Buscar

386730338-Terra-Devastada-Edicao-Apocalipse

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 174 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 174 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 174 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

“Quando não houver 
mais espaço no inferno, 
os mortos caminharão 
sobre a terra”
dawn of the dead, 1978
um jogo narrativo distópico 
por john bogéa
retropunk publicações
5
Primeira tiragem: Setembro de 2016 
ISBN: 978-85-64156-52-4
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 
9.610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução total 
ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem 
autorização prévia e por escrito da editora e do autor.
É permitido a impressão da 
Ficha de personagem para uso pessoal.
Terra Devastada Edição Apocalipse é 
um jogo narrativo de John Bogéa
Design de jogo, textos e 
projeto gráfico por John Bogéa.
Edição editorial por G. Moraes.
Revisão de texto por Rafael Sobral.
Obrigado, Fabrício Caxias, pela parceria 
na idealização da primeira edição do Terra 
Devastada. E também Dorival Moraes 
e todas as pessoas que contribuiram 
positivamente nas discussões sobre design 
de jogo e playtestes embrionários.
Obrigado, Fernando Del Angeles e toda a 
comunidade de fãs, pelo feedback, estímulo 
e incentivo para desenvolver uma segunda 
edição do Terra Devastada.
Obrigado, Paulo Segundo, Felipe Penna, 
Yuri Alves (Seth), Leon Mourão e 
Roberto Barreto (Betão), pelos excelentes e 
divertidos playtestes de sistema.
Obrigado, Talita Weh, Fenanda Cascardo, 
Marco Milk, Jéssica Tosim, pelo apoio 
incondicional na campanha de lançamento 
da Edição Apocalipse, Gabriel Vieira, 
Raphael Guimarães e Diego Muniz, 
pela conversão do Podcast Obituário 793 no 
primeiro cenário oficial de Terra Devastada.
o dossiê do fim do mundo, pág 10.
o paciente Zero, pág 12.
caso kulina, pág 22.
projeto acheronte, pág 27.
o vírus arn49, pág 35.
rede haZma, pág 42.
guerra pandêmica, pág 50.
sobrevientes e refugiados, pág 58.
conceitos, pág 64.
resoluções, pág 76.
convicção e horror, pág 90.
infecção, pág 97.
infectados, pág 101.
a cruZada pelo inferno, pág 120.
regras opcionais, pág 126.
a história, pág 128.
terror em anhanguera, pág 133.
ficha de personagem, pág 165.
7
Obrigado,
Adejan Alves
Aécio Benício Fernandes
Alberto Massoco Ticianelli
Alessi Cesar Cavalcante
Alex Ribeiro Da Rocha Gomes
Alexandre Lins De A. Lima
Alexandre Rafael Esperança
Alexsandro Teixeira Cuenca
Aline Callegario
Alisson Vitório De Lima
Alvaro Diogenes Bastida
Amarilio Silva
André Bogaz E Souza
André Danelon
André David Sitowski
André De Freitas David
Andre Luis De Oliveira Cruz
Andre Luiz De Mello Meirelles
Antônio Henrique Melo Cândido
Antonio Samuel Paiva Brasil
Bruno Augusto Gallo
Bruno Da Silva Soares
Bruno De Souza Ferreira
Bruno Eron Magalhães De Souza
Bruno Guedão
Bruno Lamps Santana
Bruno Maricato Villela
Bruno N Pereira
Bruno Prosaiko
Bruno Santili
Caio Andre Fernandes Batista
Caio Augusto Da Luz Lima
Caio Moya Reis
Carlos Alberto G. Da Silva Filho
Carlos Pereira
Cassiano Sonaglio
Cesar Hitos Araujo
Cesar Questor
Cibelle Barnabé Vernay
Cláudio André De Souza Lacerda
Claudio Magno De Brito
Claudio Torcato
Claus Denean
Crisitano Henrique Da Silva
Cristiano “Leishmaniose” Delira
Cristiano Alexandre Moretti
Cristovao Andrade
Daniel Bezerra Dos Santos
Daniel Dias Fragoso
Daniel Pellucci
Daniel Santos Coimbra
Daniella Madureira De Almeida
Danilo Rafael Rocha Silva
Danilo Shindi Yamakishi
Davi Da Silva Almeida Saraiva
Davi Nóbrega
David Dornelles
David Oscar Macedo De Moura
Demian Machado Walendorff
Derek Stoelting
Dido Eliphas Leão De Alencar
Diego Augusto De S. Filgueira
Diego Hortêncio Santos
Diogo Cidral De Lima
Diogo Mathias Da Silva Pinto
Diogo Nogueira
Dorival Ramos Millan
Ed Vulcao
Eder Da Costa Marques
Edney ‘Interney’ Souza
Edson Sorrilha Filho
Eduardo Fernandes
Eduardo Fernandes
Eduardo Henrique F. Rosa
Eduardo Menescal
Eduardo Menescal
Eduardo Menescal
Eduardo Moretti De Oliveira
Eduardo Rafael Miranda Feitoza
Emerson Leandro Penerari
Emílio De Souza
Erivaldo Fernandes (Erivas)
Fabiano De Jesus Da Silva
Fabio Ayres
Fábio Balestro Floriano
Fabio Cesar De Carvalho
Fabio Ferreira Pauli
Fábio Medeiros
Fábio Pendiuk
Fagner Lima Da Silva
Felipe Lomba
Felipe Malandrin
Felipe Rafael
Felipe Ribeiro Cazelli
Felipe Rodrigues Pereira
Fellipe Martins
Fernando “Rardlock” Sousa
Fernando Alves De Araújo
Filipe “Angelus” Ragazzi
Filipe Barreto Gonçalves
Flávio Cardoso De Avila
Flavio Rodrigo Sacilotto
Francis Diego Duarte Almeida
Gabriel Franchini Tornatore
Gabriel Guedes Souto
Gabriel Tomio
Geovane Passos Ribeiro
Germano Pilar Ribeiro
Gilberto José De Souza Coutinho
Gilvan José Gouvea
Giovanni De Biazzi
Giulliano Felipe H. Gonçalves
Glauber Henrique F. Da Silva
Guilherme Euripedes S. Ferreira
Guilherme Korn
Guilherme Mathias Vieira
Guilherme Oliveira Furutani
Guilherme Vieira Honorato
Gustavo Borba
Gustavo Borges
Guto Borges
Hebert M. Montarroyos Pinho
Hegel Farias
Heitor Augusto
Helder Lavigne
Helio Horacio G. De Alcantara
Helio Rodrigues Machado Neto
Higor Camara Da Silva
Igor Henrique Moura
Igor Moreno
Igor Philip Salgado F. e Silva
Isabella Barros Bellini Leite
Iuri Gelbi Silva Londe
Ivan Rodrigues
Izaack Allan Oliveira C. Paula
Jana Bianchi
Janice Ferreira Araujo
Janio Do Nascimento Lima
Jean Servolo Dos Santos
Jefferson Breno L. Pereira
Jefferson Miranda Pimentel
Jefferson Neves
8
Jefferson Tadeu Frias
João Coelho Soares
João Douglas Moção De Oliveira
João Mário Soares Silva
João Paulo Gonçales
Joao Paulo Navarro Barbosa
João Vitor Santiago
Jorge Alberto Mota Neves
Jorge Dos Santos Valpaços
José Augusto Cesar Pires Junior
José Emygdio
José Guilherme Coelho Saad
José Lima Júnior
José Rogério Rodrigues De Souza
Joycimara Rodrigues
Juliano Barbosa Ferraro
Julio Cesar Araújo
Julio Cezar Silva C. De Toledo
Julio França
Kaique Borges
Kauê Ferro Alves Rodrigues
Leandro Fernandes
Leandro Raniero Fernandes
Leonardo Arcuri Florencio
Leonardo Batalha
Leonardo Bomfim
Leonardo De F. Maciel Vilella
Leonardo De Queiroz Ribeiro
Leonardo Estevão Da Mota
Leonardo Machado Almeida
Leonardo Marcelino Vieira
Leonardo Silva Martins
Livia Von Sucro
Luan Ferreira Maurer
Lucas Bernardo Monteiro
Luciano Souza
Luiz Falcão
Luiz Garay Ahumada
Lyonn Jarrie V. M. Dos Santos
Marcelino Zanatta Ribeiro
Marcelo De Souza Rocha
Marcelo Lacerda De Góes Telles
Marcelo Lopes De Queiroga
Marco Braga
Marcos Araujo
Marcos Roberto Rodrigues
Marcus Maggioli
Marianna Santiago Cunha Lima
Mateus Barradas
Mateus Eustáquio De Oliveira
Mateus Itavo Reis
Matheus Kenji Hatanaka
Matheus Moraes Maluf
Matheus Storpirtis
Matheus Wilhelms Tavares
Maxwell Araujo Santiago Tavares
Michel Engelberg
Mikael Macial De Souza
Moises Ferrito De Barros
Nei Girão
Nicholas Ataide Minora
Ofidio Nogueira
Oscar Borges Lucas
Oz Junkieshooter
Paulo Arthur Fernandes
Paulo César Cipolatt De Oliveira
Paulo Ramon N. De Freitas
Paulo Roberto Veiga Sousa
Paulo Segundo
Pedro Gonçalves
Pedro Henrique Costa G. Carlos
Pedro Lyra Matoso
Pedro Moreno Feio De Lemos
Pedro Xavier Borges
Pensamento Coletivo
Péricles Sávio Garcia Marques
Rafael Cruz
Rafael Gustavo Neves Amon
Rafael Marcos Garófalo
Rafael Pintar Alevato
Rafael Soares Da Silva
Rafael Wyse R. Dos Santos
Raphael Lima
Raphael Sardou
Renê Ricardo
Richard Arantes
Robert Morais Thompson
Roberto Silva Levita
Roberto Tadashi Wakita Soares
Rodrigo Bandeira
Rodrigo Graeff
Rodrigo Lemão Souza
Rodrigo Lopes Da Conceição
Rodrigo Maia
Rodrigo Martin Branco
Rodrigo Nassar Cruz
Rodrigo Pontes De Lima
Rodrigo Zabridus
Romeu Queiroz Fronzaroli
Romullo Assis Dos Santos
Romulo Jorge Martins
Samuel Brulezi Furlanetto
Sarradores Do Amanha
Saulo Herbert Maia
Sérgio Matuda
Sérgio Máximo Jr.
Silvio Rivera
Simone Rolim De Moura
Solar Entretenimento
Tacio Meireles Oliveira
Talita Weh
Tanise Gayer Do Amaral
Tarcio Luiz Martins Carvalho
Thales Rodrigues Silva Carmo
Theo Madureira De A. Lima
Thiago Da Silva Fagundes
Thiago Henrique R. e Silva
Thiago Leite Ferreira De Sousa
Thiago Lucas Da Silva
Thiago Rosa Moreira
Tiago Meyer Mendes
Tulio C. Gomes
Valdir Possani
Victor Alexsandro K. Ferreira
Victor Fappi Dos Santos
Victor Peixoto Pereira
Victor R Fernandes
Victor Ventura De Souza
Vinicius De Oliveira
Viny Sampaio De Brito
Wagner MorenoSchmitz
Wallas Pereira Novo
Wellington Pequeno Meirelles
William De Mello Otomo
Wilsius De Mesquita Norte Alves
Winneton Dantas
Yago Augusto Soares Lopes,
por participarem da campanha 
de publicação do Terra Devastada 
Edição Apocalipse. Vocês foram 
realmente incríveis.
John Bogéa.
- 9 -
- 10 -
Ruas desertas, vidraças quebradas, carros abandonados, 
buracos de balas nas paredes dos prédios, sangue, moscas e 
pedaços de carne pútrida decorando todo o ambiente. Esse 
é o atual cenário na maioria das cidades do mundo, locais 
que hoje são apenas cidades fantasmas totalmente devas-
tadas. O silêncio é quebrado apenas pelo gemido e andar 
trôpego dos infectados pelo Vírus Cerberus, que peram-
bulam sem rumo por entre as ruas. Às vezes solitários, às 
vezes em grandes grupos, eles caçam, matam e os que não 
são completamente devorados retornam como membros 
dessas turbas de monstros. É impossível encontrar um lu-
gar seguro e esperar que eles simplesmente desapareçam. 
Eles estão mortos, mas vivos. Alguns deles eram pessoas 
conhecidas, amigos e parentes, agora são apenas esfome-
ados, irracionais e sujos. Criaturas em perfeita harmonia 
com o novo ambiente desastroso do mundo. Enquanto 
nós, sobreviventes - humanos - estamos em processo de 
extinção. Somos o elemento estranho nesse novo bioma.
11
As causas do apocalipse pandêmico 
nunca foram totalmente esclarecidas, 
o que temos são apenas teorias, cons-
piração, especulações e superstição.
Me chamo Karina Lancastre, sou 
jornalista, nascida em Rondônia e 
que, até poucas semanas antes do co-
meço do fim do mundo, mora-
va em Palmas, no Tocantins, 
onde trabalhava no portal 
local de notícias. Fui en-
caminhada pelo Exérci-
to Brasileiro para uma 
zona de contenção no 
centro-oeste do Brasil - a 
Base Anhanguera - assim 
como vários outros sobre-
viventes de vários outros Es-
tados, incluindo imigrantes de países 
vizinhos, como a Bolívia, Argentina, 
Peru e Colômbia. Estamos em um 
grupo de mais de mil pessoas em uma 
área fortemente protegida pelo que 
sobrou das Forças Armadas Brasilei-
ras. Essa talvez seja a maior zona de 
contenção da América do Sul.
Há seis meses venho trabalhando 
em um dossiê, recolhendo material e 
fazendo entrevistas sobre os eventos 
que mudaram completamente 
a civilização humana, tra-
çando um roteiro que re-
laciona o apocalipse pan-
dêmico com as ativida-
des ilegais da Cerberus 
Lab - uma corporação 
multinacional gigante 
da indústria bioquímica, 
conhecida por sua total falta 
de ética. Aqui conheci muita gente 
interessante, gente que esteve envol-
vida muito de perto com a verdade 
sobre os infectados. 
12
O Sudão do Sul era um país que 
tinha acabado de conseguir sua in-
dependência, finalmente livre do 
islamismo radical do Sudão, mas 
que ainda estava aprendendo 
a caminhar sozinho econô-
mica e culturalmente. Na 
época, o país sofria com 
uma guerra civil iniciada 
pela rivalidade entre o 
presidente e seu ex-vice, 
acusado de articular um 
golpe de Estado. Diversas 
milícias se uniram a cada 
lado, com confrontos marcados 
por massacres de caráter étnico. Isso 
resultou em uma das mais degradan-
tes e emergenciais situações de direi-
tos humanos do mundo. O lugar es-
tava em uma guerra ferrenha contra 
si mesmo. Simplesmente não havia 
respeito algum pela dignidade hu-
mana ou direitos civis.
Na época, a Organiza-
ção das Nações Unidades 
(ONU) tinha publicado 
um relatório assustador, 
afirmando que o governo 
do Sudão do Sul permitia 
que combatentes das forças 
paramilitares aliadas estu-
prassem mulheres como parte do 
salário. A cultura de estupro, que antes 
era um instrumento de terror e arma 
de guerra, método usado massivamen-
o paciente Zero
Depoimento de Átila A. Sales, antropólogo maranhense, membro da “Ordeiros”, uma 
ONG sediada no Brasil que luta pelos direitos humanos em países subdesenvolvidos. 
Sales estava em missão na África, investigando surtos de estupros de mulheres 
e crianças em vilarejos do interior do Sudão do Sul. A missão era engrossar um 
relatório sobre o caso para recorrer a organizações internacionais
13
te por milícias afiliadas ao Exército 
Popular de Libertação do Sudão, agora 
estava oficializada, seguindo a filoso-
fia do “façam o que puderem e tomem o 
que quiserem”.
Autorizados pelo governo, os 
soldados, além de violentarem 
mulheres (adultas e crianças), 
destruíam casas, plantações e 
executavam prisões arbitrárias, 
como forma de intimidar os 
grupos políticos de oposição à 
República. 
O pior era que a grande 
maioria das vítimas civis 
não parecia ser o resultado 
dos combates, mas de ataques 
deliberados contra a população 
inocente. Atrocidades que in-
cluíam matanças de 
formas horrendas: 
pessoas queimadas 
vivas, asfixiadas 
em contêineres, 
degoladas, castra-
das, enforcadas 
ou cortadas em pe-
daços. A Unicef chegou 
a denunciar abusos e assassinatos 
de centenas de meninas, além dos 
sequestros e recrutamentos de meni-
14
nos para serem treinados e inseridos 
como novos soldados nas milícias. 
Era comum ver jovens uniformizados 
e armados com rifles, participando 
ativamente dos massacres.
A ONU montou pouco mais de 
meia dúzia de bases para refugiados 
de guerra, todas lotadas rapidamen-
te e com mais pessoas chegando aos 
montes dia após dia. Lembro clara-
mente das filas com centenas de fa-
mílias esfarrapadas e desesperadas. 
Fiquei “hospedado” em uma dessas 
bases. Lá encontrei com meu par-
ceiro de missão, um rapaz chamado 
Oboabona, contato da Ordeiros, con-
tratado para me ajudar na viagem 
pelo interior do Estado como guia, 
consultor e tradutor. Meu inglês es-
tava um pouco enferrujado, mas, 
apesar do sotaque sudanês confuso 
(pelo menos para mim), conseguia 
me comunicar bem com a maioria 
das pessoas. Nesse sentido, Oboabo-
na não teve muito trabalho.
Meu objetivo lá era engrossar um 
relatório daquela situação de crimes 
de guerra no país, tentando assim 
justificar intervenções estrangeiras 
no que estava acontecendo. Comecei 
visitando algumas comunidades no 
interior de Jubek e de Rio Yei. Saímos 
de Juba, viajando dois dias inteiros 
em uma caminhonete velha por uma 
estrada de terra batida até chegar a 
uma comunidade pobre nas extremi-
dades do Estado, quase na fronteira 
do Congo. As denúncias 
indicavam o lugar como 
foco dos ataques, e, logo 
que cheguei, percebi a 
gravidade dos confli-
tos religiosos no local. 
Meu contato na comu-
nidade era o pastor Ja-
mes Obi, justamente a 
pessoa que tinha feito 
as primeiras denúncias 
para a Ordeiros. Obi 
era voluntário nos mo-
vimentos sociais contra 
estupros de crianças 
e, consequentemen-
te, tido como oposição 
ao governo e inimigo 
do Estado. Ele recebia 
constantes ameaças 
de morte de um grupo 
terrorista chamado “Culto Ombat-
se”. Contou que, no último ataque, o 
Ombatse invadiu uma escola comuni-
tária, sequestrou cerca de 20 crianças 
e trancou o restante lá dentro. Eles 
A ONU 
montou pouco 
mais de meia 
dúzia de 
bases para 
refugiados 
de guerra, 
todas lotadas 
rapidamente 
e com mais 
pessoas 
chegando aos 
montes dia 
após dia.
15
tocaram fogo no prédio... Não houve 
sobreviventes. Para se ter uma ideia, 
não havia carroças suficientes para 
retirar todos os corpos carbonizados.
James também disse que, semanas 
depois do atentado, uma das crianças 
sequestradas reapareceu. Um menino 
de nove anos chamado Bakri Omeruo. 
Ele foi encontrado atônito, caminhan-
do perdido em uma estrada desativa-
da a quinze quilômetros de sua casa. 
Estava realmente muito debilitado e, 
estranhamente, vestido com uma bata 
hospitalar. O caso desse menino era 
tão instigante que decidi encontrá-lo, 
entrevistá-lo e inseri-lo no meu relató-
rio. Não fazia ideia de que, na verdade, 
estava indo encontrar o que talvez fos-
se a origem da devastação da Terra.
o culto ombatse
Ombatse - que significa algo como 
“o momento final está chegando” ou “o 
fim do mundo está próximo” - era uma 
religião nativa difundida apenas pelo 
povo eggon,que habitava o estado de 
Nasarawa. Os eggon eram extrema-
mente fechados e independentes, não 
toleravam a presença de outras cren-
ças religiosas, possuíam seu próprio 
dialeto e se relacionavam apenas com 
membros da própria etnia. Os funda-
mentos originais eram tão obscuros, 
que misturavam vários elementos 
folclóricos africanos, feitiçaria e ri-
tuais sangrentos envolvendo esca-
rificações, mutilações e sacrifícios 
de pessoas que, depois da morte, se 
tornariam escravos espirituais. Acre-
ditavam em uma espécie de arrebata-
mento e retorno de forças espirituais 
tribais poderosas, que iriam causar o 
fim do mundo. É uma religião total-
mente apocalíptica.
As primeiras milícias Ombatse 
eram nigerianas e se autoidentifica-
vam como um “culto armado”. Inú-
meras células do grupo se espalharam 
pelo Congo, República do Chade, Su-
dão e Sudão do Sul, várias delas total-
mente independentes de suas raízes. 
Aparentemente, as vertentes Ombatse 
sudanesas eram bem mais violentas e 
trabalhavam como mercenárias para 
governos e multinacionais - neste caso 
específico, suponho que na arrecada-
ção forçada de cobaias humanas para 
testes farmacêuticos da Cerberus Lab.
16
o primeiro infectado
Diferente do Sudão, em que a maioria 
da população é muçulmana, o Sudão do 
Sul era formado por um misto de cristãos 
e animistas, o que foi, claro, um dos princi-
pais motivos para a separação dos países. O 
que quero dizer é que era muito comum ouvir 
histórias sobre espíritos e criaturas que viviam 
nas árvores ou encravados na terra. Muitas 
pessoas de fato praticavam o animismo.
Quando chegamos na casa da famí-
lia de Bakri - uma casinha de barro, 
nos fundos de um sítio - presenciei a 
avó do menino, acompanhada do 
que parecia ser um “conselho 
de anciãs”, fazendo uma es-
pécie de oração enquanto 
dançavam e batucavam 
tamborins em ritmo 
melancólico. A criança 
estava acorrentada pelo 
pescoço em uma viga de 
madeira, com o corpo co-
berto por um pano branco, 
dentro de um círculo de sal, 
rodeada de ossos, algodão, ovos 
e pequenos animais mortos com 
entranhas expostas. Quando me 
perceberam, calaram imediatamente. 
Senti o fedor pútrido horrível que exa-
17
quando Oboabona me contou sobre 
o mito da serpente espiritual Dam-
ballah, que é uma espécie de divin-
dade senhora dos espíritos, que dá a 
vida e traz a morte, que, nessa região, 
também era conhecida por “Zombi”. 
As mulheres estavam tentando ex-
trair o suposto veneno espiritual.
A primeira impressão que tive foi 
que se tratava de um mal chamado 
“doença do cabeceio”. Já tinha visto ca-
sos em diversas famílias de Uganda. 
Faz a vítima adormecer profunda-
mente e, como sonâmbulos, andarem 
sem destino, reagindo com violência 
contra quem cruza seu caminho, lu-
tando, arranhando e mordendo as pes-
soas que tentam detê-las. Não conse-
guem despertar nem mesmo sofrendo 
acidentes graves. Geralmente as mães 
amarravam os filhos que sofriam des-
se mal. E era exatamente o que eu es-
tava vendo: uma criança sonâmbula, 
amarrada e reagindo violentamente 
à privação. Mas, eu estava enganado. 
No caso de Bakri, se tratava de algo 
ainda mais sinistro e indignante.
Uma das senhoras me trouxe uma 
pulseira de identificação, que estava 
no pulso do menino quando o encon-
traram, do mesmo tipo que se usa em 
lava do corpo do menino, fedor que 
atraía moscas e outros insetos. Jul-
guei ser um caso extremo de necrose 
gangrenosa. O menino estava fraco, 
coberto de chagas e com a boca mu-
tilada, como se tivesse tentado comer 
os próprios lábios. Estava totalmente 
fora de si, sem nenhum sinal de ra-
cionalidade, reagindo 
violentamente a todos 
que via, atacando com 
dentadas e arranhões. 
A avó do menino, que 
visivelmente estava 
com os braços cheios 
de marcas de mordi-
das do neto, falava em 
um dialeto que eu não 
entendia. Repetia com-
pulsivamente “zombi, 
zombi, zombi...” en-
quanto riscava três li-
nhas paralelas no chão, 
tentando ilustrar algo 
que, até aquele momento, me parecia 
incompreensível. Fazia mímica com 
as mãos, pondo três dedos em riste, 
simulando um tipo de bote de cobra. 
Interpretei que talvez ela estivesse 
me avisando que o menino tinha sido 
envenenado por uma mamba-negra, 
que era bem comum na região. Foi 
O menino 
estava fraco, 
coberto de 
chagas e 
com a boca 
mutilada, 
como se tivesse 
tentado comer 
os próprios 
lábios.
18
pacientes de hospital, com um núme-
ro de série e a marca da Cerberus Lab 
- as três linhas paralelas. Foi quando 
tudo começou a fazer bastante senti-
do e eu comecei a ligar os fatos. 
a cerberus
A Cerberus Lab 
era uma gigante nor-
te-americana do setor 
bioquímico, biotecno-
lógico e farmacêutico, 
três pilares de atuação 
que eram simboliza-
dos por três colunas 
paralelas, rígidas e 
afiadas, como armas. 
Alegoricamente, as 
três cabeças de Cérbe-
ro, da mitologia grega. A personali-
dade da corporação fazia jus à semi-
ótica de sua marca, agiam de forma 
impetuosa, com apoio militarizado. 
Protegiam o teor de suas experiên-
cias com a agressividade de cães de 
guarda. Ao que parece, trabalhavam 
exclusivamente para as Forças Ar-
madas dos EUA.
A Cerberus ficou conhecida no 
mundo - pelo menos entre os grupos 
de atuação humanitária - como umas 
das corporações farmacêuticas mais 
corruptas e antiéticas em atividade. 
Diversas vezes processada criminal-
mente por experiências de medica-
mentos com consequências altamente 
nocivas. Nos anos 1990, durante uma 
epidemia de meningi-
te em Kano, centenas 
de crianças doentes 
foram objetos dos tes-
tes de uma nova vaci-
na que prometia rees-
truturar os danos da 
doença. A Cerberus 
foi acusada de enga-
nar as autoridades lo-
cais sobre a segurança 
dos testes. Não infor-
mou às famílias que se 
tratava de uma droga 
experimental, mesmo sendo fato que 
os testes poderiam apresentar efeitos 
colaterais prejudiciais à saúde a pon-
to de ser impróprio para uso huma-
no. Alegavam que o estudo clínico 
da vacina tinha sido aprovado pela 
comissão de ética do hospital onde os 
testes se realizaram, afirmando que “o 
composto estava em seu estado final 
19
de desenvolvimento, portan-
to, seguro”. Nas regiões onde a 
Cerberus atuava, não era difícil 
e nem caro para uma multina-
cional subornar as pessoas certas 
para conseguir as autorizações que 
precisavam.
Infelizmente, era comum que 
testes ilegais de medicamentos 
fossem praticados em comunida-
des de países mais vulneráveis, 
como o Sudão do Sul. Usavam 
hospitais públicos, prisões ou 
asilos como polos de testes, onde 
autoridades se mostram particu-
larmente corruptíveis. Sequer ha-
viam comissões éticas, capazes de 
exercer fiscalização para garantir a 
prestação de informações comple-
tas aos participantes, que, na maio-
ria das vezes, não faziam ideia de que 
estavam sendo cobaias.
 O aumento do desenvolvimento de 
novas drogas exigia um correspon-
dente aumento de testes clínicos 
para conseguir a aprovação das 
instituições oficiais dos gran-
des mercados dos EUA e da 
Europa. Para cada teste de 
cada novo medicamento, 
eram necessários milha-
20
res de voluntários, por isso, alguns 
laboratórios, como a Cerberus, tes-
tavam seus medicamentos primeiro 
em países subdesenvolvidos da Áfri-
ca, da Ásia ou América do Sul, para 
depois liberar o uso em países de 
primeiro mundo. Além da economia 
e da facilidade de se recrutar cobaias 
humanas, países subdesenvolvidos 
ofereciam outra vantagem: a rapidez. 
Enquanto que nos EUA, por vezes, le-
vam-se anos para reunir voluntários 
suficientes para um experimento, em 
países mais pobres, a população é tão 
carente de medicamentos, que busca 
cegamente a oportunidade de receber 
tratamento médico ou vacinação gra-
tuita, reunindo uma quantidade gran-
de de voluntários em questão de dias.
tráfico de cobaias
No momento que peguei naquela 
pulseira de identificação, tive cer-
teza que Bakri tinha sido traficado, 
vendido pelo Culto Ombatse como 
cobaia humana para a Cerberus. Já 
tinha ouvido falarde casos seme-
lhantes na Somália e Nigéria. Milí-
cias tinham formado um mercado 
humano gigantesco. Os meninos 
mais fracos, que não poderiam ser 
recrutados, eram vendidos como co-
baias para testes científicos, enquan-
to as meninas, vendidas para redes 
de prostituição infantil. Pessoas de 
localidades tão pobres que ninguém 
se importaria em procurar. Não era 
como se sumissem crianças brancas 
em cidades ricas, como Nova Ior-
que e Paris, eram crianças de cida-
des invisíveis na África, que ninguém 
sequer ouviu falar antes. Não havia 
comoção. Ninguém se importava.
Eu tinha em mãos uma prova cir-
cunstancial que relacionava a Cer-
berus ao Culto Ombatse e uma série 
de crimes. Era algo grande e que faria 
muito barulho na imprensa. Porém, 
também sabia que isso me tornava 
um alvo.
a disseminação
Algumas semanas depois do meu 
encontro com Bakri, os familiares e 
quase todas as pessoas que tiveram 
contato com ele estavam com os mes-
mos sintomas. A coisa foi se multi-
21
plicando por todos os lados, por vá-
rias famílias. As pessoas ficaram com 
medo e começaram a abandonar a 
comunidade, acreditavam que a do-
ença era provocada pela 
feitiçaria dos Ombatse. 
Algumas famílias es-
condiam seus parentes 
doentes em outros vi-
larejos ou se isolavam 
em regiões inóspitas. 
Migravam para outros 
Estados e até para ou-
tros países. Mesmo os 
que chegavam aos hos-
pitais acabavam ficando 
em leitos isolados, sem 
possibilidade de trata-
mento, simplesmente 
porque não havia tra-
tamento adequado. Ninguém sabia o 
que era aquilo.
A África é um continente difícil, 
há muita falta de informação e mui-
ta superstição, algumas comunidades 
simplesmente não se abriam para es-
trangeiros e, às vezes, nem para comu-
nidades vizinhas. E isso contribuiu 
significativamente para o avanço da 
contaminação, dificultando o acesso e 
a contenção dos infectados.
Comuniquei o que estava aconte-
cendo para a Ordeiros, que avisou a 
ONU, que avisou a OMS, que, no iní-
cio, estranhamente ignorou o caso.
No retorno à base da ONU, em 
Juba, fui abordado por agentes da 
Cerberus. Não houve diálogo, nem 
colaboração. Com aval da OMS, con-
fiscaram meus documentos, relató-
rios e fotos. Passei por horas intermi-
náveis de interrogatório e, por pouco, 
não me mantiveram preso. Eu tinha 
contatos influentes dentro da ONU 
que garantiram minha deportação 
para o Brasil.
Algumas 
famílias 
escondiam 
seus parentes 
doentes 
em outros 
vilarejos ou 
se isolavam 
em regiões 
inóspitas. 
22
Trabalhei como agente da ABIN 
por mais de vinte anos antes de pedir 
meu afastamento e me mudar com mi-
nha família para Brasília. Passei toda 
minha infância e adolescência 
no sul do Pará e conhecia 
bem como as coisas fun-
cionavam naquela região, 
desde madeireiras ilegais 
ao mercado negro de ani-
mais silvestres. Acom-
panhei de perto diversos 
conflitos indígenas com 
intervenções do Estado, par-
ticipando, inclusive, de organi-
zações ativistas pró-direitos indígenas 
no Pará e no Amazonas. Na época, re-
tornei à região como consultor, convi-
dado a trabalhar no Caso Kulina. Pes-
Depoimento de Olívio Pamplona, o “Cão de Caça”, paraense que morava em 
Brasília, agente afastado da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Trabalhou 
como consultor no caso dos Índios Kulina, acusados de canibalizarem uma equipe 
inteira de pesquisadores da Cerberus Lab no sudoeste do Amazonas.
o caso kulina
cadores acusavam vários integrantes 
de uma aldeia indígena - os Kulina - de 
supostamente serem praticantes de ca-
nibalismo.
O caso começou quando 
agentes do Instituto Brasi-
leiro do Meio Ambiente 
e dos Recursos Naturais 
Renováveis (IBAMA) 
encontraram uma série 
de corpos esquartejados, 
sem órgãos e vísceras, 
perto da aldeia, dentro do 
território da reserva, no sudoes-
te do Amazonas. Os corpos eram de 
uma equipe de pesquisa da Cerberus 
Lab, que trabalhava em um laborató-
rio instalado dentro da área florestal 
23
dos Kulina. Os pescadores dos rios 
que cortam a região disseram que os 
índios tinham devorado todos os pes-
quisadores. Viram os índios comendo 
órgãos, braços e pernas humanas nas 
beiradas dos rios, deixando a água le-
var os pedaços de carne. O caso tinha 
aterrorizado os moradores de cida-
des próximas, que se posicionavam 
de forma agressiva contra qualquer 
indígena que circulasse nas estra-
das ou áreas de comércio.
fatos duvidosos
O relatório da Polícia Federal in-
formava que os pedaços dos corpos 
tinham sido encontrados espalhados 
em uma pequena área de clareira, onde 
teria acontecido um suposto “banquete 
ritual” da aldeia.
Na verdade, achei um pouco absurdo 
todos os fatos desse caso. Eu era expe-
riente na área, conhecia algumas aldeias, 
inclusive os Kulina. Não reconhecia esse 
tipo de costume, nada fazia sentido. Acio-
nei um amigo de infância, que na época 
era diretor da OPAN - uma ONG de indi-
genistas especialistas na Amazônia nativa 
24
- que declarou em várias entrevistas 
na mídia local, que o canibalismo 
não era uma característica da cultura 
dos índios Kulina, esse seria um fato 
inédito. Eles não eram antropofági-
cos. Aliás, apenas nos primórdios das 
tribos Tupinambás e Aruaques havia 
o costume de comer carne humana. 
Isso já não acontecia mais em nenhu-
ma etnia indígena 
amazônica. Os Ku-
lina eram uma tribo 
colérica em vários 
sentidos, mas não 
tinham nenhuma 
tendência ao cani-
balismo e, mesmo 
se houvesse um caso 
desse tipo, a própria 
tribo expulsaria o 
indivíduo do conví-
vio.
Como a legislação 
brasileira proíbe 
qualquer tipo de investigação em 
tribos indígenas, impedindo a en-
trada em aldeias sem autorização 
devidamente aprovada pela FUNAI, 
o caso nunca avançou. Além disso, 
por conta das acusações e retaliação 
da população, a aldeia migrou para 
locais fechados da floresta amazôni-
ca, dificultando ainda mais as apu-
rações do caso. Um comportamento 
esperado, geralmente algumas tribos 
mais puristas se isolam na floresta de-
pois de contatos ruins com o homem 
branco. Na época, a FUNAI adotava 
a política de respeitar essa escolha dos 
índios, tentando garantir que eles per-
manecessem isolados, só intervindo 
quando surgisse alguma ameaça à so-
brevivência ou à preservação da tribo.
pesQuisa ilegal
Não era o caso de assassinato an-
tropofágico que interessava à ABIN, 
isso era um trabalho para a Polícia 
Federal. A nossa missão nesse caso 
era apurar os fatos periféricos que or-
bitavam tudo aquilo. A Cerberus Lab 
nunca se pronunciou sobre o caso, era 
como se eles não se importassem com 
as mortes dos cientistas ou simples-
mente não quisessem se expor. Tem-
pos depois, descobrimos que a insta-
lação da Cerberus na reserva Kulina 
era totalmente ilegal, revelando um 
Eles não eram 
antropofágicos. 
Aliás, apenas 
nos primórdios 
das tribos 
Tupinambás 
e Aruaques 
havia o 
costume de 
comer carne 
humana. 
25
esquema enorme de corrupção en-
volvendo deputados estaduais e fede-
rais, além de autoridades da FUNAI 
e IBAMA, que aceitaram propinas 
milionárias em troca da facilitação da 
instalação de inúmeros polos científi-
cos em áreas protegidas do Amazonas. 
Infelizmente, às vezes, ilegalmente, 
empresas de cosméticos e produtos 
farmacêuticos usa-
vam a fauna e flora 
amazônica como 
fonte de matéria
-prima para desen-
volver produtos.
As corporações 
investiam à revelia 
dos governos, que 
mal sabiam como 
lidar com essa in-
dústria e com a ex-
ploração de comu-
nidades indígenas. 
Um dos acusados, funcionário de 
alta confiança do IBAMA, confessou 
sob interrogatório que foi pressiona-
do pelo governo do Estado a dar co-
bertura a um “ensaio terapêutico” da 
Cerberus, que não respeitava mini-
mamente as normas e os cânones exi-
gidos pelos protocolos internacionais 
de segurança médica, muito menos a 
legislação brasileira, praticando uma 
violação terrível dos direitos huma-
nos e indígenas.
A ABIN sabia da péssima repu-
tação da Cerberus Lab e as práticas 
agressivas de exploração. O envolvi-mento da corporação no caso Kulina 
acendeu um sinal de alerta na agên-
cia. Suspeitávamos também que o 
governo dos EUA estava financiando 
tudo, o que tornava o esquema cor-
rupto um caso de conspiração inter-
nacional. Sabíamos também que a 
Cerberus agia com total aval da OMS 
por influência direta das Forças Ar-
madas norte-americanas, o que nos 
levou a crer que talvez se tratasse de 
uma experiência militar em fase de 
pesquisa - talvez desenvolvimento de 
drogas adrenergéticas. Quando vas-
culhamos a instalação da Cerberus, 
na antiga aldeia Kulina, encontramos 
centenas de documentações e catalo-
gações sobre a flora e fauna locais, en-
volvendo toxinas vegetais e animais, 
além de realizações de experimentos 
em inúmeras espécies de sapos, plan-
tas e insetos.
Faziam testes químicos em volun-
tários Kulina, em troca de recursos 
Faziam testes 
químicos em 
voluntários 
Kulina, em troca 
de recursos para 
a aldeia, como 
geradores de luz e 
ferramentas para 
agricultura.
26
para a aldeia, como geradores de luz 
e ferramentas para agricultura. Havia 
muito sangue no lugar, sinais de com-
bate e centenas de arquivos sobre ma-
peamento cerebral e sistema nervoso. 
Meu palpite é que os testes detonaram 
a cabeça dos voluntários, despertando 
um tipo de surto esquizofrênico e an-
tropofágico nos pacientes. Atacaram 
os cientistas, devorando-os, espalhan-
do os pedaços pelas proximidades da 
aldeia. Depois do acontecido, talvez 
os Kulina voluntários tenham sido 
escondidos pela aldeia, levados para 
lugares distantes na floresta ou sim-
plesmente fugiram sem rumo.
Arquivamos o caso por falta de 
articulação nacional e internacio-
nal e desinteresse governamental em 
cutucar uma poderosa da indústria 
bioquímica, como a Cerberus. Todo 
o esquema de corrupção permaneceu 
oculto e sem nenhuma providência.
27
Na época, o Haiti era “o lugar onde o 
diabo tirava férias”, nunca se recuperou 
totalmente do imperialismo francês 
e exploração oportunista de ou-
tros países, além disso, sofria 
com um longo histórico de 
conflitos entre grupos re-
beldes paramilitares. Pro-
blemas que nunca permi-
tiram que o país crescesse 
ou se educasse de forma 
satisfatória. Tinha o pior 
Índice de Desenvolvimento 
Humano (IDH) das Américas, 
era visivelmente o país mais subde-
senvolvido deste lado do planeta e, de-
pois do terremoto de 2010, que devas-
tou o lugar, matando milhares de pes-
soas, a maioria esmagadora da popu-
lação sobrevivente passou a viver 
abaixo da linha da miséria. A 
ONU, que ficou responsá-
vel por coordenar a ajuda 
humanitária, considerou
-o como o maior desastre 
natural que já enfrentou, 
maior ainda que a tsuna-
mi na Ásia no fim de 2004, 
pois no Haiti restaram pou-
cas estruturas locais para canali-
zar a ajuda estrangeira. A maioria das 
cidades quase foi riscada do mapa.
Depoimento de Jorge M. Sampaio, o “O Prefeito”, goiano, ex-general de 
brigada do Comando de Operações Especiais da FAB, participou da operação 
de pacificação de Porto Príncipe, na missão MINUSTAH - Missão das 
Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, combatendo forças paramilitares 
revolucionárias. Acabou descobrindo um esquema conspiratório militar envolvendo 
a Cerberus Lab e as Forças Armadas Norte-Americanas, que mantinham polos de 
pesquisa científica ilegais no país.
o projeto acheronte
28
A FAB, em uma ação combinada 
com a ONU, estava mantendo uma 
espécie de ponte aérea entre a base da 
aeronáutica do Rio de Janeiro e o ae-
roporto de Porto Príncipe. O Gabinete 
de Crise do Governo Federal do Brasil, 
que coordenava boa parte das ações de 
ajuda na América do Sul, tinha auto-
rizado o envio de vários aviões com 
equipes médicas, alimentos e remédios 
para atender as vítimas da tragédia.
A FAdH - Forças Armadas do Haiti 
- foi extinta em 1995 para tentar evitar 
a repetição dos frequentes golpes mili-
tares e assim, teoricamente, preservar 
a democracia no país. No entanto, os 
ex-soldados se mobilizaram de forma 
independente, criando diversas milí-
cias fortemente armadas. Atacavam e 
destruíam delegacias de polícia e se-
cretarias municipais em todo o país 
para assumir o controle de uma série 
de cidades e vilas. Eram cerca de quin-
ze mil homens ocupando bases aban-
donadas do antigo exército, reivin-
dicando a volta das forças militares, 
pensões e a retirada das tropas estran-
geiras do país.
A MINUSTAH era uma missão de 
paz criada pelo Conselho de Segurança 
da ONU, em 2004, para restaurar a or-
dem no Haiti. O objetivo era estabili-
zar o país, pacificar e desarmar grupos 
guerrilheiros, promover eleições livres 
e retomar o desenvolvimento institu-
cional e econômico. No entanto, movi-
mentos revolucionários de Porto Prín-
cipe organizavam inúmeras manifes-
tações agressivas contra a intervenção 
da ONU. A missão tinha sido acusada 
de colaborar com a repressão, a cor-
rupção e a epidemia de cólera de 2010 
- soldados nepaleses doentes acabaram 
contaminando o Rio Artibonite, con-
tribuindo para a disseminação da do-
ença que tinha sido erradicada do país 
há séculos. Os meios locais de impren-
sa também apoiavam os paramilitares 
e seus aliados, criando uma antipatia 
ferrenha entre a população e as tropas 
estrangeiras que chegavam ao país.
vodu e magia negra
Em geral, os haitianos são pratican-
tes de vodu, mesmo os de orientação 
cristã. O misticismo do Caribe é consi-
derado tabu pela maior parte do mun-
do ocidental e, na verdade, pouco tem 
de relação com bonequinhos de pano 
perfurados por agulhas. O vodu haitia-
29
no tem raízes africanas, chegou lá 
na época dos escravos. É, superfi-
cialmente, um misto esquisito de 
catolicismo - imposto pelos co-
lonizadores franceses - e paga-
nismo africano. Raras vertentes 
do vodu são tão agressivas e ra-
dicais que, quando viajávamos 
pelo interior do país, em certas 
estradas, recolhíamos cadáveres 
com os abdomens retalhados e 
olhos arrancados, vítimas de sa-
cerdotes voduístas bokors, em ri-
tuais de magia negra. Lembro 
que, certa vez, participamos de 
uma operação de resgate de um 
grupo de noviças italianas re-
fém de um culto vodu militari-
zado e violento. As encontramos 
mortas, empaladas, suspensas em 
estacas, expostas ao longo da es-
trada, como um tipo de aviso 
para intimidar intervenções 
estrangeiras.
o mito do Zumbi
Não eram os rituais sangrentos 
que realmente assustavam as tropas, 
mas o mito do escravo zumbi, a supos-
30
ta transformação de um ser humano 
em morto-vivo por meio de feiti-
çaria vodu. A crença era de que um 
sacerdote bokor era capaz de roubar 
o bonange de uma pessoa - sua alma 
- usando uma poção mágica chamada 
pó-de-zumbi. O medo de zumbis no 
Haiti é histórico, tratado com tanta 
seriedade que nos anos 1930 foi cria-
da uma lei que condenava a criação 
de zumbis. Um dos artigos do Código 
Penal Haitiano classifica o uso do pó-
de-zumbi como tentativa de assassina-
to, se a substância causar aparência de 
morte e resultar no enterro da vítima, 
o ato era classificado como assassina-
to. De fato, essas poções existiam, en-
contramos muitos frascos em diversas 
missões e invasões de terreiros.
As análises de laboratório do pó-
de-zumbi indicavam uma composição 
química bastante curiosa, entre as 
substâncias, havia diversas neurotoxi-
nas encontradas em espécies de plan-
tas da região. O pó inalado ou ingerido 
por seres humanos levava a um estado 
letárgico de quase morte, funcionando 
como um tipo primitivo de lobotomia 
química. Qualquer pessoa nesse estado 
se torna totalmente sugestionável e in-
capaz de reagir a dor ou cansaço.
projeto acheronte
Estávamos levando remédios para 
a região norte, além dos limites de 
Porto Príncipe, para um vilarejo pró-
ximo a Fond Diable, que sofria de um 
surto de malária. Os habitantes nos 
receberam com total antipatia, alguns 
chegavam a gritar nos mandando em-
bora. Eles estavam zangados e com 
medo, rejeitaram nossos remédios e 
se negavam a falar conosco. No en-
tanto uma senhora chamada Mama 
Adonia, ex-enfermeirado Hospital 
Geral de Porto Príncipe, herbalis-
ta e dona de um terreiro vodu, im-
pressionantemente culta e bastante 
influente naquela comunidade, acei-
tou dialogar conosco. Nos falou que 
os últimos soldados que apareceram 
no vilarejo para oferecer remédios 
só tinham trazido desgraças. Prome-
teram ajuda médica, internaram os 
jovens, fizeram experimentos neles, 
privando-os de sair ou mesmo falar 
com os familiares.
Adonia nos levou para o meio da 
mata, a uma instalação laboratorial 
abandonada, dentro de uma região de 
culto voduísta. Dizia que, na época, a 
comunidade recebia ajuda de tropas 
31
norte-americanas, incluindo clínicas 
móveis da Cerberus Lab.
Vasculhando as instalações, des-
cobrimos documentos que intitula-
vam a atividade como Projeto Ache-
ronte. Contudo não ficou claro sobre 
o que, de fato, se tratava esse projeto. 
Depois que chequei as 
listas oficiais de tropas 
voluntárias em missões 
médicas no país, não 
encontrei nenhum re-
gistro sobre a Cerberus, 
o que me levou a con-
cluir que era uma ação 
totalmente clandestina.
Segundo Adonia, 
quando os agentes 
abandonaram as insta-
lações, levaram todos 
os pacientes embora. 
Nunca mais souberam 
de nada sobre essas 
pessoas, com exceção 
de um rapaz chamado Cedric Nar-
cisse, que fugiu da privação e passou 
semanas escondido no terreiro. Ele 
estava doente, física e psicologica-
mente. Apresentava febre, muita dor 
muscular e formigamento intenso na 
pele, a ponto de precisarem amarrar 
Ele acordou 
dentro do 
caixão. Com 
um esforço 
sobre-humano 
conseguiu 
quebrar a 
madeira e 
cavar a terra 
fofa para a 
superfície.
suas mãos para que ele não coçasse 
até rasgar a carne. Tinha extrema di-
ficuldade para respirar.
Acabou morrendo em agonia an-
tes mesmo de ser levado a um hos-
pital. Teve um velório breve e um 
enterro humilde no cemitério local, 
cerca de dois quilômetros ao sul da 
comunidade. Semanas depois, inex-
plicavelmente, ele acordou dentro do 
caixão. Com um esforço sobre-hu-
mano conseguiu quebrar a madeira 
e cavar a terra fofa para a superfície. 
Vagou semanas na mata, completa-
mente atônito, sem rumo, sem água 
ou comida, até encontrar uma estra-
da e instintivamente seguir por ela. 
Foi reconhecido pelos moradores 
da comunidade, que o resgataram e 
levaram para sua casa. Narcisse se 
comunicava com dificuldade, sem 
conseguir explicar com detalhes o 
que tinha acontecido e como tinha 
chegado até ali. Mas, apesar de tudo, 
conseguia responder a perguntas pes-
soais suficientes para que se confir-
masse que ele era, de fato, o homem 
que enterraram tempos atrás e que 
tinha voltado dos mortos. Depois de 
um tempo, sofria com alucinações 
constantes e comportamento vio-
32
lento, apresentando claros sinais de 
insanidade. O encaminharam para 
tratamento médico em Porto Prín-
cipe e posteriormente para um Asilo 
Manicomial.
doença misteriosa
Encontrei facilmente o manicômio 
em que Narcisse estava internado. 
Assim que entrei no pátio principal 
da instituição, dezenas de pessoas 
sujas, de cabelos desgrenhados e cor-
pos esquálidos me cercaram. Alguns 
vestiam uniformes esfarrapados, ti-
nham evidentes doenças de pele e pés 
descalços. Muitos, porém, estavam 
completamente nus. Pacientes sem 
supervisão bebendo água do esgoto 
que jorrava sobre o pátio. Nas banhei-
ras coletivas havia fezes e urina no 
lugar de água. Presenciei o momento 
em que os alimentos eram jogados no 
chão como se fossem servidos a ani-
mais. O cheiro era detestável. O cená-
rio deprimente e indignante, comum 
de manicômios públicos, era ainda 
pior naquele momento de crise.
Narcisse estava isolado, era um pa-
ciente singular e recebia atenção espe-
cial dos médicos e psiquiatras. Ficava 
em um quarto úmido nos fundos, com 
grades grossas nas portas e janelas. 
Ele era agressivo e, constantemen-
te, tentava arrancar a própria carne 
com as unhas, motivo pelo qual pas-
sava a maior parte do 
tempo preso em uma 
camisa de força refor-
çada com correntes. 
Também foi flagrado 
inúmeras vezes se ali-
mentando de ratos ou 
pombas vivas que por 
acaso entravam em 
seu quarto, obrigando 
os enfermeiros a tapa-
rem sua boca com um 
tipo de mordaça feita 
de gazes. Ele também 
apresentava uma série 
de deformidades cor-
porais, como tumores 
e crescimento desor-
denado dos músculos, 
provavelmente efei-
tos colaterais resultantes dos testes 
bioquímicos. Estava completamente 
cego, com os olhos embranquecidos 
e secos. Tinha surtos extremos de es-
quizofrenia paranóica e, nos raros mo-
mentos de lucidez, falava sobre como 
Ele era 
agressivo e, 
constantemente, 
tentava arrancar 
a própria carne 
com as unhas, 
motivo pelo qual 
passava a maior 
parte do tempo 
preso em uma 
camisa de força 
reforçada com 
correntes. 
33
perdeu o controle sobre si mesmo 
e como ficou completamente escra-
vizado depois que injetaram nele 
as vacinas. Quando perguntei se ele 
sabia algo sobre Acheronte, ficava 
aterrorizado só de ouvir a palavra, 
absolutamente perturbado e intros-
pectivo. Às vezes, deixava escapar 
frases desconexas sobre a criação 
de algo grande e perigoso demais, um 
tipo de arma venenosa criada pela 
ciência deles.
O médico de Narcisse, respon-
sável por suas análises clínicas, 
fez questão de me acompanhar. 
Era um homem sensato e me-
tódico, que tratava o caso com 
clara perplexidade. Contou 
que Narcisse apresentava 
um estado de saúde bizar-
ro, difícil de compreender 
com o nível de tecnologia 
que ele tinha disponível. 
Com exames básicos, pode-
ria se identificar claramente 
um estado de contaminação 
viral, algo parecido com ra-
bies virus, mas pior e mais ele-
gante, talvez um tipo de vírus 
da raiva nunca antes catalogado. 
Além disso, ele apresentava traços 
34
de envenenamento por tetrodotoxina 
da datura stramonium, uma planta co-
nhecida localmente por zabumba, com 
fortes substâncias psicoativas, anesté-
sicas e alucinógenas, que tornava as 
pessoas totalmente sugestionáveis, 
como um tipo de máquina humana 
induzível que ignorava os limites do 
próprio corpo - justamente um dos 
elementos do pó-de-zumbi, mas, nessa 
versão, alterada em laboratório para 
que os efeitos fossem nivelados e con-
troláveis. Ele conhecia bem os tóxicos 
das poções vodu, era um dos maiores 
especialistas do país nesse quesito e, 
contratado inúmeras vezes como con-
sultor por empresas farmacêuticas es-
trangeiras, incluindo a Cerberus Lab. 
Mas nunca participou ativamente de 
nenhum projeto. O desafio dele esta-
va em compreender como as caracte-
rísticas tóxicas de uma planta foram 
mimetizadas na cepa de um vírus. 
Infelizmente, não contava com uma 
equipe experiente e nem recursos 
para levar adiante uma pesquisa tão 
complexa quanto essa.
Mandei um relatório sobre isso para 
meus superiores, pedindo encarecida-
mente para que a ONU ou Organiza-
ção Mundial da Saúde (OMS) fossem 
informadas e tomassem as devidas 
atitudes. Como resposta, fui boico-
tado. Me deportaram de volta para o 
Brasil e me afastaram do meu posto. 
Abandonei completamente as inves-
tigações sobre o Projeto Acheronte e 
me obriguei a não pensar mais sobre 
isso até este momento.
35
Trabalhei mais de um ano em uma 
comunidade carente a oeste de Pe-
quim, como chefe de um laboratório 
de infectologia. Na época estu-
dávamos o H5N1 - o mundo 
tinha acabado de passar 
pelo surto de gripe aviá-
ria - e pelo menos vinte 
casos de Influenza ain-
da estavam sob nossa 
observação. Foi quando 
começamos a receber co-
municados do Ministério de 
Saúde sobre uma nova supergri-
pe que se espalhava em vastas áreas do 
território chinês. Os sintomas eram 
similares aos do vírus da raiva, porém 
espalhava-se rápido como uma gripe 
superpotente. Ouvíamos falar de cida-
des inteiras contaminadas e centenas 
de pessoas morrendo rapida-
mente. Quando os moradores 
da comunidade onde está-
vamos começaram a ter os 
sintomas, iniciamos ime-
diatamente o processo de 
pesquisa. Os corpos apre-
sentavam um tipo de ne-
crose crônica que afetavao sistema nervoso e fazia os 
pacientes perderem totalmen-
te a sanidade, agindo como animais 
selvagens antropofágicos. Os infecta-
dos literalmente pulavam das macas 
Depoimento de Lionel Veloso, patologista, nascido em Minas Gerais, especialista 
em infectologia e bacteriologia. Filiado a CICV (Comitê Internacional da Cruz 
Vermelha). Trabalhava como voluntário em comunidades carentes no interior da 
China pouco antes da explosão pandêmica. Viu de perto a evolução descontrolada da 
doença e chegou a participar do primeiro grupo de pesquisadores a tentar compreender 
os sintomas e possíveis causas, na tentativa de desenvolver algum tipo de cura.
o vírus arn49
36
e atacavam os enfermeiros, devoran-
do-os vivos, como se estivessem esfo-
meados. Os enfermeiros que tinham 
sido feridos por mordidas e arranhões 
passavam pelo mesmo processo de 
infecção e logo também se tornavam 
monstros. Nenhum tipo de contato 
era eficaz, não entendiam o que dizí-
amos e não conseguiam desenvolver 
nenhum tipo de comunicação. Quan-
do a situação ficou fora de controle, os 
militares transportaram nosso labora-
tório para Pequim.
Durante a viagem, o governo de-
cretou estado de calamidade pública, 
fechando as fronteiras do país na ten-
tativa de evitar que a doença se espa-
lhasse. Inúmeras zonas de quarentena 
e diversos centros de tratamento fo-
ram instalados, mesmo sendo impos-
sível conter todas as evasões pelas es-
tradas, aeroportos e vias clandestinas. 
Nos juntamos a agentes de interven-
ção da Cerberus Lab, acompanhados 
de soldados chineses. Presenciamos 
a execução de medidas de contenção 
radicais - a nível desumano - na tenta-
tiva de controle de contágio. Sempre 
que identificavam um foco da doen-
ça em alguma comunidade, isolavam 
as pessoas em zonas de quarentena 
sem dar muitas explicações. A popu-
lação obviamente ficou desesperada, 
reagindo de forma agressiva. Os mé-
dicos, trajando equipamentos anti-
contaminação especiais, procuravam 
sinais de infecção em cada pessoa. Os 
soldados mantinham prontidão, rea-
gindo violentamente ao mínimo sinal 
de qualquer revol-
ta popular. Vi muita 
gente inocente morrer 
ao se rebelar contra as 
intervenções.
Quando uma pes-
soa apresentava qual-
quer indício de conta-
minação, era encami-
nhada para a capital 
e de lá para centros 
de pesquisa avançada 
para serem estudados, 
não como pacientes, 
mas como cobaias. 
Os que apresentavam 
sintomas graves eram imediatamen-
te executados com tiros na cabeça 
e depois cremados em enormes fo-
gueiras ao ar livre, chamadas de “for-
nos”, cuja fumaça podia ser avistada 
a quilômetros de distância — esse 
era o sinal que a população das ci-
Os que 
apresentavam 
sintomas 
graves eram 
imediatamente 
executados 
com tiros na 
cabeça e depois 
cremados 
em enormes 
fogueiras...
37
dades próximas tinha para fugir o 
mais rápido possível. Essa opera-
ção da Cerberus foi desastrosa, 
transformou tudo em um caos 
ainda maior, assustando e afu-
gentando as pessoas, violando 
todo e qualquer conceito a res-
peito de direitos humanos. A 
reputação da corporação, que já 
era ruim, ficou péssima. Era ób-
vio que não conseguiriam con-
ter o avanço da doença. Além 
disso, essa atitude fez com que 
as famílias carregassem seus do-
entes para longe de hospitais ou 
centros de ajuda governamental. 
Fez com que as famílias fossem 
para bem longe, contribuindo 
para o espalhamento da peste 
para o país inteiro.
explosão 
pandêmica
Diferente de outros lugares, 
qualquer doença infeccio-
sa na China se espalhava 
vertiginosamente rápido. 
Era o país mais populoso 
do mundo, com quase um 
38
bilhão e meio de habitantes, prati-
camente um quinto da população da 
Terra morava lá. As cidades eram su-
perpopulosas e uma parcela delas com 
sistemas sanitários precários. A po-
luição urbana em algumas metrópoles 
era tão absurda, que causava proble-
mas congênitos em bebês, forçando 
os habitantes a usar diariamente más-
caras de proteção respiratória. Além 
disso, uma maioria de chineses tinha, 
culturalmente, péssimos hábitos em 
relação à higiene pessoal e alimenta-
ção, o que às vezes tornava as cidades 
verdadeiros criadouros de vírus, fun-
gos e bactérias. Para ter um panorama 
ainda melhor sobre a relação da Chi-
na com doenças infecciosas, quando 
comecei meu trabalho voluntário pela 
CICV, a Comissão Chinesa de Saúde e 
Planejamento Familiar comunicava a 
morte de quase vinte mil pessoas por 
doenças infecciosas na parte conti-
nental, um total de mais de seis mi-
lhões de casos de doenças contagiosas 
só nessa área. Entre os casos, mais 
de três milhões foram classificados 
como doenças contagiosas de classe A 
ou B, como AIDS, tuberculose, raiva, 
hepatite, febre hemorrágica, sífilis, 
disenteria e gonorreia. Lá, as doen-
ças infecciosas eram classificadas em 
três categorias: classe A, onde está a 
cólera, classe B, onde estão listadas 25 
moléstias, como hepatite viral, e clas-
se C, onde inclui dez tipos de doen-
ças, entre os quais, está a gripe. Digo 
essas coisas apenas 
para se ter uma ideia 
geral de como a China 
era um barril de pólvo-
ra quando se tratava 
de epidemias. Tudo 
lá, nesse sentido, era 
mais difícil de con-
trolar, mesmo quan-
do se conhecia os mé-
todos mais eficazes de 
contenção.
Com o tempo, fi-
camos sabendo que 
quase todos os paí-
ses entre lá e a África 
apresentavam sinais 
da doença, principal-
mente a Arábia Saudi-
ta, Irã, Afeganistão e 
Índia, mas foi na China que a doença 
realmente explodiu e, em poucas se-
manas, espalhou-se pelo mundo in-
teiro, devastando a Terra.
A China era 
um barril 
de pólvora 
quando se 
tratava de 
epidemias. 
Tudo lá, nesse 
sentido, era 
mais difícil 
de controlar, 
mesmo quando 
se conhecia os 
métodos mais 
eficazes de 
contenção.
39
virose arn49
Quando cheguei a Pequim, fui de-
signado para integrar uma equipe de 
cientistas responsável por estudar a 
fundo as causas e origem da epidemia, 
em parceria forçada com cientistas 
da Cerberus - que na verdade, agiam 
como nossos supervisores.
Logo nos primeiros testes, des-
cobrimos que se tratava de um vírus 
violento, único e praticamente indes-
trutível. Algo elegante, letal e alta-
mente contagioso. Partimos do pres-
suposto que a doença poderia ser um 
caso massivo de contato com toxinas 
alcaloides ou um novo tipo de lyssavi-
rus, ainda mais violento e contagioso. 
Essa teoria parecia fazer sentido, já 
que a causa da doença era justamen-
te quando o vírus se instalava nos 
nervos periféricos, depois no sistema 
nervoso central e dali para as glându-
las salivares, de onde se multiplicava 
e propagava através da saliva, conta-
minando as pessoas por mordedura 
ou simplesmente salivando em feri-
das abertas.
Os estágios de infecção eram exa-
tamente os mesmos em todos os ca-
sos, seja em animais ou humanos, 
variando apenas o tempo do avanço 
da doença. O vírus deixava o paciente 
com febre alta, redução de frequência 
cardíaca e surtos de insanidade, fa-
zendo-o agonizar até a morte. Depois 
de morto, um efeito único e quase in-
compreensível reiniciava o cérebro, 
dando “vida” novamente ao corpo. 
Os mapeamentos cerebrais revelavam 
que o tronco encefálico passava por 
uma mutação, convertendo-se em um 
tipo de bateria adrenergética que man-
dava impulsos tão poderosos ao longo 
do corpo que reanimava o cadáver, 
dispensando o funcionamento dos 
demais órgãos. Todas as outras regi-
ões do cérebro permaneciam desliga-
das, restando apenas os controles mo-
tores básicos e alguns instintos primi-
tivos. Não restava sequer o senso de 
autopreservação ou noção dos limites 
do corpo. Um infectado poderia, por 
exemplo, caminhar incessantemente 
até os músculos das pernas explodi-
rem e ele sequer teria noção do que 
estava acontecendo.
Inicialmente chamamos a doença 
de virose ARN49. E quanto mais es-
tudávamos sobre, mais parecia uma 
versão agressiva do vírus da raiva, 
40
com uma trama ge-
nética extremamente 
complexa e impossível 
de ser compreendida em 
tão pouco tempo.E por 
mais assertiva que fossem 
nossas teorias, nenhum 
exame confirmava nos-
sas suposições, aliás, ne-
nhum exame apresen-
tava qualquer cepa 
que conhecêssemos 
c o m p l e t a m e n t e . 
Aquilo não era algo 
natural, não perten-
cia a nenhuma linha 
lógica evolutiva. Era 
como se tivesse sido 
produzido em laborató-
rio, uma cria bastarda e 
modificada para se tornar 
letal e indestrutível, como 
uma arma, o que nos levou a 
desconfiar do interesse da Cer-
berus em nos deixar acuados e 
monitorados.
As teorias de internet, de-
núncias, acusações, processos 
e especulações a respeito do en-
volvimento da Cerberus - que to-
dos nós conhecíamos como corpo-
41
ração de interesse militar - se torna-
vam tão evidentes que começamos a 
criar arquivos fantasmas que apenas 
nós tínhamos acesso. Infelizmente, 
todo esse material se perdeu na eva-
cuação da cidade.
composto garanus
Chegamos a iniciar o processo de 
desenvolvimento de um soro que pu-
desse reverter os sintomas do vírus. 
Chamamos o projeto de Soro KVR13, 
o Composto Garanus. Permanecemos 
trabalhando incessantemente, anali-
sando dezenas de infectados, tentan-
do entender ainda mais como o vírus 
funcionava e evoluía. Mas imagine 
males mais conhecidos, como o cân-
cer, AIDS ou mesmo uma simples gri-
pe, todos levaram muito tempo para 
que pesquisadores encontrassem um 
tratamento básico para minimizar os 
sintomas, precisaríamos de dez vezes 
mais tempo e conhecimento para fa-
zer o mesmo com o ARN49.
Quando a China perdeu todas as 
frentes de resistência, os agentes da 
Cerberus levaram nossos compu-
tadores, espécimes e todo material 
de pesquisa. Fomos roubados e não 
podíamos fazer nada. Fui comple-
tamente desligado da CICV e man-
dado de volta para o Brasil. A Cer-
berus assumiu o desenvolvimento 
do Garanus, mas nunca chegaram a 
concluir - ou pelo menos nunca di-
vulgaram a conclusão.
42
Depoimento de Diego Xavier, o “Die-X”, paulista, estudante de cinema que residia 
em Nova Iorque. Era estagiário de Edição de Vídeo na CNN Internacional e 
colaborador ativo da Rede Hazma, o principal portal de internet de mídia audivisual 
independente sobre o apocalipse pandêmico. Na CNN integrava a equipe responsável 
por maquiar as notícias relacionadas a epidemia, sob ordens diretas da Time 
Warner, que, segundo boatos, estava sendo coagida por “autoridades governamentais 
discretas” direto de Washington.
a rede haZma
Eu tinha saído de São Paulo para 
estudar cinema em Nova Iorque e 
acabei conseguindo um estágio 
na CNN como editor de ví-
deo. Meu trabalho era ba-
sicamente fazer a triagem 
do material audiovisual 
que chegava dos estú-
dios correspondentes 
internacionais e encami-
nhar para a ilha de edição, 
para ser analisado. A CNN 
tinha dezenas de correspon-
dentes no mundo todo, eu era da 
equipe que cuidava do que chegava 
da Ásia e Oriente Médio. As notícias 
eram exatamente as mesmas: “A epi-
demia de uma nova supergripe chinesa 
se espalha do outro lado do mun-
do”. A doença já tinha ma-
tado milhares de pessoas 
em poucos dias e estava 
disseminando vertigi-
nosamente rápido. Na 
época, os cientistas acre-
ditavam que era um tipo 
de fusão agressiva entre o 
vírus da raiva e meningite, 
mas não existia nenhuma base 
clara pra essa informação, eram ape-
las especulações de biólogos e médi-
cos que eram divulgadas como fatos 
43
comprovados. Os produtores arran-
jaram até um grupo de virologistas 
para corroborarem com o discur-
so dos redatores do jornal, além de 
uma declaração oficial da assessoria 
de imprensa da OMS, que explicava 
os pormenores a respeito do vírus 
ARN49 e o desenvolvimento de uma 
vacina pela Cerberus Lab.
O problema é que 
nós sabíamos que 
aquilo era falso, te-
atro televisivo para 
não alarmar a po-
pulação. Os grandes 
canais de notícias 
omitiam muita infor-
mação e criavam no-
tícias otimistas sobre 
o desenvolvimento de 
uma cura. No entan-
to, tínhamos acesso 
ao material bruto antes dos editores 
e sabíamos que a Cerberus não estava 
tendo sucesso em nenhum teste de 
regressão de sintomas. Além disso, 
pelo menos nos fóruns de internet, a 
Cerberus era justamente o laborató-
rio acusado de criar o vírus, tentando 
consertar o desastre que cometeu.
Depois do 11 de setembro, os norte
-americanos se tornaram ainda mais 
paranoicos e melindrosos. O gover-
no tentava constantemente recriar 
a imagem de país indestrutível para o 
resto do mundo. Além disso, a ideia 
de nação intocável, temida e protegida 
de todo o mal, acalmava os cidadãos, 
inspirava nacionalismo e fortalecia 
a influência política. Era inadmis-
sível acreditar que o mundo estava 
acabando e que os EUA não podiam 
fazer nada. Que as forças armadas, 
ditas mais poderosas do mundo, es-
tavam em pleno declínio. A ordem 
no estúdio era que: se não estivés-
semos ganhando a guerra contra os 
infectados, pelo menos diríamos o 
contrário na mídia e evitaríamos o 
caos generalizado.
O teor das notícias passava para os 
telespectadores a sensação de que as 
coisas estavam difíceis, mas que ain-
da poderíamos manter o controle e 
reverter o problema. Estávamos deli-
beradamente despreparando a popu-
lação para o pior. Deixando todos cal-
mos e sentados em seus sofás, quan-
do deveríamos ter dito para fugirem 
para o mais longe possível dos cen-
tros urbanos. Cada frame era anali-
Os grandes 
canais de 
notícias 
omitiam muita 
informação e 
criavam notícias 
otimistas sobre o 
desenvolvimento 
de uma cura.
44
sado e editado apenas pela equipe em 
que eu estagiava, com coordenadores 
de alta confiança da Time Warner e 
supervisão constante de uns engrava-
tados do governo, que respondiam di-
reto a Washington DC. Inicialmente, 
julguei serem da NSA - Agência de 
Segurança Nacional dos EUA.
Antes de tudo 
isso, eu já era cola-
borador da Hazma 
e simplesmente não 
podia continuar 
contido diante da-
quele circo. Apesar 
de todo o cuidado 
com a segurança, 
teor e formato em 
que as notícias eram 
divulgadas, acabei 
me tornando um 
tipo de traficante 
de mídia dentro da 
CNN, vazando uma informação ou 
outra à qual tinha acesso, como en-
trevistas censuradas de diretores da 
Cerberus, contaminação de celebri-
dades e líderes políticos, a corrente 
de suicídios no Vaticano, entre ou-
tras coisas proibidas que ninguém 
jamais ficaria sabendo.
o domínio da haZma
A Rede Hazma foi uma comuni-
dade virtual - originalmente israelita 
- de jornalistas independentes, hacke-
rs, ativistas e colaboradores voluntá-
rios, como eu. Funcionava como uma 
rede anarquista de compartilhamento 
audiovisual na de-
epnet, disponibili-
zando publicamen-
te toda e qualquer 
mídia relativa aos 
eventos do apocalip-
se pandêmico - de 
vídeos a cópias de 
documentos con-
fidenciais. Havia 
também uma série 
gigante de fóruns de 
discussão, hospeda-
dos na própria Haz-
ma e em inúmeros 
outros sites apoiadores na internet 
convencional, de onde brotavam inú-
meras teorias.
A Hazma desmentia constante-
mente as notícias dos grandes canais 
de comunicação. Foi, ironicamente, 
o portal de informações mais confiá-
vel nos últimos dias da Terra. A rede 
45
sabia, por exemplo, que a origem não 
tinha sido na China, como divulga-
vam os jornais em todo o mundo. Era 
possível traçar todo o caminho do ví-
rus baseado apenas na timeline das 
mídias postadas, uma rota que come-
çava na África, passando pelo Oriente 
Médio, até a Ásia, 
depois Europa e, de 
lá, todo o mundo.
Um dos primei-
ros vídeos postados 
sobre isso foi o de 
um homem que fil-
mava uma criança 
- aparentemente sua 
filha - brincando em 
uma praça qualquer 
de Tel Aviv, quando, 
de repente, o clima 
afetivo é quebrado 
por uma correria 
descontrolada ao 
fundo. Pessoas gri-
tavam perseguidas 
por outras pessoas. O pai larga a câme-
ra e corre para pegar sua filha, mas é 
derrubado e canibalizado na frente da 
criança, que segundos depois também 
é atacada. O vídeo foi postado na Haz-
ma com o título “Apocalipse Zumbi”. 
Em menos de 24 horas já contabiliza-vam dezenas de milhões de visualiza-
ções. Outros portais de internet e re-
des sociais replicavam massivamente 
o conteúdo, se apropriando dos fatos, 
sempre, em todas as ocasiões, se refe-
rindo aos infectados como “zumbis”. 
Por mais clichê que fosse o termo, era 
exatamente com o que eles se pare-
ciam. Aquela bizarrice toda dos filmes 
de Romero parecia real agora, estava 
acontecendo e não sabíamos como nos 
defender. No entanto, o termo não ga-
nhou força e popularidade por tanto 
tempo quanto achei que ganharia. O 
assunto ficou sério demais para isso.
A Hazma cresceu como formadora 
de opinião e se tornou uma rede gi-
gante e global. Havia colaboradores no 
mundo todo produzindo conteúdo in-
cessantemente, vazando informações 
e depurando teorias. Era impossível 
esconder tudo que caía na rede. Os 
grandes veículos de comunicação se 
renderam. As redações dos jornais en-
louqueceram, as notícias eram incon-
troláveis e incensuráveis. Os canais 
tradicionais de notícias, como a CNN, 
não conseguiam mais maquiar os fa-
tos. Os engravatados de Washington 
saíram de cena.
Era impossível 
esconder tudo que 
caía na rede. Os 
grandes veículos 
de comunicação 
se renderam. 
As redações 
dos jornais 
enlouqueceram, 
as notícias eram 
incontroláveis e 
incensuráveis.
46
a teoria do 
vírus cerberus
Nos fóruns da Hazma, nasciam 
inúmeras teorias sobre a origem 
da doença, a maioria relaciona-
da à Cerberus. A mais relevan-
te, popular e fundamentada, 
ironicamente, soava como um 
tipo de teoria da conspiração 
maluca, mas, dado a quanti-
dade de indícios, fazia todo 
o sentido. O laboratório teria 
criado o Vírus ARN49 como 
uma arma biológica financia-
da pelo Governo dos EUA. As 
acusações apontavam para 
uma trama complexa, assus-
tadora e surreal, mas eram 
tantos documentos, grava-
ções de áudio e vídeo, que 
poderíamos passar dias para 
absorver tudo. Depoimentos 
de ex-funcionários, farmacólo-
gos, biólogos, geneticistas e até 
de um ex-diretor que, por um bom 
tempo, abriu bastante a boca em tele-
jornais contra seus ex-colegas e desafe-
tos. Falava sobre o projeto de desenvolvi-
47
mento de uma superdroga testada em 
vilas carentes no nordeste africano, 
Amazônia, Haiti, Filipinas, Índia e 
dezenas de outros lugares vulnerá-
veis. Operações ilegais envolvendo 
exploração farmacêutica e corrupção 
governamental e 
militar. Ilegalidade 
em pesquisas botâ-
nicas, neurológicas 
e bioquímicas. Uso 
de hospitais, pre-
sídios e até escolas 
como polos de tes-
tes científicos, indo 
contra qualquer 
conceito de direitos 
humanos existente. 
Contratação de mi-
lícias de mercená-
rios na África, Ásia 
e América Central 
para captura de co-
baias humanas. Sequestros, assassi-
natos e torturas de adultos e crianças. 
Projetos nebulosos, desenvolvimen-
to de bombas químicas de destruição 
em massa. Métodos monstruosos de 
higienização social e contole popu-
lacional em países subdesenvolvi-
dos. Persuasão e suborno de pessoas 
influentes dentro da ONU, OMS, 
OTAN e diversas outras organiza-
ções de importância global. Tudo 
com aparente colaboração do Gover-
no e Forças Armadas dos EUA.
A devastação da Terra teria sido 
por meio de baterias de testes dessa 
suposta arma biológica definitiva que 
fugiu completamente do controle.
O assunto foi discutido e divulga-
do de forma tão massiva, ganhou tan-
tos seguidores e colaboradores, que o 
ARN49 passou a ser chamado de “Ví-
rus Cerberus”, inclusive pelos jornais 
impressos e TV.
a falência 
da cerberus
A pressão internacional sobre a 
Cerberus foi tão absurda, que moveu 
centenas de processos de investiga-
ções a respeito da atuação de corpo-
ração. A assessoria de imprensa do 
laboratório, obviamente, negou qual-
A devastação 
da Terra teria 
sido por meio 
de baterias 
de testes (da 
Cerberus Lab)
dessa suposta 
arma biológica 
definitiva 
que fugiu 
completamente 
do controle.
48
quer envolvimento com a pandemia, 
alegando que trabalhavam com a co-
operação de vários hospitais e labora-
tórios subsidiados ao redor do mun-
do. Dizia ainda que a Cerberus estava 
correndo contra o tempo no desenvol-
vimento de um soro contra o ARN49, 
que teorias conspiratórias como essa eram 
absurdas, irresponsáveis e paranoicas, 
servindo apenas para intensificar o 
pânico da população em um mo-
mento delicado de crise global. O 
governo dos EUA, assim como 
os militares, nunca se mani-
festou a respeito do apoio 
financeiro às pesquisas 
do laboratório ou so-
bre o desenvolvimen-
to de armas químicas, 
porém, desligaram-
se completamente da 
corporação.
Mas não importava o 
quanto se defendessem, 
para a opinião pública era 
fato que a Cerberus tinha 
criado a doença e deveria 
pagar por isso. De forma 
alguma poderia ainda ser 
responsável pelo desenvol-
vimento de uma cura.
49
A OMS, antes posicionando-se 
alheia aos acontecimentos envol-
vendo a Cerberus, se colocou contra 
a corporação e participou integral-
mente dos processos de acusação e 
investigação. Exigindo que encer-
rassem todas as suas atividades e 
fechassem suas portas, desativando 
todos os laboratórios e suspendendo 
qualquer tipo de pesquisa ou proje-
to em que estivessem trabalhando. 
Os diretores foram presos e todos os 
projetos de pesquisa confiscados. A 
responsabilidade pela continuidade 
do desenvolvimento do soro passaria 
para outras corporações. A Cerberus 
saiu de cena.
Voltei pro Brasil por meio de uma 
operação de resgate da OTAN na 
grande evacuação de Nova Iorque. Nos 
levaram para campos de refugiados 
e, depois, cada estrangeiro para seu 
país de origem.
50
Sou filha de militares, passei mi-
nha vida toda transitando entre bases 
da Força Aérea Brasileira (FAB) e aca-
demias científicas. Consegui um 
currículo impecável e boas in-
dicações que me renderam 
o cargo de assessora do 
Gabinete de Crise da Se-
cretaria de Acompanha-
mento e Estudos Institu-
cionais do governo brasi-
leiro. Quando a pandemia 
se tornou uma ameaça para 
o Brasil, fechamos aeroportos, 
bloqueamos as fronteiras do país e 
criamos zonas de quarentena em to-
dos os focos identificáveis de vírus, 
por menor que fossem, confinando 
qualquer indivíduo que manifestasse 
sinais de contaminação.
Infelizmente, essas medidas cau-
telares não foram suficientes 
nem eficazes. Havia rotas 
de contrabando, tráfico, 
aeroportos clandestinos, 
estradas ilegais e diver-
sos outros meios de es-
palhar o vírus para além 
do controle de qualquer 
programa de proteção. O 
Brasil é um país gigantesco 
e simplesmente não há meios de 
monitorar migrações interestaduais 
ou de desempenhar qualquer medi-
da estratégica de saúde pública dessa 
Depoimento de Marta D. Novaes, pernambucana que morava em Brasília, assessora 
direta do ministro-chefe da Casa Civil. Participou da equipe estratégica do Gabinete 
de Crise do Governo Federal Brasileiro, criada especialmente para combater os 
eventos catastróficos do apocalipse pandêmico em território nacional.
a guerra pandêmica
51
magnitude em tão pouco tempo. O ní-
vel de disseminação viral estava além 
de qualquer escala epidêmica conhe-
cida. Não existia protocolo para esse 
tipo de situação.
Na época, pouco antes da guerra, 
recebi pessoalmente o comunicado 
da OMS - primei-
ro e último depois 
do escândalo da 
Cerberus Lab. Era 
uma mensagem 
preocupante que 
refletia a derrota 
sistemática de vá-
rios países contra 
os infectados em 
um curtíssimo es-
paço de tempo. 
Também falavam 
sobre como o mun-
do que, até então, 
entraria em uma 
época de maior 
controle de doen-
ças contagiosas, se 
deparou com essa 
violenta onda de 
vírus causando a falência de todas as 
nossas forças de contenção. Foram 
francos em avisar que não existia cura, 
nem tratamento, nem previsão de de-
...não existia 
cura, nem 
tratamento, 
nem previsão de 
desenvolvimento 
de qualquer 
droga que 
revertesse 
o estado de 
mortos-vivos dos 
infectados. Cada 
nação deveria se 
defender como 
pudesse...
senvolvimento de qualquer droga que 
revertesseo estado de mortos-vivos dos 
infectados. Cada nação deveria se de-
fender como pudesse, travando, lite-
ralmente, uma guerra contra os doen-
tes ou padeceria.
Essa mensagem, replicada para 
todas as autoridades do mundo que 
ainda resistiam, deu início a guer-
ra pandêmica. Já não estávamos mais 
preocupados em salvar os doentes, 
mas em exterminá-los completamen-
te. Potências como EUA e Coreia do 
Norte incluíram em suas estratégias 
de combate o uso de armamento de 
destruição em massa, como bombas 
nucleares.
Houve um tipo de parceria nuclear 
internacional velada, em que um país 
ajudava outro país de interesse com in-
tervenções nucleares. O Brasil tam-
bém fez seus acordos e também ga-
rantiu suas bombas. Uma ideia que 
obviamente só poderia acabar em um 
desastre ambiental de proporções ini-
magináveis. O mundo estava conde-
nado a se tornar um lugar desolado, 
tóxico e perigoso.
52
a fim dos meios 
de comunicação
A queda frequente do forneci-
mento de energia elétrica era só o 
começo da falência total de servi-
ços básicos. As notícias que chega-
vam eram que, em diversas regiões, 
grupos inteiros de trabalhadores de 
redes elétricas desapareciam. Isso 
amedrontava os demais funcioná-
rios. A Agência Nacional de Energia 
Elétrica (ANEEL) informava que, 
devido à epidemia, muitos operários 
estavam afastados de suas obriga-
ções, resultando em longos cortes 
de abastecimento pela falta de ma-
nutenção, forçando a população a 
tomar medidas de racionamento 
para poupar o maquinário que fi-
caria sob pouca supervisão. Porém, 
o mundo enfrentava uma crise sem 
qualquer precedente e o apagão defi-
nitivo era irremediável. Logo em se-
guida, outros serviços básicos, como 
fornecimento de água, gás, telefonia 
e internet, também se foram. Con-
sequentemente todos os canais de 
rádio e TV também encerraram suas 
atividades. Foi o ínicio dessa época 
negra em relação à informação. Es-
távamos cegos, surdos e mudos para 
o resto do mundo. Não fazíamos a 
menor ideia do que acontecia lá fora, 
em outros países e continuamos sem 
saber até hoje.
resolução de crise
O Ministro-Chefe do Gabinete de 
Segurança criou uma força tarefa para 
traçar um planejamento de conten-
ção, como um tipo de evacuação em 
massa das cidades mais populosas 
para regiões rurais. A reunião defini-
tiva aconteceu no Palácio do Planal-
to, a pedido do Presidente da Repú-
blica, juntamente com representantes 
da Casa Civil, Ministério da Defesa 
e Comandos das Forças Armadas. 
Ficou decidido que, dada a natureza 
da crise e agressividade da pandemia, 
que dizimava cidade por cidade em 
uma onda crescente vindo do Norte 
e Sudeste do país, seria ideal seguir o 
exemplo de outros países na criação 
de zonas de contenção afastadas dos 
centros urbanos, que serviriam como 
53
base de refugiados, protegidas 
com o que sobrou do exército.
A população foi avisada para 
abandonar suas casas em busca de 
abrigo em terrenos elevados dis-
tantes, até que pelotões de resgaste 
dessem encaminhamento para as 
áreas protegidas mais próximas. 
Imediatamente, as pessoas en-
traram em uma corrida deses-
perada de evacuação. O pânico 
e desordem eram tão absur-
dos, que foi impossível evitar 
os inúmeros acidentes, sa-
ques, arrastões e violência em 
diversos níveis. Os infectados 
eram como uma avalanche con-
sumindo rua por rua. Arrasavam 
favelas - onde as pessoas eram mais 
numerosas, tinham menor estrutura 
e menos condições de se defender - 
multiplicando assustadoramente a 
quantidade de doentes. As rodo-
vias de escape ficavam entupi-
das de carros abandonados. 
Grupos de sobreviventes 
caminhavam para o mais 
longe possível de estra-
das e cidades, buscando 
abrigo e proteção em 
áreas militares.
54
guerra urbana
Enquanto as pessoas evacuavam 
as cidades, as forças armadas se con-
centravam nas capitais para comba-
ter diretamente as turbas de zumbis 
que se multiplicavam em escala im-
pressionante. Soldados marchavam 
ganhando as ruas e estabelecendo 
perímetros de combate. Tanques, he-
licópteros, aeronaves e todo o arsenal 
disponível foram designados para as 
áreas de conflito. As frentes de com-
bate montadas pela FAB tinham o 
reforço de civis armados dispostos a 
enfrentar as turbas intermináveis que 
avançavam contra qualquer ser vivo 
que pudessem detectar. Ninguém ti-
nha ideia contra o que estava lutando. 
O inimigo não temia a ofensiva, não 
se intimidava com rifles, morteiros ou 
granadas. Nunca recuava.
Os soldados e civis extermina-
vam um número incontável, no en-
tanto, o som das armas e explosões 
atraía cada vez mais inimigos. Para 
cada baixa nas nossas fileiras era um 
monstro a mais no lado de lá. Houve 
pouquíssimas vitórias e, na maioria 
delas, poucos retornaram.
Zonas de 
contenção
Objetivamente, as zonas de con-
tenção eram adaptações em prédios 
públicos que ofereciam uma estru-
tura de segurança minimamente 
adequada, como hospitais, escolas e, 
principalmente, presídios. O gover-
no federal pretendia alocar nesses 
refúgios todos que não estivessem 
apresentando os sintomas da doença 
e que não estivessem feridos. Os que 
estivessem precisando de cuidados 
médicos, por precaução, eram diri-
gidos para clínicas móveis posicio-
nadas próximo às saídas das cidades. 
De lá eram levados a áreas de trata-
mento, adaptadas em acampamen-
tos ou hospitais públicos em cida-
des no interior dos Estados. Lá as 
pessoas fariam baterias de exames 
e passariam por triagens. Os que 
estivessem limpos eram encaminha-
dos para as zonas de contenção, os 
que estivessem contaminados eram 
confinados e, após a transformação, 
exterminados e cremados.
55
Na época, quando abandonamos 
Brasília da maneira mais conturbada 
possível. O Ministro Chefe e o Presi-
dente da República foram deslocados 
por helicóptero para bases militares 
no Nordeste. Eu e os demais funcio-
nários, cerca de 50 pessoas, fomos 
para Base Anhanguera, adaptada em 
uma das penitenciárias federais de 
segurança máxima do Centro-oeste. 
Estávamos distribuídos em cinco ca-
minhões do exército seguindo pela 
rodovia que ligava a Capital Federal 
a Minas Gerais. No entanto, por con-
ta das estradas bloqueadas, seguimos 
a pé, em uma peregrinação árdua que 
levou semanas até o destino.
Tínhamos um transmissor de rá-
dio portátil e enviávamos repetições 
de mensagens pelo menos quatro ve-
zes por dia, na tentativa de contatar 
mais sobreviventes e indicar Anhan-
guera como possível lugar seguro. 
Além disso, durante o percurso, de-
senvolvemos métodos de comunica-
ção simples, como marcar o asfalto 
de rodovias, placas e paredes de pré-
dios com sinais indicando a situação 
de cidades próximas.
Quando saqueamos cidades infes-
tadas em busca de alimentos, água, 
remédios, pilhas, material de limpe-
za, armas, munição e outros equipa-
56
mentos, descobrimos o quanto o ar 
ao redor de grandes aglomerações de 
infectados pode ser tóxico e envene-
nar o cérebro, causando além de do-
res horríveis, alucinações e surtos de 
agressividade. O uso de proteção res-
piratória em ambientes próximos a 
infectados se tornou uma obrigação.
Quando finalmente chegamos a 
Anhanguera, havia mais de mil re-
fugiados, soldados e civis trazidos de 
diversas cidades do Brasil e países 
vizinhos. Uma porção de pessoas 
que, de certa forma, foram influentes 
e importantes para manutenção e pla-
nejamento estratégico e administrati-
vo do lugar, além de envolvidos dire-
ta ou indiretamente com a Cerberus e 
no processo de fim do mundo.
57
58
Terra Devastada é sobre esperanças, traumas, perdas, 
riscos e consequências. Sobre sobreviver em um mundo 
arrasado por uma pandemia apocalíptica que transfor-
mou a humanidade em monstros débeis, tóxicos e car-
niceiros. Sobre o desespero dos incautos remanescentes 
da Terra, fragilizados, exauridos e beirando a insanida-
de. Sobre cruzar ermos contaminados, cidades devas-
tadas, zonas insalubres, territórios desolados e trilhas 
nebulosas para além do que se pode imaginar. Sobre 
estar perdido

Continue navegando