatura ao
desejo de torná-lo menos complexo, dinâmico e assustador; diga-se,
na mesma intensidade da força de sedução com que nos atrai.
Toda música, assim como toda e qualquer atividade criativa hu-
mana, é fecundada por um anseio fundamental: liberdade. Nada há
que realmente exista que não reflita ou contenha, em sua essência,
liberdade e escolhas. Nem a música nossa de cada dia, nem nossa
escuta, tampouco a concepção sobre ela e a perspectiva do mundo
onde a encontramos. Ao lado de verdades perenes e preexistentes,
temos viabilidades e validades, exploradas, construidas.
Homens são homens, montanhas são montanhas ... sons são sons.
Nesse sentido, música e criação, paisagens e ambientes sonoros não
são meros anteparos ou receptáculos sobre os quais projetamos ou
depositamos nossas fantasias pessoais, mas, prioritariamente, estí-
mulos para a ampliação de nossa capacidade de observação, de per-
cepção e de conhecimento também sobre nossa própria maneira de
funcionar.
Assim, tal como considero, o presente deste livro se abre à liber-
dade, para que a criatividade tenha lugar. Reúne seus argumentos
num percurso próprio, cuja direção, às vezes, encaminha o leitor do
confortável sofá para a porta da rua, prolonga o momento da respi-
ração entre dois pensamentos ou sons, cria um compasso entre ou-
tros já existentes no manuscrito do "compositor", desenha um pon-
to de interrogação na partitura do "regente" ... que somos nós, ou-
vintes, escutantes. Dessa forma, incita nossos ouvidos à visita do
extraordinário que habita, se não sustenta, todos os cotidianos (com
maior ou menor evidência).
Aos músicos e educadores ele impõe delicadamente reflexões
fundamentais: Que música estamos ouvindo? Quais sons reconhe-
cemos como matéria desta música? Como nos autorizamos relacioná-
los entre si e com nós mesmos? Há conjugação e interação entre as
músicas das salas de aula, as de outras salas, das ruas, dos corredores,
dos espaços que freqüentamos e daqueles que criamos internamen-
J
Prefácio 13
te? Temos consciência de que as consciências, assim como as músi-
cas, os sons, as vidas só têm sentido quando transformadas e trans-
cendidas? Qual é o ambiente sonoro que produzimos ou do qual
involuntariamente participamos? Desempenhamos efetivamente -
como educadores, músicos ou cidadãos - nossa responsabilidade
diante desses nichos sonoros, qualificando-os ou simplesmente os
ignoramos, auto-restringindo-nos à condição físico-mecânica de uma
simples "orelha"?
O questionamento evocado neste livro é de importância decisi-
va para todos nós, de hoje e de amanhã. Seus ternas centrais e orbitais
merecem ser acolhidos, refletidos e discutidos, jamais tratados com a
postura de indiferentismo, tão lugar-comum, de algo supostamente
já conhecido. Essas são as atitudes a serem combatidas, pois são jus-
tamente elas as responsáveis pela situação limitante em que se en-
contram as "escolas sem música", as "instituições de música sem
compromisso com a sociedade", os "ouvidos sem escuta para a vida
de cada instante" (das salas de trabalho às de espera dos aeroportos,
dos veículos nas ruas às cantinas climatizadas ...).
Estou certo de que o conteúdo das páginas seguintes representa
uma excelente contribuição para que os educadores musicais em sen-
tido largo estendam a compreensão do que é, será e poderá vir a ser
a música para aqueles que dela necessitam. E que eles contribuam,
em seu tempo e medida, para que as músicas sejam sempre e cada
vez mais relações sonoras criativas em movimento interativo com a
vida. Movimento também desde o que foi - quando um nosso an-
cestral teve desejo e necessidade de exprimir-se pelos sons - ao que
poderá vir a ser e será para aqueles que tenham ouvido para ouvir, liber-
dade para criar, coragem para escutar!
Car/os Kater
Educador, compositor e musicólogo
Doutor pela Universidade de Paris IV-Sorbonne
Professor Titular pela UFMG
I
suMÁRIo
"
Introdução ",....................................................................................... 17
1. Escuta pensante 29
2. Escuta em transformação 43
3. Escuta reduzida 57
4. Escuta! 77
5. Escuta nômade 95
Escutando as ruas... 101
Bibliografia 113
•...
INTRODUCÃO~
o estudo aqui proposto é fruto de questionamentos que vêm
ocorrendo há vários anos, como conseqüência de experiências em
aulas de educação musical, inicialmente desenvolvidas junto a crian-
ças e, posteriormente, com alunos de séries iniciais de cursos de gra-
duação em Educação Artística e licenciatura em Música. Quer como
atividade de aula, quer como simples curiosidade, o exercício cons-
tante de escutar os ambientes possibilitou momentos nos quais ouviam-
se buzinas, apitos ou quaisquer outros sons de modo diverso do
habitual.Nesses exercícios não era possível ser indiferente aos sons,
surgindo, assim, uma espécie de apreciação diferente daquela a que
uma escuta habitual nos tem condicionado. De certo modo, isso co-
meçou a permitir uma escuta diferenciada, que tornava musical sons
a princípio não-musicais.
Observando os ambientes com os ouvidos, percebemos os inú-
meros sons à nossa volta e podemos nos perguntar sobre o que é
isso que nos rodeia o tempo todo. O que é isso que nos invade a todo
momento e em qualquer lugar? O que é isso que ouvimos, se é que
ouvimos? Como escutamos? O que escutamos? São dúvidas que vêm
se instalando ao longo desses anos e, insistentemente, persistem como
possibilidades de amadurecimento e provocação.
Esses questionamentos obtiveram maior consistência a partir do
contato com obras literárias e/ou musicais de Murray Schafer, John
18 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
Cage, Pierre Schaeffer, Barry Truax, entre outros. Tais autores, cada
qual a seu modo, percebem a escuta como o centro de um complexo
relacionamento entre o ouvinte e seu meio ambiente, entendendo
que os nossos hábitos de escuta podem ser mais ou menos aguçados,
dependendo da maneira como somos educados para escutar e assi-
nalam para um despontar da escuta como uma dimensão do fazer
musical, levando-a para além da linguagem musical tradicional ou da
lingua falada. 1
*
* *
De um modo geral, a atitude do homem ante a música parece
estar diretamente relacionada aos sons ambientais de seu tempo e,
sob essa perspectiva, não podemos deixar de observar mudanças ra-
dicais no pensamento musical no decorrer do século XX. Tais mu-
danças ocorreram através dos vários procedimentos composicionais
que permitiram ou, melhor, formalizaram uma espécie de abertura
para um "novo" mundo de sons, ruídos e silêncios e, conseqüente-
mente, para novas atitudes de escuta, levando não apenas os compo-
sitores a uma outra relação com o material sonoro, mas também lan-
çando os ouvintes num encontro "face a face" com sons e silêncios,
o que tem tornado possível outras escutas e desvelamentos de
materialidades sonoras.
O uso, na composição musical, de instrumentos eletrônicos efe-
tivamente introduzidos a partir da década de 40, sobretudo com Pierre
Schaeffer, Edgar Varése e John Cage, possibilitou a realização de
gravações, manipulações e transmissões sonoras, não apenas liber-
tando o som de sua origem espaço-temporal, como também buscan-
Essa posição é assumida literalmente por Barry Truax, em seu livro .Acoustic
communicatiou, e compartilhada por Schafer. Embora não esteja em total acor-
do com Cage e Schaeffer, reflete a preocupação desses autores com o pro-
blema da relação entre escuta e meio ambiente.
Introdução 19
do escutá-lo como objeto sonoro, desligado de seu entorno e de
seu contexto, dentro daquilo que Pierre Schaeffer chamou de es-
cuta reduzida, uma escuta na qual o som não remete à fonte que o
produziu.
Na década de 50, John Cage, ao começar a operar sua música
utilizando o acaso como critério composicional e recusando qual-
quer predeterminação, fala que música são «sons à nossa volta, quer
estejamos dentro ou fora das salas de concerto" (1991, p. 120), insti-
gando-nos, dessa forma, a abrir a janela e escutar: Música! É a pró-
pria noção de música que se amplia.
Na esteira de Cage, no final dos anos 60, Murray chafer, em seu
livro O ouvido pensante, diz que ''hoje todos os sons pertencem a um
campo contínuo de possibilidades, situado dentro do domínio
abrangente da música", também nos sugerindo a escuta das «paisa-
gens sonoras" que nos rodeiam. Schafer, ao propor uma «escuta
pensante", que tornaria os ambientes sonoros que nos cercam mais
agradáveis e menos poluídos, ressalta que, mesmo sendo esse o seu
objetivo maior, o primeiro passo, antes de se tecer qualquer juízo de
valor, é "aprender a ouvir a paisagem sonora como uma composição
musical" (1991, p. 289).
*
* *
Partilhando as idéias de Schafer e Schaeffer, levando também
em consideração a concepção de música de Cage, podemos dizer
que a preocupação com a escuta, hoje, torna-se, basicamente, uma
preocupação estética. Nesse sentido, este trabalho propõe-se a
estudar aspectos da música no século XX quando da entrada do
ruído, voltando a atenção para as implicações de tais mudanças,
tanto na escuta da paisagem sonora que nos rodeia, quanto na
escuta musical. Distinguem-se, assim, dois domínios que, se antes
estavam aparentemente separados, vêem-se, agora, totalmente im-
20 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
bricados'': música e paisagem sonora. Cada um implicando um modo
distinto de escuta, mas que, nesse momento, também podem ser
mesclados, justapondo e sobrepondo os hábitos da escuta cotidiana
aos limites da escuta musical.
Se os modos de escuta que se estabelecem entre o ouvinte e a
paisagem sonora são, basicamente, escutas do hábito, vale perguntar:
como ouvir a "música das ruas"? Como escutar as paisagens sonoras
na música ou como música? Como atravessar um campo pelo outro?
A idéia que permeia tais questões é a de que toda "paisagem
sonora'? apresenta múltiplas possibilida_des de escuta. A escuta des-
sa paisagem, por ser múltipla, abre-se para a idéia de "escuta nôma-
de", aqui fundamentada no conceito de nomadismo de Gilles Deleuze,
levando outras escutas - como a musical - a patamares antes vela-
dos. O exercício de escutar a paisagem sonora a partir de uma "escu-
ta nômade" possibilita o desenvolvimento de uma escuta que com-
põe, que inventa: uma escuta que percorre diferentes caminhos, des-
propositadamente, desvelando a todo momento escutas possíveis,
que escapam àquelas predeterminadas pelo hábito.
Pensar na escuta desse modo parece fundamental, não apenas
por não haver mais "um mundo dividido entre reino musical e não-
musical", como bem coloca Schafer (1977, p. 111), mas também pelo
2 Não entendemos como imbricadas as relações de imitação, em que um com-
positor representa sua paisagem sonora musicalmente, como o fez Janequin,
em LeJ cris de Paris, ou Beethoven, na Sinfonia pastoral; ou Messiaen, em OJ
cantos dOJ pássaros, dentre outros exemplos. Mas vale ressaltar que, ao longo
deste trabalho, teremos a oportunidade de retomar essa questão.
3 Cabe, neste momento, apresentar a noção de paisagem sonora apresentada
por Murray Schafer, em seu livro The ttlning of tbe n/orld. O termo "paisagem
sonora" é uma tradução realizada por Marisa Fonterrada no livro O ouvido
pensante, para o termo soundscape, criado por Schafer, em analogia a landscape.
Refere-se a qualquer ambiente sonoro ou qualquer porção do ambiente sônico
visto como um campo de estudos, podendo ser esse um ambiente real ou
uma construção abstrata qualquer, como composições musicais, programas
de rádio, etc. (Schafer, 1977, pp. 274-275).
Introdução 21
fato de que uma das ambições mais apontadas na música atual é,
justamente, "a imprecisão, a ambivalência, a tentativa de escapar a
um sentido fixo" (Ferraz, 1998, p. 250). Trata-se de uma "escuta
nômade" que se deixa atravessar pelo hábito e pelo inusitado, vindo
ao encontro de uma música que, hoje, apresenta-se também múlti-
pla e móvel, transbordando o espaço das salas de concerto tradi-
cionalmente a ela atribuido e "forçando o ouvinte a trilhar ou-
tros caminhos.
Num tal contexto, a paisagem sonora urbana parece-nos um re-
corte bastante interessante no continuUOJ sonoro, oferecendo-se ao
ouvinte como um riquissimo "prato musical' , que contém múltiplas
possibilidades sonoras para o mutável foco dos nossos ouvidos. A
"música das ruas" não nos apresenta apenas objetos a serem enten-
didos e avaliados por uma escuta do hábito, mas também processos
"essencialmente sem propósitos", podendo ser entendida como uma
"música sem propósitos", na qual, segundo Cage:
sons são apenas sons, o que dá às pessoas que os ouvem a chance
de ser gente, centrados em si mesmos, onde eles realmente estão,
não artificialmente "desligados" na distância, como estão acos-
tumados ao tentar imaginar o que está sendo dito poralgum
artista por meio de sons. (1985, pp. 134-135)
Como um nômade, o ato de escutar torna-se um vagar de qual-
quer lugar a qualquer lugar, a qualquer momento, deixando de lado
pontos de vista fixos e lançando-se ao próprio jogo da sensação. O
trajeto mobiliza a escuta.
*
* *
Diante do exposto, acreditamos que a importância de um estu-
do sobre a escuta está no fato de que os sons ambientais, tomados
como música, como arte, raramente têm lugar entre nós. Se o ouvin-
te, no século XX, passou a apreciar o ruido dentro das salas de concer-
22 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
to, por que não apreciá-lo em seu cotidiano e descobrir, assim, ou-
tras escutas e músicas, exercendo aquilo que o homem tem de essen-
cial, que é sua natureza criativa?
Sendo esse o território de nossa busca, é fundamental investigar
questões que vêm constituindo a idéia de escuta no contexto da música
do século XX. Com tal propósito, este livro abordará, num primeiro
momento, o pensamento de Murray Schafer, que, preocupado com
as alterações da paisagem sonora das grandes cidades, devido ao pro-
blema da poluição, sugere o desenvolvimento de um ouvinte que
escuta e pensa o seu entorno sonoro. Para o desenvolvimento desse
"ouvido pensante", Schafer acredita ser necessário, num primeiro
momento, que o ouvinte escute esteticamente esse universo sonoro,
uma vez que o considera, antes de mais nada, como uma composi-
ção macrocósmica, e nós, seus principais orquestradores. Tal proble-
mática lançará as bases para a reconstituição, no segundo capítulo,
de uma outra noção de música, dada a partir da incorporação musi-
cal do ruído por Luigi Russolo e Edgard Varese. No terceiro capítulo
serão abordadas a noção de "escuta reduzida" e de objeto sonoro, de
Pierre Schaeffer, que, ao colocar o ouvinte "face a face" com o som,
possibilita outras escutas. Esse encontro com o som, tal qual ele se
apresenta, é a base da poética cageana, que será apresentada no quar-
to capítulo. Com John Cage, música e paisagem sonora se confun-
dem, o que nos leva, no quinto e último capítulo, a apresentar o que
chamaremos de uma "escuta nômade", relacionada à idéia de "músi-
ca nômade" e de "música flutuante", desenvolvidas por autores como
Daniel Charles e Mireille Buydens, a partir da filosofia deleuzeana. De-
marcaremos o espaço urbano como local ideal para experienciar e
realizar um exercício de escuta que nos lance no contexto de nossa
própria paisagem sonora e nos permita refletir sobre uma "escuta
nômade".
ESCUTAPE S ITE
1
Com o advento da industrialização e, conseqüentemente, da ur-
banização, ocorridas no final do século XIX, constata-se uma pro-
funda transformação no ambiente acústico da maioria das comuni-
dades ocidentais: ruídos das máquinas, apitos das fábricas, "murmú-
rio" dos motores, das serras elétricas, entre tantos outros. Contudo,
não apenas os sons da indústria e os dos veículos motorizados trans-
formaram os ambientes. Essas mudanças tornaram-se mais intensas
com o aparecimento de novos aparelhos advindos da revolução ele-
trônica: os radiotransmissores, os telefones e, por fim, toda uma sé-
rie de instrumentos eletrônicos que visavam produzir sons para a
música. Tudo isso contribuiu, de maneira radical, para a criação de
novas paisagens sonoras, possibilitando uma observação fundarnen-
tal: tanto a música quanto os ambientes sonoros do cotidiano nunca
mars senam os mesmos.
Sob essa perspectiva, Dominique e ]ean-Yves Bosseur apon-
tam para um fato bastante interessante, que teve início na década
de 70:
30 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
A estilização dos sons do meio-ambiente, em função de critérios
essencialmente estéticos, parece ir progressivamente cedendo
lugar a uma atitude crítica face aos fenômenos sonoros que nos
rodeiam ou nos agridem; a música torna-se entào o instrumento
de um novo pensamento urbanístico, virado para uma interven-
ção ativa no cotidiano. (1990, p. 252)
Esse posicionamento ante os sons ambientais tem, em Murray
Schafer, compositor canadense, um importante defensor, pois foi
ele quem deu origem a uma série de trabalhos consagrados ao am-
biente sonoro, que vem se espalhando por vários países do mundo.
Schafer, em 1973, introduz seu artigo The music 0/ environment
(p. 3) com um pequeno texto, no qual apresenta várias de suas inquie-
tações ante um mundo que vem sofrendo mudanças acústicas, em
sua opinião bastante radicais. Para ele, hoje, em um mundo cuja pai-
sagem sonora muito se diferencia, em qualidade e quantidade, da-
quela do passado, o homem moderno tem convivido com sons con-
siderados "perigosos" para sua saúde.
Nesse sentido, importantes pesquisas, em várias áreas do conhe-
cimento, vêm sendo desenvolvidas, no intuito de estudar aspectos da
paisagem sonora mundial. Esses pesquisador s, cuja contribuição tem
sido fundamental no sentido de dar ímpeto adicional às recentes preo-
cupações com a poluição sonora, que emerge como um problema
mundial, têm levantado as mesmas questões:
Qual é o relacionamento entre o homem e os sons do ambiente
e o que acontece quando esses sons mudam? A paisagem sonora
do mundo é uma composição indeterrninada sobre a qual nós
não temos controle ou somos "nós" seus compositores e execu-
tantes, responsáveis por dar-lhe forma e beleza? (Idem)
Por acreditar que a poluição sonora exista devido ao fato de o
homem não escutar cuidadosamente, chafer propõe um estudo da
acústica ambienta] no qual levantaríamos os sons que gostaríamos
de preservar, encorajar e multiplicar; pois, segundo ele,
Escuta pensante 31
Quando nós soubermos isso, os sons cansativos e destrutivos
tornar-se-ão evidentes o suficiente e nós saberemos por que de-
vemos eliminá-los. Somente uma total apreciação do ambiente
acústico pode nos dar os recursos para melhorar a orquestração
do mundo. (Idem)
** *
As questões apresentadas anteriormente refletem, de modo ge-
ral, as preocupações dos compositores e pesquisadores participantes
do World Soundscape Project, proposto e coordenado por Murray
Schafer, na década de 70, na Simon Fraser University (Canadá). Esse
importante projeto desenvolveu e fomentou significativos estudos,
pesquisas e atividades composicionais de ambientes sonoros, tendo
como objetivo básico "estudar o ambiente acústico para determinar
como os sons afetam nossas vidas e, a partir destas informações,
tentar desenhar paisagens sonoras mais saudáveis e belas para o fu-
turo" (Schafer, 1998, p. 158).
Os estudos e as investigações sobre o tema, que vêm sendo atual-
mente desenvolvidos por vários grupos de pesquisas, em várias par-
tes do mundo, abrem os horizontes musicais ao que se tem chamado
de "ecologia acústica", mostrando, como bem coloca Bosseur, até
que ponto "a diversificação dos sinais sonoros ligados a uma comu-
nidade pode ser necessária, sem o que se atrofiariam, naturalmente,
as faculdades musicais do indivíduo" (1990, p. 252).
Com o objetivo de tornar cada indivíduo apto a verificar am-
bientes acústicos, analisando objetivamente os níveis sonoros de di-
ferentes cidades e comunidades, levando-se em conta a relatividade
que cabe a toda experiência acústica, Schafer convida-nos a ser ou-
vintes ativos, desenvolvendo a idéia do que chamará de "escuta
pensante" ou "ouvido pensante'".
Esse termo é o título de seu livro: O ouvido pensante, lançado no Brasil em
1991, pela editora Unesp.
32 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
Para a compreensão do que Schafer entende por um "ouvido
pensante" torna-se necessário tecer algumas considerações sobre
aquilo que parece ser um ponto crucial em sua proposta: a escuta.
Na perspectiva da "ecologia acústica", ciência que se preocupa
com "o estudo dos efeitos do ambiente acústico, ou paisagem sono-
ra, nas respostas físicas ou características comportamentais das cria-
turas que nele vivem" (Schafer, 1977, p. 271), a audição é tida como
um sentido especial. Ao falar dos sentidos do homem, Schafer refe-
re-se à audição como um "modo de tocar à distância", apontando
para uma questãofundamental: o sentido da audição não pode ser
"fechado", simplesmente, pelo desejo de alguém, pois "o ouvido não
tem pálpebras". A única proteção do ouvido seria um elaborado
mecanismo que filtra os sons indesejáveis, denominados ruído por
Schafer, com o objetivo de se concentrar naqueles desejáveis. E, por
acreditar que é da natureza do ouvido concentrar-se naqueles sons
que realmente interessam, exigindo que aqueles sons que perturbam
cessem, é que Schafer diz que "somente uma total apreciação do
ambiente acústico pode nos dar bases para promover a orquestração
da paisagem sonora mundial" (1977, pp. 11-12).
Ainda na linha defendida pelo World Soundscape Project, que,
de certa forma, originou o posterior \V'orld Forum for Acoustic
Ecology, encontra-se o músico Barry Truax, compositor e estudioso
dos ambientes sonoros e suas implicações na vida humana. Para Truax,
o ato de "ouvir" implica uma "sensibilidade à vibração física dentro
de certos âmbitos de freqüências ou intensidades", sendo que esses
âmbitos estendem-se de um nível de intensidade extremamente
insignificante até um limiar de dor, cujo nível de intensidade pode
causar desconforto, podendo até mesmo prejudicar o sistema
auditivo.
O som, criado pelo movimento físico de objetos em um meio
ambiente, é, do ponto de vista da acústica, o resultado da transfe-
rência de energia de uma fonte a um receptor. Embora a onda
sonora reflita todo detalhe do movimento de sua fonte, sua via-
Escuta pensante 33
gem através do meio ambiente no qual está inserido reflete a confi-
guração geral desse meio, trazendo ao nosso ouvido informações
sobre as relações espaciais nele verificadas.
Mesmo com a decodificação de informações espaciais do am-
biente, ouvir ainda é considerado um ato passivo. A acústica tradi-
cional entende a audição como um "modelo de transferência de ener-
gia", lidando com o comportamento acústico como uma série de
energia transferida da fonte para o receptor, tratando o som e, con-
seqüentemente, a acústica ambiental, como entidades físicas que
podem ser estudadas, medidas e analisadas independentemente
do ouvinte. Nesse modelo, cada componente do sistema é analisado
independentemente um do outro, e o ambiente acústico é trata-
do objetivamente, ou seja, o som está no centro do sistema.
Schafer, ao falar em uma "escuta cuidadosa", com certeza não
está se referindo a um ato passivo de recepção de energia por parte
do ouvinte, mas de uma "escuta que pensa" o que ouve. Ao usar o
termo "escuta cuidadosa", está justamente falando do ato de escutar
que, por definição, implica ouvir com atenção.
A concepção schaferiana de uma "escuta que pensa" aproxima-
se da definição de escuta de Truax, que "implica na habilidade de
interpretar informações sobre o meio-ambiente e uma interação com
ele, baseando-se em detalhes contidos dentro daquelas vibrações fí-
sicas" (1984, p. 16). A proposta de Truax é pensar a escuta como "a
interface crucial entre o indivíduo e o meio ambiente"; como o "centro
de um complexo relacionamento entre o indivíduo e seu meio", sen-
do um "caminho de troca de informações" (listeni11i), e não apenas
uma "reação auditiva a um estímulo" (hearilli) (idem, pp. 13-17).
Essa noção de escuta é o que move todo o pensamento daquilo
que Truax sistematizou e denominou "modelo acústico comunica-
cional", no qual
o centro é o ouvinte, porque escutar é a interface primeira onde
a informação é trocada entre o indivíduo e o meio ambiente.
34 Por uma escuta nômade: a mtÍsica dos som da ma
o sistema auditivo pode processar a entrada de energia acústica
e criar sinais neurais, mas escutar envolve altos níveis cognitivos
que extraem informações usáveis e interpretam seus significa-
dos. (1992, p. 376)
Assim, enquanto o ato de ouvir pode ser considerado como uma
espécie de habilidade passiva, que parece trabalhar com ou sem esfor-
ço consciente, escutar implica uma função ativa, envolvendo dife-
rentes níveis de atenção e cognição. Ou seja, enquanto ouvir signi-
fica receber os estímulos sonoros, escutar implica compreendê-Ias sig-
nificativamente, levando em consideração todo o contexto envolvido.ê
Se, para o modelo acústico tradicional, o ato de ouvir caracteri-
za-se pela transferência de energia acústica sem, necessariamente,
relacionar todos os componentes envolvidos em uma dada situação
sonora, na qual o som é o centro do sistema, apresentando-se como
um modelo objetivo, no modelo acústico proposto por Schafer
(soundscape tt2ode~, o ouvinte é o centro. Ao invés de um caminho
de mão única, no qual a energia sonora é transferida linearmente de
uma fonte para um receptor, seu modelo descreve um processo de
mão dupla, um relacionamento equilibrado entre o ouvinte e o meio
ambiente, apresentando uma abordagem metodológica muito mais
qualitativa e dependente de distinções perceptuais do ouvinte. É um
modelo subjetivo, fundamentado no relacionamento entre ouvinte e
paisagem sonora, que busca uma maximização dos sons agradáveis e
informativos e uma minimização daqueles sons indesejados ou sem
significados, os ruídos. Essa estratégia tem por objetivo a busca de
uma paisagem sonora balanceada, entendida por Truax (2000) como
o ideal hi-fi de Schafer.
O sistema hi-fi, segundo Schafer, é aquele em que há uma alta
fidelidade sonora, apresentando uma razão favorável entre sinal e
ruído. Ou seja, "a paisagem sonora 'hi-fi' é aquela na qual sons dis-
2 Essa distinção entre "ouvir" e "escutar" será retomada no capítulo 3, quando
falaremos sobre as 4 escutas propostas pelo compositor Pierre Schaeffer.
Escuta pensaste 35
eretos podem ser ouvidos claramente devido ao baixo nível de ruí-
dos presentes no ambiente" (1977, p. 43). um ambiente desse tipo,
considerado tranqüilo, mesmo o menor distúrbio pode ser escutado.
O ouvido está em estado de alerta, escutando ativamente, desde os
sons mais próximos até os mais distantes, de maneira perspectívica,
percebendo claramente tanto os sons mais evidentes, em um primei-
ro plano, quanto aqueles sons de fundo, pertencentes a um segundo
plano. Esse tipo de paisagem possibilita uma escuta dos detalhes so-
noros nela envolvidos; uma escuta ativa.
Contudo, com o advento da Revolução Industrial, novos sons
começam a compor as paisagens. O ruído aparece, então, como aquele
som que tem uma função bem clara: um som indesejado que cria
uma situação de escuta desfavorável, fazendo emergir um ambiente
lo-fi, no qual "sinais acústicos individuais são obscurecidos em uma
densa população de sons" (idem).
Desse modo, a paisagem sonora pós-industrial, com suas textu-
ras sonoras, longe de ser a simples soma de uma porção de sons
individuais, apresenta-se, segundo Schafer, como uma "anarquia im-
precisa de ações conflitantes" (idem, p. 159). Essa aglomeração, uma
característica das grandes cidades do mundo ocidental contemporâ-
neo, tem encorajado um outro tipo de escuta, não comum ao ouvido
do homem ocidental.
Na visão de Schafer, as culturas ocidentais, de modo geral, de-
senvolveram tradicionalmente um hábito de escuta, musical ou de
quaisquer paisagens sonoras, sob um enfoque mais perspectívico,
que focaliza um determinado som em detrimento de outros: uma
"escuta perspectívica". Mesmo não sendo uma característica exclusi-
va da cultura ocidental, aponta que, por séculos a fio, nossos hábitos
de escuta foram treinados para um tipo de "ilusão deliberada", qüe é
o que acontece quando os sons, através da ênfase em sua dinâmica
ou de uma construção espacial específica, são colocados como que
em perspectiva, promovendo uma "escuta facada" ifocused /isteninf)
(1977, pp. 155-156).
36 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
Assim, ao falar de um sistema lo-ft, não podemos mais falar de
uma "escuta focada", pois aqui a perspectiva se perde. Nesse am-
biente, em que um determinado sinal acústico é encoberto por uma
sonoridade compacta, os sons mais frágeis são "mascarados pela lar-
ga faixa de ruídos, e, para serem ouvidos, devem ser incrivelmente am-
plificados" (idem, p. 43). Se urna "escuta perspectívica"não se adapta a
esse ambiente, Schafer fala de uma "escuta periférica", que percebe sons
vindos de todas as direções, sem uma distinção clara entre eles.'
Essa situação, por sua vez, desenvolve hábitos negativos de es-
cuta ou, como observa Truax, "comportamentos de não-escuta"
(2000, p. 6). E, preocupado com essa situação, o que Schafer propõe
é a busca de um desenho acústico ambiental com as características
de um sistema bi-fi.
Se, como afirma Schafer, o universo sônico é uma composição
macrocósmica e, nós, os responsáveis por dar-lhe "forma" e "bele-
za", a apreciação do ambiente sonoro torna-se fundamental. Contu-
do, cabe observar que, da maneira como somos educados para escu-
tar, dependem diretamente nossos hábitos de escuta, os quais, con-
forme Truax, podem ser bastante aguçados ou distraidamente indi-
ferentes, interpretando o meio-ambiente com maior ou menor
envolvimento. Tal situação acaba criando diferentes modos de rela-
ção, ou padrões de comunicação, mais interativos ou mais alienantes,
entre o indivíduo e seu meio (1984, p. xii).
3 Neste momento, cabe considerar que, embora o ruído esteja presente nos
ambientes sonoros, de forma marcante, sobretudo pelo volume e presença
de sons bastante ruidosos, estes não impedem a escuta de planos sonoros,
exceto em situações totalmente adversas como, por exemplo, estar sob uma
cachoeira ou muito próximo a um avião em vias de decolar. Nesse sentido,
pode-se levantar a hipótese de que uma escuta de cunho mais perspectívico
não deixa de existir em função de um ambiente sonoro mais ruidoso, pois,
como será desenvolvido nos próximos capítulos, os modos de escuta se
interpenetram e a intenção de escuta de cada ouvinte tem papel fundamental
para a construção de outras escutas não necessariamente passíveis de serem
catalogadas.
E.fClJta pensante 37
Levando em consideração que os modos de escuta dependem
basicamente do relacionamento entre o ouvinte e o meio ambiente,
Schafer nos fala da importância da integração, tanto dos aspectos
acústicos e psicoacústicos, quanto dos semânticos e estéticos no es-
tudo de um ambiente sonoro. É necessário levar em conta não ape-
nas os aspectos físicos e referenciais do som, pois o ouvinte terá
sempre atitudes culturais específicas, uma vez que cada sociedade
desenvolve a sua própria "competência sonológica' 4. Mas, para que
esta seja a mais acurada possível, é neces ário que cada ouvinte não
ignore o seu ouvido.
*
* *
Se, hoje, a busca de uma urbanização que leve em conta o
parâmetro sonoro torna-se imprescindível, o indivíduo precisa estar
o mais atento possível às sonoridades dos ambientes acústicos de sua
comunidade. Por isso Schafer propõe o desenvolvimento de uma
"escuta pensante" através de uma estratégia educacional denomina-
da "limpeza de ouvidos" (earcleanini), uma tentativa de promover
uma comunicação interativa entre ouvinte e meio-ambiente.
Considerando-se que o ambiente sonoro pode ser "captado fo-
tograficamente" pelo microfone, mesmo que este não opere similar-
mente a uma máquina fotográfica, pois consegue mostrar apenas
detalhes de um momento sonoro, é possível pensar em uma paisa-
gem sonora como "captação de uma imagem sonora". Assim, por
uma analogia com landscape, Schafer criou o termo soundscape (tra-
duzido para o português como "paisagem sonora"), referindo-se,
genericamente, a todo e qualquer ambiente sonoro.
-
4 Conforme Schafer, essa competência refere-se ao conhecimento implícito
que cada indivíduo tem e que permite a compreensão das formações sono-
ras. É também possível que, do mesmo modo que a competência sonológica
varia de indivíduo a indivíduo, possa também variar de cultura para cultura
ou, pelo menos, desenvolver-se de modos diferentes, em diferentes culturas
(Schafer, 1977, p. 274).
38 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
5 É interessante observar a diferenciação que Schafer faz entre objeto sonoro
(som que é gravado e analisado em um laboratório) e "evento sonoro" (som
identificado e analisado pela comunidade). Ou seja, para um som ser con-
siderado um "evento", é necessário escutá-lo e analisá-lo, levando-se em
consideração o contexto em que foi produzido e as significações daí decor-
rentes (Schafer, 1977, p. 131).
Reconhecer os "eventos sonoros'" componentes desse campo
de interações que é a paisagem sonora torna-se fundamental para
um ouvinte que pretende exercer uma "escuta pensante". E, para
promover um melhor desenho acústico de uma paisagem qualquer,
esse ouvinte deverá, segundo Schafer, primeiramente descobrir os
traços significantes e determinantes dessa paisagem. Nesse sentido,
os eventos a serem detectados por um "pesquisador de paisagem
sonora" são os seguintes:
1. Keynote sound - ou som fundamental, por analogia ao som
que identifica a tonalidade de uma determinada composição musi-
cal, é um som que nem sempre é ouvido conscientemente. É perce-
bido como resultado de um hábito de nossa escuta. Sob a perspecti-
va da psicologia da percepção visual que, fundamentada na gestalt,
separa o ambiente em "figura e fundo", krynote são os sons de
"fundo", sons do segundo plano. Mesmo não escutados cons-
cientemente pelos indivíduos que vivem entre eles, pois formam um
fundo sobre o qual outros sons se evidenciam, são realmente nota-
dos quando se transformam ou quando desaparecem. Por exerce-
rem uma profunda e invasiva influência em nosso comportamento e
humores, esses sons são de extrema importância, justamente por aju-
darem, como observa Schafer, a "delinear o caráter do homem que
vive entre eles" (idem, p. 9).
2. Signal- ou sinal, é aquele som que emerge no primeiro pla-
no, ou seja, a "figura" que, ao contrário da krynote, é escutada cons-
cientemente. São os sons que devem ser escutados com atenção, por
constituírem, na acepção de Schafer, "dispositivos de avisos acústi-
cos". Por serem freqüentemente organizados em códigos elabora-
Escuta pensante 39
dos, permitem a transmissão de mensagens de considerável complexi-
dade para ouvintes que possam e queiram interpretá-Ias (idem, p. 10).
3. Sottndmark - ou marca sonora, por analogia com landmark
(marco divisório), refere-se àquele som que é único e especialmente
notado pelas pessoas de uma determinada comunidade e, por isso,
"merece ser protegido, pois torna a vida acústica de uma comunida-
de ímpar" (idem).
Além dos eventos esboçados, uma paisagem sonora lo-fi, ca-
racterística das grandes cidades atuais, apresenta alguns outros efei-
tos sonoros, gerados pelos novos sons advindos da Revolução In-
dustrial e ampliados pelos sons oriundos da revolução eletrônica.
Dentre eles destaca-se aquilo que Schafer denominou fot fine in sound,
um som contínuo construído artificialmente, com pouca personali-
dade ou senso de progressão, que nos submete a uma permanente
krynote. Agora, ao invés de os sons "nascerem" e "morrerem", como
os sons naturais (idem, pp. 78-79), permanecem indefinidamente,
influenciando os humores e comportamentos do indivíduo, além de
poderem levar ao que Truax chamou de "hábitos de não escuta".
Um outro importante aspecto característico da paisagem sonora
urbana do século XX é o que Schafer denomina schizophonia, schizo
(do grego) = separado e phone (do grego) = voz. É um fenômeno
que se refere à separação entre o som original e sua reprodução
eletroacústica; e o emprego desse termo, dessa "palavra nervosa",
foi feito por Schafer para "dramatizar o efeito aberrativo" que esse
fenômeno desencadeia no século XX (idem, p. 273). Separando o
som de sua fonte, arrancando-o de sua origem e dando-lhe uma exis-
tência amplificada e independente, tem-se a possibilidade de uma
existência amplificada e multiplicada, na qual todos os sons estão
presentes de uma só vez e, nesse contexto, uma escuta analítica:
"pensante", torna-se, segundo ele, bastante difícil.
Além desses aspectos, há também todo um simbolismo sonoro
que cabe ao "ouvinte-pesquisador" investigar, pois, segundo Schafer,
devido ao fato de os sons não serem meramente "eventos acústicos
\
40 Por uma escuta nômade:a música dos som da rua
abstratos", podem também ser investigados como "signos" (não o
som, mas a representação de uma realidade fisica); "sinais" (o som
como suporte para um significado, que, geralmente, solicita uma res-
posta de um ouvinte); e "símbolos" (um som que possui um rica
conotação, implicando algo mais do que seu significado imediato)
(Schafer, 1977, p. 169). Mas o importante a ser ressaltado, neste
momento, é que, além daqueles aspectos sonoros que acabam por
promover uma espécie de "moldura" e conduzindo, de certa forma,
a experiência auditiva, o essencial é não perder de vista a idéia de que
são os hábitos perceptivos e o contexto cultural de cada indivíduo os
elementos que mais influenciam a condução e construção dessa ex-
periência.
*
* *
Se a proposta de Schafer é desenvolver "ouvidos pensantes",
que reflitam sobre seu entorno sonoro e componham paisagens so-
noras mais interessantes, parece ser necessário que esse ouvinte
reavalie seus hábitos de escuta (ou, talvez, de uma "não-escuta").
Uma questão, então, se coloca: como proceder para que ocorra uma
mudança de atitude perceptiva por parte do ouvinte em relação ao
seu ambiente sonoro?
Com o objetivo de tornar cada indivíduo apto a verificar am-
bientes sonoros, o que lhe possibilitará analisar objetivamente os ní-
veis acústicos de diferentes cidades e comunidades, levando-se em
conta a relatividade que cabe a toda experiência acústica, Schafer
convida-nos, como ouvintes, num primeiro momento, a um passeio
auditivo por esses ambientes. Propõe, para isso, inúmeros instrumen-
tos de apreciação, como, por exemplo, um passeio sonoro, ou soul1dwalk,
pelos ambientes nos quais vivemos, buscando delinear planos de escuta,
tanto de particularidades acústicas de cada lugar, quanto de aspectos
sonoros gerais. O que pretende é propiciar o desenvolvimento de escu-
tas que fujam ao hábito: uma escuta que "pensa" o seu entorno sonoro.
Escuta pensante 41
o ato de escutar as ruas, considerando-se tanto as sonoridades
provenientes dos seus efeitos de ressonância e reverberação, que va-
riam segundo as estruturas materiais e arquitetônicas, quanto tudo o
que poderia influenciar a constituição acústica do lugar (desde as
condições atmosféricas, as mudanças de urna civilização industrial e
também questões sobre o passado sonoro dos locais investigados),
permite perceber as variações que os ambientes sofrem. Uma obser-
vação relevante nesse sentido é a de Bosseur, de que, "a partir da
escuta dos ambientes, denuncia-se um processo de padronização dos
ambientes sonoros atuais, se não um empobrecimento de suas variá-
veis" (Bosseur e Bosseur, 1990, p. 252).
Nesse sentido, Schafer fala da paisagem sonora do mundo como
uma enorme "composição macrocósmica", por cuja orquestração o
homem seria o responsável. Os passos que ele propõe para esse jogo
compreendem, num primeiro momento, aprender a ouvir a paisa-
gem sonora como se ela fosse música, "ouvi-Ia tão intensamente
como se estivéssemos ouvindo uma Sinfonia de Mozart", e, so-
mente após essa etapa, julgar os sons numa escala qualquer de
valores (1991, p. 289).
*
* *
Diante do exposto, percebe-se que a proposta de Schafer permi-
te vislumbrar a possibilidade de uma outra escuta, que, antes de se
tornar valorativa, no sentido de classificar e julgar sons mais ou me-
nos adequados a determinada paisagem sonora, busca simplesmente
ouvir (ou fruir) esteticamente os sons que compõem a "música"
ambiental. Mas por que não ir além de tal proposição? Será que ouvir
uma paisagem como se ela fosse Mozart não implica submeter essa
paisagem a um julgamento de valor apriori que Schafer quer a posteriori?
O fato de vivermos em um mundo "visivelmente" sonoro e ser-
mos os responsáveis por essa "composição" leva-nos a inferir que a
experiência auditiva de paisagens sonoras é fundamental, pois pode
42 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
implicar uma nova concepção de música e de escuta. Ao compreen-
der o desenho da paisagem sonora como um desafio cornposicional,
que envolve a todos, e aproximar ouvinte e ambiente sonoro pela
interface da escuta, Schafer reforça uma postura estética tão bem
defendida pelo compositor norte-americano John Cage, de pensar-
mos uma escuta que torna música aquilo que, por principio, não é
música: os sons do ambiente. Sob essa perspectiva, as barreiras entre
música e não-música e o papel da escuta como algo que constrói e
se constrói na própria música, e vice-versa, começam a habitar
uma certa "zona de indiscerriibilidade", permitindo-nos pensar
em uma escuta que compõe, que inventa.
Se definir música meramente como sons seria impensável há
alguns anos atrás, com todas as mudanças ocorridas no campo sono-
ro ao longo do século XX, pensar dessa forma não parece tão inade-
quado aos dias de hoje. O processo de transformação da noção da
música e da escuta há muito vem ocorrendo, mas, com a entrada
contundente do ruído na música, essas mudanças tornaram-se mais
evidentes. Cabe, a partir de agora, retomar o pensamento de alguns
compositores que, além de terem, de certa forma, contribuído para a
construção do pensamento de Schafer, consideramos de extrema
importância na ampliação e transformação das noções de música e
de escuta tais como se apresentam hoje. Com isso pretendemos dese-
nhar o solo em que a idéia de uma "escuta que compõe" está plantada.
2
ESCUTA EM TRANSFORMACÃü
"
De um modo geral, observa-se, no século XX, a configuração
de uma nova realidade, como conseqüência das profundas trans-
formações econômicas, sociais, políticas e ideológicas ocorridas no
século anterior. Uma realidade mais industrial e tecnológica se faz
presente, provocando enormes mudanças na vida do homem ociden-
tal e a música não poderia ficar alheia a todas essas transformações.
1).s reações musicais, no início do século, contra as gerações
anteriores são as mais diversas, partindo de uma grande revisão de
valores. A arte aparece como algo em constante transformação e a
música, agora, com uma "finalidade incitadora e renovadora",
não mais consistirá na aplicação de cânones de beleza adaptados
à simples assimilação de coisas, mas sim no que o músico criador
for capaz de conceber e realizar além de qualquer cânone consa-
grado, estabilizado, oficializado e mumificado. (Paz, 1976, p. 28)
Além de um cromatismo que, cada vez mais liberto das leis
tonais, abre caminho às tendências renovadoras do século XX, im-
portantes transformações ocorrem no campo sonoro. Elas abran-
44 Por uma escuta nômade: a mésica dos sons da rua
gem tanto gravações, manipulações e transmissões sonoras, liber-
tando o som de sua origem espaço-temporal, quanto a produ-
ção, reprodução e incorporação musical de outros sons, até en-
tão não observados no cotidiano do homem: o som das máqui-
nas, o ruído 1.
O ruído, conforme coloca José Miguel Wisnik, além de "ser
um elemento de renovação da linguagem musical", colocando-a em
cheque, "torna-se um índice do habitat moderno, com o qual
nos habituamos". Máquinas produzem e reproduzem sons, pro-
vocando o alastramento de um mundo mecânico e artificial,
criando "paisagens sonoras das quais o ruído se torna elemento
integrante incontornável, impregnando as texturas musicais"
(1989, p. 42).
A presença de "novos" sons nas paisagens cotidianas levou até
mesmo compositores como Debussy a fazer, em 1913, o seguinte
questionamento: "Não será nosso dever encontrar meios sinfônicos
de expressar nosso tempo, meios que evoquem o progresso, o arrojo
e as vitórias dos dias modernos? O século do avião merece sua pró-
pria música" (apud Griffiths, 1993, p. 97).
Nesse sentido, em busca de uma música feita com os sons de
sua época, muitos músicos e engenheiros começam a inventar es-
pécies de máquinas produtoras de ruídos. Os historiadores Jean- .
Ives Bosseur e Dominique Bosseur, em seu livro Revoluções musicais:
a música contemporânea depois de 1945, apresentam algumas dessas des-
cobertas, datadas, inicialmente, de 1907, quando Busoni descreve o
dinamofone ou Telharmonium,instrumento criado pelo Dr. T. Cahil,
1 Estamos tomando, neste momento, a definição de ruído dada por Wisnik,
em seu livro O som e o sentido. O autor diz ser o ruído um som formado por
feixes de defasagens "arrítmicas" e instáveis, e gue, sob a ótica da teoria da
informação, é um som gue, ao provocar uma "desordenação interferente",
torna-se "um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensa-
gens/ códigos cristalizados e provocador de novas linguagens" (Wisnik, 1989,
pp.29-30).
Escuta em tran.rfOrmação 45
capaz de produzir sons de quaisquer freqüência e intensidade, as-
sim como os seus harmônicos. Essa invenção foi o ponto de parti-
da para várias outras tentativas, que buscavam produzir sons por
meio sintético, resultando na criação, em 1924, do primeiro ins-
trumento eletrônico, o Sphârophon, de Jorg Mager e, em 1928,
o Trautonium, de Friedrich Trautwein, ambos de Berlim. De Paris
temos as Ondas Martenot, de Maurice Martenot, também de
1928.
Muitos compositores fizeram uso dessas c máquinas produto-
ras de ruídos" em suas composições, levando as orquestras a incor-
porarem não apenas esses «novos" sons, como também os ruídos
dos instrumentos de percussão. Exemplos como a «música-máqui-
na", de Honegger, em Pacific 231, de 1924, ou o BaIle! Méchaniquc, de
Antheil, de 1926, podem e devem ser lembrados. Mas não pode-
mos deixar de citar aquele que, desde a primeira reavaliação de seu
trabalho, feita em 1948, pelo compositor John Cage, tem sido con-
siderado por vários autores como um dos primeiros a constatar o
grande deslocamento sonoro prefigurado no inicio do século XX:
Eric Satie.
A ironia e irreverência que transbordavam (e ainda transbor-
dam) em suas obras, partituras e anotações, anunciavam, quase que
de maneira profética, «o processo de mudança das condições de
produção musical no mundo emergente do imaginário industriali-
zado como mercadoria" (Wisnik, 1989, p. 44).
Tanto o sucesso escandaloso de Parade, «um concerto para
máquina de escrever, sirene e tiros, com jazz e orquestra", de 1917,
que inclui ruídos extra-orquestrais, quanto sua obra Musique
d'ameublement ou Nlúsica de mobiliário, «uma música de fundo a ser
preenchida pelo público" (Campos, 1998, p. 76), já apontam para a
irrupção do ruído no contexto da música de concerto, antevendo
uma atitude estética presente, posteriormente, na obra de John Cage
e no âmbito do movimento, denominado por Dan Lander (1990)
Sound Art, aqui traduzido como Arte Sonora.
46 Por tllna escuta nômade: a fmísica dos som da rua
A postura irreverente de Sacie está muito próxima das posturas
estéticas dos movimentos de vanguarda, como o Dadaísmo e o
Futurismo, que surgem no início do século XX e começam a ques-
tionar o papel da arte, do artista e do público em todas as suas
formas de manifestação, provocando um deslocamento dos precei-
tos estéticos em vigor até então.
Poetas, pintores, arquitetos, músicos, todos eles, de uma for-
ma ou de outra, estavam, naquele momento, envolvidos com a má-
quina, levando até mesmo o poeta Ezra Pound a dizer que, "( ...)
Máquinas são agora parte da vida, é apropriado que o homem
sentisse alguma coisa sobre elas; haveria alguma coisa fraca na
arte se esta não pudesse lidar com esse novo contexto" (apud
Schafer, 1977, p. 111).
E muitos sentiram ... Sentiram a máquina e seus ruídos, de modo
muito especial, tornando ainda mais claro aquilo que Satie havia
preconizado em sua Música de mobiliário. Os sons ambientais, os
ruídos, começam a se apresentar como um dos traços mais fortes
na transformação da estética musical do século XX, revelando, as-
sim, uma possível indistinção das fronteiras entre música e sons
ambientais.
** *
Observa-se que, até princípios do século XX, os músicos utili-
zavam uma reduzida parte das possibilidades sonoras do mundo.
Contudo, com o movimento futurista italiano, a hesitação (ou difi-
culdade) em incorporar o ruído na criação musical começa a ser
dissipada.
Na visão de Aurora Bernardini, o Futurismo italiano (1909-
1920) deixou "traços inconfundíveis na estética do mundo moder-
no", agindo como uma "espécie de motor das vanguardas européias"
(1980, pp. 11-13). No entanto, para alguns autores, a maior con-
Esaaa em tral1.iformação 47
tribuição desse movimento não foi nem a apologia que fez à máqui-
na ou ao progresso, o que o levou a ser tachado de se aproximar do
fascismo, nem seu "tom" de provocação, histriônico, quase agressivo.
Sob a perspectiva de que, como bem coloca Bloch "o que inte-
ressa na história é o 'Roten Faden', aquele misterioso fio que se de-
senrola por entre o caótico devir dos acontecimentos, redimindo-os,
recuperando-os" (apud Angeleri, 1980, p. 1 ), pode-se inferir que o
que mais nos interessa do Futurismo é justamente o que Angeleri
aponta como o roten faden na história desse movimento, ou seja,
"O Futurismo, em sua fase inicial, é ácido corrosivo, é modo de co-
locar o homem diante do autêntico, numa constante condenação do
banal, do trivial, do descontado" (Idem, p. 19).
Se o movimento futurista é considerado como possibilidade de
realização em seu aspecto conceitual, ampliando a noção de arte,
pode-se inferir que, no campo musical, a noção de música que se
tinha até então começa a ser colocada em questão.
O músico futurista Balilla Pratella, autor dos ensaios Manifesto
dos musicistasfuturistas (1910) e, no ano seguinte, ''A música futurista
- manifesto técnico", com o "tom" característico dos futuristas,
declarava sua repugnância à música do passado, conclamando os
jovens a abandonarem os conservatórios e incitando o público a
exaltar tudo o que, na música, parecesse original e revolucionário,
em detrimento da velha música. Em seu segundo manifesto, além
de indicar uma série de condutas musicais quanto à questão rítmica,
formal e melódica, dizia ser necessário, naquele momento,
Transportar para a música todas as novas atitudes da natureza,
sempre diferentemente domada pelo homem, em virtude das in-
cessantes descobertas científicas. Transmitir a alma musical das
multidões, das grandes obras industriais, dos trens, dos transa-
tlânticos, dos encouraçados, dos automóveis e dos aeroplanos.
Acrescentar aos grandes motivos centrais do poema musical o
domínio da máquina e o reino vitorioso da eletricidade. (In
Bernardini, 1980, pp. 47-50)
48 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
Mas a incorporação dos ruídos na música, transformando-se
no que poderíamos chamar de "ruído musical", foi realizada por
outro artista, Luigi Russolo, que, mesmo não tendo a formação de
um músico (era um pintor futurista), acabou, quer por seus
intonarumori, quer por seus manifestos estéticos, contribuindo de
maneira mais eficaz para a transformação estética da música do
século XX.
Em uma carta destinada ao músico futurista Balilla Pratella,
datada de 11 de março de 1913 e intitulada A arte do ruído: manifesto
futurista, Russolo apresentava uma nova estética musical, a qual, se-
gundo Brown, seria "uma estética tão audaciosa para o seu tempo
que seus contemporâneos (incluindo Igor Stravinsky) consideraram-
no apenas um excêntrico engraçado" (In Russolo, 1986, pp. 1-21).
Seu manifesto encontrou respaldo no Manifesto futurista, de
Filippo T. Marinetti, publicado poucos anos antes (1909), que pro-
clamava uma total revisão dos valores estéticos. Mas foi em Roma,
ao ouvir uma execução orquestral da música futurista de Pratella,
que lhe sobreveio uma nova arte: a arte dos ruídos, para ele uma con-
seqüência lógica das maravilhosas inovações que Pratella acabava
de apresentar (Russolo, 1986, p. 23).
O ruído, segundo Russolo, acompanha toda e qualquer mani-
festação de nossa vida. Além de nos envolver em todos os momen-
tos, pode ser percebido, não como algo necessariamente desagradá-
vel e maçante, mas como uma fonte infinita de sensações. Mesmo
sendo familiar ao nosso ouvido e com o "poder de nos remeter
imediatamente à vida", por derivar de modo confuso e irregular da
própria confusão irregular da vida, acaba por "jamais se revelar in-
teiramente a nossosouvidos, reservando-nos inúmeras surpresas"
(idem, pp. 27-41).
Russolo nos fala que desde que a máquina foi inventada, mais
precisamente no século XIX, o ruído "triunfa e domina soberano
sobre a sensibilidade dos homens". A partir daí, cada vez mais, a
arte musical tem buscado as mais dissonantes e ásperas combina-
ções sonoras, preparando assim o ouvinte para o "som-ruído" ou
--- -- -- ------------
Esaaa em tran.rfimnação 49
"ruído musical". É uma transformação musical que ocorre paralela
à multiplicacão das máquinas e, nesse sentido, fazemos nossas as
questões apresentadas por Brown, ao demonstrar a lógica do pen-
samento de Russolo:
Se música é som, por que ela não pode empregar toda e qualquer
variedade de sons? Por que ela não pode abraçar sons como aque-
les produzidos por animais e pessoas, os sons da natureza, os
sons da moderna sociedade industrial. (In Russolo, 1986, p. 2)
Os sons musicais, segundo Russolo, são limitados em sua
variedade de timbres. Por acreditar na necessidade do rompi-
mento de um círculo restrito de sons puros, para que fosse pos-
sível a conquista de uma variedade infinita de "sons-ruídos",
afirmava que,
Para nos convencermos da variedade surpreendente de ruídos,
basta pensarmos no estrondo do trovão, nos sibilas do vento,
nas quedas de uma cachoeira,no borbulhar de um riacho, no
farfalhar das folhas, no trote de um cavalo que se distancia, nos
tremores cambaleantes de um carro sobre a calçada, e na respira-
ção plena, solene e branca de uma cidade à noite. Pensar sobre
todos os ruídos produzidos pelas feras e animais domésticos, e
em todos aqueles que o homem pode fazer, mesmo sem cantar
ou falar. (Russolo, 1986, pp. 25-26)
Alargar e enriquecer cada vez mais o campo sonoro, observan-
do, com uma contínua atenção, todos os ruídos, constitui uma das
orientações dadas por Russolo aos musicistas futuristas, para que
pudessem, assim, conquistar "ouvidos futuristas". E, para isso, um
pequeno exercício de escuta:
Atravessemos uma grande capital moderna, com nossos ouvi-
dos mais atentos que os olhos. Nós nos deliciaremos em distin-
50 Por ulJla escuta nômade: a mlÍsica dos sons da rua
guir os redemoinhos de água, de ar ou de gás nos tubos metáli-
cos, o murmúrio dos motores que resfolegam e pulsam com uma
indiscutível animalidade, o palpitar das válvulas, o vai e vem dos
êmbolos, os rangidos das serras mecânicas, o andar dos trens
sobre os trilhos, o estalar dos chicotes, o agitar das cortinas e das
bandeiras. Nós nos divertiremos ao orquestrar juntos, em nossa
imaginação, o estampido dos portões das lojas, as portas batidas,
o sussurro e o ruído de passos das multidões, os diversos alari-
dos das estações, das ferrarias, das fiações, das tipografias, das
centrais elétricas e das ferrovias subterrâneas. (Idem, p. 26)
** *
Russolo devotou toda sua energia à criação de seus instrumen-
tos produtores de ruídos. Sua consciência de um mundo irreme-
diavelmente sonoro e das possibilidades musicais expressivas des-
ses ruídos levou-o a antecipar, em décadas, um vasto campo de
noções estéticas. Além de influenciar compositores como George
Antheil, Honegger e Aleksandr Mossolov, embasou o pensamento
de várias tendências vanguardistas do século xx.
Mas o compositor que talvez tenha tirado mais proveito do
gosto futurista pelas sonoridades urbanas, ainda nas primeiras dé-
cadas do século XX, foi, sem dúvida, Edgard Varese (Griffths, 1993,
p. 99). Um homem que, ao encontrar-se seduzido pelos "novos"
sons da América, em 1915, apaixona-se por Nova York e escreve:
Todo lugar tem seus sons característicos. Eu tenho sempre escu-
tado os sons à minha volta. Há sempre um som em Nova York.
Fique quieto e escute, e você ouvirá um rugido. Ele o acompa-
nha. (Russcol, 1972, pp. 48-49)
Para Varêse, todos os sons eram materiais em estado bruto,
aceitáveis para aquilo que chamou de uma "poetização do ruído".
Escuta em transformaçào 51
Nesse sentido é que dizia que uma abordagem reverente à música
do passado apenas levava os compositores a "esquecerem" que "a
matéria bruta da música é o som" (1969, p. 191).
Fascinado com os recentes estudos científicos sobre o som,
percebido então como um fenômeno físico, "desafiou a existência
e necessidade de nossa santificada escala temperada", recusando-se
a "ser algemado pela predeterminação de intervalos e freqüências"
(Russcol, 1972, p. 47).
Por não considerar-se um músico, mas alguém que trabalhava
com ritmos, freqüências e intensidades, e por não acreditar que uma
"nota" pudesse ser ouvida como um som artificialmente preso a
uma escala, mas como um número de freqüências em relação a
outras freqüências, afirmava que:
Quando toda nota em uma composição tem que ser ou pode ser
explicada de acordo com algum sistema, o resultado não é mais
música. (...) A maioria das músicas soa, para mim, como algo
terrivelmente enclausurado. (...) Eu gosto de música que explode
no espaço. (1972, p. 52)
A selva urbana vira uma obsessão para ele e lhe oferece exata-
mente a atmosfera necessária para o desenvolvimento de seu "ins-
tinto musical". E foi com .Amériques, escrita em 1922, mas estreada
apenas quatro anos após, que Varêse demonstrou seu rompimento
com a tradição musical européia, dizendo que, ao escrevê-Ia, estava
sob o encantamento de sua primeira impressão de Nova York, "não
somente uma Nova York vista, mas mais especificamente, ouvida"
(Rich, 1995, p. 89), apresentando assim o que Russcol considera
um "manifesto do novo mundo sonoro de Varêse" (idem, p. 49).
Sua música, inconfundivelmente urbana, abarca vários sons da
cidade, que já vinham, desde o século XIX, inundando o homem.
Mas algo o incomodava. Como expressar os sons que ouvia inter-
namente por meio de instrumentos musicais que ainda eram os
mesmos utilizados nos últimos dois séculos?
-. --------~----------------
52 Por lima escuta nômade: a música dos sons da ma
Foi nesse sentido que, já em 1917, de maneira quase profética,
Varêse escrevia, na Revista Dadaísta de Nova York, no número 391
(apud Russol, 1972, p. 56), sobre sua necessidade e seu sonho de ter
um instrumento que obedecesse ao seu pensamento e pudesse ex-
pressar um novo mundo sonoro, até então insuspeito, mas ouvido
internamente por ele.
Pensava em uma música composta por densidades e volumes
de sons. Sonhava com uma música como uma "escultura no espa-
ço". Escutava uma música em três dimensões, com objetos sono-
ros espaciais colidindo; sonoridades movendo-se! Massas sonoras en-
trando em colisão e produzindo sensações, ora de repulsa, ora de pene-
tração. Movendo-se em diversas velocidades, em diversas direções.
Essa plasticidade e essa espacialidade da matéria sonora, pre-
sentes em seu "sonho", vão ser finalmente concretizadas em uma
de suas últimas obras, Poema eletrônico, de 1958, na qual
a mobilidade não é de ordem lógica. Ela se expressa por desloca-
mentos de massas sonoras brutas inarticuladas no espaço musi-
cal, pela exposição de linhas retas de sons sustentados, pela flexão
das alturas nas curvas dos "glissandi", pela projeção de planos
sobre planos que. se fundem, se chocam ou se interpenetram,
pelo tratamento das densidades. O espaço é percebido de um
modo físico, concreto. É construído afirmando sua materialidade.
Meios elétricos/eletrônicos de gravação e ampliação dos sons
possibilitam sua projeção no ambiente, partindo de diversos pon-
tos, deslocando-se de um lugar para outro, ou ainda ocupando o
seu centro. A mobilidade é permanente. (Terra, 1996, pp. 76-77)
Além de o mundo ter, com Varêse, uma nova noção de música,
sem harmonias nem melodias, mas composta apenas por volumes
e densidades sonoras, a música, por não ser mais concebida em
torno de um único eixo espacial, perde seu caráter de discurso mu-
sicallinear, que tinha até então, como música tonal. Agora, ao con-
Escuta em transformação 53
ceber a espacialidade a partir de planos, superfícies, tramas e massas
sonoras, diluindo-se suas dimensões horizontais e verticais, a músi-
ca de Varêse permite que o espaço musical adquiramobilidade, abrin-
do assim a possibilidade para um "espaço multidirecional" (idem,
pp.75-76).
Sob essa perspectiva, Vera Terra nos fala de uma outra escuta,
que se apresenta com as inovações propostas por Varêse, Uma es-
cuta que convida o corpo a participar não é mais meramente audi-
tiva. Uma escuta que, ao tornar-se' cinestésica", torna-se "gestual".
Uma escuta na qual "o som é vivenciado como um 'corpo', em sua
materialidade física e plástica" (idem, p.
*
* *
Temos aqui dois compositores que podem ser considerados
como precursores de uma nova estética musical. Uma estética que
incorpora, efetivamente, o ruído. Russolo, ao inventar sua "orques-
tra de ruídos", acaba por introduzir o homem moderno em um
vasto e potencial "novo" universo sonoro. Varêse, em sua busca
incansável pelo som, além de encontrar uma "matéria maleável", o
som, operando sua mobilidade e sua espacialidade, explode o mun-
do musical, deixando penetrar todos aqueles sons, que, na época,
eram tidos como ruídos.'
Uma enorme reviravolta dos princípios estéticos e uma nova
atitude ante o som começam a se delinear nas primeiras décadas do
século XX, provocando uma significativa mudança na história da
percepção auditiva do homem ocidental. Aqueles sons que, outro-
ra, configuravam-se como "pano de fundo" - os ruídos ambientais
- tornam-se, agora, musicais.
2 Varêse (1956) dizia: "Eu me tornei uma espécie de Parsifal diabólico à procu-
ra não do Santo Graal, mas da bomba gue faria explodir o mundo musical e
deixaria penetrar todos os sons pela brecha, sons gue à época - e talvez ainda
hoje - eram tidos como ruídos" (apud Campos, 1998, pp. 117-118).
54 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
Compositores como Satie, Russolo, Varése trouxeram, cada qual
a seu modo, uma enorme contribuição para a libertação da música
de uma carga retórica excessiva. Inicia-se, com eles, a busca pelo
som como um fenômeno acústico, deixando-se de lado todo e qual-
quer subjetivismo a ele atribuído. Isso coloca músicos, sons e ou-
vintes em trânsito.
Se, até Russolo, a música era música e os sons ambientais eram
ruídos externos a ela, hoje, torna-se perfeitamente compreensível
aquilo que diz Murray Schafer sobre o fato de que "desde 1913, o
mundo deixou de ser dividido entre reinos musical e não rnusical't.'
E, nesse momento, tentar definir a música trata-se, como bem co-
loca O compositor Luciano Berio, "de uma operação felizmente
impossível, considerando a futilidade de querer estabelecer a fron-
teira entre o que é e o que não é música". Por ela não ser um objeto,
mas um processo, a fronteira entre ser ou não ser música encontra-
se constantemente deslocada. Se, nos séculos anteriores, a "frontei-
ra" tonal delimitava claramente os territórios da música, "hoje os
territórios são vastissimos, as fronteiras muito mais móveis e de
natureza diversa". Nem sempre o objeto da pesquisa musical e da
criação é a definição de uma fronteira perceptiva, expressiva e
conceitual, mas, sim, de acordo com uma atitude "vanguardística",
é a sua própria eliminação. E, nesse contexto, diz-nos ainda Berio:
"música é tudo aquilo que se ouve com a intenção de ouvir música"."
Percebe-se então a emergência de uma espécie de "estética de
estranhamento", como diria Regina Porto (1997, p. 35), no terreno
3 Ao falar sobre a indistinção entre música e não-música, Schafer está chaman-
do a atenção de educadores musicais que, geralmente, não proporcionam a
seus alunos uma consciência musical das paisagens sonoras, os ambientes
sonoros do cotidiano. Esquecem-se que Luigi Russolo, já na década de 10,
havia ampliado a noção de música com a incorporação dos ruídos (Schafer,
1977, p. 111).
4 Este parágrafo reflete o pensamento do compositor Luciano Berio em entre-
vista realizada por Rossana Dalmonte (Dalmonte, 1981, pp. 5-8).
Escuta em transformação 55
da escuta. Se, até o século XIX, a escuta contava com referenciais
musicais claramente delineados, determinando os caminhos de uma
escuta musical, a nova postura ante o som, instalada pelos movi-
mentos de vanguarda do inicio do século xx, instaura uma profun-
da transformação em direção a uma escuta cujos referenciais não
estão delineados de antemão.
O modo como esses compositores passam a se relacionar com
o fenômeno, acústico, quer tornando o ruído um <som musical",
quer operando com a maleabilidade e espacialidade sonora, aponta
para algo novo. O fato de ouvirmos os ruídos ambientais dentro de
um contexto musical tende a transformar nossos hábitos de escuta
em relação a esses sons, possibilitando uma escuta musical do nos-
so cotidiano sonoro. Uma outra noção de música começa a se deli-
near, confundindo-se com a de "paisagem sonora'".
Como trataremos mais adiante, esse jogo envolve alguns pa-
drões dominantes de escuta, um hábito de escuta musical e um
hábito de escuta de paisagens que, quando contrapostos, transfor-
mam um em dominante ante o outro, que passa a ser o jogo de uma
minoria. Ouvir música como se fosse paisagem implica tanto em
tirar a música de seu território seguro, quanto correr o risco de
submetê-Ia aos padrões da paisagem. O mesmo pode ser dito da
situação inversa. Ouvir uma paisagem como música pode tanto
desmontar os hábitos da escuta cotidiana, quanto correr o risco de
submeter a paisagem às regras da escuta musical: a "forma sonata"
da paisagem ou a "forma sonata" dos sons dos carros que se cru-
zam em uma esquina qualquer. John Cage perguntaria a respeito:
"O que é mais musical, um caminhão passando por uma fábrica ou
um caminhão passando por uma escola de música?" (1976, p. 41).
Observa-se, assim, a importância de se destacar dois composi-
tores que, de certa forma, continuaram trabalhando numa perspec-
5 Vale ressaltar gue, ao falar em paisagem, neste momento, estamos falando
daguilo gue Schafer menciona sobre a paisagem sonora ser gualguer am-
biente sonoro. No nosso caso, esse ambiente sonoro é o nosso cotidiano.
56 Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua
tiva bem próxima de seus antecessores, colaborando no sentido de
ampliar a noção de música e de escuta. Por um lado, encontraremos
Pierre Schaeffer, que, ao tornar possível a inserção de qualquer
som do ambiente em suas composições, através das práticas
eletroacústicas, sentiu necessidade de desenvolver importantes es-
tudos sobre a escuta, para uma melhor compreensão do próprio
"objeto sonoro". E, por outro lado, encontramos John Cage, que,
ao abrir as "janelas" de sua música, acaba permitindo que os ruídos
do ambiente se misturem aos seus próprios, propondo uma "música
sem propósitos" e suscitando uma escuta que simplesmente escuta.
3
ESCUTA REDUZIDA
Ao centrar a atenção no mundo dos sons, podemos constatar
que a aceitação da dissonância, a incorporação do ruído ou do
continuam sonoro, o surgimento de novas fontes sonoras, como os
sons concretos ou eletrônicos, a gravação de sons da natureza, as
manipulações dos sons em estúdio fazem com que um vasto mate-
rial sonoro venha à tona no século XX.
Nesse sentido, o compositor Denis Smal1ey,na tentativa de abar-
car os novos materiais sonoros potencialmente presentes na música
atual, apresenta três categorias sonoras (1992, p. 514):
1- sons capturados da natureza e da cultura pelo microfone;
2 - sons (instrumentais ou cantados) especialmente criados para
uso musical;
3 - sons eletroacústicos, aparentemente distantes ou divorcia-
dos dos sons familiares de vozes, instrumentos, natureza ou sons
identificáveis de nossa cultura.
A essas categorias acrescentaríamos uma quarta, referente
aos sons presentes "naturalmente" nos ambientes que nos cer-
cam, os sons que compõem as paisagens sonoras, urbanas ou ru-
58 Por uma escuta nômade: a música dos sons da ma
rais, e que, nas concepções estéticas de compositores como John
Cage e Murray Schafer, são também música.
Deixando para mais tarde uma reflexão sobre a ampliação que a
idéia de música tem sofrido no século XX, cabe, neste momento,
levar em conta toda a nova gama de sons abarcados pela música
atual e chamar

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