Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PEDRO SANTOS – MEDICINA 2021.2 DENGUE CONCEITO A Dengue é uma doença viral febril aguda, de evolução benigna na maioria dos casos, que é transmitida pela picada do vetor artrópode, sendo então uma arbovirose. Os principais vetores da dengue são os mosquitos do gênero Aedes, das espécies aegypti, em áreas urbanas, e albopictus. EPIDEMIOLOGIA A dengue voltou a ser uma ameaça no Brasil nos anos 1990 e 2000. Em 2017, foram notificados 113.381 casos prováveis de dengue em todo o país, uma redução de 90,3% em relação ao mesmo período de 2016. Em 2019, até o final do mês de agosto foram registrados cerca de 1,5 milhão de casos. Este número representa um aumento de 7 vezes em relação ao mesmo período de 2018, segundo o Ministério da Saúde. Dados mundiais: 2,5 bilhões de pessoas vivem em áreas de risco no mundo; 100 países no mundo com risco potencial de epidemias; 50 milhões de casos documentados anualmente; 50 vezes mais casos de dengue hemorrágica nos últimos dez anos; A dengue hemorrágica é uma das principais causas de mortalidade infantil em países da Ásia. ETIOLOGIA O vírus da Dengue é um RNA vírus, do gênero Flavivírus, pertencente à família Flaviridae. Existem quatro sorotipos distintos: DEN 1, DEN 2, DEN 3 e DEN 4. Uma pessoa que tenha contato com um sorotipo pode se infectar com um novo sorotipo e adquirir a doença mais de uma vez. A imunidade é sorotipo- específica, com a possibilidade, inclusive, de desenvolver formais mais graves, devido a uma ativação imunológica pela reexposição nos que já possuem alguma imunidade prévia. O genoma do vírus codifica várias proteínas virais, sendo que a NS1 está presente na fase aguda da infecção e sua antigenemia está associada a apresentações clínicas de maior gravidade. A detecção laboratorial dessa proteína é base de testes diagnósticos na fase aguda. O mosquito possui hábitos diurnos (início da manhã) e vespertinos (final da tarde). O mesmo tem autonomia de voo limitada, afastando-se não mais de duzentos metros do local de oviposição. Isto significa que a eliminação dos criadouros peridomiciliares impede totalmente o contato domiciliar com o vetor. A doença só poderá acontecer se três situações epidemiológicas forem preenchidas: 1) existência do agente transmissor no local; 2) presença do homem infectado; 3) presença do indivíduo sadio. A transmissão ocorre quando o mosquito se alimenta do sangue de uma pessoa em período de viremia. Isto faz com que ocorra a contaminação do mosquito e, após um período entre 8-12 dias, a fêmea irá fazer um novo repasto sanguíneo estará apta a transmitir a doença a um indivíduo sadio. O mosquito Aedes aegypti vive em uma faixa de 45 dias e, neste curto período de vida, ele faz de três a quatro repastos. Logo, no primeiro repasto, ele se infecta e após a primeira semana ele poderá transmitir a doença por três vezes. O homem infectado apresenta um período de viremia desde o início da sintomatologia, com seu pico máximo em três a cinco dias. FISIOPATOLOGIA Após a introdução, o vírus se replica inicialmente nas células mononucleares dos linfonodos locais ou nas células musculares esqueléticas, produzindo viremia. No sangue, o vírus penetra nos monócitos, onde sofre a segunda onda de replicação. No interior dessas células ou livre pelo plasma, ele se dissemia por todo PEDRO SANTOS – MEDICINA 2021.2 o organismo. Ocorre intensa replicação em células musculares, justificando o quadro de mialgia que geralmente acompanha a doença. Há duas respostas imunes do organismo ao vírus: a primeira previne a infecção e propicia a recuperação; a segunda relaciona-se com a imunopatologia da ‘’forma grave de dengue’’. A primeira infecção pela dengue estimula a produção de imunoglobulinas M (IgM), detectáveis a partir do quarto dia após o início dos sintomas, atingindo níveis elevados por volta do sétimo ou oitavo dia, decrescendo lentamente, e passando a não ser detectáveis após alguns meses. As imunoglobulinas G (IgG) são observadas, em níveis baixos, a partir do quarto dia após o início dos sintomas. Elas elevam-se gradualmente, atingem valores altos em duas semanas e mantêm-se detectáveis por vários anos, conferindo imunidade contra o sorotipo infectante. Os anticorpos adquiridos durante a infecção por um sorotipo de vírus podem proteger da infecção de outros tipos virais, entretanto, essa imunidade é mais curta, com duração de meses ou poucos anos. Infecções por dengue em indivíduos que já tiveram contato com outros sorotipos do vírus - ou até mesmo outros Flavivírus (como as pessoas vacinadas contra a febre amarela) - podem alterar o perfil da resposta imune, que passa a ser do tipo anamnéstico ou de infecção secundária (reinfecção), com baixa produção de IgM e resposta precoce de IgG. Nos quadros de dengue, a sintomatologia geral de febre e mal-estar relaciona-se à presença em níveis elevados de citocinas séricas. As mialgias relacionam- se, em parte, à multiplicação viral no próprio tecido muscular, acometendo inclusive o nervo oculomotor, levando à cefaleia retro-orbitária. QUADRO CLÍNICO A dengue apresenta-se como uma doença espectral, ou seja, possui várias apresentações clínicas, desde sintomáticas a assintomáticas. As três fases clínicas podem ocorrer: febril, crítica e de recuperação. FASE FEBRIL A primeira manifestação é a febre, que tem duração de dois a sete dias. Geralmente é alta (39º C a 40º C), seu início costuma ser abrupto, e os principais sintomas associados são: cefaleia, adinamia mialgia, artralgias e dor retro-orbitária. O exantema está presente em metade dos casos, é predominantemente maculopapular, atingindo face, tronco e membros, não poupa plantas dos pés e mãos, podendo ainda, se apresentar com ou sem prurido, frequentemente, no desaparecimento da febre. Pessoas podem apresentar também anorexia, náuseas e vômitos. A diarreia está presenta em número significativo de casos, e geralmente não é volumosa. Após a fase febril, grande parte dos pacientes recupera-se gradativamente, com melhora do estado geral e retorno do apetite. A presença de febre e 2 ou mais sintomas já é suficiente para considerar caso suspeito de dengue. FASE CRÍTICA Esta fase pode estar presenta em alguns pacientes, podendo evoluir para as formas graves e, por esta razão, medidas diferentes no manejo clínico e observação devem ser adotadas imediatamente. Se inicia com defervescência da febre, entre o terceiro e o sétimo dia do início da doença, acompanhada do surgimento dos sinais de alarme, que são: Dor abdominal intensa (referida ou à palpação) e contínua; Vômitos persistentes; PEDRO SANTOS – MEDICINA 2021.2 Acúmulo de líquidos (ascite derrame pleural, derrame pericárdico); Hipotensão postural e/ou lipotimia; Hepatomegalia maior do que 2 cm abaixo do rebordo costal; Sangramento da mucosa; Letargia e/ou irritabilidade; Aumento progressivo do hematócrito. A maioria dos pacientes não passará por essa fase, com o curso da doença levando diretamente ao período de recuperação. FASE DE RECUPERAÇÃO Nos pacientes que passaram pela fase crítica, ocorrerá reabsorção gradual do conteúdo extravasado com progressiva melhora clínica, com normalização ou aumento do débito urinário, podendo ocorrer ainda bradicardia e mudanças no ECG. Alguns pacientes podem apresentar rash cutâneo acompanhado ou não de prurido generalizado. FORMAS GRAVES O fator determinante nos casos graves de dengue é o extravasamento plasmático, que pode ser expresso por meio da hemoconcentração, hipoalbuminemia e/ou derrames cavitários. Derrame pleural e ascite podem ser clinicamente detectáveis, em função da intensidade do extravasamento e da quantidade excessiva de fluidosinfundidos. Quanto maior a elevação do hematócrito, maior a gravidade. PRINCIPAIS COMPLICAÇÕES CHOQUE O choque ocorre quando um volume crítico de plasma é perdido através do extravasamento, o que geralmente ocorre entre os dias 4 ou 5 (com intervalo entre 3 e 7 dias) de doença, geralmente precedido por sinais de alarmes. O período de extravasamento plasmático e choque leva de 24 a 48 horas. HEMORRAGIA GRAVE A hemorragia grave é outra complicação da dengue que é causada não só pelo comprometimento vascular que o vírus provoca, mas também pelo fato deles afetarem as plaquetas, o que torna ainda mais complicado o processo de tamponamento. Importante: Por essa razão que é contraindicado para os pacientes com suspeita de dengue, o uso de medicamentos como ácido-acetilsalicílico (AAS) e os AINES, já que eles afetam a cascata de coagulação e por isso podem acabar estimulando ainda mais as hemorragias. DISFUNÇÃO ORGÂNICA Na dengue pode haver o comprometimento dos órgãos como o fígado (podendo desenvolver hepatite), do coração (podendo ocasionar miocardites), os rins (que entram em insuficiência renal aguda) e também do sistema nervoso central. Importante: Por essa razão se faz importante solicitar exames para avaliar a função orgânica como TGO, TGP, ECG, ureia e creatinina. Os sinais de alarme sempre devem ser avaliados e são importantes para orientar pacientes para retorno no caso de não internação. São importantes também para definir as condutas em casos de gravidade. MANEJO CLÍNICO E CLASSIFICAÇÃO EM GRUPOS Atualmente, o Ministério da Saúde abandonou os termos ‘’dengue clássica’’ e ‘’dengue hemorrágica’’. A partir de 2014, o Brasil passou a utilizar uma nova classificação de dengue, baseado na multiplicidade da evolução clínica. Isso significa, em outras palavras, que a doença pode evoluir para remissão dos sintomas, ou pode agravar-se, exigindo avaliação e observação constantemente do paciente. GRUPO 1 Caso suspeito de dengue. Sem sinais de alerta. Alta com hidratação + orientações de retorno se sinais de alarme. GRUPO 2 Suspeita clínica + sem sinais + sangramentos espontâneos ou prova do laço + comorbidades. Internação + exames + observação PEDRO SANTOS – MEDICINA 2021.2 GRUPO 3 Sinais de alerta presentes Reposição volêmica imediata Observação por 48 horas GRUPO 4 Choque UTI Drogas vasoativas Segue o anexo I da classificação de acordo o Ministério da Saúde (no final). A classificação de risco do paciente visa reduzir o tempo de espera no serviço de saúde. Os dados de anamnese e exame físico serão usados para fazer esse estadiamento e para orientar as medidas terapêuticas. O manejo adequado do paciente depende do reconhecimento precoce dos sinais de alarme, do contínuo acompanhamento, do reestadiamento dos casos e da pronta reposição volêmica. Não há antiviral específico para o vírus da dengue. A terapia se baseia no alívio sintomático (analgésicos, antitérmicos, antieméticos e antipruriginosos) com ênfase na hidratação (oral nos casos brandos, intravenosa nos casos graves). Em casos de choque (rupo D), iniciar imediatamente fase de expansão rápida parenteral, com solução salina isotônica: 20 ml/kg em até 20 minutos. Reavaliação clínica a cada 15-30 minutos e de hematócrito em duas horas. DIAGNÓSTICO LABORATORIAL Até 5 dias: Opções: Pesquisa de Antígeno Viral (NS1); Teste de Amplificação Genética (RT-PCR); Imuno-histoquímica Tecidual; Cultura; A partir de 5 dias: Sorologia de anticorpos IgM e IgG. EXAMES INESPECÍFICOS Hemograma: semelhante à qualquer doença viral. Linfomonocitose: pode aparecer linfócitos atípicos. Leucopenia. Trombocitopenia. As citopenias tendem a desaparecer após o período de viremia. Dengue Grave Leucopenia ou leucocitose. Hemoconcentração 50 a 60%. Plaquetas abaixo de 100.000 TGO e TGP mais elevadas do que nas formas mais leves. Alterações do sistema de coagulação TRATAMENTO Grupo A: sem sinais de sangramento (espontâneo/induzido) ou de alarme, sem comorbidades, sem risco social. Hidratação oral (60-80 mL/kg/ dia, 1/3 com solução salina e 2/3 com líquidos comuns); Hemograma a critério médico; Seguimento ambulatorial, sintomáticos e orientações. Grupo B: sem sinais de alarme; com sinais de sangramento (espontâneo/induzido) ou comorbidades ou risco social. Hemograma obrigatório e exame específico (sorologia/isolamento viral) Hidratação oral, conforme grupo A, com observação na unidade até resultados de exames. Se hematócrito normal = seguir conduta do grupo A Se hematócrito > 50%homens/ 44% mulheres = hidratação oral supervisionada (ou parenteral), em unidade de observação, 80 mL/ kg/ dia sendo 1/3 em 4h na forma de solução salina; se necessário, intravenosa, 40 ml/kg/4h, cristaloide; Reavaliar em 4h; se melhora = Grupo A. Se sinais de alarme ou piora de hematócrito = Grupo C. PEDRO SANTOS – MEDICINA 2021.2 GRUPO C: presença de sinais de alarme, com ou sem sinais de sangramento. Hidratação venosa com soro fisiológico 10 mL/kg/h na primeira e na segunda hora, totalizando 20 mL/kg. Solicitar hemograma, sorologia/isolamento viral, transaminases, ureia, creatinina, entre outros conforme necessidade. Reavaliação contínua, internação por no mínimo 48h. Ausência de melhora do hematócrito e/ou do quadro hemodinâmico: repetir expansão volêmica até três vezes. Não melhorando mesmo assim, conduzir como grupo D; Se houver melhora, iniciar fase de manutenção: 25 mL/kg em 6 horas e, mantendo a melhora hemodinâmica e laboratorial, ministrar em seguida 25 ml/kg em 8 horas (sendo 1/3 com SF a 0,9% e 2/3 com SG a 5%). Verificar critérios de alta. GRUPO D: sinais de choque, hemorragia grave, disfunção grave de orgãos. Hidratação venosa com SF 0,9% ou Ringer Lactato 20 mL/Kg em até 20 minutos, podendo repetir até 3 vezes na ausência de melhora; Reavaliar a cada 15-20 min, com hematócrito após 2h Internação em leito de terapia intensiva; Melhora clínica e laboratorial: conduzir como grupo C desde seu início. Ausência de melhora clínica e laboratorial: Hematócrito em ascensão: utilizar expansores plasmáticos (albumina 0,5 – 1 g/kg; na falta dela usar coloides sintéticos 10 ml/kg/hora). Hematócrito em queda com persistência do choque: se presença de hemorragia, deve-se transfundir concentrado de hemácias (10-15 mL/kg/dia). Na presença de coagulopatias, deve- se avaliar a necessidade de plasma fresco (10 mL/kg), vitamina K endovenosa e crioprecipitado (1U para cada 5-10 kg). Hematócrito em queda sem hemorragias ou coagulopatia: se hemodinâmica instável, deve-se investigar desconforto respiratório, sinais de ICC e hiper-hidratação. A conduta nestes casos é diminuir a infusão de líquidos, podendo utilizar drogas vasoativas e diuréticos, se necessário. CRITÉRIOS DE ALTA HOSPITALAR Os pacientes precisam preencher todos os seis critérios a seguir: Estabilização hemodinâmica durante 48 horas. Ausência de febre por 48 horas. Melhora visível do quadro clínico. Hematócrito normal e estável por 24 horas. Plaquetas em elevação e acima de 50.000/mm³. NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA A dengue é uma doença de notificação compulsória. O médico é obrigado a informar ao Ministério da Saúde os casos em que foi confirmada a doença e todos os casos de suspeita. A notificação pode ser feita em 5 categorias diferentes: Suspeita de Dengue; Suspeita de Dengue com sinais de alerta; Suspeita de Dengue Grave; Caso confirmado. Nos primeiros casos notificados, é obrigatório essa confirmação seja feita com base em achados laboratoriais. Nos próximos podem ser baseados em quadro clínico epidemiológico;Caso descartado: precisa de pelo menos 1 dos critérios: Laboratório negativo; Confirmação de outra doença; Sem exames laboratoriais, mas com clínica e epidemiologia compatíveis com outra doença. PEDRO SANTOS – MEDICINA 2021.2 Anexo I
Compartilhar