Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
“Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a terra” dawn of the dead, 1978 um jogo narrativo distópico por john bogéa retropunk publicações 5 Primeira tiragem: Setembro de 2016 ISBN: 978-85-64156-52-4 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem autorização prévia e por escrito da editora e do autor. É permitido a impressão da Ficha de personagem para uso pessoal. Terra Devastada Edição Apocalipse é um jogo narrativo de John Bogéa Design de jogo, textos e projeto gráfico por John Bogéa. Edição editorial por G. Moraes. Revisão de texto por Rafael Sobral. Obrigado, Fabrício Caxias, pela parceria na idealização da primeira edição do Terra Devastada. E também Dorival Moraes e todas as pessoas que contribuiram positivamente nas discussões sobre design de jogo e playtestes embrionários. Obrigado, Fernando Del Angeles e toda a comunidade de fãs, pelo feedback, estímulo e incentivo para desenvolver uma segunda edição do Terra Devastada. Obrigado, Paulo Segundo, Felipe Penna, Yuri Alves (Seth), Leon Mourão e Roberto Barreto (Betão), pelos excelentes e divertidos playtestes de sistema. Obrigado, Talita Weh, Fenanda Cascardo, Marco Milk, Jéssica Tosim, pelo apoio incondicional na campanha de lançamento da Edição Apocalipse, Gabriel Vieira, Raphael Guimarães e Diego Muniz, pela conversão do Podcast Obituário 793 no primeiro cenário oficial de Terra Devastada. o dossiê do fim do mundo, pág 10. o paciente Zero, pág 12. caso kulina, pág 22. projeto acheronte, pág 27. o vírus arn49, pág 35. rede haZma, pág 42. guerra pandêmica, pág 50. sobrevientes e refugiados, pág 58. conceitos, pág 64. resoluções, pág 76. convicção e horror, pág 90. infecção, pág 97. infectados, pág 101. a cruZada pelo inferno, pág 120. regras opcionais, pág 126. a história, pág 128. terror em anhanguera, pág 133. ficha de personagem, pág 165. 7 Obrigado, Adejan Alves Aécio Benício Fernandes Alberto Massoco Ticianelli Alessi Cesar Cavalcante Alex Ribeiro Da Rocha Gomes Alexandre Lins De A. Lima Alexandre Rafael Esperança Alexsandro Teixeira Cuenca Aline Callegario Alisson Vitório De Lima Alvaro Diogenes Bastida Amarilio Silva André Bogaz E Souza André Danelon André David Sitowski André De Freitas David Andre Luis De Oliveira Cruz Andre Luiz De Mello Meirelles Antônio Henrique Melo Cândido Antonio Samuel Paiva Brasil Bruno Augusto Gallo Bruno Da Silva Soares Bruno De Souza Ferreira Bruno Eron Magalhães De Souza Bruno Guedão Bruno Lamps Santana Bruno Maricato Villela Bruno N Pereira Bruno Prosaiko Bruno Santili Caio Andre Fernandes Batista Caio Augusto Da Luz Lima Caio Moya Reis Carlos Alberto G. Da Silva Filho Carlos Pereira Cassiano Sonaglio Cesar Hitos Araujo Cesar Questor Cibelle Barnabé Vernay Cláudio André De Souza Lacerda Claudio Magno De Brito Claudio Torcato Claus Denean Crisitano Henrique Da Silva Cristiano “Leishmaniose” Delira Cristiano Alexandre Moretti Cristovao Andrade Daniel Bezerra Dos Santos Daniel Dias Fragoso Daniel Pellucci Daniel Santos Coimbra Daniella Madureira De Almeida Danilo Rafael Rocha Silva Danilo Shindi Yamakishi Davi Da Silva Almeida Saraiva Davi Nóbrega David Dornelles David Oscar Macedo De Moura Demian Machado Walendorff Derek Stoelting Dido Eliphas Leão De Alencar Diego Augusto De S. Filgueira Diego Hortêncio Santos Diogo Cidral De Lima Diogo Mathias Da Silva Pinto Diogo Nogueira Dorival Ramos Millan Ed Vulcao Eder Da Costa Marques Edney ‘Interney’ Souza Edson Sorrilha Filho Eduardo Fernandes Eduardo Fernandes Eduardo Henrique F. Rosa Eduardo Menescal Eduardo Menescal Eduardo Menescal Eduardo Moretti De Oliveira Eduardo Rafael Miranda Feitoza Emerson Leandro Penerari Emílio De Souza Erivaldo Fernandes (Erivas) Fabiano De Jesus Da Silva Fabio Ayres Fábio Balestro Floriano Fabio Cesar De Carvalho Fabio Ferreira Pauli Fábio Medeiros Fábio Pendiuk Fagner Lima Da Silva Felipe Lomba Felipe Malandrin Felipe Rafael Felipe Ribeiro Cazelli Felipe Rodrigues Pereira Fellipe Martins Fernando “Rardlock” Sousa Fernando Alves De Araújo Filipe “Angelus” Ragazzi Filipe Barreto Gonçalves Flávio Cardoso De Avila Flavio Rodrigo Sacilotto Francis Diego Duarte Almeida Gabriel Franchini Tornatore Gabriel Guedes Souto Gabriel Tomio Geovane Passos Ribeiro Germano Pilar Ribeiro Gilberto José De Souza Coutinho Gilvan José Gouvea Giovanni De Biazzi Giulliano Felipe H. Gonçalves Glauber Henrique F. Da Silva Guilherme Euripedes S. Ferreira Guilherme Korn Guilherme Mathias Vieira Guilherme Oliveira Furutani Guilherme Vieira Honorato Gustavo Borba Gustavo Borges Guto Borges Hebert M. Montarroyos Pinho Hegel Farias Heitor Augusto Helder Lavigne Helio Horacio G. De Alcantara Helio Rodrigues Machado Neto Higor Camara Da Silva Igor Henrique Moura Igor Moreno Igor Philip Salgado F. e Silva Isabella Barros Bellini Leite Iuri Gelbi Silva Londe Ivan Rodrigues Izaack Allan Oliveira C. Paula Jana Bianchi Janice Ferreira Araujo Janio Do Nascimento Lima Jean Servolo Dos Santos Jefferson Breno L. Pereira Jefferson Miranda Pimentel Jefferson Neves 8 Jefferson Tadeu Frias João Coelho Soares João Douglas Moção De Oliveira João Mário Soares Silva João Paulo Gonçales Joao Paulo Navarro Barbosa João Vitor Santiago Jorge Alberto Mota Neves Jorge Dos Santos Valpaços José Augusto Cesar Pires Junior José Emygdio José Guilherme Coelho Saad José Lima Júnior José Rogério Rodrigues De Souza Joycimara Rodrigues Juliano Barbosa Ferraro Julio Cesar Araújo Julio Cezar Silva C. De Toledo Julio França Kaique Borges Kauê Ferro Alves Rodrigues Leandro Fernandes Leandro Raniero Fernandes Leonardo Arcuri Florencio Leonardo Batalha Leonardo Bomfim Leonardo De F. Maciel Vilella Leonardo De Queiroz Ribeiro Leonardo Estevão Da Mota Leonardo Machado Almeida Leonardo Marcelino Vieira Leonardo Silva Martins Livia Von Sucro Luan Ferreira Maurer Lucas Bernardo Monteiro Luciano Souza Luiz Falcão Luiz Garay Ahumada Lyonn Jarrie V. M. Dos Santos Marcelino Zanatta Ribeiro Marcelo De Souza Rocha Marcelo Lacerda De Góes Telles Marcelo Lopes De Queiroga Marco Braga Marcos Araujo Marcos Roberto Rodrigues Marcus Maggioli Marianna Santiago Cunha Lima Mateus Barradas Mateus Eustáquio De Oliveira Mateus Itavo Reis Matheus Kenji Hatanaka Matheus Moraes Maluf Matheus Storpirtis Matheus Wilhelms Tavares Maxwell Araujo Santiago Tavares Michel Engelberg Mikael Macial De Souza Moises Ferrito De Barros Nei Girão Nicholas Ataide Minora Ofidio Nogueira Oscar Borges Lucas Oz Junkieshooter Paulo Arthur Fernandes Paulo César Cipolatt De Oliveira Paulo Ramon N. De Freitas Paulo Roberto Veiga Sousa Paulo Segundo Pedro Gonçalves Pedro Henrique Costa G. Carlos Pedro Lyra Matoso Pedro Moreno Feio De Lemos Pedro Xavier Borges Pensamento Coletivo Péricles Sávio Garcia Marques Rafael Cruz Rafael Gustavo Neves Amon Rafael Marcos Garófalo Rafael Pintar Alevato Rafael Soares Da Silva Rafael Wyse R. Dos Santos Raphael Lima Raphael Sardou Renê Ricardo Richard Arantes Robert Morais Thompson Roberto Silva Levita Roberto Tadashi Wakita Soares Rodrigo Bandeira Rodrigo Graeff Rodrigo Lemão Souza Rodrigo Lopes Da Conceição Rodrigo Maia Rodrigo Martin Branco Rodrigo Nassar Cruz Rodrigo Pontes De Lima Rodrigo Zabridus Romeu Queiroz Fronzaroli Romullo Assis Dos Santos Romulo Jorge Martins Samuel Brulezi Furlanetto Sarradores Do Amanha Saulo Herbert Maia Sérgio Matuda Sérgio Máximo Jr. Silvio Rivera Simone Rolim De Moura Solar Entretenimento Tacio Meireles Oliveira Talita Weh Tanise Gayer Do Amaral Tarcio Luiz Martins Carvalho Thales Rodrigues Silva Carmo Theo Madureira De A. Lima Thiago Da Silva Fagundes Thiago Henrique R. e Silva Thiago Leite Ferreira De Sousa Thiago Lucas Da Silva Thiago Rosa Moreira Tiago Meyer Mendes Tulio C. Gomes Valdir Possani Victor Alexsandro K. Ferreira Victor Fappi Dos Santos Victor Peixoto Pereira Victor R Fernandes Victor Ventura De Souza Vinicius De Oliveira Viny Sampaio De Brito Wagner MorenoSchmitz Wallas Pereira Novo Wellington Pequeno Meirelles William De Mello Otomo Wilsius De Mesquita Norte Alves Winneton Dantas Yago Augusto Soares Lopes, por participarem da campanha de publicação do Terra Devastada Edição Apocalipse. Vocês foram realmente incríveis. John Bogéa. - 9 - - 10 - Ruas desertas, vidraças quebradas, carros abandonados, buracos de balas nas paredes dos prédios, sangue, moscas e pedaços de carne pútrida decorando todo o ambiente. Esse é o atual cenário na maioria das cidades do mundo, locais que hoje são apenas cidades fantasmas totalmente devas- tadas. O silêncio é quebrado apenas pelo gemido e andar trôpego dos infectados pelo Vírus Cerberus, que peram- bulam sem rumo por entre as ruas. Às vezes solitários, às vezes em grandes grupos, eles caçam, matam e os que não são completamente devorados retornam como membros dessas turbas de monstros. É impossível encontrar um lu- gar seguro e esperar que eles simplesmente desapareçam. Eles estão mortos, mas vivos. Alguns deles eram pessoas conhecidas, amigos e parentes, agora são apenas esfome- ados, irracionais e sujos. Criaturas em perfeita harmonia com o novo ambiente desastroso do mundo. Enquanto nós, sobreviventes - humanos - estamos em processo de extinção. Somos o elemento estranho nesse novo bioma. 11 As causas do apocalipse pandêmico nunca foram totalmente esclarecidas, o que temos são apenas teorias, cons- piração, especulações e superstição. Me chamo Karina Lancastre, sou jornalista, nascida em Rondônia e que, até poucas semanas antes do co- meço do fim do mundo, mora- va em Palmas, no Tocantins, onde trabalhava no portal local de notícias. Fui en- caminhada pelo Exérci- to Brasileiro para uma zona de contenção no centro-oeste do Brasil - a Base Anhanguera - assim como vários outros sobre- viventes de vários outros Es- tados, incluindo imigrantes de países vizinhos, como a Bolívia, Argentina, Peru e Colômbia. Estamos em um grupo de mais de mil pessoas em uma área fortemente protegida pelo que sobrou das Forças Armadas Brasilei- ras. Essa talvez seja a maior zona de contenção da América do Sul. Há seis meses venho trabalhando em um dossiê, recolhendo material e fazendo entrevistas sobre os eventos que mudaram completamente a civilização humana, tra- çando um roteiro que re- laciona o apocalipse pan- dêmico com as ativida- des ilegais da Cerberus Lab - uma corporação multinacional gigante da indústria bioquímica, conhecida por sua total falta de ética. Aqui conheci muita gente interessante, gente que esteve envol- vida muito de perto com a verdade sobre os infectados. 12 O Sudão do Sul era um país que tinha acabado de conseguir sua in- dependência, finalmente livre do islamismo radical do Sudão, mas que ainda estava aprendendo a caminhar sozinho econô- mica e culturalmente. Na época, o país sofria com uma guerra civil iniciada pela rivalidade entre o presidente e seu ex-vice, acusado de articular um golpe de Estado. Diversas milícias se uniram a cada lado, com confrontos marcados por massacres de caráter étnico. Isso resultou em uma das mais degradan- tes e emergenciais situações de direi- tos humanos do mundo. O lugar es- tava em uma guerra ferrenha contra si mesmo. Simplesmente não havia respeito algum pela dignidade hu- mana ou direitos civis. Na época, a Organiza- ção das Nações Unidades (ONU) tinha publicado um relatório assustador, afirmando que o governo do Sudão do Sul permitia que combatentes das forças paramilitares aliadas estu- prassem mulheres como parte do salário. A cultura de estupro, que antes era um instrumento de terror e arma de guerra, método usado massivamen- o paciente Zero Depoimento de Átila A. Sales, antropólogo maranhense, membro da “Ordeiros”, uma ONG sediada no Brasil que luta pelos direitos humanos em países subdesenvolvidos. Sales estava em missão na África, investigando surtos de estupros de mulheres e crianças em vilarejos do interior do Sudão do Sul. A missão era engrossar um relatório sobre o caso para recorrer a organizações internacionais 13 te por milícias afiliadas ao Exército Popular de Libertação do Sudão, agora estava oficializada, seguindo a filoso- fia do “façam o que puderem e tomem o que quiserem”. Autorizados pelo governo, os soldados, além de violentarem mulheres (adultas e crianças), destruíam casas, plantações e executavam prisões arbitrárias, como forma de intimidar os grupos políticos de oposição à República. O pior era que a grande maioria das vítimas civis não parecia ser o resultado dos combates, mas de ataques deliberados contra a população inocente. Atrocidades que in- cluíam matanças de formas horrendas: pessoas queimadas vivas, asfixiadas em contêineres, degoladas, castra- das, enforcadas ou cortadas em pe- daços. A Unicef chegou a denunciar abusos e assassinatos de centenas de meninas, além dos sequestros e recrutamentos de meni- 14 nos para serem treinados e inseridos como novos soldados nas milícias. Era comum ver jovens uniformizados e armados com rifles, participando ativamente dos massacres. A ONU montou pouco mais de meia dúzia de bases para refugiados de guerra, todas lotadas rapidamen- te e com mais pessoas chegando aos montes dia após dia. Lembro clara- mente das filas com centenas de fa- mílias esfarrapadas e desesperadas. Fiquei “hospedado” em uma dessas bases. Lá encontrei com meu par- ceiro de missão, um rapaz chamado Oboabona, contato da Ordeiros, con- tratado para me ajudar na viagem pelo interior do Estado como guia, consultor e tradutor. Meu inglês es- tava um pouco enferrujado, mas, apesar do sotaque sudanês confuso (pelo menos para mim), conseguia me comunicar bem com a maioria das pessoas. Nesse sentido, Oboabo- na não teve muito trabalho. Meu objetivo lá era engrossar um relatório daquela situação de crimes de guerra no país, tentando assim justificar intervenções estrangeiras no que estava acontecendo. Comecei visitando algumas comunidades no interior de Jubek e de Rio Yei. Saímos de Juba, viajando dois dias inteiros em uma caminhonete velha por uma estrada de terra batida até chegar a uma comunidade pobre nas extremi- dades do Estado, quase na fronteira do Congo. As denúncias indicavam o lugar como foco dos ataques, e, logo que cheguei, percebi a gravidade dos confli- tos religiosos no local. Meu contato na comu- nidade era o pastor Ja- mes Obi, justamente a pessoa que tinha feito as primeiras denúncias para a Ordeiros. Obi era voluntário nos mo- vimentos sociais contra estupros de crianças e, consequentemen- te, tido como oposição ao governo e inimigo do Estado. Ele recebia constantes ameaças de morte de um grupo terrorista chamado “Culto Ombat- se”. Contou que, no último ataque, o Ombatse invadiu uma escola comuni- tária, sequestrou cerca de 20 crianças e trancou o restante lá dentro. Eles A ONU montou pouco mais de meia dúzia de bases para refugiados de guerra, todas lotadas rapidamente e com mais pessoas chegando aos montes dia após dia. 15 tocaram fogo no prédio... Não houve sobreviventes. Para se ter uma ideia, não havia carroças suficientes para retirar todos os corpos carbonizados. James também disse que, semanas depois do atentado, uma das crianças sequestradas reapareceu. Um menino de nove anos chamado Bakri Omeruo. Ele foi encontrado atônito, caminhan- do perdido em uma estrada desativa- da a quinze quilômetros de sua casa. Estava realmente muito debilitado e, estranhamente, vestido com uma bata hospitalar. O caso desse menino era tão instigante que decidi encontrá-lo, entrevistá-lo e inseri-lo no meu relató- rio. Não fazia ideia de que, na verdade, estava indo encontrar o que talvez fos- se a origem da devastação da Terra. o culto ombatse Ombatse - que significa algo como “o momento final está chegando” ou “o fim do mundo está próximo” - era uma religião nativa difundida apenas pelo povo eggon,que habitava o estado de Nasarawa. Os eggon eram extrema- mente fechados e independentes, não toleravam a presença de outras cren- ças religiosas, possuíam seu próprio dialeto e se relacionavam apenas com membros da própria etnia. Os funda- mentos originais eram tão obscuros, que misturavam vários elementos folclóricos africanos, feitiçaria e ri- tuais sangrentos envolvendo esca- rificações, mutilações e sacrifícios de pessoas que, depois da morte, se tornariam escravos espirituais. Acre- ditavam em uma espécie de arrebata- mento e retorno de forças espirituais tribais poderosas, que iriam causar o fim do mundo. É uma religião total- mente apocalíptica. As primeiras milícias Ombatse eram nigerianas e se autoidentifica- vam como um “culto armado”. Inú- meras células do grupo se espalharam pelo Congo, República do Chade, Su- dão e Sudão do Sul, várias delas total- mente independentes de suas raízes. Aparentemente, as vertentes Ombatse sudanesas eram bem mais violentas e trabalhavam como mercenárias para governos e multinacionais - neste caso específico, suponho que na arrecada- ção forçada de cobaias humanas para testes farmacêuticos da Cerberus Lab. 16 o primeiro infectado Diferente do Sudão, em que a maioria da população é muçulmana, o Sudão do Sul era formado por um misto de cristãos e animistas, o que foi, claro, um dos princi- pais motivos para a separação dos países. O que quero dizer é que era muito comum ouvir histórias sobre espíritos e criaturas que viviam nas árvores ou encravados na terra. Muitas pessoas de fato praticavam o animismo. Quando chegamos na casa da famí- lia de Bakri - uma casinha de barro, nos fundos de um sítio - presenciei a avó do menino, acompanhada do que parecia ser um “conselho de anciãs”, fazendo uma es- pécie de oração enquanto dançavam e batucavam tamborins em ritmo melancólico. A criança estava acorrentada pelo pescoço em uma viga de madeira, com o corpo co- berto por um pano branco, dentro de um círculo de sal, rodeada de ossos, algodão, ovos e pequenos animais mortos com entranhas expostas. Quando me perceberam, calaram imediatamente. Senti o fedor pútrido horrível que exa- 17 quando Oboabona me contou sobre o mito da serpente espiritual Dam- ballah, que é uma espécie de divin- dade senhora dos espíritos, que dá a vida e traz a morte, que, nessa região, também era conhecida por “Zombi”. As mulheres estavam tentando ex- trair o suposto veneno espiritual. A primeira impressão que tive foi que se tratava de um mal chamado “doença do cabeceio”. Já tinha visto ca- sos em diversas famílias de Uganda. Faz a vítima adormecer profunda- mente e, como sonâmbulos, andarem sem destino, reagindo com violência contra quem cruza seu caminho, lu- tando, arranhando e mordendo as pes- soas que tentam detê-las. Não conse- guem despertar nem mesmo sofrendo acidentes graves. Geralmente as mães amarravam os filhos que sofriam des- se mal. E era exatamente o que eu es- tava vendo: uma criança sonâmbula, amarrada e reagindo violentamente à privação. Mas, eu estava enganado. No caso de Bakri, se tratava de algo ainda mais sinistro e indignante. Uma das senhoras me trouxe uma pulseira de identificação, que estava no pulso do menino quando o encon- traram, do mesmo tipo que se usa em lava do corpo do menino, fedor que atraía moscas e outros insetos. Jul- guei ser um caso extremo de necrose gangrenosa. O menino estava fraco, coberto de chagas e com a boca mu- tilada, como se tivesse tentado comer os próprios lábios. Estava totalmente fora de si, sem nenhum sinal de ra- cionalidade, reagindo violentamente a todos que via, atacando com dentadas e arranhões. A avó do menino, que visivelmente estava com os braços cheios de marcas de mordi- das do neto, falava em um dialeto que eu não entendia. Repetia com- pulsivamente “zombi, zombi, zombi...” en- quanto riscava três li- nhas paralelas no chão, tentando ilustrar algo que, até aquele momento, me parecia incompreensível. Fazia mímica com as mãos, pondo três dedos em riste, simulando um tipo de bote de cobra. Interpretei que talvez ela estivesse me avisando que o menino tinha sido envenenado por uma mamba-negra, que era bem comum na região. Foi O menino estava fraco, coberto de chagas e com a boca mutilada, como se tivesse tentado comer os próprios lábios. 18 pacientes de hospital, com um núme- ro de série e a marca da Cerberus Lab - as três linhas paralelas. Foi quando tudo começou a fazer bastante senti- do e eu comecei a ligar os fatos. a cerberus A Cerberus Lab era uma gigante nor- te-americana do setor bioquímico, biotecno- lógico e farmacêutico, três pilares de atuação que eram simboliza- dos por três colunas paralelas, rígidas e afiadas, como armas. Alegoricamente, as três cabeças de Cérbe- ro, da mitologia grega. A personali- dade da corporação fazia jus à semi- ótica de sua marca, agiam de forma impetuosa, com apoio militarizado. Protegiam o teor de suas experiên- cias com a agressividade de cães de guarda. Ao que parece, trabalhavam exclusivamente para as Forças Ar- madas dos EUA. A Cerberus ficou conhecida no mundo - pelo menos entre os grupos de atuação humanitária - como umas das corporações farmacêuticas mais corruptas e antiéticas em atividade. Diversas vezes processada criminal- mente por experiências de medica- mentos com consequências altamente nocivas. Nos anos 1990, durante uma epidemia de meningi- te em Kano, centenas de crianças doentes foram objetos dos tes- tes de uma nova vaci- na que prometia rees- truturar os danos da doença. A Cerberus foi acusada de enga- nar as autoridades lo- cais sobre a segurança dos testes. Não infor- mou às famílias que se tratava de uma droga experimental, mesmo sendo fato que os testes poderiam apresentar efeitos colaterais prejudiciais à saúde a pon- to de ser impróprio para uso huma- no. Alegavam que o estudo clínico da vacina tinha sido aprovado pela comissão de ética do hospital onde os testes se realizaram, afirmando que “o composto estava em seu estado final 19 de desenvolvimento, portan- to, seguro”. Nas regiões onde a Cerberus atuava, não era difícil e nem caro para uma multina- cional subornar as pessoas certas para conseguir as autorizações que precisavam. Infelizmente, era comum que testes ilegais de medicamentos fossem praticados em comunida- des de países mais vulneráveis, como o Sudão do Sul. Usavam hospitais públicos, prisões ou asilos como polos de testes, onde autoridades se mostram particu- larmente corruptíveis. Sequer ha- viam comissões éticas, capazes de exercer fiscalização para garantir a prestação de informações comple- tas aos participantes, que, na maio- ria das vezes, não faziam ideia de que estavam sendo cobaias. O aumento do desenvolvimento de novas drogas exigia um correspon- dente aumento de testes clínicos para conseguir a aprovação das instituições oficiais dos gran- des mercados dos EUA e da Europa. Para cada teste de cada novo medicamento, eram necessários milha- 20 res de voluntários, por isso, alguns laboratórios, como a Cerberus, tes- tavam seus medicamentos primeiro em países subdesenvolvidos da Áfri- ca, da Ásia ou América do Sul, para depois liberar o uso em países de primeiro mundo. Além da economia e da facilidade de se recrutar cobaias humanas, países subdesenvolvidos ofereciam outra vantagem: a rapidez. Enquanto que nos EUA, por vezes, le- vam-se anos para reunir voluntários suficientes para um experimento, em países mais pobres, a população é tão carente de medicamentos, que busca cegamente a oportunidade de receber tratamento médico ou vacinação gra- tuita, reunindo uma quantidade gran- de de voluntários em questão de dias. tráfico de cobaias No momento que peguei naquela pulseira de identificação, tive cer- teza que Bakri tinha sido traficado, vendido pelo Culto Ombatse como cobaia humana para a Cerberus. Já tinha ouvido falarde casos seme- lhantes na Somália e Nigéria. Milí- cias tinham formado um mercado humano gigantesco. Os meninos mais fracos, que não poderiam ser recrutados, eram vendidos como co- baias para testes científicos, enquan- to as meninas, vendidas para redes de prostituição infantil. Pessoas de localidades tão pobres que ninguém se importaria em procurar. Não era como se sumissem crianças brancas em cidades ricas, como Nova Ior- que e Paris, eram crianças de cida- des invisíveis na África, que ninguém sequer ouviu falar antes. Não havia comoção. Ninguém se importava. Eu tinha em mãos uma prova cir- cunstancial que relacionava a Cer- berus ao Culto Ombatse e uma série de crimes. Era algo grande e que faria muito barulho na imprensa. Porém, também sabia que isso me tornava um alvo. a disseminação Algumas semanas depois do meu encontro com Bakri, os familiares e quase todas as pessoas que tiveram contato com ele estavam com os mes- mos sintomas. A coisa foi se multi- 21 plicando por todos os lados, por vá- rias famílias. As pessoas ficaram com medo e começaram a abandonar a comunidade, acreditavam que a do- ença era provocada pela feitiçaria dos Ombatse. Algumas famílias es- condiam seus parentes doentes em outros vi- larejos ou se isolavam em regiões inóspitas. Migravam para outros Estados e até para ou- tros países. Mesmo os que chegavam aos hos- pitais acabavam ficando em leitos isolados, sem possibilidade de trata- mento, simplesmente porque não havia tra- tamento adequado. Ninguém sabia o que era aquilo. A África é um continente difícil, há muita falta de informação e mui- ta superstição, algumas comunidades simplesmente não se abriam para es- trangeiros e, às vezes, nem para comu- nidades vizinhas. E isso contribuiu significativamente para o avanço da contaminação, dificultando o acesso e a contenção dos infectados. Comuniquei o que estava aconte- cendo para a Ordeiros, que avisou a ONU, que avisou a OMS, que, no iní- cio, estranhamente ignorou o caso. No retorno à base da ONU, em Juba, fui abordado por agentes da Cerberus. Não houve diálogo, nem colaboração. Com aval da OMS, con- fiscaram meus documentos, relató- rios e fotos. Passei por horas intermi- náveis de interrogatório e, por pouco, não me mantiveram preso. Eu tinha contatos influentes dentro da ONU que garantiram minha deportação para o Brasil. Algumas famílias escondiam seus parentes doentes em outros vilarejos ou se isolavam em regiões inóspitas. 22 Trabalhei como agente da ABIN por mais de vinte anos antes de pedir meu afastamento e me mudar com mi- nha família para Brasília. Passei toda minha infância e adolescência no sul do Pará e conhecia bem como as coisas fun- cionavam naquela região, desde madeireiras ilegais ao mercado negro de ani- mais silvestres. Acom- panhei de perto diversos conflitos indígenas com intervenções do Estado, par- ticipando, inclusive, de organi- zações ativistas pró-direitos indígenas no Pará e no Amazonas. Na época, re- tornei à região como consultor, convi- dado a trabalhar no Caso Kulina. Pes- Depoimento de Olívio Pamplona, o “Cão de Caça”, paraense que morava em Brasília, agente afastado da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Trabalhou como consultor no caso dos Índios Kulina, acusados de canibalizarem uma equipe inteira de pesquisadores da Cerberus Lab no sudoeste do Amazonas. o caso kulina cadores acusavam vários integrantes de uma aldeia indígena - os Kulina - de supostamente serem praticantes de ca- nibalismo. O caso começou quando agentes do Instituto Brasi- leiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) encontraram uma série de corpos esquartejados, sem órgãos e vísceras, perto da aldeia, dentro do território da reserva, no sudoes- te do Amazonas. Os corpos eram de uma equipe de pesquisa da Cerberus Lab, que trabalhava em um laborató- rio instalado dentro da área florestal 23 dos Kulina. Os pescadores dos rios que cortam a região disseram que os índios tinham devorado todos os pes- quisadores. Viram os índios comendo órgãos, braços e pernas humanas nas beiradas dos rios, deixando a água le- var os pedaços de carne. O caso tinha aterrorizado os moradores de cida- des próximas, que se posicionavam de forma agressiva contra qualquer indígena que circulasse nas estra- das ou áreas de comércio. fatos duvidosos O relatório da Polícia Federal in- formava que os pedaços dos corpos tinham sido encontrados espalhados em uma pequena área de clareira, onde teria acontecido um suposto “banquete ritual” da aldeia. Na verdade, achei um pouco absurdo todos os fatos desse caso. Eu era expe- riente na área, conhecia algumas aldeias, inclusive os Kulina. Não reconhecia esse tipo de costume, nada fazia sentido. Acio- nei um amigo de infância, que na época era diretor da OPAN - uma ONG de indi- genistas especialistas na Amazônia nativa 24 - que declarou em várias entrevistas na mídia local, que o canibalismo não era uma característica da cultura dos índios Kulina, esse seria um fato inédito. Eles não eram antropofági- cos. Aliás, apenas nos primórdios das tribos Tupinambás e Aruaques havia o costume de comer carne humana. Isso já não acontecia mais em nenhu- ma etnia indígena amazônica. Os Ku- lina eram uma tribo colérica em vários sentidos, mas não tinham nenhuma tendência ao cani- balismo e, mesmo se houvesse um caso desse tipo, a própria tribo expulsaria o indivíduo do conví- vio. Como a legislação brasileira proíbe qualquer tipo de investigação em tribos indígenas, impedindo a en- trada em aldeias sem autorização devidamente aprovada pela FUNAI, o caso nunca avançou. Além disso, por conta das acusações e retaliação da população, a aldeia migrou para locais fechados da floresta amazôni- ca, dificultando ainda mais as apu- rações do caso. Um comportamento esperado, geralmente algumas tribos mais puristas se isolam na floresta de- pois de contatos ruins com o homem branco. Na época, a FUNAI adotava a política de respeitar essa escolha dos índios, tentando garantir que eles per- manecessem isolados, só intervindo quando surgisse alguma ameaça à so- brevivência ou à preservação da tribo. pesQuisa ilegal Não era o caso de assassinato an- tropofágico que interessava à ABIN, isso era um trabalho para a Polícia Federal. A nossa missão nesse caso era apurar os fatos periféricos que or- bitavam tudo aquilo. A Cerberus Lab nunca se pronunciou sobre o caso, era como se eles não se importassem com as mortes dos cientistas ou simples- mente não quisessem se expor. Tem- pos depois, descobrimos que a insta- lação da Cerberus na reserva Kulina era totalmente ilegal, revelando um Eles não eram antropofágicos. Aliás, apenas nos primórdios das tribos Tupinambás e Aruaques havia o costume de comer carne humana. 25 esquema enorme de corrupção en- volvendo deputados estaduais e fede- rais, além de autoridades da FUNAI e IBAMA, que aceitaram propinas milionárias em troca da facilitação da instalação de inúmeros polos científi- cos em áreas protegidas do Amazonas. Infelizmente, às vezes, ilegalmente, empresas de cosméticos e produtos farmacêuticos usa- vam a fauna e flora amazônica como fonte de matéria -prima para desen- volver produtos. As corporações investiam à revelia dos governos, que mal sabiam como lidar com essa in- dústria e com a ex- ploração de comu- nidades indígenas. Um dos acusados, funcionário de alta confiança do IBAMA, confessou sob interrogatório que foi pressiona- do pelo governo do Estado a dar co- bertura a um “ensaio terapêutico” da Cerberus, que não respeitava mini- mamente as normas e os cânones exi- gidos pelos protocolos internacionais de segurança médica, muito menos a legislação brasileira, praticando uma violação terrível dos direitos huma- nos e indígenas. A ABIN sabia da péssima repu- tação da Cerberus Lab e as práticas agressivas de exploração. O envolvi-mento da corporação no caso Kulina acendeu um sinal de alerta na agên- cia. Suspeitávamos também que o governo dos EUA estava financiando tudo, o que tornava o esquema cor- rupto um caso de conspiração inter- nacional. Sabíamos também que a Cerberus agia com total aval da OMS por influência direta das Forças Ar- madas norte-americanas, o que nos levou a crer que talvez se tratasse de uma experiência militar em fase de pesquisa - talvez desenvolvimento de drogas adrenergéticas. Quando vas- culhamos a instalação da Cerberus, na antiga aldeia Kulina, encontramos centenas de documentações e catalo- gações sobre a flora e fauna locais, en- volvendo toxinas vegetais e animais, além de realizações de experimentos em inúmeras espécies de sapos, plan- tas e insetos. Faziam testes químicos em volun- tários Kulina, em troca de recursos Faziam testes químicos em voluntários Kulina, em troca de recursos para a aldeia, como geradores de luz e ferramentas para agricultura. 26 para a aldeia, como geradores de luz e ferramentas para agricultura. Havia muito sangue no lugar, sinais de com- bate e centenas de arquivos sobre ma- peamento cerebral e sistema nervoso. Meu palpite é que os testes detonaram a cabeça dos voluntários, despertando um tipo de surto esquizofrênico e an- tropofágico nos pacientes. Atacaram os cientistas, devorando-os, espalhan- do os pedaços pelas proximidades da aldeia. Depois do acontecido, talvez os Kulina voluntários tenham sido escondidos pela aldeia, levados para lugares distantes na floresta ou sim- plesmente fugiram sem rumo. Arquivamos o caso por falta de articulação nacional e internacio- nal e desinteresse governamental em cutucar uma poderosa da indústria bioquímica, como a Cerberus. Todo o esquema de corrupção permaneceu oculto e sem nenhuma providência. 27 Na época, o Haiti era “o lugar onde o diabo tirava férias”, nunca se recuperou totalmente do imperialismo francês e exploração oportunista de ou- tros países, além disso, sofria com um longo histórico de conflitos entre grupos re- beldes paramilitares. Pro- blemas que nunca permi- tiram que o país crescesse ou se educasse de forma satisfatória. Tinha o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Américas, era visivelmente o país mais subde- senvolvido deste lado do planeta e, de- pois do terremoto de 2010, que devas- tou o lugar, matando milhares de pes- soas, a maioria esmagadora da popu- lação sobrevivente passou a viver abaixo da linha da miséria. A ONU, que ficou responsá- vel por coordenar a ajuda humanitária, considerou -o como o maior desastre natural que já enfrentou, maior ainda que a tsuna- mi na Ásia no fim de 2004, pois no Haiti restaram pou- cas estruturas locais para canali- zar a ajuda estrangeira. A maioria das cidades quase foi riscada do mapa. Depoimento de Jorge M. Sampaio, o “O Prefeito”, goiano, ex-general de brigada do Comando de Operações Especiais da FAB, participou da operação de pacificação de Porto Príncipe, na missão MINUSTAH - Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, combatendo forças paramilitares revolucionárias. Acabou descobrindo um esquema conspiratório militar envolvendo a Cerberus Lab e as Forças Armadas Norte-Americanas, que mantinham polos de pesquisa científica ilegais no país. o projeto acheronte 28 A FAB, em uma ação combinada com a ONU, estava mantendo uma espécie de ponte aérea entre a base da aeronáutica do Rio de Janeiro e o ae- roporto de Porto Príncipe. O Gabinete de Crise do Governo Federal do Brasil, que coordenava boa parte das ações de ajuda na América do Sul, tinha auto- rizado o envio de vários aviões com equipes médicas, alimentos e remédios para atender as vítimas da tragédia. A FAdH - Forças Armadas do Haiti - foi extinta em 1995 para tentar evitar a repetição dos frequentes golpes mili- tares e assim, teoricamente, preservar a democracia no país. No entanto, os ex-soldados se mobilizaram de forma independente, criando diversas milí- cias fortemente armadas. Atacavam e destruíam delegacias de polícia e se- cretarias municipais em todo o país para assumir o controle de uma série de cidades e vilas. Eram cerca de quin- ze mil homens ocupando bases aban- donadas do antigo exército, reivin- dicando a volta das forças militares, pensões e a retirada das tropas estran- geiras do país. A MINUSTAH era uma missão de paz criada pelo Conselho de Segurança da ONU, em 2004, para restaurar a or- dem no Haiti. O objetivo era estabili- zar o país, pacificar e desarmar grupos guerrilheiros, promover eleições livres e retomar o desenvolvimento institu- cional e econômico. No entanto, movi- mentos revolucionários de Porto Prín- cipe organizavam inúmeras manifes- tações agressivas contra a intervenção da ONU. A missão tinha sido acusada de colaborar com a repressão, a cor- rupção e a epidemia de cólera de 2010 - soldados nepaleses doentes acabaram contaminando o Rio Artibonite, con- tribuindo para a disseminação da do- ença que tinha sido erradicada do país há séculos. Os meios locais de impren- sa também apoiavam os paramilitares e seus aliados, criando uma antipatia ferrenha entre a população e as tropas estrangeiras que chegavam ao país. vodu e magia negra Em geral, os haitianos são pratican- tes de vodu, mesmo os de orientação cristã. O misticismo do Caribe é consi- derado tabu pela maior parte do mun- do ocidental e, na verdade, pouco tem de relação com bonequinhos de pano perfurados por agulhas. O vodu haitia- 29 no tem raízes africanas, chegou lá na época dos escravos. É, superfi- cialmente, um misto esquisito de catolicismo - imposto pelos co- lonizadores franceses - e paga- nismo africano. Raras vertentes do vodu são tão agressivas e ra- dicais que, quando viajávamos pelo interior do país, em certas estradas, recolhíamos cadáveres com os abdomens retalhados e olhos arrancados, vítimas de sa- cerdotes voduístas bokors, em ri- tuais de magia negra. Lembro que, certa vez, participamos de uma operação de resgate de um grupo de noviças italianas re- fém de um culto vodu militari- zado e violento. As encontramos mortas, empaladas, suspensas em estacas, expostas ao longo da es- trada, como um tipo de aviso para intimidar intervenções estrangeiras. o mito do Zumbi Não eram os rituais sangrentos que realmente assustavam as tropas, mas o mito do escravo zumbi, a supos- 30 ta transformação de um ser humano em morto-vivo por meio de feiti- çaria vodu. A crença era de que um sacerdote bokor era capaz de roubar o bonange de uma pessoa - sua alma - usando uma poção mágica chamada pó-de-zumbi. O medo de zumbis no Haiti é histórico, tratado com tanta seriedade que nos anos 1930 foi cria- da uma lei que condenava a criação de zumbis. Um dos artigos do Código Penal Haitiano classifica o uso do pó- de-zumbi como tentativa de assassina- to, se a substância causar aparência de morte e resultar no enterro da vítima, o ato era classificado como assassina- to. De fato, essas poções existiam, en- contramos muitos frascos em diversas missões e invasões de terreiros. As análises de laboratório do pó- de-zumbi indicavam uma composição química bastante curiosa, entre as substâncias, havia diversas neurotoxi- nas encontradas em espécies de plan- tas da região. O pó inalado ou ingerido por seres humanos levava a um estado letárgico de quase morte, funcionando como um tipo primitivo de lobotomia química. Qualquer pessoa nesse estado se torna totalmente sugestionável e in- capaz de reagir a dor ou cansaço. projeto acheronte Estávamos levando remédios para a região norte, além dos limites de Porto Príncipe, para um vilarejo pró- ximo a Fond Diable, que sofria de um surto de malária. Os habitantes nos receberam com total antipatia, alguns chegavam a gritar nos mandando em- bora. Eles estavam zangados e com medo, rejeitaram nossos remédios e se negavam a falar conosco. No en- tanto uma senhora chamada Mama Adonia, ex-enfermeirado Hospital Geral de Porto Príncipe, herbalis- ta e dona de um terreiro vodu, im- pressionantemente culta e bastante influente naquela comunidade, acei- tou dialogar conosco. Nos falou que os últimos soldados que apareceram no vilarejo para oferecer remédios só tinham trazido desgraças. Prome- teram ajuda médica, internaram os jovens, fizeram experimentos neles, privando-os de sair ou mesmo falar com os familiares. Adonia nos levou para o meio da mata, a uma instalação laboratorial abandonada, dentro de uma região de culto voduísta. Dizia que, na época, a comunidade recebia ajuda de tropas 31 norte-americanas, incluindo clínicas móveis da Cerberus Lab. Vasculhando as instalações, des- cobrimos documentos que intitula- vam a atividade como Projeto Ache- ronte. Contudo não ficou claro sobre o que, de fato, se tratava esse projeto. Depois que chequei as listas oficiais de tropas voluntárias em missões médicas no país, não encontrei nenhum re- gistro sobre a Cerberus, o que me levou a con- cluir que era uma ação totalmente clandestina. Segundo Adonia, quando os agentes abandonaram as insta- lações, levaram todos os pacientes embora. Nunca mais souberam de nada sobre essas pessoas, com exceção de um rapaz chamado Cedric Nar- cisse, que fugiu da privação e passou semanas escondido no terreiro. Ele estava doente, física e psicologica- mente. Apresentava febre, muita dor muscular e formigamento intenso na pele, a ponto de precisarem amarrar Ele acordou dentro do caixão. Com um esforço sobre-humano conseguiu quebrar a madeira e cavar a terra fofa para a superfície. suas mãos para que ele não coçasse até rasgar a carne. Tinha extrema di- ficuldade para respirar. Acabou morrendo em agonia an- tes mesmo de ser levado a um hos- pital. Teve um velório breve e um enterro humilde no cemitério local, cerca de dois quilômetros ao sul da comunidade. Semanas depois, inex- plicavelmente, ele acordou dentro do caixão. Com um esforço sobre-hu- mano conseguiu quebrar a madeira e cavar a terra fofa para a superfície. Vagou semanas na mata, completa- mente atônito, sem rumo, sem água ou comida, até encontrar uma estra- da e instintivamente seguir por ela. Foi reconhecido pelos moradores da comunidade, que o resgataram e levaram para sua casa. Narcisse se comunicava com dificuldade, sem conseguir explicar com detalhes o que tinha acontecido e como tinha chegado até ali. Mas, apesar de tudo, conseguia responder a perguntas pes- soais suficientes para que se confir- masse que ele era, de fato, o homem que enterraram tempos atrás e que tinha voltado dos mortos. Depois de um tempo, sofria com alucinações constantes e comportamento vio- 32 lento, apresentando claros sinais de insanidade. O encaminharam para tratamento médico em Porto Prín- cipe e posteriormente para um Asilo Manicomial. doença misteriosa Encontrei facilmente o manicômio em que Narcisse estava internado. Assim que entrei no pátio principal da instituição, dezenas de pessoas sujas, de cabelos desgrenhados e cor- pos esquálidos me cercaram. Alguns vestiam uniformes esfarrapados, ti- nham evidentes doenças de pele e pés descalços. Muitos, porém, estavam completamente nus. Pacientes sem supervisão bebendo água do esgoto que jorrava sobre o pátio. Nas banhei- ras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Presenciei o momento em que os alimentos eram jogados no chão como se fossem servidos a ani- mais. O cheiro era detestável. O cená- rio deprimente e indignante, comum de manicômios públicos, era ainda pior naquele momento de crise. Narcisse estava isolado, era um pa- ciente singular e recebia atenção espe- cial dos médicos e psiquiatras. Ficava em um quarto úmido nos fundos, com grades grossas nas portas e janelas. Ele era agressivo e, constantemen- te, tentava arrancar a própria carne com as unhas, motivo pelo qual pas- sava a maior parte do tempo preso em uma camisa de força refor- çada com correntes. Também foi flagrado inúmeras vezes se ali- mentando de ratos ou pombas vivas que por acaso entravam em seu quarto, obrigando os enfermeiros a tapa- rem sua boca com um tipo de mordaça feita de gazes. Ele também apresentava uma série de deformidades cor- porais, como tumores e crescimento desor- denado dos músculos, provavelmente efei- tos colaterais resultantes dos testes bioquímicos. Estava completamente cego, com os olhos embranquecidos e secos. Tinha surtos extremos de es- quizofrenia paranóica e, nos raros mo- mentos de lucidez, falava sobre como Ele era agressivo e, constantemente, tentava arrancar a própria carne com as unhas, motivo pelo qual passava a maior parte do tempo preso em uma camisa de força reforçada com correntes. 33 perdeu o controle sobre si mesmo e como ficou completamente escra- vizado depois que injetaram nele as vacinas. Quando perguntei se ele sabia algo sobre Acheronte, ficava aterrorizado só de ouvir a palavra, absolutamente perturbado e intros- pectivo. Às vezes, deixava escapar frases desconexas sobre a criação de algo grande e perigoso demais, um tipo de arma venenosa criada pela ciência deles. O médico de Narcisse, respon- sável por suas análises clínicas, fez questão de me acompanhar. Era um homem sensato e me- tódico, que tratava o caso com clara perplexidade. Contou que Narcisse apresentava um estado de saúde bizar- ro, difícil de compreender com o nível de tecnologia que ele tinha disponível. Com exames básicos, pode- ria se identificar claramente um estado de contaminação viral, algo parecido com ra- bies virus, mas pior e mais ele- gante, talvez um tipo de vírus da raiva nunca antes catalogado. Além disso, ele apresentava traços 34 de envenenamento por tetrodotoxina da datura stramonium, uma planta co- nhecida localmente por zabumba, com fortes substâncias psicoativas, anesté- sicas e alucinógenas, que tornava as pessoas totalmente sugestionáveis, como um tipo de máquina humana induzível que ignorava os limites do próprio corpo - justamente um dos elementos do pó-de-zumbi, mas, nessa versão, alterada em laboratório para que os efeitos fossem nivelados e con- troláveis. Ele conhecia bem os tóxicos das poções vodu, era um dos maiores especialistas do país nesse quesito e, contratado inúmeras vezes como con- sultor por empresas farmacêuticas es- trangeiras, incluindo a Cerberus Lab. Mas nunca participou ativamente de nenhum projeto. O desafio dele esta- va em compreender como as caracte- rísticas tóxicas de uma planta foram mimetizadas na cepa de um vírus. Infelizmente, não contava com uma equipe experiente e nem recursos para levar adiante uma pesquisa tão complexa quanto essa. Mandei um relatório sobre isso para meus superiores, pedindo encarecida- mente para que a ONU ou Organiza- ção Mundial da Saúde (OMS) fossem informadas e tomassem as devidas atitudes. Como resposta, fui boico- tado. Me deportaram de volta para o Brasil e me afastaram do meu posto. Abandonei completamente as inves- tigações sobre o Projeto Acheronte e me obriguei a não pensar mais sobre isso até este momento. 35 Trabalhei mais de um ano em uma comunidade carente a oeste de Pe- quim, como chefe de um laboratório de infectologia. Na época estu- dávamos o H5N1 - o mundo tinha acabado de passar pelo surto de gripe aviá- ria - e pelo menos vinte casos de Influenza ain- da estavam sob nossa observação. Foi quando começamos a receber co- municados do Ministério de Saúde sobre uma nova supergri- pe que se espalhava em vastas áreas do território chinês. Os sintomas eram similares aos do vírus da raiva, porém espalhava-se rápido como uma gripe superpotente. Ouvíamos falar de cida- des inteiras contaminadas e centenas de pessoas morrendo rapida- mente. Quando os moradores da comunidade onde está- vamos começaram a ter os sintomas, iniciamos ime- diatamente o processo de pesquisa. Os corpos apre- sentavam um tipo de ne- crose crônica que afetavao sistema nervoso e fazia os pacientes perderem totalmen- te a sanidade, agindo como animais selvagens antropofágicos. Os infecta- dos literalmente pulavam das macas Depoimento de Lionel Veloso, patologista, nascido em Minas Gerais, especialista em infectologia e bacteriologia. Filiado a CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha). Trabalhava como voluntário em comunidades carentes no interior da China pouco antes da explosão pandêmica. Viu de perto a evolução descontrolada da doença e chegou a participar do primeiro grupo de pesquisadores a tentar compreender os sintomas e possíveis causas, na tentativa de desenvolver algum tipo de cura. o vírus arn49 36 e atacavam os enfermeiros, devoran- do-os vivos, como se estivessem esfo- meados. Os enfermeiros que tinham sido feridos por mordidas e arranhões passavam pelo mesmo processo de infecção e logo também se tornavam monstros. Nenhum tipo de contato era eficaz, não entendiam o que dizí- amos e não conseguiam desenvolver nenhum tipo de comunicação. Quan- do a situação ficou fora de controle, os militares transportaram nosso labora- tório para Pequim. Durante a viagem, o governo de- cretou estado de calamidade pública, fechando as fronteiras do país na ten- tativa de evitar que a doença se espa- lhasse. Inúmeras zonas de quarentena e diversos centros de tratamento fo- ram instalados, mesmo sendo impos- sível conter todas as evasões pelas es- tradas, aeroportos e vias clandestinas. Nos juntamos a agentes de interven- ção da Cerberus Lab, acompanhados de soldados chineses. Presenciamos a execução de medidas de contenção radicais - a nível desumano - na tenta- tiva de controle de contágio. Sempre que identificavam um foco da doen- ça em alguma comunidade, isolavam as pessoas em zonas de quarentena sem dar muitas explicações. A popu- lação obviamente ficou desesperada, reagindo de forma agressiva. Os mé- dicos, trajando equipamentos anti- contaminação especiais, procuravam sinais de infecção em cada pessoa. Os soldados mantinham prontidão, rea- gindo violentamente ao mínimo sinal de qualquer revol- ta popular. Vi muita gente inocente morrer ao se rebelar contra as intervenções. Quando uma pes- soa apresentava qual- quer indício de conta- minação, era encami- nhada para a capital e de lá para centros de pesquisa avançada para serem estudados, não como pacientes, mas como cobaias. Os que apresentavam sintomas graves eram imediatamen- te executados com tiros na cabeça e depois cremados em enormes fo- gueiras ao ar livre, chamadas de “for- nos”, cuja fumaça podia ser avistada a quilômetros de distância — esse era o sinal que a população das ci- Os que apresentavam sintomas graves eram imediatamente executados com tiros na cabeça e depois cremados em enormes fogueiras... 37 dades próximas tinha para fugir o mais rápido possível. Essa opera- ção da Cerberus foi desastrosa, transformou tudo em um caos ainda maior, assustando e afu- gentando as pessoas, violando todo e qualquer conceito a res- peito de direitos humanos. A reputação da corporação, que já era ruim, ficou péssima. Era ób- vio que não conseguiriam con- ter o avanço da doença. Além disso, essa atitude fez com que as famílias carregassem seus do- entes para longe de hospitais ou centros de ajuda governamental. Fez com que as famílias fossem para bem longe, contribuindo para o espalhamento da peste para o país inteiro. explosão pandêmica Diferente de outros lugares, qualquer doença infeccio- sa na China se espalhava vertiginosamente rápido. Era o país mais populoso do mundo, com quase um 38 bilhão e meio de habitantes, prati- camente um quinto da população da Terra morava lá. As cidades eram su- perpopulosas e uma parcela delas com sistemas sanitários precários. A po- luição urbana em algumas metrópoles era tão absurda, que causava proble- mas congênitos em bebês, forçando os habitantes a usar diariamente más- caras de proteção respiratória. Além disso, uma maioria de chineses tinha, culturalmente, péssimos hábitos em relação à higiene pessoal e alimenta- ção, o que às vezes tornava as cidades verdadeiros criadouros de vírus, fun- gos e bactérias. Para ter um panorama ainda melhor sobre a relação da Chi- na com doenças infecciosas, quando comecei meu trabalho voluntário pela CICV, a Comissão Chinesa de Saúde e Planejamento Familiar comunicava a morte de quase vinte mil pessoas por doenças infecciosas na parte conti- nental, um total de mais de seis mi- lhões de casos de doenças contagiosas só nessa área. Entre os casos, mais de três milhões foram classificados como doenças contagiosas de classe A ou B, como AIDS, tuberculose, raiva, hepatite, febre hemorrágica, sífilis, disenteria e gonorreia. Lá, as doen- ças infecciosas eram classificadas em três categorias: classe A, onde está a cólera, classe B, onde estão listadas 25 moléstias, como hepatite viral, e clas- se C, onde inclui dez tipos de doen- ças, entre os quais, está a gripe. Digo essas coisas apenas para se ter uma ideia geral de como a China era um barril de pólvo- ra quando se tratava de epidemias. Tudo lá, nesse sentido, era mais difícil de con- trolar, mesmo quan- do se conhecia os mé- todos mais eficazes de contenção. Com o tempo, fi- camos sabendo que quase todos os paí- ses entre lá e a África apresentavam sinais da doença, principal- mente a Arábia Saudi- ta, Irã, Afeganistão e Índia, mas foi na China que a doença realmente explodiu e, em poucas se- manas, espalhou-se pelo mundo in- teiro, devastando a Terra. A China era um barril de pólvora quando se tratava de epidemias. Tudo lá, nesse sentido, era mais difícil de controlar, mesmo quando se conhecia os métodos mais eficazes de contenção. 39 virose arn49 Quando cheguei a Pequim, fui de- signado para integrar uma equipe de cientistas responsável por estudar a fundo as causas e origem da epidemia, em parceria forçada com cientistas da Cerberus - que na verdade, agiam como nossos supervisores. Logo nos primeiros testes, des- cobrimos que se tratava de um vírus violento, único e praticamente indes- trutível. Algo elegante, letal e alta- mente contagioso. Partimos do pres- suposto que a doença poderia ser um caso massivo de contato com toxinas alcaloides ou um novo tipo de lyssavi- rus, ainda mais violento e contagioso. Essa teoria parecia fazer sentido, já que a causa da doença era justamen- te quando o vírus se instalava nos nervos periféricos, depois no sistema nervoso central e dali para as glându- las salivares, de onde se multiplicava e propagava através da saliva, conta- minando as pessoas por mordedura ou simplesmente salivando em feri- das abertas. Os estágios de infecção eram exa- tamente os mesmos em todos os ca- sos, seja em animais ou humanos, variando apenas o tempo do avanço da doença. O vírus deixava o paciente com febre alta, redução de frequência cardíaca e surtos de insanidade, fa- zendo-o agonizar até a morte. Depois de morto, um efeito único e quase in- compreensível reiniciava o cérebro, dando “vida” novamente ao corpo. Os mapeamentos cerebrais revelavam que o tronco encefálico passava por uma mutação, convertendo-se em um tipo de bateria adrenergética que man- dava impulsos tão poderosos ao longo do corpo que reanimava o cadáver, dispensando o funcionamento dos demais órgãos. Todas as outras regi- ões do cérebro permaneciam desliga- das, restando apenas os controles mo- tores básicos e alguns instintos primi- tivos. Não restava sequer o senso de autopreservação ou noção dos limites do corpo. Um infectado poderia, por exemplo, caminhar incessantemente até os músculos das pernas explodi- rem e ele sequer teria noção do que estava acontecendo. Inicialmente chamamos a doença de virose ARN49. E quanto mais es- tudávamos sobre, mais parecia uma versão agressiva do vírus da raiva, 40 com uma trama ge- nética extremamente complexa e impossível de ser compreendida em tão pouco tempo.E por mais assertiva que fossem nossas teorias, nenhum exame confirmava nos- sas suposições, aliás, ne- nhum exame apresen- tava qualquer cepa que conhecêssemos c o m p l e t a m e n t e . Aquilo não era algo natural, não perten- cia a nenhuma linha lógica evolutiva. Era como se tivesse sido produzido em laborató- rio, uma cria bastarda e modificada para se tornar letal e indestrutível, como uma arma, o que nos levou a desconfiar do interesse da Cer- berus em nos deixar acuados e monitorados. As teorias de internet, de- núncias, acusações, processos e especulações a respeito do en- volvimento da Cerberus - que to- dos nós conhecíamos como corpo- 41 ração de interesse militar - se torna- vam tão evidentes que começamos a criar arquivos fantasmas que apenas nós tínhamos acesso. Infelizmente, todo esse material se perdeu na eva- cuação da cidade. composto garanus Chegamos a iniciar o processo de desenvolvimento de um soro que pu- desse reverter os sintomas do vírus. Chamamos o projeto de Soro KVR13, o Composto Garanus. Permanecemos trabalhando incessantemente, anali- sando dezenas de infectados, tentan- do entender ainda mais como o vírus funcionava e evoluía. Mas imagine males mais conhecidos, como o cân- cer, AIDS ou mesmo uma simples gri- pe, todos levaram muito tempo para que pesquisadores encontrassem um tratamento básico para minimizar os sintomas, precisaríamos de dez vezes mais tempo e conhecimento para fa- zer o mesmo com o ARN49. Quando a China perdeu todas as frentes de resistência, os agentes da Cerberus levaram nossos compu- tadores, espécimes e todo material de pesquisa. Fomos roubados e não podíamos fazer nada. Fui comple- tamente desligado da CICV e man- dado de volta para o Brasil. A Cer- berus assumiu o desenvolvimento do Garanus, mas nunca chegaram a concluir - ou pelo menos nunca di- vulgaram a conclusão. 42 Depoimento de Diego Xavier, o “Die-X”, paulista, estudante de cinema que residia em Nova Iorque. Era estagiário de Edição de Vídeo na CNN Internacional e colaborador ativo da Rede Hazma, o principal portal de internet de mídia audivisual independente sobre o apocalipse pandêmico. Na CNN integrava a equipe responsável por maquiar as notícias relacionadas a epidemia, sob ordens diretas da Time Warner, que, segundo boatos, estava sendo coagida por “autoridades governamentais discretas” direto de Washington. a rede haZma Eu tinha saído de São Paulo para estudar cinema em Nova Iorque e acabei conseguindo um estágio na CNN como editor de ví- deo. Meu trabalho era ba- sicamente fazer a triagem do material audiovisual que chegava dos estú- dios correspondentes internacionais e encami- nhar para a ilha de edição, para ser analisado. A CNN tinha dezenas de correspon- dentes no mundo todo, eu era da equipe que cuidava do que chegava da Ásia e Oriente Médio. As notícias eram exatamente as mesmas: “A epi- demia de uma nova supergripe chinesa se espalha do outro lado do mun- do”. A doença já tinha ma- tado milhares de pessoas em poucos dias e estava disseminando vertigi- nosamente rápido. Na época, os cientistas acre- ditavam que era um tipo de fusão agressiva entre o vírus da raiva e meningite, mas não existia nenhuma base clara pra essa informação, eram ape- las especulações de biólogos e médi- cos que eram divulgadas como fatos 43 comprovados. Os produtores arran- jaram até um grupo de virologistas para corroborarem com o discur- so dos redatores do jornal, além de uma declaração oficial da assessoria de imprensa da OMS, que explicava os pormenores a respeito do vírus ARN49 e o desenvolvimento de uma vacina pela Cerberus Lab. O problema é que nós sabíamos que aquilo era falso, te- atro televisivo para não alarmar a po- pulação. Os grandes canais de notícias omitiam muita infor- mação e criavam no- tícias otimistas sobre o desenvolvimento de uma cura. No entan- to, tínhamos acesso ao material bruto antes dos editores e sabíamos que a Cerberus não estava tendo sucesso em nenhum teste de regressão de sintomas. Além disso, pelo menos nos fóruns de internet, a Cerberus era justamente o laborató- rio acusado de criar o vírus, tentando consertar o desastre que cometeu. Depois do 11 de setembro, os norte -americanos se tornaram ainda mais paranoicos e melindrosos. O gover- no tentava constantemente recriar a imagem de país indestrutível para o resto do mundo. Além disso, a ideia de nação intocável, temida e protegida de todo o mal, acalmava os cidadãos, inspirava nacionalismo e fortalecia a influência política. Era inadmis- sível acreditar que o mundo estava acabando e que os EUA não podiam fazer nada. Que as forças armadas, ditas mais poderosas do mundo, es- tavam em pleno declínio. A ordem no estúdio era que: se não estivés- semos ganhando a guerra contra os infectados, pelo menos diríamos o contrário na mídia e evitaríamos o caos generalizado. O teor das notícias passava para os telespectadores a sensação de que as coisas estavam difíceis, mas que ain- da poderíamos manter o controle e reverter o problema. Estávamos deli- beradamente despreparando a popu- lação para o pior. Deixando todos cal- mos e sentados em seus sofás, quan- do deveríamos ter dito para fugirem para o mais longe possível dos cen- tros urbanos. Cada frame era anali- Os grandes canais de notícias omitiam muita informação e criavam notícias otimistas sobre o desenvolvimento de uma cura. 44 sado e editado apenas pela equipe em que eu estagiava, com coordenadores de alta confiança da Time Warner e supervisão constante de uns engrava- tados do governo, que respondiam di- reto a Washington DC. Inicialmente, julguei serem da NSA - Agência de Segurança Nacional dos EUA. Antes de tudo isso, eu já era cola- borador da Hazma e simplesmente não podia continuar contido diante da- quele circo. Apesar de todo o cuidado com a segurança, teor e formato em que as notícias eram divulgadas, acabei me tornando um tipo de traficante de mídia dentro da CNN, vazando uma informação ou outra à qual tinha acesso, como en- trevistas censuradas de diretores da Cerberus, contaminação de celebri- dades e líderes políticos, a corrente de suicídios no Vaticano, entre ou- tras coisas proibidas que ninguém jamais ficaria sabendo. o domínio da haZma A Rede Hazma foi uma comuni- dade virtual - originalmente israelita - de jornalistas independentes, hacke- rs, ativistas e colaboradores voluntá- rios, como eu. Funcionava como uma rede anarquista de compartilhamento audiovisual na de- epnet, disponibili- zando publicamen- te toda e qualquer mídia relativa aos eventos do apocalip- se pandêmico - de vídeos a cópias de documentos con- fidenciais. Havia também uma série gigante de fóruns de discussão, hospeda- dos na própria Haz- ma e em inúmeros outros sites apoiadores na internet convencional, de onde brotavam inú- meras teorias. A Hazma desmentia constante- mente as notícias dos grandes canais de comunicação. Foi, ironicamente, o portal de informações mais confiá- vel nos últimos dias da Terra. A rede 45 sabia, por exemplo, que a origem não tinha sido na China, como divulga- vam os jornais em todo o mundo. Era possível traçar todo o caminho do ví- rus baseado apenas na timeline das mídias postadas, uma rota que come- çava na África, passando pelo Oriente Médio, até a Ásia, depois Europa e, de lá, todo o mundo. Um dos primei- ros vídeos postados sobre isso foi o de um homem que fil- mava uma criança - aparentemente sua filha - brincando em uma praça qualquer de Tel Aviv, quando, de repente, o clima afetivo é quebrado por uma correria descontrolada ao fundo. Pessoas gri- tavam perseguidas por outras pessoas. O pai larga a câme- ra e corre para pegar sua filha, mas é derrubado e canibalizado na frente da criança, que segundos depois também é atacada. O vídeo foi postado na Haz- ma com o título “Apocalipse Zumbi”. Em menos de 24 horas já contabiliza-vam dezenas de milhões de visualiza- ções. Outros portais de internet e re- des sociais replicavam massivamente o conteúdo, se apropriando dos fatos, sempre, em todas as ocasiões, se refe- rindo aos infectados como “zumbis”. Por mais clichê que fosse o termo, era exatamente com o que eles se pare- ciam. Aquela bizarrice toda dos filmes de Romero parecia real agora, estava acontecendo e não sabíamos como nos defender. No entanto, o termo não ga- nhou força e popularidade por tanto tempo quanto achei que ganharia. O assunto ficou sério demais para isso. A Hazma cresceu como formadora de opinião e se tornou uma rede gi- gante e global. Havia colaboradores no mundo todo produzindo conteúdo in- cessantemente, vazando informações e depurando teorias. Era impossível esconder tudo que caía na rede. Os grandes veículos de comunicação se renderam. As redações dos jornais en- louqueceram, as notícias eram incon- troláveis e incensuráveis. Os canais tradicionais de notícias, como a CNN, não conseguiam mais maquiar os fa- tos. Os engravatados de Washington saíram de cena. Era impossível esconder tudo que caía na rede. Os grandes veículos de comunicação se renderam. As redações dos jornais enlouqueceram, as notícias eram incontroláveis e incensuráveis. 46 a teoria do vírus cerberus Nos fóruns da Hazma, nasciam inúmeras teorias sobre a origem da doença, a maioria relaciona- da à Cerberus. A mais relevan- te, popular e fundamentada, ironicamente, soava como um tipo de teoria da conspiração maluca, mas, dado a quanti- dade de indícios, fazia todo o sentido. O laboratório teria criado o Vírus ARN49 como uma arma biológica financia- da pelo Governo dos EUA. As acusações apontavam para uma trama complexa, assus- tadora e surreal, mas eram tantos documentos, grava- ções de áudio e vídeo, que poderíamos passar dias para absorver tudo. Depoimentos de ex-funcionários, farmacólo- gos, biólogos, geneticistas e até de um ex-diretor que, por um bom tempo, abriu bastante a boca em tele- jornais contra seus ex-colegas e desafe- tos. Falava sobre o projeto de desenvolvi- 47 mento de uma superdroga testada em vilas carentes no nordeste africano, Amazônia, Haiti, Filipinas, Índia e dezenas de outros lugares vulnerá- veis. Operações ilegais envolvendo exploração farmacêutica e corrupção governamental e militar. Ilegalidade em pesquisas botâ- nicas, neurológicas e bioquímicas. Uso de hospitais, pre- sídios e até escolas como polos de tes- tes científicos, indo contra qualquer conceito de direitos humanos existente. Contratação de mi- lícias de mercená- rios na África, Ásia e América Central para captura de co- baias humanas. Sequestros, assassi- natos e torturas de adultos e crianças. Projetos nebulosos, desenvolvimen- to de bombas químicas de destruição em massa. Métodos monstruosos de higienização social e contole popu- lacional em países subdesenvolvi- dos. Persuasão e suborno de pessoas influentes dentro da ONU, OMS, OTAN e diversas outras organiza- ções de importância global. Tudo com aparente colaboração do Gover- no e Forças Armadas dos EUA. A devastação da Terra teria sido por meio de baterias de testes dessa suposta arma biológica definitiva que fugiu completamente do controle. O assunto foi discutido e divulga- do de forma tão massiva, ganhou tan- tos seguidores e colaboradores, que o ARN49 passou a ser chamado de “Ví- rus Cerberus”, inclusive pelos jornais impressos e TV. a falência da cerberus A pressão internacional sobre a Cerberus foi tão absurda, que moveu centenas de processos de investiga- ções a respeito da atuação de corpo- ração. A assessoria de imprensa do laboratório, obviamente, negou qual- A devastação da Terra teria sido por meio de baterias de testes (da Cerberus Lab) dessa suposta arma biológica definitiva que fugiu completamente do controle. 48 quer envolvimento com a pandemia, alegando que trabalhavam com a co- operação de vários hospitais e labora- tórios subsidiados ao redor do mun- do. Dizia ainda que a Cerberus estava correndo contra o tempo no desenvol- vimento de um soro contra o ARN49, que teorias conspiratórias como essa eram absurdas, irresponsáveis e paranoicas, servindo apenas para intensificar o pânico da população em um mo- mento delicado de crise global. O governo dos EUA, assim como os militares, nunca se mani- festou a respeito do apoio financeiro às pesquisas do laboratório ou so- bre o desenvolvimen- to de armas químicas, porém, desligaram- se completamente da corporação. Mas não importava o quanto se defendessem, para a opinião pública era fato que a Cerberus tinha criado a doença e deveria pagar por isso. De forma alguma poderia ainda ser responsável pelo desenvol- vimento de uma cura. 49 A OMS, antes posicionando-se alheia aos acontecimentos envol- vendo a Cerberus, se colocou contra a corporação e participou integral- mente dos processos de acusação e investigação. Exigindo que encer- rassem todas as suas atividades e fechassem suas portas, desativando todos os laboratórios e suspendendo qualquer tipo de pesquisa ou proje- to em que estivessem trabalhando. Os diretores foram presos e todos os projetos de pesquisa confiscados. A responsabilidade pela continuidade do desenvolvimento do soro passaria para outras corporações. A Cerberus saiu de cena. Voltei pro Brasil por meio de uma operação de resgate da OTAN na grande evacuação de Nova Iorque. Nos levaram para campos de refugiados e, depois, cada estrangeiro para seu país de origem. 50 Sou filha de militares, passei mi- nha vida toda transitando entre bases da Força Aérea Brasileira (FAB) e aca- demias científicas. Consegui um currículo impecável e boas in- dicações que me renderam o cargo de assessora do Gabinete de Crise da Se- cretaria de Acompanha- mento e Estudos Institu- cionais do governo brasi- leiro. Quando a pandemia se tornou uma ameaça para o Brasil, fechamos aeroportos, bloqueamos as fronteiras do país e criamos zonas de quarentena em to- dos os focos identificáveis de vírus, por menor que fossem, confinando qualquer indivíduo que manifestasse sinais de contaminação. Infelizmente, essas medidas cau- telares não foram suficientes nem eficazes. Havia rotas de contrabando, tráfico, aeroportos clandestinos, estradas ilegais e diver- sos outros meios de es- palhar o vírus para além do controle de qualquer programa de proteção. O Brasil é um país gigantesco e simplesmente não há meios de monitorar migrações interestaduais ou de desempenhar qualquer medi- da estratégica de saúde pública dessa Depoimento de Marta D. Novaes, pernambucana que morava em Brasília, assessora direta do ministro-chefe da Casa Civil. Participou da equipe estratégica do Gabinete de Crise do Governo Federal Brasileiro, criada especialmente para combater os eventos catastróficos do apocalipse pandêmico em território nacional. a guerra pandêmica 51 magnitude em tão pouco tempo. O ní- vel de disseminação viral estava além de qualquer escala epidêmica conhe- cida. Não existia protocolo para esse tipo de situação. Na época, pouco antes da guerra, recebi pessoalmente o comunicado da OMS - primei- ro e último depois do escândalo da Cerberus Lab. Era uma mensagem preocupante que refletia a derrota sistemática de vá- rios países contra os infectados em um curtíssimo es- paço de tempo. Também falavam sobre como o mun- do que, até então, entraria em uma época de maior controle de doen- ças contagiosas, se deparou com essa violenta onda de vírus causando a falência de todas as nossas forças de contenção. Foram francos em avisar que não existia cura, nem tratamento, nem previsão de de- ...não existia cura, nem tratamento, nem previsão de desenvolvimento de qualquer droga que revertesse o estado de mortos-vivos dos infectados. Cada nação deveria se defender como pudesse... senvolvimento de qualquer droga que revertesseo estado de mortos-vivos dos infectados. Cada nação deveria se de- fender como pudesse, travando, lite- ralmente, uma guerra contra os doen- tes ou padeceria. Essa mensagem, replicada para todas as autoridades do mundo que ainda resistiam, deu início a guer- ra pandêmica. Já não estávamos mais preocupados em salvar os doentes, mas em exterminá-los completamen- te. Potências como EUA e Coreia do Norte incluíram em suas estratégias de combate o uso de armamento de destruição em massa, como bombas nucleares. Houve um tipo de parceria nuclear internacional velada, em que um país ajudava outro país de interesse com in- tervenções nucleares. O Brasil tam- bém fez seus acordos e também ga- rantiu suas bombas. Uma ideia que obviamente só poderia acabar em um desastre ambiental de proporções ini- magináveis. O mundo estava conde- nado a se tornar um lugar desolado, tóxico e perigoso. 52 a fim dos meios de comunicação A queda frequente do forneci- mento de energia elétrica era só o começo da falência total de servi- ços básicos. As notícias que chega- vam eram que, em diversas regiões, grupos inteiros de trabalhadores de redes elétricas desapareciam. Isso amedrontava os demais funcioná- rios. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) informava que, devido à epidemia, muitos operários estavam afastados de suas obriga- ções, resultando em longos cortes de abastecimento pela falta de ma- nutenção, forçando a população a tomar medidas de racionamento para poupar o maquinário que fi- caria sob pouca supervisão. Porém, o mundo enfrentava uma crise sem qualquer precedente e o apagão defi- nitivo era irremediável. Logo em se- guida, outros serviços básicos, como fornecimento de água, gás, telefonia e internet, também se foram. Con- sequentemente todos os canais de rádio e TV também encerraram suas atividades. Foi o ínicio dessa época negra em relação à informação. Es- távamos cegos, surdos e mudos para o resto do mundo. Não fazíamos a menor ideia do que acontecia lá fora, em outros países e continuamos sem saber até hoje. resolução de crise O Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança criou uma força tarefa para traçar um planejamento de conten- ção, como um tipo de evacuação em massa das cidades mais populosas para regiões rurais. A reunião defini- tiva aconteceu no Palácio do Planal- to, a pedido do Presidente da Repú- blica, juntamente com representantes da Casa Civil, Ministério da Defesa e Comandos das Forças Armadas. Ficou decidido que, dada a natureza da crise e agressividade da pandemia, que dizimava cidade por cidade em uma onda crescente vindo do Norte e Sudeste do país, seria ideal seguir o exemplo de outros países na criação de zonas de contenção afastadas dos centros urbanos, que serviriam como 53 base de refugiados, protegidas com o que sobrou do exército. A população foi avisada para abandonar suas casas em busca de abrigo em terrenos elevados dis- tantes, até que pelotões de resgaste dessem encaminhamento para as áreas protegidas mais próximas. Imediatamente, as pessoas en- traram em uma corrida deses- perada de evacuação. O pânico e desordem eram tão absur- dos, que foi impossível evitar os inúmeros acidentes, sa- ques, arrastões e violência em diversos níveis. Os infectados eram como uma avalanche con- sumindo rua por rua. Arrasavam favelas - onde as pessoas eram mais numerosas, tinham menor estrutura e menos condições de se defender - multiplicando assustadoramente a quantidade de doentes. As rodo- vias de escape ficavam entupi- das de carros abandonados. Grupos de sobreviventes caminhavam para o mais longe possível de estra- das e cidades, buscando abrigo e proteção em áreas militares. 54 guerra urbana Enquanto as pessoas evacuavam as cidades, as forças armadas se con- centravam nas capitais para comba- ter diretamente as turbas de zumbis que se multiplicavam em escala im- pressionante. Soldados marchavam ganhando as ruas e estabelecendo perímetros de combate. Tanques, he- licópteros, aeronaves e todo o arsenal disponível foram designados para as áreas de conflito. As frentes de com- bate montadas pela FAB tinham o reforço de civis armados dispostos a enfrentar as turbas intermináveis que avançavam contra qualquer ser vivo que pudessem detectar. Ninguém ti- nha ideia contra o que estava lutando. O inimigo não temia a ofensiva, não se intimidava com rifles, morteiros ou granadas. Nunca recuava. Os soldados e civis extermina- vam um número incontável, no en- tanto, o som das armas e explosões atraía cada vez mais inimigos. Para cada baixa nas nossas fileiras era um monstro a mais no lado de lá. Houve pouquíssimas vitórias e, na maioria delas, poucos retornaram. Zonas de contenção Objetivamente, as zonas de con- tenção eram adaptações em prédios públicos que ofereciam uma estru- tura de segurança minimamente adequada, como hospitais, escolas e, principalmente, presídios. O gover- no federal pretendia alocar nesses refúgios todos que não estivessem apresentando os sintomas da doença e que não estivessem feridos. Os que estivessem precisando de cuidados médicos, por precaução, eram diri- gidos para clínicas móveis posicio- nadas próximo às saídas das cidades. De lá eram levados a áreas de trata- mento, adaptadas em acampamen- tos ou hospitais públicos em cida- des no interior dos Estados. Lá as pessoas fariam baterias de exames e passariam por triagens. Os que estivessem limpos eram encaminha- dos para as zonas de contenção, os que estivessem contaminados eram confinados e, após a transformação, exterminados e cremados. 55 Na época, quando abandonamos Brasília da maneira mais conturbada possível. O Ministro Chefe e o Presi- dente da República foram deslocados por helicóptero para bases militares no Nordeste. Eu e os demais funcio- nários, cerca de 50 pessoas, fomos para Base Anhanguera, adaptada em uma das penitenciárias federais de segurança máxima do Centro-oeste. Estávamos distribuídos em cinco ca- minhões do exército seguindo pela rodovia que ligava a Capital Federal a Minas Gerais. No entanto, por con- ta das estradas bloqueadas, seguimos a pé, em uma peregrinação árdua que levou semanas até o destino. Tínhamos um transmissor de rá- dio portátil e enviávamos repetições de mensagens pelo menos quatro ve- zes por dia, na tentativa de contatar mais sobreviventes e indicar Anhan- guera como possível lugar seguro. Além disso, durante o percurso, de- senvolvemos métodos de comunica- ção simples, como marcar o asfalto de rodovias, placas e paredes de pré- dios com sinais indicando a situação de cidades próximas. Quando saqueamos cidades infes- tadas em busca de alimentos, água, remédios, pilhas, material de limpe- za, armas, munição e outros equipa- 56 mentos, descobrimos o quanto o ar ao redor de grandes aglomerações de infectados pode ser tóxico e envene- nar o cérebro, causando além de do- res horríveis, alucinações e surtos de agressividade. O uso de proteção res- piratória em ambientes próximos a infectados se tornou uma obrigação. Quando finalmente chegamos a Anhanguera, havia mais de mil re- fugiados, soldados e civis trazidos de diversas cidades do Brasil e países vizinhos. Uma porção de pessoas que, de certa forma, foram influentes e importantes para manutenção e pla- nejamento estratégico e administrati- vo do lugar, além de envolvidos dire- ta ou indiretamente com a Cerberus e no processo de fim do mundo. 57 58 Terra Devastada é sobre esperanças, traumas, perdas, riscos e consequências. Sobre sobreviver em um mundo arrasado por uma pandemia apocalíptica que transfor- mou a humanidade em monstros débeis, tóxicos e car- niceiros. Sobre o desespero dos incautos remanescentes da Terra, fragilizados, exauridos e beirando a insanida- de. Sobre cruzar ermos contaminados, cidades devas- tadas, zonas insalubres, territórios desolados e trilhas nebulosas para além do que se pode imaginar. Sobre estar perdido
Compartilhar